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A gravação ambiental feita pela vítima de crime: análise da continuidade de sua licitude após a Lei n. 13.964/2019

Environmental recordings by the victim of crime: analysis of its legality persistence after Law n. 13,964/2019

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo analisar o alcance interpretativo do art. 8º-A, § 4º, da Lei n. 9.296/1996, introduzido pela Lei n. 13.964/2019, que estabelece que apenas poderão ser utilizadas no processo penal as gravações ambientais feitas por um dos interlocutores sem o consentimento do outro “em matéria de defesa”. Indagou-se: são lícitas as gravações ambientais realizadas por vítima de crime? Quanto à metodologia, utiliza-se do raciocínio indutivo com uso de revisão bibliográfica nacional e estrangeira e de decisões judiciais sobre o tema, especialmente dos EUA, Alemanha, Portugal, cortes europeia e interamericana de direitos humanos e do STF. Conclui-se que as gravações ambientais possuem uma tipicidade de violação dos direitos fundamentais à imagem e voz, bem como o direito ao auditório. Tal tipicidade é indicativa de ilicitude. Todavia, o princípio da proporcionalidade funciona como causa excludente da ilicitude. Assim, a situação de legítima defesa probatória pela vítima de crime pode justificar o uso de gravações clandestinas, sempre que o direito a ser protegido tiver valor superior à expectativa de privacidade e de proteção à voz e à imagem do autor de crime. Conclui-se com a necessidade de uma interpretação conforme à Constituição, para se entender o que a cláusula significa “em matéria de defesa de direitos fundamentais”.

Palavras Chaves
Gravação ambiental; Pacote Anticrime; Colisão de direitos fundamentais; Proporcionalidade

Abstract

This paper aims to analyze the interpretative scope of art. 8-A, § 4, of Law No. 9.296/1996, introduced by Law No. 13.964/2019, which establishes that only environmental recordings made by one of the interlocutors without the consent of the other may be used in criminal proceedings “in matters of defense”. It was inquired: are legal the environmental recordings made by the crime victims? As for the methodology, it uses inductive reasoning with the use of national and foreign literature review and judicial decisions on the subject, especially from the USA, Germany, Portugal, European and Inter-American human rights courts and the Brazilian Supreme Court (STF). It is concluded that environmental recordings have a typicality of violation of the fundamental rights to image and voice, as well as the right to a hearing. Such typicality is indicative of illegality. However, the principle of proportionality works as an excluding cause of illegality. Thus, the situation of probative self-defense by the crime victim can justify the use of clandestine recordings, whenever the right to be protected has a higher value than the expectation of privacy and protection to the voice and image of the perpetrator of a crime. We conclude with the need for an interpretation in conformity with the Constitution, in order to understand that the clause means “in matters of defense of fundamental rights”.

Keywords
Environment recording; Anti-Crime package; Collision of fundamental rights; Proportionality

Introdução

A crescente popularização do uso de instrumentos de gravação de voz e imagem, por meio das tecnologias cada vez mais acessíveis e frequentes no cotidiano (tais como câmeras de videovigilância, smartphones, drones etc.), vem multiplicando as possibilidades de comprovação, por vítimas de crime e particulares em geral, de vários ilícitos penais, desde aqueles mais leves e triviais, até graves crimes praticados contra bens jurídicos transindividuais, contra interesses da administração pública ou até mesmo aqueles envolvendo graves violações de direitos humanos.

Nessa conjuntura, tem-se que o Supremo Tribunal Federal (STF), por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 583.937, em 19 de novembro de 2009, em rito de “repercussão geral”, decidiu, de forma ampla e genérica, pela validade probatória da gravação de áudio e/ou vídeo feita de forma oculta, por particular, sem conhecimento do outro interlocutor. Essa “abertura” concedida pela excelsa Corte, aliada ao dinâmico progresso científico e ao exponencial uso da tecnologia, traz o risco de comprimir diversos direitos fundamentais, nomeadamente o direito à imagem e o direito à palavra falada, podendo comprometer a lealdade comunicativa nas relações humanas.

Recentemente, contudo, este tema foi regulamentado de modo diverso pelo denominado “Pacote anticrime” (Lei n. 13.964/2019), que alterou a lei das interceptações telefônicas para estabelecer que, apesar de a gravação ambiental ser diligência investigatória possível, mediante prévia decisão judicial, “A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação” (Lei n. 9.296/1996, art. 8º-A, § 4º)3 3 Este dispositivo chegou a ser vetado pela Presidência, todavia o congresso o manteve, derrubando o veto. Ver: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2178170 .

Uma leitura mais ligeira do novo dispositivo pode trazer a impressão de que a permissão do uso de gravação clandestina “em matéria de defesa” seria somente pro reo, contradizendo abertamente a anterior jurisprudência do STF. O presente artigo tem por objetivo, portanto, interpretar o alcance da nova regulamentação legal, relacionada à admissibilidade da prova obtida por particulares mediante violação aos direitos à imagem e à palavra, no contexto da gravação “clandestina” de conversa ambiental pela vítima de crime (como extorsão, coação, ameaças etc.), ou por terceiro legitimamente interessado em seu esclarecimento. Assim, busca-se responder à pergunta: são lícitas as gravações ambientais realizadas por vítima de crime? Parte-se da hipótese de que a permissão legal para uso desse tipo de gravação “em matéria de defesa” também abrange a legítima defesa dos direitos fundamentais da vítima de crime, devendo a supracitada regra processual ser interpretada à luz do princípio da proporcionalidade.

Quanto à metodologia, utilizamos do raciocínio indutivo com uso de revisão bibliográfica nacional e estrangeira e de decisões judiciais sobre o tema. O trabalho se iniciará com uma visão panorâmica do tratamento das gravações ambientais feitas por particulares no direito estrangeiro, com foco nos ordenamentos jurídicos dos EUA, Alemanha, Portugal, e referências pontuais a julgamentos do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Essa escolha se justifica pela relevância da influência desses países na doutrina jurídico-criminal brasileira e pela compreensão de que a jurisprudência dos Tribunais internacionais de direitos humanos deve ser utilizada como parâmetro para as decisões do STF a respeito da interpretação dos direitos fundamentais (nesta quadra, sinteticamente entendidos como direitos humanos positivados)4 4 Uma visão decolonial do processo penal deveria avançar com a análise da doutrina e jurisprudência de outros países latino-americanos. Não o fazemos aqui pela limitação de extensão deste trabalho. .

Em seguida, analisaremos o modo como o tema era abordado na jurisprudência do STF antes do “Pacote anticrime”, sinalizando-se a fase inicial restritiva e a posterior admissibilidade ampla da gravação clandestina. O estudo do direito estrangeiro e da jurisprudência pátria iluminarão uma análise crítica quanto à possível concretização da violação aos direitos à imagem e voz nas gravações ambientais clandestinas, bem como ao denominado “direito ao auditório” do emissor (direito de decidir o círculo de pessoas que receberá sua palavra), decorrente dessas gravações.

Na sequência, veremos que essa violação de direitos poderá ter sua ilicitude excluída, à luz do princípio da proporcionalidade, quando se verificar a presença de um interesse prevalente, como é o caso de legítima defesa de direitos fundamentais, tanto pelo réu inocente, quanto pela vítima de crime. Por óbvio, não nos escapa o fato de que o processo legislativo que resultou na elaboração da norma em análise aparentemente relegou ao olvido a faceta dos interesses da vítima na problemática ora apresentada. Nada obstante, para além do argumento de autoridade que invoca a “vontade do legislador”, é essencial analisar a conformação constitucional da disposição à luz dos demais interesses em causa. De qualquer modo, como alerta Hassemer, a “qualidade objetiva da norma” nem sempre representa a “vontade do legislador’, pois, na maioria das vezes, em virtude de acordos políticos entre lideranças ou por falta de conhecimentos aprofundados sobre a matéria que está sob sua apreciação, nem mesmo o parlamentar tem clareza do resultado do seu voto (HASSEMER, 2008HASSEMER, Winfried. Direito Penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 2008., p. 219). Esperamos, dessa forma, contribuir com o aclaramento do alcance hermenêutico do art. 8º-A, § 4º, da Lei n. 9.296/1996, assegurando sua compatibilidade com as diretrizes constitucionais.

1. O tratamento da proibição de gravações ambientais por vítimas de crime no direito estrangeiro

Nos EUA, como é inerente a um país do sistema Common Law, as denominadas exclusionary rules são concebidas como remédios contra violações constitucionais desenvolvidos pela Suprema Corte em julgamentos de casos de direito (case law) sobre a validade de provas em face das seguintes Emendas Constitucionais: IV (garantia contra buscas e apreensões arbitrárias contra buscas e apreensões arbitrárias), V (devido processo legal), VI (garantia de assistência de advogado, e confrontation clause) e XIV (extensão aos Estados das garantias constitucionais) (KLOTTER, 2002KLOTTER, John C.; KANOVITZ, Jacqueline R.; KANOVITZ, Michael I. Constitutional Law. 9ª ed., Cincinnati: Anderson Publishing Co. 2002., p. 228 e ss.). Pode ser citada, nesse contexto, uma série de precedentes emblemáticos, tais como os casos Weeks v. EUA (1914)EUA. Corte Suprema. Weeks v. EUA, 1914., Miranda v. Arizona (1966)EUA. Corte Suprema. Miranda v. Arizona, 1966., Gideon v. Wainwright (1963)EUA. Corte Suprema. Gideon v. Wainwright, 1963., e Wolf v. Colorado (1949)EUA. Corte Suprema. Wolf v. Colorado, 1949..

A plena extensão das exclusionary rules a todos os procedimentos penais existentes nos EUA, independentemente de as investigações serem presididas ou executadas por agentes estaduais ou federais, somente veio a ocorrer em Mapp v. Ohio, de 1961. Foi nessa fase, conhecida como de judicial activism, que a Suprema Corte, por maioria, derrogou o aludido precedente Weeks, que dava liberdade para os Estados federados estabelecerem seus próprios remédios contra violações de direitos. Nesse diapasão, proclamou que as exclusionary rules eram mais do que apenas regras de direito probatório, elevando-as ao nível de normas constitucionais, ao afirmar que, em sendo o direito à privacidade de base constitucional, nele residia uma garantia contra invasões graves por agentes do Estado. Logo, não se poderia mais permitir que tal direito permanecesse uma promessa vazia (KAMISAR, 2002KAMISAR, Yale; LA FAVE, Wayne R.; ISRAEL, Jerold; KING, Nancy. Modern criminal procedure: cases, comments & questions. 10ª ed., St. Paul: West Publishing Company, 2002., p. 113).

Posteriormente, houve uma nova alteração nessa compreensão, entendendo atualmente a Suprema Corte que as exclusionary rules são regras de procedimento probatório, cujo principal objetivo é dissuadir as autoridades de persecução criminal de violações à constituição (deterrence effect), de forma a afiançar ao povo que não será admitido que o Estado se beneficie de suas condutas ilegais. Assim, em EUA v. Calandra, de 1974, e depois em EUA v. Jacobsen, de 1984, a Suprema Corte consolidou o entendimento de que as exclusionary rules não se aplicam aos particulares, quando estes produzem a prova ilícita, pois essa limitação está ligada à imposição de limites à atuação de agentes estatais, em prol de liberdades individuais. No entanto, quando os particulares agem sob ordem e direção dos órgãos policiais, as provas por eles obtidas estão sujeitas às exclusionary rules, conforme decidido em EUA v. Henry, de 1980 (WAYNE, 2000WAYNE, R. La Fave; JEROLD, H. Israel; NANCY, J. King. Criminal Procedure. 3ª ed. St. Paul: West Group, 2000., p. 110 et seq.).

Na Alemanha, a compreensão de que existem “proibições probatórias” (Beweisverbote) advém de precursor trabalho de Ernst Beling, em 1903. Como a Lei Fundamental alemã (Grundgesetz – GG), de 1949, não possui uma regra expressa inadmitindo as provas obtidas por meio ilícito, a matéria é tratada no âmbito do regramento dos direitos fundamentais, especialmente no que diz respeito à proteção da inviolabilidade da dignidade humana (art. 1º) e da proteção ao direito do livre desenvolvimento da personalidade (art. 2º), bem como dos consectários decorrentes do princípio do Estado de Direito (art. 20º) (AMBOS, 2009AMBOS, Kai. Las prohibiciones de prueba como límite a la averiguación de la verdad en el proceso penal. In: Las prohibiciones probatorias. Bogotá: Editorial Temis, 2009, pp. 59-145., p. 61).

Em termos infraconstitucionais, o CPP alemão (Strafprozessordnung – StPO), conquanto estabeleça uma regulação mínima de garantias contra violações às liberdades individuais, designadamente do que dispõe o seu § 136.a (que trata dos métodos proibidos de interrogatório), igualmente não apresenta uma regra genérica proibindo a utilização de provas ilícitas. Dessa forma, o entendimento germânico a respeito da matéria é fruto do hercúleo trabalho da doutrina e da jurisprudência para o fortalecimento do direito material por meios processuais, criando teorias que reconhecem proibições da prova com fundamento direto na GG (ANDRADE, 1992ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Ed. Coimbra, 1992., p. 90).

Nessa esteira, o Tribunal Federal de Justiça (Bundesgerichtshof – BGH) e o Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht – BVerfGE), durante alguns anos, trabalharam com a denominada “teoria das esferas jurídicas” (Rechtskreistheorie). Desde a década de 1990, todavia, prepondera na jurisprudência a aplicação da “teoria da ponderação” (Abwägungslehre), fulcrada no princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsgrundsat), a qual orienta que se devem sopesar os interesses de uma administração da justiça funcional e o peso da garantia constitucional. Assim, o juízo de admissibilidade das provas deve ser proporcional à gravidade do crime e ao nível de suspeita do arguido, almejando a utilização do meio menos gravoso para elucidação dos fatos (GÖSSEL, 1992GÖSSEL, Karl-Heinz. As proibições de prova no direito processual penal da República Federal da Alemanha. Revista Portuguesa de Ciências Criminais. Coimbra, v. 2, n. 3, 1992, pp. 397-441., p. 397).

Importante sublinharmos que a doutrina alemã dominante reconhece uma clara diferenciação no conceito geral de “proibições probatórias” entre as “proibições de produção de prova” (Beweiserhebungsverbote) e as “proibições de valoração da prova” (Beweisverwertungsverbote). As primeiras são extraídas de normas que limitam a obtenção de provas; as segundas regulam o uso judicial das provas obtidas, podendo estar dispostas em lei ou derivar de fundamentação teórica. Tal distinção é importante porque permite que, eventualmente, uma violação de proibição de produção não gere, forçosamente, uma proibição de valoração, da mesma forma que a não violação à regra de produção probatória também não gera, automaticamente, a necessária permissão de sua valoração (AMBOS, 2009AMBOS, Kai. Las prohibiciones de prueba como límite a la averiguación de la verdad en el proceso penal. In: Las prohibiciones probatorias. Bogotá: Editorial Temis, 2009, pp. 59-145., p. 64 et seq.).

Ao contrário do que acontece nos EUA, precedentes antigos dos tribunais alemães reconhecem a possibilidade de o particular ser alcançado pelas proibições de prova. A aplicação da teoria nesse contexto, entretanto, é menos incisiva, pois, segundo a doutrina majoritária, as regras de proibição de produção de prova se destinam primeiramente às instâncias formais de controle e de persecução criminal. Assim, os tribunais germânicos têm entendido como “valoráveis” as provas ilicitamente obtidas por particulares, exceto quando em casos de grave violação de direitos humanos fundamentais ou quando atuam como longa manus das autoridades responsáveis pela persecução criminal (ROXIN, 2019ROXIN, Claus. Derecho procesal penal. 29ª ed. Buenos Aires: Didot., 2019., p. 306).

A jurisprudência do BVerfGE, desde o primeiro “Caso Lebach” e depois no segundo “Caso do gravador”, ambos de 1973, reconhece que os direitos à imagem e à palavra falada afloram do direito fundamental ao pleno desenvolvimento da personalidade, previsto no art. 2º, § 1, da GG. Por isso, a gravação e a utilização da imagem e da palavra exigem autorização do titular do direito (ANDRADE, 2013ANDRADE, Manuel da Costa. A tutela penal da imagem na Alemanha e em Portugal: esboço comparatístico, em busca de um novo paradigma normativo. In: Direito Penal: Fundamentos Dogmáticos e Político-Criminais: Homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld. Coimbra: Ed. Coimbra, 2013, pp. 735-785.. p. 169). Na Alemanha, assim como em outros países europeus, é crime a gravação clandestina da palavra, feita por um particular, sem consentimento do outro interlocutor, nos termos § 201, do Código Penal alemão (StGB). Apesar dessa regra, em diversos precedentes o BVerfGE tem realizado a admissão de gravações ambientais produzidas por particulares realizando a ponderação de interesses, em casos de legítima defesa probatória ou equiparáveis a ela, para o esclarecimento de crimes especialmente graves, para descobrir a autoria de chantagens ou difamações anônimas, bem como para comprovar a inocência de uma pessoa (ANDRADE, 1999ANDRADE, Manuel da Costa. Comentário Conimbricense do Código Penal. Tomo I. Coimbra: Ed. Coimbra, 1999., p. 819).

Diante desse contexto legal, doutrinário e jurisprudencial germânico, é possível concluirmos que as denominadas “gravações clandestinas”, a princípio, são consideradas proibidas. Porém, em determinadas situações, elas podem ser genericamente valoradas, dentro de uma análise casuística feita à luz do método da ponderação, avaliando se havia uma justa causa para a realização da gravação ambiental e sua utilização em juízo. A situação de a vítima de crime realizar gravação ambiental é uma das situações aceitas como legítimas nessa ponderação de interesses.

Já em Portugal, o referencial normativo para as proibições de prova parte do que dispõe o art. 32, n. 8, da Constituição da República Portuguesa (CRP), o qual estabelece um regime que distingue duas grandes espécies de proibições, consoante os métodos atinjam a integridade física e moral ou atinjam a privacidade da pessoa humana. Na primeira espécie, há um quadro de interdição absoluta e, na segunda, um quadro de interdição relativa dos métodos de prova, que poderá ser afastada pelo consentimento do titular do direito ou pelas restrições constitucionais desses direitos, nos termos do art. 34, n. 2, 3 e 4, da CRP (MENDES, 2014MENDES, Paulo de Sousa. Lições de Direito Processual Penal. Coimbra: Almedina, 2014., p. 180).

No âmbito infraconstitucional, sob a epígrafe de “métodos proibidos de prova”, o art. 126 do CPP português regulamenta, de forma ampla, a proibição de obtenção e de valoração dos meios de prova, repetindo a distinção constitucional entre proibições absolutas e proibições relativas. Nas hipóteses do art. 126, n. 1 e 2, que tratam das violações à integridade física ou moral das pessoas, vigora uma proibição absoluta; no caso do n. 3, que trata da proteção à vida privada, a proibição pode ser removida pelo consentimento do titular dos direitos em causa ou afastada por mandados expedidos na forma da lei (ALBUQUERQUE, 2011ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia Direitos do Homem. 4ª ed., Lisboa: Univ. Católica, 2011., p. 335).

A doutrina portuguesa discute se o preceito do art. 126 do CPP dirige-se apenas às autoridades de persecução criminal e aos particulares que agem sob a determinação ou orientação delas, na linha da jurisprudência americana sobre as exclusionary rules e de parcela da doutrina germânica a respeito da Beweiserhebungsverbote, ou, pelo contrário, se essa norma alcança também todos os particulares. De um lado, há uma corrente no sentido de que as proibições de produção de prova não se dirigem aos particulares, pois não estão vinculados a essa norma processual, entendendo que, caso um particular venha a obter uma prova proibida, a questão ficará na esfera da valoração da prova, impondo-se aos órgãos de aplicação da lei penal a renúncia à sua utilização, sempre que a sua obtenção implique um atentado intolerável a direitos humanos (MENDES, 2014MENDES, Paulo de Sousa. Lições de Direito Processual Penal. Coimbra: Almedina, 2014., p. 181). A outra corrente sustenta que o direito português privilegia a dimensão substantiva da matéria de proibições de prova, como instrumento de garantia dos direitos fundamentais do sujeito passivo da persecução penal, sendo uma das implicações dessa compreensão a extensão das proibições de prova aos particulares. Essa última corrente apresenta um argumento racional-teleológico, ao afirmar que seria contraditório o legislador precluir a valoração de meio de prova obtido por particulares mediante violação à palavra e à imagem, mas, ao mesmo tempo, admitir as provas logradas por particulares à custa de violações tão ou mais intoleráveis a bens jurídicos pessoais, previstos no referido art. 126 do CPP (ANDRADE, 1992ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Ed. Coimbra, 1992., p. 196).

Apesar dessa divergência sobre a extensão do art. 126 do CPP, todas as regras sobre proibições de prova, embora representem limites à descoberta da verdade, constituem meios processuais para tutela de direitos materiais, garantindo a integridade de bens jurídicos prevalentemente individuais. Contudo, nem todas as violações de proibições de prova constituem crime (v.g. art. 355 do CPP), e nem todas as provas criminalmente ilícitas são processualmente proibidas, pois poderão, por exemplo, ser valoradas se o titular do direito autorizar (ALBUQUERQUE, 2011ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia Direitos do Homem. 4ª ed., Lisboa: Univ. Católica, 2011., p. 463).

Nesse toar, o direito à palavra e o direito à imagem são direitos fundamentais expressamente consagrados no art. 26, n. 1, da CRP e, portanto, autônomos em relação aos direitos à intimidade e à privacidade (CANOTILHO, 1998CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998., p. 362). Em Portugal, a proteção desses direitos tem dignidade penal, sendo crime a gravação de voz e de imagem sem consentimento do visado (art. 199 do CP). No âmbito processual, há regramentos específicos. O CPP regulamenta a realização da escuta telefônica (arts. 187 e 188) e da escuta ambiental (art. 189), proliferando diversos regimes na legislação avulsa, como, por exemplo, o que prevê o regime aplicável ao crime organizado (Lei n. 5/2002), o que regulamenta a utilização de câmeras de vídeo pelas forças e serviços de segurança em locais públicos (Lei n. 1/2005), existindo, inclusive, uma lei sobre os circuitos internos de videovigilância utilizados por entidades privadas (DL n. 35/2004). São características gerais desses regimes avulsos a prévia permissão legal, a proporcionalidade, a lealdade (colocação de avisos) e o controle pela autoridade administrativa (CAIRES, 2014CAIRES, João Gouveia de. O registo de som e imagem e as escutas ambientais. In: PALMA, Maria Fernanda et alli (Org.). Direito da investigação criminal e da prova. Coimbra: Almedina, 2014, pp. 273-298., p. 286).

Em Portugal, portanto, a gravação ambiental clandestina feita por particulares é ilícita, como regra geral, sendo fato penalmente típico. Todavia, há divergência sobre a possibilidade de se relativizar esse quadro legal e admitir a valoração dessa prova quando houver uma justa causa, como, v.g., situações de legítima defesa probatória pela vítima de crime. Para alguns, é necessária a busca de um equilíbrio virtuoso entre os diversos interesses envolvidos, de modo que nenhum seja excessivamente prejudicado, pois, embora o Estado não deva se beneficiar de ações ilícitas levadas a efeito por particulares, devido à sua tarefa constitucional de proteção dos direitos fundamentais, também não se pode desconhecer o seu dever igualmente constitucional de tutela penal efetiva (COSTA, 2013COSTA, José Neves da. Do Aproveitamento em Processo Penal das Provas Ilicitamente Obtidas por Particulares. Revista da Concorrência e Regulação. Lisboa, n. 16, 2013, pp. 295-344., p. 304). Já para outros, o regime legal da prova ilícita do CPP já é um juízo de ponderação feito pelo legislador, e o julgador não se encontra constitucionalmente legitimado a ultrapassar a opção legislativa, pois isso amplificaria a insegurança jurídica e contribuiria para enfraquecer a importante função preventiva existente no regime legal da proibição da prova (MORÃO, 2006MORÃO, Helena. O efeito-à-distância das proibições de prova no direito processual penal português. Revista portuguesa de ciência criminal – RPCC, v.16, n. 4, 2006, pp. 575-620., p. 602).

O Supremo Tribunal de Justiça português, por sua vez, no Processo n. 22/09.6YGLSB.S2, de 28 de setembro de 2011, consolidou o entendimento de que o direito à palavra e o direito à imagem não devem ser sacralizados de tal forma que se sobreponham a todo e qualquer tipo de ponderação com outros valores, assentando que o princípio da proporcionalidade deve estabelecer quais interesses hão de prevalecer. Assim, há casos em que a utilização da gravação oculta e/ou não autorizada dependerá da posição jurídica de quem a faz. Especificamente na situação de a vítima de um delito realizar a gravação com a finalidade de facilitar a persecução desses crimes, reconheceu-se que há um estado de legítima defesa ou mesmo de outras dirimentes que excluem a ilicitude dessas gravações, pois há uma prevalência do interesse de quem faz a gravação (vítima), sobre o de quem invoca o sigilo (ofensor). Consoante proclamou o Relator, o direito à segurança, embora não seja um direito absoluto, é um direito constitucional que, qualitativamente, está num nível equiparável a outros direitos fundamentais, os quais não deixam de estar sujeitos a um necessário juízo de ponderação de valores.

Em síntese, do arcabouço legal, doutrinário e jurisprudencial lusitano depreendemos que as gravações ocultas de áudio e/ou vídeo, sem consentimento do visado, são a princípio processualmente inadmissíveis e materialmente configuram fato típico criminal. Todavia, pela via da hermenêutica, reconhece-se uma “legítima defesa” ou “direito de necessidade justificante” (equivalente ao nosso “estado de necessidade”), alargando-se o uso de uma ponderação global e concreta do conflito de interesses em jogo, inerente ao princípio da proporcionalidade, que se consubstanciará em princípio reitor da matéria. Trata-se, enfim, de uma abordagem convergente com o sistema alemão, em que a proteção à palavra e à imagem cessa quando aquilo que se deseja proteger transforma-se em meio para a prática de crime.

Em arremate, é importante levarmos em consideração a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), uma vez que as suas decisões são utilizadas como parâmetros para as decisões legislativas e judiciais de vários países no âmbito europeu, bem como influenciam a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), o que, por sua vez, reflete no direito brasileiro (MAZZUOLI, 2014MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 8ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014., p. 1007).

Considerando que o TEDH trabalha com a análise de ordenamentos jurídicos díspares, sua jurisprudência busca construir um arcabouço de padrões mínimos de respeito aos direitos humanos. Há tendência pelo uso da técnica da ponderação, considerando-se que a Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH) indica a necessidade de que se sopese a proteção dos direitos humanos individuais em face da proteção dos interesses públicos inerentes ao processo penal. Assim, no que diz respeito à admissibilidade de provas ilícitas em processo penal, a jurisprudência do TEDH vem assentando que não há um direito fundamental à exclusão da prova ilicitamente obtida. Nesse toar, proclamando que a questão é de mera valoração probatória, afirma que os parâmetros de admissibilidade de provas, em tese ilícitas, são matéria afeta aos sistemas jurídicos internos de cada país, e que as suas decisões se limitam à apreciação da compatibilidade entre o procedimento adotado pelo Estado e os parâmetros do processo justo, exigido pela CEDH (art. 6º), de forma a garantir os direitos ao contraditório, à paridade de armas, à audiência e ao reexame das decisões judiciais, entre outros. Dessarte, o TEDH entende que a concessão de oportunidades processuais para a discussão sobre a validade da prova é suficiente para conferir ao processo a qualidade de justo, como se pode ver em Khan v. Reino Unido, de 2000. O TEDH entende que não é sua função corrigir eventuais erros de interpretação dos tribunais nacionais, a menos que tenha ocorrido grave violação à essência dos direitos humanos previstos na CEDH, de forma que a exclusão da prova tem sido aplicada apenas em casos extremos (MOURA, 2010MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; ZILLI, Marcos Alexandre Coelho; MONTECONRADO, Fabiola Girão. Provas ilícitas e o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. In: ELSNER, Gisela et al. (Org.). Sistema interamericano de protección de los derechos humanos y derecho penal internacional. v. 1. Montevideo: Fundación Konrad Adenauer, 2010, pp. 313-337., p. 169 e p. 317 et seq.).

Para o objetivo central deste trabalho, o precedente mais relevante do Tribunal de Estrasburgo é o famoso Schenk v. Suíça, de 1988, caso em que um particular gravou clandestinamente uma conversa telefônica com o investigado. Tal como na Alemanha e em Portugal, o artigo 179 do CP suíço tipifica essa gravação clandestina como crime, portanto ela era ilícita e não poderia, em princípio, ser admitida no processo5 5 Nesse caso, um cidadão, visando à morte da esposa, contratou os serviços de um ex-militar. Entretanto o contratado relatou à esposa do contratante a intenção deste, tendo ambos levado o caso às autoridades policiais. Sucedeu-se que durante o período das investigações, de modo autônomo, o ex-militar gravou clandestinamente uma incriminadora conversação telefônica mantida com o contratante, a qual foi utilizada de forma decisiva em seu julgamento, que resultou em condenação pelo crime de indução ao homicídio. . No entanto, devido à gravidade do crime, os tribunais suíços admitiram a valoração da prova produzida ilicitamente pelo particular. A defesa de Schenk recorreu ao TEDH, argumentando que o entendimento sufragado pela justiça suíça violava a CEDH, pois ofendia o direito a um processo e julgamento justos e o direito à presunção de inocência (art. 6º, n. 1 e 2, da CEDH). Entretanto, o TEDH aceitou o juízo de ponderação feito pelos tribunais suíços, ao deliberar que a admissão ou não de determinada prova proibida é algo que diz respeito primordialmente à jurisdição interna de cada país. Ademais, o processo deve ser considerado no seu conjunto, incluindo a forma como as provas são tratadas, tudo de modo a satisfazer as exigências de um processo justo, no sentido do art. 6º, n. 1, da CEDH, pelo que a condenação de Schenk não mereceria ser alterada.

No entanto, no caso A. v. França, de 1993, o TEDH decidiu que foi violado o direito ao respeito da “correspondência” (art. 8º da CEDH) em um caso no qual uma médica de Paris foi acusada de envolvimento numa tentativa de homicídio. Entre as provas obtidas para a condenação estava a gravação de uma conversa telefônica dela com outro suspeito que se tornara colaborador da polícia e havia consentido em fazê-la de modo clandestino. Esse precedente alinha-se à doutrina estrangeira, acima citada, no sentido de que o particular não pode ser convertido num longa manus das instâncias formais de persecução criminal, no escopo de produzir provas ilícitas.

No âmbito interamericano, o controle da observância à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) é feito pela Corte IDH. Segundo a doutrina, somente no final da década de 1990, por pressão da Comissão IDH, a Corte IDH começou a implementar o denominado “controle contencioso de convencionalidade” (MAZZUOLI, 2011MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O Controle Jurisdicional da Convencionalidade das Leis. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011., p. 84), ordenando a modificação das regras de direito interno, bem como novos julgamentos por um Estado parte, o que ficou consolidado no caso Castillo Petruzzi e outros v. Peru, de 1999 (PELLEGRINI, 2010PELLEGRINI, Lisandro. El incumplimiento de las sentencias de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. In: ELSNER, Gisela et alii (Org.). Sistema interamericano de protección de los derechos humanos y derecho penal internacional. Montevideo: Fundación Konrad Adenauer, 2010, pp. 81-102., p. 82 et seq.).

De lá para cá, não há registro de nenhum precedente que esteja especificamente ligado ao objeto deste nosso estudo. Todavia, segundo a doutrina, igualmente em matéria de prova proibida, a Corte IDH segue, em grande parte, a jurisprudência desenvolvida pelo TEDH somente determinando a exclusão da prova em casos de grave violação dos direitos humanos, como se verificou em Cabrera García y Montiel Flores v. México, de 2010, relacionado à confissão obtida por meios cruéis e desumanos. Esse precedente estabelece um limite claro à proporcionalidade na avaliação de provas ilícitas: a intangibilidade absoluta da integridade física e moral da pessoa humana (SANTALLA VARGAS, 2010SANTALLA VARGAS, Elizabeth. La múltiple faceta de la tortura y otros tratos en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos y de los Tribunales Penales Internacionales. In: et alii (Org.). Sistema interamericano de protección de los derechos humanos y derecho penal internacional. Montevideo: Fundación Konrad Adenauer, 2010, pp. 229-262., p. 234).

Assim, transpondo a jurisprudência do TEDH e da Corte IDH para o problema em pauta, verificamos que essas Cortes dificilmente reconheceriam como absolutamente ilícita a prova obtida por meio da “gravação clandestina” feita pela vítima de crime, seja por não considerarem a “gravação clandestina” um caso grave de violação de direitos humanos, seja porque tais cortes aceitam o juízo de ponderação feito pelos tribunais dos Estados partes, metodologia que elas próprias adotam, ao analisar a matéria de proibições de prova.

2. O tema da gravação ambiental pela vítima de crime no ordenamento jurídico brasileiro antes da Lei n. 13.964/2019

O direito à prova no processo penal tem dignidade constitucional, pois é a garantia de efetivação das cláusulas do contraditório e da ampla defesa, bem como do devido processo legal (art. 5º, LV e LIV, da Constituição Federal – CF). Tal direito está fundado numa lógica civilizada e racional para a resolução judicial dos conflitos (GOMES FILHO, 1997, p. 13 e 61GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.).

Assim como todos os direitos fundamentais, o direito à prova não é absoluto, devendo ser interpretado em harmonia com os demais direitos fundamentais protegidos pelo ordenamento jurídico. Nesse toar, a CF proclama que são inadmissíveis no processo as provas obtidas por meio ilícito (art. 5º, LVI). Portanto, a proibição da prova ilícita no Brasil ostenta a dignidade de garantia de um processo justo (LIMA, 2014LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 2ª ed., Salvador: Jus Podium, 2014., p. 564).

Entre nós, é usual a distinção, dentro do “gênero” prova proibida, entre prova ilícita e ilegítima, o que vem a ser fruto, sobretudo, do magistério de Ada Pellegrini Grinover calcado, por sua vez, nos ensinamentos do jurista italiano Pietro Nuvolone. Nessa linha, ilegítimos são os meios de provas realizados em contrariedade às leis processuais; já as provas ilícitas (rectius, fontes ilícitas de prova) são aquelas produzidas em afronta às leis de direito material (penal e constitucional). Dessa forma, enquanto na prova ilegítima a ilegalidade ocorre no momento de sua produção dentro do processo, a prova ilícita pressupõe uma ilegalidade na sua fonte, que em geral existe num momento anterior ao processo, mas sempre externamente a este, cujo exemplo clássico é a proscrição absoluta da tortura (GRINOVER, 1982GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal: as interceptações telefônicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982., p. 96).

As provas ilegítimas podem gerar nulidade absoluta ou relativa, ou ainda mera irregularidade, nos termos do art. 563 e seguintes do CPP brasileiro. Já a prova ilícita, à partida, não deve ser admitida no processo, porquanto proibida pela CF, mas, se indevidamente o for, ela deverá ser desentranhada, ou seja, excluída e destruída (art. 157, § 3º, do CPP), não havendo que se falar em nulidade, até mesmo porque o vício é exterior ao processo. Logo, o regime da inadmissibilidade não se confunde com o da nulidade (GOMES FILHO, 1997GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997., p. 95).

Em relação à denominada gravação clandestina, o ordenamento jurídico brasileiro - até o advento do denominado “Pacote anticrime” - apenas regrava os atos de investigação levados a efeito pelas instâncias formais de persecução criminal, de tal sorte que poderia ser classificada como um meio de obtenção de prova “atípico”, porquanto não catalogado em lei. Nesse contexto, como diligências investigatórias mais invasivas aos direitos à intimidade, à privacidade, à imagem e à palavra falada, a legislação brasileira até então somente regulamentava a “interceptação telefônica” e a “captação ambiental” nas Leis n. 9.296/1996 e n. 12.850/2013, exigindo prévia decisão judicial e avaliação da gravidade do crime, conforme catálogo legal taxativo. Com o advento da Lei n. 13.964/2019, o legislador passou a utilizar a expressão captação ambiental para se referir a toda e qualquer captação e registro de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos. A doutrina pátria, porém, sempre fez distinção entre a “interceptação” como sendo a captura do diálogo feita por terceiro, sem o conhecimento de nenhum dos interlocutores; a “escuta” como sendo a captação feita por terceiro com o conhecimento de um dos interlocutores; e a “gravação clandestina” como a captação feita por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro participante no diálogo (AVOLIO, 2010AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônica, ambientais e gravações clandestinas. 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010., p. 118).

A doutrina reconhece que o regramento legal restritivo da captação ambiental de sinais acústicos refere-se à coleta e ao registro de comunicação entre pessoas, por um terceiro, em operação oculta e simultânea à comunicação, sem o conhecimento dos interlocutores ou com o conhecimento de somente parte deles, e não à gravação realizada pelo próprio interlocutor (MALAN, 2017MALAN, Diogo. Da Captação Ambiental de Sinais Eletromagnéticos, Óticos, ou Acústicos e os Limites Relativos à Privacidade. AMBOS, Kai; ROMERO, Eneas (Coord.). Crime Organizado: Análise da Lei 12. 850/2013. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 51-81., p. 59). A maioria da doutrina debruça-se sobre a discussão da ilicitude das interceptações e escutas que, quando realizadas pelas autoridades de persecução penal, tecem críticas ao regramento legal (ARANTES FILHO, 2013; MALAN, 2017MALAN, Diogo. Da Captação Ambiental de Sinais Eletromagnéticos, Óticos, ou Acústicos e os Limites Relativos à Privacidade. AMBOS, Kai; ROMERO, Eneas (Coord.). Crime Organizado: Análise da Lei 12. 850/2013. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 51-81.; ABREU, SMANIO, 2020ABREU, Jacqueline de Souza; SMANIO, Gianluca Martins. Compatibilizando o uso de tecnologia em investigações com direitos fundamentais: o caso das interceptações ambientais. Revista brasileira de direito processual penal, v. 5, n. 3, 2020. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v5i3.262
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). O presente trabalho é restrito ao âmbito da gravação ambiental sem o consentimento do visado, discutindo o alcance da ilicitude dessa prova produzida por particular, quando age sem conhecimento das agências estatais de controle do crime.

A doutrina e a jurisprudência no Brasil usualmente não fazem a supracitada distinção entre “proibição de produção de prova” e “proibição de valoração da prova”, preferindo-se falar apenas em “inadmissibilidade da prova ilícita”. Nesse diapasão, ainda que sem confrontar essa diferenciação entre “produção” e “valoração”, Ada Grinover está entre os autores que, de forma precursora, trataram da questão em debate nesta quadra laborativa. No entender da autora, é irrelevante indagar se o ilícito foi cometido por agente público ou por particular, porque, em ambos os casos, a prova será obtida com violação aos princípios constitucionais, devendo sempre ser repudiada, não se revelando cabível a utilização da proporcionalidade do direito germânico ou da razoabilidade da jurisprudência norte-americana (GRINOVER, 1982GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal: as interceptações telefônicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982., p. 15 e 62).

Doutra banda, acolhendo a perspectiva norte-americana da problemática em tela, segmento minoritário na doutrina brasileira aceita a prova obtida ilicitamente por particulares, ao afirmar que a vedação da prova ilícita é uma garantia do indivíduo contra o Estado, ou seja, o art. 5º, LVI, da CF, tem uma função pedagógica reservada aos agentes estatais, como fator inibitório e intimidatório de eventuais práticas ilegais perpetradas por policiais e outros órgãos responsáveis pela produção da prova (OLIVEIRA, 2009OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2009., p. 330). Aliás, a própria Ada Grinover, em obra conjunta posterior, admite a prova ilícita a favor do arguido em nome da proporcionalidade, um avanço com relação ao seu posicionamento inicial pela inadmissibilidade absoluta (GRINOVER et al., 2009GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. As Nulidades no Processo Penal. 11ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009., p. 116).

Já no âmbito da jurisprudência do STF, é possível distinguir dois momentos: um inicial de proscrição das gravações clandestinas, e um segundo momento de admissibilidade, especialmente quando se trata de gravação feita pela vítima de crime.

A orientação inicial da jurisprudência do STF foi no sentido de que gravações clandestinas são ilícitas, diante da violação da privacidade e da “moralidade dos meios probatórios”. Um dos primeiros precedentes nesse sentido é de 1977 (RE n. 85.439/RJ), quando se entendeu inadmissível a pretensão do marido de fazer uso de gravação clandestina de conversa telefônica da esposa em ação de desquite, considerando-se que houve uma violação do direito à privacidade e a inadmissibilidade de sua utilização em processo judicial.

Após esse julgamento, no mesmo sentido seguiram-se outras decisões, em casos cíveis e penais6 6 Respectivamente: RE n. 100094/PR, Primeira Turma, de 1984, e RHC n. 63834/SP, Segunda Turma, de 1986. . Esse entendimento foi referendado, já na égide da atual ordem constitucional, pela composição plena da excelsa Corte por ocasião do famoso “Caso Collor”, oportunidade em que também se adotou a doutrina da inadmissibilidade da gravação clandestina, ao proclamar o reconhecimento constitucional à privacidade7 7 Ação Penal (AP) n. 307/DF, Pleno, de 13/12/1994. O tema voltou a ser apreciado no RE n. 251.445, de 2000, oportunidade em que o Ministro-Relator, em decisão monocrática, indeferiu o seguimento do apelo extremo, entendendo que a prova ilícita obtida por particular também é alcançada pela inadmissibilidade prevista na Constituição, porque sempre lesará direitos da personalidade elevados a direitos fundamentais. O caso tratava de um odontólogo investigado por abusar sexualmente de pacientes menores de idade. Um terceiro entrou no consultório dele e furtou documentos que o incriminavam, com a finalidade de extorqui-lo. Não obtendo êxito nesse intento, entregou-os à polícia. O então Min. Celso de Mello considerou essa documentação inadmissível como fonte de prova. Interessante destacar que, nas decisões do ex-ministro, existe a mesma contradição que verificamos na doutrina de Ada Grinover, pois ambos invocam as exclusionary rules para sustentar seus posicionamentos a respeito da prova proibida. Todavia o entendimento deles a respeito da possibilidade de particular produzir prova ilícita é contraditório com a jurisprudência norte-americana, na medida em que ela está consolidada em se aplicar somente às autoridades policiais e não aos particulares, conforme acima visto. .

Todavia, em um segundo momento, a jurisprudência do STF progressivamente passou a entender que a orientação de total imprestabilidade das gravações clandestinas produzidas por particulares conduzia a situações de intolerável injustiça. Nessa senda, passou a admitir a validade dessa prova nos casos em que houvesse uma excludente da ilicitude, a ser utilizada em proveito do autor da gravação para a defesa da legitimidade do seu ato8 8 Nesse sentido: HC n. 75261/MG, de 1997, HC n. 74678-1/SP, de1997 e HC n. 75.338/RJ, de 1998. .

Essa sucessão de decisões acabou progredindo para o entendimento registrado na ementa do RE n. 402.035/SP, julgado em 2003, no sentido de que “A gravação feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, nada tem de ilicitude, principalmente quando destinada a documentá-la em caso de negativa”. Tal decisão marca o início de uma série de outros precedentes que ensejarão o overruling da jurisprudência anterior9 9 No HC n. 84.203/RS, em 2004, veio a ser admitida a gravação de imagens feitas no box de uma garagem particular por uma vítima do crime de dano. No Agravo de Instrumento (AI) n. 503617/PR, em 2005, o Ministro-Relator afirmou genericamente que a “jurisprudência do Supremo Tribunal Federal orienta-se no sentido da licitude da gravação de conversa entre dois interlocutores, gravação realizada por um deles”. . A consolidação deste novo entendimento foi alcançada com o julgamento de caso submetido ao rito da repercussão geral, nos seguintes termos:

Ação penal. Prova. Gravação ambiental. Realização por um dos interlocutores sem conhecimento do outro. Validade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso extraordinário provido. Aplicação do art. 543-B, § 3º, do CPC. É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro.

(STF, RE n. 583937, rel. Min. Cezar Peluso, Pleno, j. 19/11/2009)

Esse caso tratava de prova ilícita realizada pelo próprio acusado, destinada a provar sua inocência, apesar de o verbete sumulado ter alcance muito além desta hipótese específica, entendendo que toda a gravação ambiental feita por um dos interlocutores não é ilícita. Nessa oportunidade, o Ministro relator argumentou que a jurisprudência do STF distingue a “gravação clandestina” da “interceptação clandestina”, porque a primeira não viola o disposto no art. 5º, XII, da CF, que protege o sigilo de comunicações telefônicas. Na visão do Relator, acompanhada pela maioria, a situação comunicativa é considerada como algo proprium dos interlocutores. Assim, não haveria em regra violação ao sigilo da comunicação se o próprio sujeito participante do diálogo revelar seu teor a terceiros, exceto em situações limitadas de obrigação legal ou contratual de sigilo. E, se o interlocutor pode revelar o teor do diálogo, pode registrar o conteúdo do diálogo para comprovar o que vier a revelar.

3. Gravações clandestinas: entre os direitos à imagem e voz e a legítima defesa de direitos fundamentais.

A Lei n. 13.964/2019 introduziu na Lei n. 9.296/1996 um art. 8º-A para regulamentar a “captação de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos”, para fins de investigação ou instrução criminais. Exige-se prévia autorização judicial e uma concretização do princípio da proporcionalidade, especialmente a inexistência de outro meio menos gravoso (necessidade), indícios da participação em crime (adequação) com pena superior a 4 anos (proporcionalidade em sentido estrito). Em seu art. 10-A, há a criação do crime de captação ambiental sem ordem judicial, todavia o § 1º desse dispositivo expressamente dispõe: “Não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores”.

Ademais, o novo art. 8º-A, § 4º, determina: “A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação”. O novo regramento legal indica maior rigidez na admissibilidade da gravação ambiental em processo penal. Uma leitura apressada desse dispositivo indicaria que apenas em temas pro reo é que seria possível a utilização de gravação ambiental clandestina. Entendemos que este não é o melhor entendimento.

A adequada hermenêutica da nova legislação, à luz das diretrizes constitucionais protetoras dos direitos fundamentais, deve passar por duas análises: (i) o reconhecimento da restrição dos direitos à voz e imagem nas gravações clandestinas; e (ii) o reconhecimento da possibilidade de uma legítima defesa ou mesmo de um estado de necessidade probatório, como dirimentes dessa ilicitude, guiadas pelo princípio da proporcionalidade, em casos de graves violações a direitos fundamentais.

Como acima dito, nos EUA o tema das gravações ambientais feitas por particulares não é alcançada pelas exclusionary rules, tidas como uma proibição direcionada às autoridades policiais. Tanto na Alemanha quanto em Portugal, considera-se que a gravação clandestina traz em si uma violação dos direitos à imagem e à palavra falada que enseja, a princípio, a sua não admissibilidade como meio de prova. Porém, a jurisprudência desses países consagra exceções relacionadas à legítima defesa de direitos fundamentais, como é tanto o caso do réu inocente, como o caso da vítima que se defende da prática de crime.

No Brasil, os precedentes recentes do STF têm genericamente validado o uso das gravações clandestinas como meio de prova, sem levar em consideração se houve ou não justa causa para a sua realização. Nesta linha, a nova regulamentação do crime de captação ambiental expressamente excluiu da incidência típica as gravações feitas pelo próprio interlocutor (Lei n. 9.296/1996, art. 10-A, § 1º).

Esta não nos parece ser a melhor solução, à luz do art. 5º, X, da CF, que elevou o direito à imagem ao estatuto de direito fundamental autônomo em face dos direitos à intimidade e à privacidade. Já o direito à palavra, que em geral não recebe maior atenção pela doutrina penal ou processual penal brasileira, contém uma tutela reflexa no âmbito dos direitos à intimidade e ao sigilo e à privacidade das comunicações (MORAES, 2013MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 30ª ed., São Paulo: Atlas, 2013., p.68). Contudo, deve-se considerar que o conteúdo essencial dos direitos à imagem e à palavra refere-se a todas as captações possíveis da aparência física e da voz da pessoa (GONÇALVES, 2009GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Parte Geral. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009., p. 230).

Conforme antes visto, a doutrina lusitana apresenta uma conformação mais ampla e robusta a respeito do conteúdo desses direitos. Protege-se a “confiança na volatilidade da palavra”, representada na conexão das palavras entre si e a respectiva atmosfera em que foram proferidas, havendo um verdadeiro “direito à transitoriedade da palavra” que não pode, ao arrepio do seu emissor, ser perpetuada e descontextualizada do momento em que é proferida para ser posteriormente invocada contra ele próprio (ANDRADE, 1999ANDRADE, Manuel da Costa. Comentário Conimbricense do Código Penal. Tomo I. Coimbra: Ed. Coimbra, 1999., p. 819 et seq.). Sustenta-se, igualmente, a existência de um direito à voz, sendo ilícito, sem consentimento da pessoa, registrar e divulgar a sua voz, expressão do “direito à autenticidade”, que garante o rigor da reprodução das palavras, sem manipulações, e o “direito ao auditório”, ou seja, a decidir o círculo de pessoas a quem é transmitida a imagem e a palavra (CANOTILHO, MOREIRA, 2007CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Volume I. 4ª ed., Coimbra: Ed. Coimbra, 2007., p. 467).

Com base nessa doutrina, podemos concluir que a avaliação da legitimidade da gravação feita de modo clandestino ou sem o consentimento do visado, em termos constitucionais, envolve a consideração dos direitos à imagem e à palavra falada, para além dos direitos à privacidade e à intimidade, conforme já usualmente reconhecido pela doutrina brasileira (ABREU, SMANIO, p. 1461ABREU, Jacqueline de Souza; SMANIO, Gianluca Martins. Compatibilizando o uso de tecnologia em investigações com direitos fundamentais: o caso das interceptações ambientais. Revista brasileira de direito processual penal, v. 5, n. 3, 2020. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v5i3.262
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et seq.). A princípio, deve ser entendida como violadora de direitos e, portanto, a conduta feita com a finalidade de violá-los deve ensejar a sua inadmissibilidade probatória. Aqui, cabe uma comparação com o uso de correspondência violada como meio de prova, sem permissão do autor, que requer expressamente que haja justa causa a lhe retirar a ilicitude, ou seja, “para a defesa de seu direito” (art. 233, parágrafo único, do CPP).

A resolução do problema necessariamente deverá ser buscada no caso concreto, passando pela análise de tipicidade, quanto a situações em que sequer há violação de direitos fundamentais (ou haveria lesão insignificante), e outras de ilicitude, analisando-se a eventual justa causa para a violação (ANDRADE, 1992ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Ed. Coimbra, 1992., p. 255). Poderemos ter a “redução teleológica do tipo de sentido vitimodogmático”, cujo exemplo pode ser a gravação audiovisual por sistema mecânico colocado em local público, visando à proteção da vida, da integridade física e do patrimônio, a qual, a princípio, deve considerar-se desprovida de afronta aos bens jurídicos tutelados pela incriminação. Outro exemplo é a situação em que o titular do direito vinha autorizando de forma sistemática gravações ostensivas da sua palavra e/ou imagem, e venha, posteriormente, a ser alvo de uma gravação não ostensiva no mesmo contexto, o que pode levar o agente a um erro sobre o consentimento do titular (ANDRADE, 1999ANDRADE, Manuel da Costa. Comentário Conimbricense do Código Penal. Tomo I. Coimbra: Ed. Coimbra, 1999., p. 835).

Nesses casos em que é possível se reconhecer a exclusão da tipicidade, segmento da doutrina entende que, pelo fato de as gravações sequer chegarem ao âmbito da ilicitude penal, por ausência de dolo, poderá haver uma maior abertura aos interesses que reclamam sua valoração como prova no processo, devendo ser admitidas designadamente em casos de crimes graves (BARIN, 2013BARIN, Catiuce Ribas. A valoração das gravações de áudio produzidas por particulares como prova no processo penal. Revista da Concorrência e Regulação. Lisboa, n. 16, 2013, pp. 245-294., p. 255). Sem embargo, como refere Costa Andrade, a maioria da doutrina europeia prefere tratar essa temática no âmbito das causas de exclusão da ilicitude, ainda que com diferentes construções dogmáticas, com posições doutrinais que trabalham com as tradicionais dirimentes da legítima defesa e do estado de necessidade, enquanto outros preferem falar em “prossecução de interesse legítimos” ou “situação-de-quase-legítima-defesa” entre outras “novas causas de justificação” (ANDRADE, 1992ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Ed. Coimbra, 1992., p. 258 e ss).

Nessa linha de raciocínio, é possível considerarmos a presença de uma espécie de “legítima defesa probatória”, quando o autor da gravação clandestina pretende colher provas para obviar práticas delitivas de que esteja sendo vítima, designadamente aquelas mais graves, tais como a extorsão, a violência doméstica, as propostas de corrupção ou o incitamento à prática de outros comportamentos criminosos ou altamente censuráveis. Por outro lado, também é possível vislumbrar uma situação semelhante ao “estado de necessidade probatório”, que ocorre, por exemplo, quando o autor realiza a gravação clandestina de conversa mantida com testemunha do crime, a qual, por fundamentado receio de represálias, se recusa a depor perante as autoridades das agências formais de persecução criminal (ANDRADE, 1999ANDRADE, José Carlos Viera de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1998., p. 836)10 10 De antemão, é imaginável a crítica dessa solução dogmática com o argumento de que tanto a legítima defesa como o estado de necessidade exigem que a agressão seja atual ou iminente e que no curso do processo já seria uma agressão pretérita, o que tornaria sem fundamento o reconhecimento dessas excludentes. No entanto, a doutrina destaca a diferença entre “meios de obtenção de prova” e “meios de prova”. Os meios de obtenção de prova constituem uma forma de aquisição, em regra extraprocessual, de uma prova contemporânea ao tempo do crime. Como exemplos frisantes temos a escuta telefônica, a gravação ambiental, a busca e a apreensão. Já os meios de prova formam-se no momento da sua própria produção no processo, visando à “reprodução” do fato e, nessa medida, são uma forma de introdução no processo de uma prova posterior ao crime. (GOMES FILHO, p. 308-309). A força probatória de ambas as categorias é a mesma. Contudo, as fronteiras entre uma e outra não são fáceis de traçar, e o exemplo mais evidente disso reside na distinção entre a perícia e o seu laudo (ALBUQUERQUE, 2011, p. 331). .

De se lembrar que esse entendimento já foi acolhido pelo STF no julgamento do HC n. 74678-1/SP, em 1997. Naquela oportunidade, o Ministro Moreira Alves, após invocar a doutrina germânica e a sua disciplina legal específica, decidiu por afastar a ilicitude da conduta de uma vítima que, “por legítima defesa”, gravou e divulgou a conversa da pessoa que a extorquia. Por via de consequência, o STF concluiu que tal gravação não pode ser considerada prova ilícita.

A gravação feita pelo particular, entretanto, não pode ser utilizada como uma forma de “interrogatório por ardil”, sendo feita mediante a condução de diálogo para se obterem as respostas incriminatórias desejadas, sem prévia advertência quanto ao direito ao silêncio (GOMES, 2005GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In: YARSHELL, Flávio Luiz; MORAES, Maurício Zanoi-de de (coord.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005, pp. 303-318., p. 427). Nesse ponto, a proscrição do uso dessa prova tem relevância no âmbito da atuação das autoridades policiais, oficialmente encarregadas do interrogatório; caso necessitem recorrer a esse artifício, com a técnica investigativa do agente infiltrado, será necessário o prévio controle jurisdicional, conforme determina a Lei n. 12.850/2013 (art. 10). No âmbito da atuação de particulares, esse argumento perde sua relevância, especialmente quando se objetiva defender outros direitos fundamentais de maior quilate e/ou não haja viabilidade fática de prévio acionamento das autoridades públicas para se obter autorização para a gravação, como amiúde ocorre na chamada “corrupção de rua”.

Todas essas situações de justificação comportam uma restrição dos direitos à voz e à imagem com a finalidade de promover outros direitos fundamentais em colisão no caso concreto. Portanto, a solução desse impasse é realizada com o recurso ao princípio da proporcionalidade, como racionalidade subjacente às tradicionais estruturas dogmáticas das ciências jurídico-penais (ANDRADE, 1984ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre a valoração, como meio de prova em processo penal, das gravações produzidas por particulares. In: Boletim da Faculdade de Direito, Estudos em homenagem ao professor Doutor Eduardo Correia. Coimbra: Ed. Coimbra, 1984, pp. 545 - 622., p. 558). A seguir aprofundaremos esta análise.

4. O princípio da proporcionalidade como baliza para a admissibilidade das gravações clandestinas produzidas por vítima de crime

A proporcionalidade é amplamente reconhecida pela jurisprudência brasileira como um princípio constitucional implícito. Assenta-se no pressuposto de que qualquer medida estatal que implique restrição de direitos fundamentais para alcançar um determinado fim de interesse público deverá respeitar os subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (CANOTILHO, 1998CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998., p. 428 e 634). Este princípio se consagrou no Direito Administrativo, como uma evolução do princípio da legalidade, mas seu início está ligado ao Direito Penal (BARROS, 1996BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle da constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Jurídica, 1996., p. 35).

Enquanto a proporcionalidade está confinada aos domínios da proibição de excesso pelo Estado (Übermassverbot), não lhe são lançadas maiores objeções. Nesse campo, a restrição ao direito fundamental A para realizar o direito fundamental B será legítima, sempre que for meio adequado à realização de B (adequação), não houver outro meio menos gravoso para a realização de B (necessidade) e B tiver um valor superior a A, conforme as circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto (proporcionalidade em sentido estrito) (v. BARROS, 1996BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle da constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Jurídica, 1996.). No âmbito deste estudo, seria a situação de utilização da prova ilícita pro reo, para comprovar a inocência da pessoa acusada (GOMES FILHO, 1997GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997., p. 13 e 106). Controvertida é a utilização da proporcionalidade para proteção contra omissões estatais diante de agressões contra direitos individuais oriundas de terceiros, ou seja, a chamada proibição de insuficiência (Untermassverbot) no campo jurídico-penal (FELDENS, 2005FELDENS, Luciano. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005., p. 108). Critica-se que o uso de provas ilícitas pro societate ou pro victima seria manipulável e utilizaria a proporcionalidade contra o seu ideário garantístico central para justificar a restrição de direitos individuais com base na prevalência do interesse público (LOPES JR., 2013LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 2013., p. 595).

O ponto central da discussão no tema das gravações clandestinas é que elas são produzidas por particulares. Se, por um lado, o Estado investigador não pode realizar um interrogatório mediante ardil, por outro lado o Estado não pode retirar dos cidadãos seu legítimo direito de se defenderem diretamente contra violações de seus direitos fundamentais. Em sendo tal conduta do particular vítima de crime legitimada pela defesa de direitos, devemos enfatizar que a ponderação não é feita em termos do interesse público na eficácia da persecução em contraposição aos interesses individuais da pessoa investigada, mas, sim, entre esses e, de outro lado, os bens jurídicos individuais violados pelo crime e o objetivo processual perseguido com a valoração da prova ilícita. Aliás, a eventual proibição de legítima defesa probatória pelo particular vítima de crime tem o potencial de trazer o sério risco de reações de violência muito mais intensas contra o criminoso, contrariando a lógica garantística do sistema criminal.

A hermenêutica não deve se restringir à análise isolada de uma fatia da norma infraconstitucional, mas à integridade da solução à luz sistemática do ordenamento jurídico. Assim, é imperioso que o intérprete se entregue ao esforço de descobrir os sentidos que se encontram por detrás do texto normativo e, entre as suas significações possíveis, eleger aquela que coincidirá com aqueles valores que o legislador sempre deve ter em mente: a ética e a justiça ideal (MAXIMILIANO, 2011MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011., p. 65).

Nesse contexto, há que se ter em mente que, ao conformar os direitos à imagem e à palavra em nível infraconstitucional, o art. 20 do Código Civil permite a sua restrição, quando isso for necessário “à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública”, o que implica a necessidade de um juízo de ponderação entre esses direitos fundamentais do investigado e o restante dos valores albergados pelo ordenamento jurídico (MARTINS, 2014MARTINS, Milene Viegas. A admissibilidade de valoração de imagens captadas por particulares como prova no processo penal. Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2014., p. 51 et seq.). Nesse passo, como verificamos na análise de ordenamentos jurídicos estrangeiros, os direitos à imagem e à palavra não estão no núcleo duro dos direitos da personalidade (direito à vida e à integridade), que refogem a qualquer juízo de ponderação, conforme proclama a jurisprudência dos tribunais da Alemanha, de Portugal, do TEDH e da Corte IDH.

Significativo segmento doutrinário nacional aceita o uso da proporcionalidade para legitimar o uso de provas que, do ponto de vista da tipicidade, formalmente violam direitos, mas que materialmente, à luz dos valores do ordenamento jurídico, estão legitimadas pela proteção de outros interesses mais relevantes, tendo, portanto, sua ilicitude excluída (FERNANDES, 2005FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005., p. 82; OLIVEIRA, 2009OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2009., p. 330; AVOLIO, 2010AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônica, ambientais e gravações clandestinas. 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010., p. 181; NERY JR., 2013NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. 11ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013., p. 275). Também na jurisprudência do STJ a proporcionalidade é usualmente invocada para a análise de eventual ilicitude probatória11 11 Há diversos precedentes do STJ nesse sentido. Apenas para ilustrar: REsp n. 1113734/SP, DJ 06/12/2010; HC n. 210.498/PR, DJ 15/03/2012. Conquanto declaradamente avesso ao manejo da proporcionalidade na análise de prova ilícita (cf. STF, HC n. 79512/RJ, DJU 16/05/2003), o próprio STF já teve que recorrer a um juízo de “ponderação”. Isso ocorreu na RCL n. 2.040/DF, DJ 21/02/2002, que tratou de caso envolvendo uma artista presa que alegou ter sido estuprada nas dependências de uma cela da Polícia Federal. O STF deferiu o exame de DNA na sua placenta, mesmo diante da sua oposição, com fundamento numa necessária ponderação entre bens jurídicos constitucionais, tais como a “moralidade administrativa” e o direito fundamental à honra dos policiais acusados em confronto com o alegado direito da reclamante à intimidade. O mesmo já tinha corrido quando a Corte admitiu que é possível proceder à interceptação da correspondência remetida por preso, pois a cláusula da inviolabilidade não se constitui em salvaguarda para crimes (HC n. 70814, DJ 01/03/1994). .

Dessa maneira, primeiramente deve-se avaliar se efetivamente há um conflito entre direitos fundamentais, observando-se que o mero interesse comunitário em contar com uma administração da justiça funcional e eficiente, quer em matéria penal como civil, não é, isoladamente, motivo suficiente para relativizar garantias fundamentais. Porém, em determinados contextos, há um receio legítimo por vítimas de crimes em denunciar às autoridades públicas as investidas criminosas. Por exemplo, na corrupção, a influência do poder político e econômico do infrator gera na vítima o sentimento de impotência. Na violência doméstica há o procedente receio pela mulher de que venha ser desacreditada e revitimizada no seu tratamento pelas autoridades de persecução penal. Nos crimes praticados por policiais, há uma desconfiança da capacidade de a própria polícia investigar seus desvios éticos.

Nesses contextos, a vítima muitas vezes pressente que precisa se precaver antes de denunciar o crime. Assim, tornou-se comum valer-se da gravação clandestina para evitar que seja futuramente acusada de denunciação caluniosa ou que venha a ter represálias em outras esferas do Direito. Da mesma forma, se uma pessoa está sendo vítima de extorsão, há o receio de que, ao denunciar, haja uma escalada da violência. Assim, há um interesse legítimo em comprovar cabalmente o crime, para poder viabilizar eventuais medidas de proteção estatal (como as medidas cautelares criminais). Especialmente no caso de atos de achaques praticados por funcionários públicos, ainda que o particular não seja, em sentido estrito, o “ofendido” pela corrupção (titular ou portador do bem jurídico tutelado pela incriminação), o bem jurídico coletivo subjacente o torna um terceiro com interesse jurídico legítimo para denunciar o ato de corrupção, e igualmente para se precaver de represálias, mediante a gravação clandestina12 12 O STJ, todavia, já julgou que, na referida espécie delitiva, o sujeito ativo é somente o funcionário público, sendo o sujeito passivo primário o Estado (“administração pública”) e, secundariamente, a pessoa constrangida pelo agente público, desde que não esteja a praticar o crime de corrupção ativa. Logo, o estatuto jurídico dessa pessoa, afirma o julgado, não é de mera testemunha, mas de “vítima” (REsp 1689365/RR, DJe 18/12/2017). .

Apesar de as proibições de provas serem institutos processuais, sua finalidade de proteção de direitos gera inevitável aproximação com os institutos de direito substantivo, “o que explica a comunicabilidade com a dogmática do direito penal material e o apelo cada vez mais frequente aos seus modelos de impostação e categorias” (ANDRADE, 1992ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Ed. Coimbra, 1992., p. 107). O estado de necessidade considera a presença de um “perigo atual” (CP, art. 24). O risco de revitimização pela descrença no depoimento é uma violação de direitos grave que, infelizmente, é realidade atual no sistema processual, de forma que a gravação clandestina visa a resguardar o legítimo interesse da vítima em comprovar a veracidade de seu depoimento. A legítima defesa exige repelir “injusta agressão, atual ou iminente” (CP, art. 25). Quando o ofensor pratica crime contra a vítima, muitas vezes no crime há um estado permanente de violação de direitos (ciclo de violência doméstica, continuidade de extorsões), de sorte que, quando a gravação é realizada, ela é a forma de se defender do delito. Trata-se de meio de produção de prova realizado em momento de agressão atual ou iminente, preordenado a produzir efeitos futuros (em juízo). O risco de vitimização pelo processo expande o momentum do perigo ou agressão aos direitos da vítima. Há, portanto, um direito da vítima de se proteger da revitimização institucional e assegurar a credibilidade de seu depoimento, bem como de fazer cessar práticas ilícitas contra sua pessoa, colaborando com o sucesso da persecução penal.

Então, é possível reconhecermos na gravação clandestina feita pela vítima do crime uma situação de legítima defesa probatória (ou estado de necessidade, se tal prova é obtida por uma testemunha). Assim, caso se avalie que a gravação clandestina era apta a provar o crime (adequação), que não havia outra forma menos gravosa de obter a informação, dentro das representações razoáveis a uma pessoa que está sofrendo a investida criminosa (necessidade) e que se tratava de crime de razoável gravidade (proporcionalidade em sentido estrito), o princípio da proporcionalidade autoriza o uso probatório de gravações clandestinas produzidas. Nesse contexto, a eficaz proteção à vítima do crime tem um valor constitucional mais intenso do que a proteção da imagem ou palavras do ofensor.

Ademais, no contexto de atos de particulares, apesar de a eficácia horizontal dos direitos fundamentais sinalizar com a necessidade de se protegerem outras violações semelhantes, há uma evidente diferença de intensidade da garantia constitucional da inadmissibilidade das provas ilícitas em relação aos atos de agentes públicos. Para os particulares a garantia existe, mas tem menor intensidade, exatamente por se dissociar de sua finalidade originária de evitar a reiteração de outras violações semelhantes por autoridades encarregadas diuturnamente de realizar investigações criminais, de forma a se assegurar a eticidade do processo (ÁVILA, 2007ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Provas Ilícitas e proporcionalidade. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007., p. 234).

Aliás, o TEDH já decidiu que a efetiva salvaguarda dos direitos das vítimas no processo penal pode ser compreendida como a contraface do dever das autoridades públicas de prevenir e elucidar práticas criminosas quando coloquem em causa os bens fundamentais reconhecidos pelas convenções de direitos humanos (O’Keeffe v. Irlanda, de 2014)13 13 Foge aos objetivos deste trabalho fazermos uma abordagem percuciente a respeito da jurisprudência do TEDH sobres os direitos da vítima de crime. Porém, é oportuno anotarmos que a aceitação dessa dupla dimensão dos direitos fundamentais no processo penal conduziu o Tribunal de Estrasburgo ao reconhecimento dos direitos de transparência, de intervenção e mesmo de participação na persecução criminal, na medida necessária, às vítimas e/ou às pessoas diretamente interessadas no esclarecimento dos delitos. O direito de participação, porém, não significa a necessidade de o Estado-membro conformar o processo penal de modo a contemplar efetiva intervenção processual da vítima ao longo da sua dinâmica, tampouco de assegurar ao ofendido o direito de propor a ação penal. Dessa forma, ele independe da natureza do crime, se de ação pública ou privada, ou se a vítima intervém no processo como sujeito processual acessório. O que a jurisprudência do TEDH costuma enfatizar é a importância de as autoridades ouvirem adequadamente as declarações das pessoas ofendidas pelo crime, levando em conta suas versões e as provas legítimas que apresentam. Afinal, “os princípios de um julgamento justo também exigem que, em casos apropriados, os interesses da defesa sejam equilibrados com os das vítimas ou testemunhas chamadas a depor” (Doorson v. Holanda, de 1996). . A Corte IDH, por sua vez, já decidiu que o devido processo legal é um direito fundamental que deve ser garantido a todas as pessoas envolvidas no processo, independentemente de sua condição como parte acusadora, ou acusada, ou mesmo de um terceiro interveniente dentro da estrutura de um determinado processo penal (Genie Lacayo v. Nicarágua, de 1997). Nesse mesmo norte, a Corte IDH estadeia que os Estados-membros devem assegurar que as vítimas possam apresentar seus argumentos, fornecer provas, receber informações e, em síntese, defender seus interesses de modo a contribuir para uma persecução criminal efetiva (Radilla-Pacheco v. Mexico, de 2009).

A jurisprudência desses tribunais propõe-nos que a visão tradicional do sistema penal seja transformada: de instrumento voltado para a defesa da sociedade organizada em Estado, mas potencialmente capaz de comprometer os direitos humanos do arguido (e, portanto, cercado de proteção e garantias específicas), hoje ele deve ser compreendido, sobretudo, como instrumento de proteção dos direitos humanos de todas as pessoas “de carne e osso” envolvidas no drama criminal. De acordo com essa abordagem, os direitos fundamentais deixam de ser vistos apenas como um limite ao poder punitivo do Estado, o qual encontra sua maior expressão no Direito Penal e no Direito Processual Penal. Os direitos fundamentais tornaram-se, igualmente, o objeto e o embasamento da proteção criminal (FISCHER, PEREIRA, 2019FISCHER, Douglas; PEREIRA, Frederico Valdez. As Obrigações Processuais Penais Positivas – Segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019., p. 109). Isso deve significar que a vítima do crime, apesar de não ser formalmente parte nas ações penais públicas, manifesta um interesse jurídico relevante em participar do processo, o que justifica a atribuição de legitimidade à vítima para a descoberta de fontes de prova (ARANTES FILHO, 2013ARANTES FILHO, Marcio Geraldo Britto. A interceptação de comunicação entre pessoas presentes. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013., p. 521).

Com essas derradeiras e breves considerações sobre a atual hermenêutica dos direitos humanos da vítima de crime, encaminhamo-nos para a conclusão de que a exegese do novo art. 8º-A, § 4º, da Lei n. 9.296/1996, exige uma interpretação conforme à Constituição, para se entender que a locução “em matéria de defesa” deve ser interpretada como “em matéria de defesa de direitos fundamentais”. Ou seja, abrange tanto a defesa daquele que é injustamente acusado da prática de um crime, da mesma forma que permite a legítima defesa probatória da vítima de investidas criminosas. Isso porque a eventual interpretação que viesse a excluir a possibilidade de a vítima de crime se defender seria claramente inconstitucional, por determinar de antemão o sacrifício dos direitos fundamentais do inocente, e criminógena, por proteger e incentivar quem se esconde atrás das garantias fundamentais para abusivamente praticar crime.

Por outro lado, se o particular que realiza a gravação não tem justa causa para fazê-la e/ou divulgá-la, então ela não deve ser aceita como prova. Seria o caso, por exemplo, de um terceiro que grava a confissão do crime com a finalidade de realizar extorsão e posteriormente, diante do não pagamento, encaminha a prova à polícia.

Enfim, a jurisprudência do STF a respeito da admissibilidade genérica das gravações clandestinas peca por excesso, assim como a recente posição do legislador brasileiro no sentido da (aparente) inadmissibilidade irrestrita peca por insuficiência, sendo preciso interpretar a nova legislação de modo condizente com as diretrizes constitucionais. De qualquer modo, ainda que se reconheça a admissibilidade da prova de gravação clandestina, sua valoração sempre estará condicionada à avaliação de integridade do conteúdo, conforme regra do art. 8º-A, § 4º, da Lei n. 9.296/199614 14 A avaliação de integridade não é uma etapa concomitante à produção da gravação, mas posterior à entrega da gravação pela vítima às autoridades de persecução penal. Portanto, entre a gravação e a entrega às autoridades policiais, não há que se falar em cadeia de custódia, pois este é um dever das autoridades policiais. Integridade corresponde à fidelidade do registro, ou seja, à não edição ou recorte da gravação. Exigirá uma inquirição à vítima sobre onde, quando e como a prova foi produzida e poderá ser realizada mediante exame pericial que avalie a ausência de indícios de edição na gravação, de recorte de trechos, bem como o reconhecimento de voz dos envolvidos na gravação. É ônus da acusação comprovar a integridade da gravação. Pode ser realizado de ofício pelas autoridades policiais ou ainda em juízo, em caso de impugnação pela defesa. Aqui, aplica-se exatamente o mesmo procedimento que haveria se o próprio investigado realizasse a gravação para comprovar sua inocência. . Nesse sentido, ao ocaso, merece referência decisão do STJ, posterior ao Pacote Anticrime, quando se entendeu que “a Lei n. 9.296, de 24/7/1996, mesmo com as inovações trazidas pela Lei n. 13.964/2019, não dispôs sobre a necessidade de autorização judicial para a gravação de diálogo por um dos seus comunicadores”15 15 STJ, HC 512.290/RJ, 6ª T., rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 18 ago. 2020. .

Considerações finais

A análise de direito estrangeiro sinaliza um tratamento díspar em relação às gravações clandestinas. Nos EUA, as exclusionary rules não se aplicam às provas obtidas por particulares, apenas às autoridades de persecução penal. Na Alemanha e em Portugal, as gravações clandestinas são consideradas crime e, portanto, prova proibida, contudo a jurisprudência aplica as excludentes da ilicitude para justificarem tais provas quando produzidas pela vítima de crime.

No Brasil, num primeiro momento a jurisprudência do STF inclinou-se pela inadmissibilidade irrestrita, e posteriormente direcionou-se no sentido oposto, de admissibilidade ampla. O denominado “Pacote Anticrime” incluiu o art. 8º-A na Lei n. 9.296/1996, para disciplinar as interceptações ambientais, tendo previsto, em seu § 4º, a regra de que as gravações feitas por um dos interlocutores poderão ser utilizadas “em matéria de defesa”.

A gravação ambiental de áudio e/ou vídeo sem conhecimento e/ou autorização do autor da expressão viola o direito à palavra falada e o direito à imagem. No Brasil, observamos que o direito à imagem tem dignidade constitucional autônoma, já o direito à palavra é protegido ao manto dos direitos constitucionais à privacidade e à intimidade. Trata-se, pois, de direitos de personalidade elevados ao nível de direito fundamental.

Nesse estudo, concluímos que a “captação ambiental” feita pela vítima de crime poderá conduzir a uma colisão de direitos fundamentais, especialmente quando o direito à prova do interessado alinhar-se com a promoção de um bem jurídico de estatura superior que os direitos à voz e à imagem e a associada garantia de proteção contra violações, que representa a inadmissibilidade constitucional das provas obtidas por meios ilícitos. Há um interesse legítimo pela vítima do crime em participar do processo, o que lhe assegura legitimidade para produzir prova. O fim de proteção das proibições de prova aproxima sua dogmática à de institutos de direito penal material, permitindo o reconhecimento de situações de “legítima defesa probatória” ou “estado de necessidade probatório” pela vítima do crime, que não podem ser afastados pela lei, sob pena de inconstitucionalidade. Assim, procuramos demonstrar que a supracitada cláusula legal exige uma interpretação conforme a Constituição, de modo a se entender que ela contempla a admissibilidade da gravação “em matéria de defesa de direitos fundamentais”, o que legitima tanto a gravação feita para provar a inocência do réu (pro reo), como também a feita pela vítima de crime que se encontre em situação de legítima defesa probatória (pro victima).

Respondendo à questão inicialmente colocada, é lícito à vítima de crime realizar gravação ambiental com a finalidade de comprovar o delito que está sofrendo, de forma a assegurar a credibilidade de seu depoimento, protegendo-se de acusações levianas de denunciação caluniosa e colaborando com o sucesso da persecução penal. Dessa forma, a ilicitude probatória decorrente do denominado “Pacote anticrime” deve ser interpretada em conformidade como o art. 20 do Código Civil, tendo ainda como paradigma o art. 233, parágrafo único, do CPP, sendo excluída quando a gravação ambiental feita pela vítima de crime for meio de prova necessário aos propósitos do processo justo, mediante o respeito dos direitos fundamentais do réu, da vítima e da sociedade. A notória incapacidade de as regras probatórias seguirem os avanços dos novos meios tecnológicos aumenta a responsabilidade dos intérpretes do Direito, exigindo que o sistema legal seja concretizado de acordo com as exigências éticas do seu tempo e espaço.

Acknowledgement

authors acknowledge Isadora Rey Moura for methodological discussion and Irene Katter Hack for language review, as well as the contributions from the blind peer review.

  • Declaration of originality: the authors assure that the text here published has not been previously published in any other resource and that future republication will only take place with the express indication of the reference of this original publication; they also attest that there is no third-party plagiarism or self-plagiarism.

How to cite (ABNT Brazil):

  • MARTINS, Charles; ÁVILA, Thiago Pierobom de. A gravação ambiental feita pela vítima de crime: análise da continuidade de sua licitude após a Lei n. 13.964/2019. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 8, n. 2, p. 967-1005, mai./ago. 2022. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v8i2.696
  • 1
    Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa, Mestre em Direito Público pela Universidade de Santa Cruz do Sul, Professor convidado da FMP, Promotor de Justiça do MPRS.
  • 2
    Doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa, com estágio de pós-doutorado em Criminologia pela Monash University, Professor Associado do PPG Direito do UniCEUB, Investigador afiliado do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais da Universidade de Lisboa e do Gender and Family Violence Prevention Centre da Monash University, Promotor de Justiça do MPDFT.
  • 3
    Este dispositivo chegou a ser vetado pela Presidência, todavia o congresso o manteve, derrubando o veto. Ver: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2178170
  • 4
    Uma visão decolonial do processo penal deveria avançar com a análise da doutrina e jurisprudência de outros países latino-americanos. Não o fazemos aqui pela limitação de extensão deste trabalho.
  • 5
    Nesse caso, um cidadão, visando à morte da esposa, contratou os serviços de um ex-militar. Entretanto o contratado relatou à esposa do contratante a intenção deste, tendo ambos levado o caso às autoridades policiais. Sucedeu-se que durante o período das investigações, de modo autônomo, o ex-militar gravou clandestinamente uma incriminadora conversação telefônica mantida com o contratante, a qual foi utilizada de forma decisiva em seu julgamento, que resultou em condenação pelo crime de indução ao homicídio.
  • 6
    Respectivamente: RE n. 100094/PR, Primeira Turma, de 1984, e RHC n. 63834/SP, Segunda Turma, de 1986.
  • 7
    Ação Penal (AP) n. 307/DF, Pleno, de 13/12/1994. O tema voltou a ser apreciado no RE n. 251.445, de 2000, oportunidade em que o Ministro-Relator, em decisão monocrática, indeferiu o seguimento do apelo extremo, entendendo que a prova ilícita obtida por particular também é alcançada pela inadmissibilidade prevista na Constituição, porque sempre lesará direitos da personalidade elevados a direitos fundamentais. O caso tratava de um odontólogo investigado por abusar sexualmente de pacientes menores de idade. Um terceiro entrou no consultório dele e furtou documentos que o incriminavam, com a finalidade de extorqui-lo. Não obtendo êxito nesse intento, entregou-os à polícia. O então Min. Celso de Mello considerou essa documentação inadmissível como fonte de prova. Interessante destacar que, nas decisões do ex-ministro, existe a mesma contradição que verificamos na doutrina de Ada Grinover, pois ambos invocam as exclusionary rules para sustentar seus posicionamentos a respeito da prova proibida. Todavia o entendimento deles a respeito da possibilidade de particular produzir prova ilícita é contraditório com a jurisprudência norte-americana, na medida em que ela está consolidada em se aplicar somente às autoridades policiais e não aos particulares, conforme acima visto.
  • 8
    Nesse sentido: HC n. 75261/MG, de 1997, HC n. 74678-1/SP, de1997 e HC n. 75.338/RJ, de 1998.
  • 9
    No HC n. 84.203/RS, em 2004, veio a ser admitida a gravação de imagens feitas no box de uma garagem particular por uma vítima do crime de dano. No Agravo de Instrumento (AI) n. 503617/PR, em 2005, o Ministro-Relator afirmou genericamente que a “jurisprudência do Supremo Tribunal Federal orienta-se no sentido da licitude da gravação de conversa entre dois interlocutores, gravação realizada por um deles”.
  • 10
    De antemão, é imaginável a crítica dessa solução dogmática com o argumento de que tanto a legítima defesa como o estado de necessidade exigem que a agressão seja atual ou iminente e que no curso do processo já seria uma agressão pretérita, o que tornaria sem fundamento o reconhecimento dessas excludentes. No entanto, a doutrina destaca a diferença entre “meios de obtenção de prova” e “meios de prova”. Os meios de obtenção de prova constituem uma forma de aquisição, em regra extraprocessual, de uma prova contemporânea ao tempo do crime. Como exemplos frisantes temos a escuta telefônica, a gravação ambiental, a busca e a apreensão. Já os meios de prova formam-se no momento da sua própria produção no processo, visando à “reprodução” do fato e, nessa medida, são uma forma de introdução no processo de uma prova posterior ao crime. (GOMES FILHO, p. 308-309GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In: YARSHELL, Flávio Luiz; MORAES, Maurício Zanoi-de de (coord.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005, pp. 303-318.). A força probatória de ambas as categorias é a mesma. Contudo, as fronteiras entre uma e outra não são fáceis de traçar, e o exemplo mais evidente disso reside na distinção entre a perícia e o seu laudo (ALBUQUERQUE, 2011ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia Direitos do Homem. 4ª ed., Lisboa: Univ. Católica, 2011., p. 331).
  • 11
    Há diversos precedentes do STJ nesse sentido. Apenas para ilustrar: REsp n. 1113734/SP, DJ 06/12/2010; HC n. 210.498/PR, DJ 15/03/2012. Conquanto declaradamente avesso ao manejo da proporcionalidade na análise de prova ilícita (cf. STF, HC n. 79512/RJ, DJU 16/05/2003), o próprio STF já teve que recorrer a um juízo de “ponderação”. Isso ocorreu na RCL n. 2.040/DF, DJ 21/02/2002, que tratou de caso envolvendo uma artista presa que alegou ter sido estuprada nas dependências de uma cela da Polícia Federal. O STF deferiu o exame de DNA na sua placenta, mesmo diante da sua oposição, com fundamento numa necessária ponderação entre bens jurídicos constitucionais, tais como a “moralidade administrativa” e o direito fundamental à honra dos policiais acusados em confronto com o alegado direito da reclamante à intimidade. O mesmo já tinha corrido quando a Corte admitiu que é possível proceder à interceptação da correspondência remetida por preso, pois a cláusula da inviolabilidade não se constitui em salvaguarda para crimes (HC n. 70814, DJ 01/03/1994).
  • 12
    O STJ, todavia, já julgou que, na referida espécie delitiva, o sujeito ativo é somente o funcionário público, sendo o sujeito passivo primário o Estado (“administração pública”) e, secundariamente, a pessoa constrangida pelo agente público, desde que não esteja a praticar o crime de corrupção ativa. Logo, o estatuto jurídico dessa pessoa, afirma o julgado, não é de mera testemunha, mas de “vítima” (REsp 1689365/RR, DJe 18/12/2017).
  • 13
    Foge aos objetivos deste trabalho fazermos uma abordagem percuciente a respeito da jurisprudência do TEDH sobres os direitos da vítima de crime. Porém, é oportuno anotarmos que a aceitação dessa dupla dimensão dos direitos fundamentais no processo penal conduziu o Tribunal de Estrasburgo ao reconhecimento dos direitos de transparência, de intervenção e mesmo de participação na persecução criminal, na medida necessária, às vítimas e/ou às pessoas diretamente interessadas no esclarecimento dos delitos. O direito de participação, porém, não significa a necessidade de o Estado-membro conformar o processo penal de modo a contemplar efetiva intervenção processual da vítima ao longo da sua dinâmica, tampouco de assegurar ao ofendido o direito de propor a ação penal. Dessa forma, ele independe da natureza do crime, se de ação pública ou privada, ou se a vítima intervém no processo como sujeito processual acessório. O que a jurisprudência do TEDH costuma enfatizar é a importância de as autoridades ouvirem adequadamente as declarações das pessoas ofendidas pelo crime, levando em conta suas versões e as provas legítimas que apresentam. Afinal, “os princípios de um julgamento justo também exigem que, em casos apropriados, os interesses da defesa sejam equilibrados com os das vítimas ou testemunhas chamadas a depor” (Doorson v. Holanda, de 1996).
  • 14
    A avaliação de integridade não é uma etapa concomitante à produção da gravação, mas posterior à entrega da gravação pela vítima às autoridades de persecução penal. Portanto, entre a gravação e a entrega às autoridades policiais, não há que se falar em cadeia de custódia, pois este é um dever das autoridades policiais. Integridade corresponde à fidelidade do registro, ou seja, à não edição ou recorte da gravação. Exigirá uma inquirição à vítima sobre onde, quando e como a prova foi produzida e poderá ser realizada mediante exame pericial que avalie a ausência de indícios de edição na gravação, de recorte de trechos, bem como o reconhecimento de voz dos envolvidos na gravação. É ônus da acusação comprovar a integridade da gravação. Pode ser realizado de ofício pelas autoridades policiais ou ainda em juízo, em caso de impugnação pela defesa. Aqui, aplica-se exatamente o mesmo procedimento que haveria se o próprio investigado realizasse a gravação para comprovar sua inocência.
  • 15
    STJ, HC 512.290/RJ, 6ª T., rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 18 ago. 2020.

Referências

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  • Editor-in-chief: 1 (VGV)

  • Reviewers: 4

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2022
  • Revisado
    01 Abr 2022
  • Revisado
    18 Abr 2022
  • Revisado
    27 Abr 2022
  • Revisado
    01 Maio 2022
  • Revisado
    18 Maio 2022
  • Revisado
    12 Jun 2022
  • Aceito
    06 Ago 2022
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