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Terapia ocupacional social e justiça social: diálogos a partir das demandas trans

Resumo

A proposta central deste texto é apresentar reflexões balizadas pelo conceito de justiça social para a terapia ocupacional social a partir das demandas trans levantadas por meio de uma pesquisa que, com base na história oral e técnicas etnográficas, objetivou compreender como pessoas trans constroem e/ou mobilizam, ao longo de suas histórias de vida, estratégias de enfrentamento das condições de marginalização vivenciadas em seus cotidianos, configurando determinados modos de vida. Compreender essas histórias aciona um debate importante no campo da justiça social para a terapia ocupacional social que, para nós, dialoga com a ideia de justiça articulada por Nancy Fraser, baseada em uma concepção que mira à redistribuição econômica e ao reconhecimento simbólico. A aposta que fazemos quando utilizamos essa proposição nos parece potente, sobretudo por oferecer, na sua fundamentação, leituras acerca das desigualdades sociais e dos caminhos possíveis de afirmação de existência. Por isso, se a práxis da terapia ocupacional social propõe articular técnica e politicamente o campo social, é necessário o entendimento dos múltiplos modos de vida, sobretudo das contradições que envolvem essas realidades, dentro daquilo que diz da subjetividade, da história, da cultura, das relações políticas, entre outros elementos que desembocam no cotidiano das pessoas, para se pensar/fazer, junto, possibilidades e caminhos de/para se viver melhor, a partir das negociações sociais.

Palavras-chave:
Terapia Ocupacional; Justiça Social; Pessoas Transgênero; Diversidade de Gênero; Desigualdades

Abstract

The main purpose of this text is to present reflections guided by the concept of social justice for social occupational therapy focusing on the demands of trans individuals brought up through research based on oral history and ethnographic techniques that aimed to understand how these people build and/or mobilize, throughout their life histories, strategies to face the conditions of marginalization experienced in their everyday lives, configuring certain ways of life. The understanding of these histories triggers an important debate in the field of social justice for social occupational therapy that, for us, dialogues with the idea of ​​justice developed by Nancy Fraser, based on a conception that aims at economic redistribution and symbolic recognition. We consider that this is a powerful proposition, mainly because its foundation offers readings about social inequalities and possible ways of affirming existence. Therefore, if the praxis of social occupational therapy proposes to combine the social field technically and politically, it is necessary to understand the multiple ways of life, especially the contradictions that involve these realities, including the subjectivity, history, culture, and political relationships, among other elements in the everyday lives of people, to think/do together possibilities and ways to live better, based on social negotiations.

Keywords:
Occupational Therapy; Social Justice; Transgender Persons; Gender Diversity; Inequalities

Introdução

A gente luta por direitos porque a gente precisa disso pra sobreviver. A gente precisa ter lugar digno pra morar, o que comer, precisa conseguir entrar na escola e terminar os estudos sem precisar acabar com a saúde mental pra isso... ter outras opções além da prostituição... Mas não são só os direitos sabe, esses que os Estado tem obrigação de oferecer pra todos os cidadãos e a gente tem que tá implorando pra poder ter acesso... A gente precisa de respeito, ser tratadas como gente, ser um ser humano mesmo... dignas de ter um namorado, de não ser olhadas com medo ou com pena. A gente precisa ser tratadas como cidadã e como humanas (Bianca, diário de campo).

Bianca é uma das cinco pessoas trans acompanhadas ao longo da pesquisa que subsidia as reflexões propostas neste texto, compartilhando sua história de vida e sua narrativa pessoal para uma melhor apreensão e entendimento dos modos de vida de pessoas que, como ela, vivenciam o que se denomina como dissidência de gênero1 1 Termo utilizado, tomando-se os debates sobre gênero propostos por Butler (2003), para referir-se às pessoas cuja identidade de gênero diverge dos modelos binários que foram socialmente instituídos a partir da heteronormatividade. . Ela nos conta sobre as dificuldades enfrentadas por essa população no acesso a bens e serviços, mas não somente. Ela nos aponta, sobretudo, as dificuldades de se alcançar o reconhecimento quanto à identidade de gênero no que diz respeito ao status de humano, como nos faz refletir a socióloga brasileira Bento (2014)Bento, B. (2014). Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea, 4(1), 165-182.. A proposta central deste texto é apresentar análises balizadas pelo conceito de justiça social para a terapia ocupacional social a partir das demandas trans levantadas por meio da pesquisa que integrou a tese de doutorado intitulada Entre rupturas e permanências: modos de vida e estratégias de enfrentamento à vida nas margens no cotidiano de pessoas trans (Melo, 2021Melo, K. M. M. (2021). Entre rupturas e permanências: modos de vida e estratégias de enfrentamento à vida nas margens no cotidiano de pessoas trans (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

O objetivo central desse estudo foi compreender como pessoas trans constroem e/ou mobilizam, ao longo de suas histórias de vida, estratégias de enfrentamento das condições de marginalização vivenciadas em seus cotidianos. Para tanto, foram acompanhadas cinco pessoas trans residentes no Estado de São Paulo, Brasil, com idades entre 19 e 37 anos2 2 Para fins éticos, nesta pesquisa, os nomes dos/as interlocutores/as foram alterados para preservar suas identidades. Os dados produzidos foram revisados e aprovados pelos/as interlocutores/as. . A história oral de vida (Meihy, 2005Meihy, J. C. S. B. (2005). Manual de história oral. São Paulo: Loyola.) e técnicas oriundas da etnografia (Geertz, 1989Geertz, C. (1989). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.) foram usadas como aparatos metodológicos na construção dos dados, que foram coletados a partir de entrevistas audiogravadas e diários de campo da observação/acompanhamento, entre fevereiro de 2017 e 2021. A escolha das/os interlocutoras/es se deu por meio da inserção no campo (ainda em pesquisa anterior) e interações e indicações decorrentes dela.

As histórias ofereceram elementos para a tessitura das trajetórias de vida, que ora vão apontando para dificuldades no campo dos acessos, ora para elementos quase invisíveis de uma normativa social que pretende determinar o que se pode ser, como se pode ser e quais os lugares designados para aqueles que “não são”.

Estamos falando, portanto, de sujeitos e/ou populações que vivenciam processos de marginalização e estigmatização social, e da maneira pela qual esses processos incidem sobre a construção de trajetórias e possibilidades concretas de viver a vida, especialmente no que diz respeito a construir e acessar recursos para a participação social e para o enfrentamento das condições de exclusão, tomando-se a chave dos direitos e da cidadania.

Falar em participação social no âmbito da terapia ocupacional social, quando se trata de determinados segmentos populacionais, exige que pensemos para além da possibilidade de circulação e acesso aos espaços públicos e aos direitos sociais, por exemplo. É preciso refletir, primeiramente, sobre como esses sujeitos podem romper com as barreiras da invisibilidade impostas pelo estigma3 3 O termo “estigma” se relaciona diretamente com a antiguidade clássica, momento histórico quando designava “[...] sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava” (Goffman, 1980, p. 11). Na era cristã, o termo ganhou a conotação de origem divina e, posteriormente, de problemas físicos. Na atualidade, a palavra “estigma” realoca a sua semântica para falar de algo que deve ser evitado, uma ameaça à sociedade, isto é, uma identidade social deteriorada. Goffman (1980, p. 41) discorre sobre como o estigma se constrói e marca os sujeitos: “[...] a pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de vista dos normais, adquirindo, portanto, as crenças da sociedade mais ampla em relação à identidade e uma ideia geral do que significa possuir um estigma particular”. , que os aloca em zonas marginais dentro das dinâmicas sociais, implicando diretamente experiências de cidadanias precárias4 4 Termo utilizado pela socióloga Bento (2014). A autora pontua: “A cidadania precária representa uma dupla negação: nega a condição humana e de cidadão/cidadã de sujeitos que carregam no corpo determinadas marcas. Essa dupla negação está historicamente assentada nos corpos das mulheres, dos/as negros/as, das lésbicas, dos gays e das pessoas trans (travestis, transexuais e transgêneros). Para adentrar a categoria de humano e de cidadão/cidadã, cada um desses corpos teve que se construir como corpo político. No entanto, o reconhecimento político, econômico e social foi (e continua sendo) lento e descontínuo” (Bento, 2014, p. 167). (Bento, 2014Bento, B. (2014). Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea, 4(1), 165-182.).

São essas invisibilidades, negações e marginalizações produzidas pelos discursos hegemônicos, no interior dos sistemas normativos, que nos interessam e, principalmente, como as lutas por reconhecimento e redistribuição (Fraser, 2003Fraser, N. (2003). A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Critica de Ciencias Sociais, 63, 7-20., 2004Fraser, N. (2004). Repensando a questão do reconhecimento: superar a substituição e a reificação na política cultural. In C. A. Baldi (Eds.), Direitos humanos na sociedade cosmopolita (pp. 601-621). Rio de Janeiro: Renovar.)5 5 Nancy Fraser assinala, em várias de suas obras, que a participação envolve necessariamente o reconhecimento de diversos grupos invisibilizados socialmente e a redistribuição de recursos que viabilizem e fomentem a participação; lutas por reconhecimento e redistribuição decorrem de processos de subordinação que impedem a participação e produzem injustiça social. Para Fraser (2004), é necessária uma paridade de participação, que só será alcançada mediante o reconhecimento recíproco e a igualdade de status. Isso será retomado adiante neste texto. podem contribuir para a emancipação e participação social. Interessa-nos, ainda, as experiências de resistência de sujeitos donos de seus corpos, de identidades que deslizam na mutabilidade possível do existir e estar no mundo, de pessoas que são lidas como anormais pela mesma sociedade que produz seus lugares de existência. Somos mobilizados, especialmente, a refletir sobre como vidas fora da norma produzem resistências e enfrentamentos nos cotidianos e na construção de histórias que são tanto individuais quanto coletivas. Buscamos refletir sobre como esses cotidianos são reelaborados, viveres e fazeres são construídos e, sobretudo, como são possíveis formas de enfrentamento dessas invisibilidades, marginalizações e, consequentemente, da negação de direitos e acesso à cidadania, tendo como direção as lutas por redistribuição e reconhecimento em busca de uma participação social paritária, em seus âmbitos identitários, econômicos e políticos, ou seja, lutas por justiça social.

Os Sujeitos e as Demandas

Marcela, Tiago, Dan, Bianca e Talita. Cinco vivências que em muito se aproximam, pelas questões de gênero, e em tanto se distanciam, por outras marcas da diferença.

Marcela é uma mulher transexual de 33 anos que teve sua vida permeada por possibilidades e acessos. Boas escolas, consistentes circuitos de sociabilidade, acesso a espaços de lazer e uma rede de apoio ativa e presente. Marcela é trabalha como contadora em uma empresa de saúde na cidade de São Paulo, é casada, fluente em duas línguas além do português. Ela compartilhou uma história de dificuldades com o processo de construção identitária durante a infância e a adolescência, mas que foi dando lugar a uma narrativa de participação social durante a vida adulta. Claramente, o acesso a oportunidades em decorrência de sua origem em um contexto de classe média alta em uma grande metrópole é uma pista importante para entender a forma pela qual foi vivenciando e construindo seu lugar social. Ainda assim, Marcela afirma a necessidade recorrente de mobilizar estratégias para circular em diversos espaços da cidade e articular algumas práticas sociais que têm como foco a sua condição de mulher trans. Os olhares, as risadas e a falta de receptividade em algumas situações são citadas como barreiras que acionam necessidade de proteção:

Eu sei que se não fosse a chefe, teria problemas com muitos funcionários do meu trabalho. Alguns só me engolem por causa do meu lugar. Só que fora do meu trabalho, eu não tenho esse lugar, sou mais uma na multidão, então eu sinto. E o que eu faço? Evito a multidão! Literalmente! Porque, sabe, é cansativo você ficar impondo respeito. Sou trans mas sou legal entende? Sou trans mas não sou prostituta, sou trans mas não roubo ninguém... É muito estigma e eu prefiro me preservar (Diário de campo).

As demandas que a experiência de Marcela nos apresenta não dizem respeito ao acesso a bens e serviços, por exemplo, mas ao reconhecimento de sua identidade, numa condição de igualdade de pertencimento, ou de status social.

Bianca, travesti negra, também com 33 anos, trabalhadora do sexo e residente na mesma cidade de Marcela, nos apresenta uma história que conta outra realidade. A falta de aceitação da família (exceto de um de seus irmãos, que é gay) durante a infância, a ruptura com a escola em decorrência do contexto de violência e os circuitos de prostituição fazem parte da história de vida de Bianca. A conclusão do ensino médio se deu anos mais tarde por meio do Programa Transcidadania6 6 Política pública intersetorial implantada no município de São Paulo voltada para a integração social de travestis e transexuais a partir da educação. Foi lançada em 2015, junto aos setores de serviços reunidos pelas secretarias municipais de Saúde, Educação, Trabalho, Mulheres e Assistência e Desenvolvimento Social, com o objetivo de fortalecer as atividades profissionais de pessoas trans. Para tanto, o programa propunha, no momento da inserção de Bianca, que as pessoas beneficiárias recebessem uma bolsa no valor de R$ 910,00 (ampliada em 2016) para a conclusão da Educação Básica e para uma educação profissionalizante. Visava-se à promoção de educação de jovens e adultos, aulas e direitos humanos, cursos profissionalizantes, preparação para o mercado de trabalho e estágio, totalizando uma carga horária semanal de 30 horas. O programa garantia o uso do nome social em todos os documentos da rede municipal de ensino, tratamento hormonal em unidades básicas de saúde, tomando como prioridade o acolhimento das participantes na Casa Abrigo do Brasil, exclusiva para travestis e transexuais em situação de rua, e também no Complexo Zaki Narch e no Centro de Referência da Mulher, garantindo atendimento prioritário às travestis vítimas de violência. , época em que se intensificava sua relação com o movimento social.

Bianca aponta a militância como um dos principais espaços de sociabilidade e fortalecimento na sua experiência, uma vez que é por meio dela que “[...] fica claro que ser travesti é resistir todos os dias à ausência de um olhar do Estado, e também da população”. Ela ainda conta:

Não tem política pública que responda às nossas necessidades, não tem aceitação da sociedade... A gente tem que se arriscar todo dia e ainda ser culpadas da situação que a gente vive... Se a gente não se fortalecer estando com as nossas irmãs, a gente vai contar com quem? Tem que ficar firme pra luta, mas sozinha não dá (Diário de campo).

Talita, assim como Bianca, é uma mulher trans das classes populares. Ela tem 20 anos, reside em uma cidade do interior paulista e também é trabalhadora do sexo. Nasceu numa cidade do Nordeste brasileiro. É a mais velha de quatro irmãos e “abandonou” a escola durante o ensino médio. Sua rede de sociabilidade é composta pelas amigas que fez nos circuitos da prostituição, e é com elas que Talita passa a maior parte do tempo. As oportunidades de inserção no mercado de trabalho sempre lhe foram escassas e, apesar de ter alguma formação para serviços de maquiagem e de secretária, encontrou muita dificuldade nas entrevistas durante as inúmeras buscas por emprego. Talita conta que morar com as amigas lhe garante acesso a estratégias de permanência nos circuitos de prostituição e apoio nos trânsitos sociais; no entanto, dificuldades de participação social ainda existem.

Mesmo na esquina é difícil [ter] respeito. Agora você imagine ir no supermercado, em lojas, no médico. A gente sobrevive como dá. Mas também se até em casa eu tenho que me rebolar, imagina na rua, né? (Entrevista).

Ela ainda conta:

Eu acho que se eu tivesse estudado mais, eu poderia conseguir alguma coisa melhor, mas eu também fico pensando se as meninas que têm pais que aceitam e que estudam, se elas têm esse respeito todo. Porque eu acho que a grande questão é que ninguém respeita as trava [...] Ainda mais as preta, pobre e nordestina que nem eu (Diário de campo).

Se a ausência de escolarização parece representar a ausência de uma alternativa importante na composição dos enfrentamentos das condições cotidianas de marginalização na experiência de Talita, a presença dela confirma sua potência em experiências como as de Dan.

Dan é um homem trans de 37 anos que viveu 30 deles como mulher lésbica masculina. Tendo frequentado em boa parte de sua infância e início da adolescência espaços religiosos, foi com a expulsão da igreja e a crise familiar e social decorrente, com a busca por inserção no mercado de trabalho e alguma autonomia financeira, que as possibilidades de reconhecimento de si e constituição identitária começaram a se tornar mais concretas. A entrada num cursinho pré-vestibular e posteriormente num curso de nível superior, em um campus de uma universidade pública no interior do estado, foram cruciais para a composição de um novo repertório que possibilitasse não somente a compreensão de si em termos identitários, como a compreensão das normativas sociais que construíam essa (im)possibilidade identitária. Foi durante o curso universitário que ingressou em coletivos e espaços do movimento social institucionalizado e não institucionalizado. Um estágio doutoral de pesquisa no exterior, em 2017, constituiu-se como uma etapa-chave na composição de suas vivências como homem trans, uma vez que na Europa, fora dos olhares vigilantes, viveu pela primeira vez a experiência de ser um homem trans. Ao final do doutorado, e como professor da rede pública da Educação Básica, passou a se dedicar ainda mais aos espaços de militância e de produção de redes de solidariedade para homens trans em processo de transição identitária. Sua luta junto aos movimentos sociais incorporou as lutas a favor das demandas da população trans, mas afirma, a partir de suas experiências, que o reconhecimento das múltiplas identidades de gênero aponta para a necessidade da desconstrução das normativas de gênero.

A experiência acadêmica também aparece na história de vida de Tiago, homem trans de 30 anos residente em uma cidade do interior do estado de São Paulo. Ele é professor de geografia e namora Alana, seu maior apoio no processo de transição de gênero. Os conflitos familiares sempre presentes fizeram com que Tiago se envolvesse com certa proteção e preservação, representada pelos estudos e espaços acadêmicos, o que, segundo ele, “[...] fortaleceu e muniu para os enfrentamentos da vida, mas não o suficiente pra se expor sem medo”.

Seus esforços se concentram nos espaços formativos e de militância mais localizada nos contextos acadêmicos, dadas as implicações de violências que a exposição pode acarretar.

Terapia Ocupacional Social e Justiça Social: Dialogando com as Histórias

Para nós, o debate desenvolvido aqui, por dentro da terapia ocupacional social em diálogo com o campo da terapia ocupacional de modo geral, anuncia perspectivas para o pensar/fazer e projetar técnico-político, especialmente ao se debruçar sobre os modos de vida de pessoas trans, o que possibilita compreender as formas dissidentes de se viver, dentro de uma narrativa da vida em si. Esse movimento aciona uma compreensão que contribui para o campo profissional ir além daquilo que são modos de vida anunciados pelo status quo, colocando para o pensar/fazer terapêutico-ocupacional a necessidade e a urgência de se entender modos de viver que transbordam os limites postos pelo “conhecido e esperado”.

Essa possibilidade, para nós, articula-se com a ideia de justiça social anunciada por Fraser (2006)Fraser, N. (2006). Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos de Campo, 15(14-15), 231-239. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p231-239.
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. Essa autora propõe o debate sobre duas condições atreladas a injustiças: a injustiça socioeconômica e a injustiça cultural ou simbólica, que impõem dois caminhos necessários: as políticas de redistribuição econômica e de reconhecimento, argumentando:

O remédio para a injustiça econômica é alguma espécie de reestruturação político-econômica. Pode envolver redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho, controles democráticos do investimento ou a transformação de outras estruturas econômicas básicas. [...] O remédio para a injustiça cultural, em contraste, é alguma espécie de mudança cultural e simbólica. Pode envolver a revalorização de identidades desrespeitadas e dos produtos culturais dos grupos difamados. Pode envolver, também, o reconhecimento e a valorização positiva da diversidade cultural. Mais radicalmente ainda, pode envolver uma transformação abrangente dos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação, de modo a transformar o sentido do eu em todas as pessoas (Fraser, 2006, pFraser, N. (2006). Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos de Campo, 15(14-15), 231-239. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p231-239.
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. 232, grifo da autora).

Fraser se refere a dois tipos de injustiças que, em menor ou em maior grau, atravessam as experiências trans e demandam reconhecimento em dois polos distintos, mas por vezes interdependentes: a política e a cultura, e ainda afirma: “[...] ver o reconhecimento como um problema de justiça é tratá-lo como uma questão de status social” (Fraser, 2003, pFraser, N. (2003). A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Critica de Ciencias Sociais, 63, 7-20.. 29). Assim, considera que para a participação democrática na vida social, o sujeito precisa dispor de recursos materiais e econômicos e de um contexto no qual os padrões de valores culturais produzam o respeito e, portanto, a igualdade de oportunidades para se obter estima social.

Farias et al. (2019)Farias, M. N., Leite Junior, J. D., & Lopes, R. E. (2019). História, movimentos e tendências da Terapia Ocupacional Social: algumas reflexões iniciais. In Anais do 12º Simpósio de Terapia Ocupacional e 7º Simpósio de Trabalhos Científicos do Curso de Graduação em Terapia Ocupacional USP de Ribeirão Preto. São Carlos: UFSCar., ao analisarem brevemente as concepções de justiça social que vêm parametrizando a terapia ocupacional social, tomando-se sua historicidade, movimentos e tendências, a partir especialmente do que se consolidou na Rede Metuia – Terapia Ocupacional Social7 7 A Rede Metuia – Terapia Ocupacional Social, que surgiu como Projeto Metuia, refere-se ao grupo de ensino, pesquisa e extensão em terapia ocupacional social formado em 1998 por docentes da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade de São Paulo (USP) e Pontifícia Católica de Campinas (PUCC). Hoje, a Rede Metuia é composta pelos Núcleos da UFSCar, da USP-São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), da Universidade de Brasília (UnB) e o que agrega a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e a Universidade Estadual de Ciências da Saúde (UNCISAL). Ainda, de maneira não nucleada, outras/os pesquisadoras/es e profissionais também participam dessa rede. , identificam que, desde o início, as proposições dessa subárea e grupo se voltavam para pensar as vulnerabilidades sociais e a desfiliação junto às populações marginalizadas, parametrizadas pelos processos de ruptura das redes sociais de suporte e pelas lutas por inserção social, conforme o sociólogo francês Robert Castel (1998). Trata-se de uma leitura na qual a questão social na sociedade capitalista decorre da desigualdade econômica estrutural e das possibilidades de inserção, via integração por meio do trabalho e do pertencimento. Assim, tanto a dimensão da relação capital-trabalho, ou seja, uma concepção de justiça baseada na redistribuição, como a noção de que a cidadania e os direitos sociais decorrentes seriam o eixo de uma luta por reconhecimento a um pertencimento comum, em que as diversas lutas contra a opressão, inclusive as identitárias, se agregariam (Barros et al., 2002Barros, D. D., Ghirardi, M. I. G., & Lopes, R. E. (2002). Terapia ocupacional social. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 13(3), 95-103. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v13i3p95-103.
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, 2007aBarros, D. D., Lopes, R. E., & Galheigo, S. M. (2007a). Novos espaços, novos sujeitos: a terapia ocupacional no trabalho territorial e comunitário. In A. Cavalcanti & C. Galvão (Eds.), Terapia ocupacional: fundamentação & prática (pp. 354-363). Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S.A., 2007bBarros, D. D., Lopes, R. E., Galheigo, S. M., & Galvani, D. (2007b). El Proyecto Metuia en Brasil: ideas y acciones que nos unen. In F. Kronenberg, S. S. Algado & N. S. Pollard (Eds.), Terapia ocupacional sin fronteras: aprendiendo del espíritu de supervivientes (pp. 392-403). Madrid: Editorial Médica Panamericana, S.A., 2011Barros, D. D., Ghirardi, M. I. G., Lopes, R. E., & Galheigo, S. M. (2011). Brazilian experiences in social occupational therapy. In F. Kronenberg, N. Pollard & D. Sakellariou (Eds.), Occupational therapy without borders volume 2: towards an ecology of occupation-based practices (pp. 209-215). Edinburgh: Churchill Livingstone.). Porém, reafirmando que as questões relacionadas aos aspectos culturais, das diferenças – de status cultural e simbólico (Fraser, 2002Fraser, N. (2002). Redistribuição ou reconhecimento? Classe e status na sociedade contemporânea. Interseções - Revista de Estudos Interdisciplinares, 4(1), 7-32., 2006Fraser, N. (2006). Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos de Campo, 15(14-15), 231-239. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p231-239.
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) –também estavam presentes (Barros, 2004Barros, D. D. (2004). Terapia ocupacional social: o caminho se faz ao caminhar. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 15(3), 90-97. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v15i3p90-97.
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; Barros & Galvani, 2016Barros, D. D., & Galvani, D. (2016). Terapia ocupacional: social, cultural? Diversa e múltipla! In R. E. Lopes & A. P. S. Malfitano (Eds.), Terapia ocupacional social: desenhos teóricos e contornos práticos (pp. 83-116). São Carlos: EdUFSCar.), mesmo que isso aparecesse, em análise, com menos força.

Nesse caminhar da terapia ocupacional social e da Rede Metuia, esse processo se fortaleceu. Farias et al. (2019)Farias, M. N., Leite Junior, J. D., & Lopes, R. E. (2019). História, movimentos e tendências da Terapia Ocupacional Social: algumas reflexões iniciais. In Anais do 12º Simpósio de Terapia Ocupacional e 7º Simpósio de Trabalhos Científicos do Curso de Graduação em Terapia Ocupacional USP de Ribeirão Preto. São Carlos: UFSCar. analisam, por exemplo, que hoje a terapia ocupacional social, sobretudo nos Núcleos do Metuia, pauta em suas produções e ações tanto a redistribuição, dilema que teria marcado as ações iniciais da subárea, quanto o reconhecimento, dilema que ganha maior espaço com o tempo, em torno da construção de justiça social. Cabendo destacar que essas produções, independente de preocupações específicas, traçam uma crítica à sociedade capitalista, numa defesa de que este modo de produção – ainda que com pactos realizados entre o capital e o trabalho – não é capaz de produzir igualdade e justiça plenas, pois a desigualdade social e a exploração são necessárias aquilo que estrutura o capitalismo.

Ademais, um marco importante da subárea, para um debate situado no diálogo entre redistribuição e reconhecimento, foi sua participação e produção para o surgimento do Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da UFSCar (PPGTO/UFSCar), em 2010, o que foi levando também à sua ampliação temática, a exemplo: as questões étnico-raciais, as dissidências de gêneros e sexualidades, as populações rurais e indígenas, o uso abusivo de drogas, as infâncias, etc.

Monzeli (2022, pMonzeli, G. A. (2022). Terapia ocupacional social, justiça social e população LGBTI+: com quem produzimos nossas reflexões e ações? Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30(spe), e3095. http://dx.doi.org/10.1590/2526-8910.ctoarf234130952.
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. 7) também indica esse processo histórico, ao

[...] destacar que, na primeira década do Século XXI, a terapia ocupacional social acaba produzindo dois principais movimentos teóricos que vão contribuir para as futuras publicações da área: de um lado, as fundamentações influenciadas por uma perspectiva materialista histórica; e, por outro, as discussões embasadas nos estudos socioantropológicos sobre cultura.

O que fortalece o debate na dimensão da questão social e de outros entendimentos sobre diferenças sociais e culturais, que envolvem o diálogo essencial entre redistribuição e reconhecimento (Farias et al., 2019Farias, M. N., Leite Junior, J. D., & Lopes, R. E. (2019). História, movimentos e tendências da Terapia Ocupacional Social: algumas reflexões iniciais. In Anais do 12º Simpósio de Terapia Ocupacional e 7º Simpósio de Trabalhos Científicos do Curso de Graduação em Terapia Ocupacional USP de Ribeirão Preto. São Carlos: UFSCar.; Monzeli, 2022Monzeli, G. A. (2022). Terapia ocupacional social, justiça social e população LGBTI+: com quem produzimos nossas reflexões e ações? Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30(spe), e3095. http://dx.doi.org/10.1590/2526-8910.ctoarf234130952.
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), a fim de oferecer aportes para uma terapia ocupacional que parta de “[...] uma postura de combate ao antagônico estruturante (as relações sociais constituintes das diferentes opressões), edificando uma práxis para a antiopressão” (Farias & Lopes, 2022, pFarias, M. N., & Lopes, R. E. (2022). Terapia ocupacional social, antiopressão e liberdade: considerações sobre a revolução da/na vida cotidiana. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30(spe), e3100. http://dx.doi.org/10.1590/2526-8910.ctoen234531002.
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. 4).

Nesse contexto, o debate da terapia ocupacional social junto às questões das populações trans se intensifica e, inclusive, coloca-se como um campo pioneiro no Brasil, como indica a revisão de escopo realizada por Leite Junior & Lopes (2022)Leite Junior, J. D., & Lopes, R. E. (2022). Dissident genders and sexualities in the occupational therapy peer-reviewed literature: a scoping review. The American Journal of Occupational Therapy, 76(5), 7605205160. http://dx.doi.org/10.5014/ajot.2022.049322.
http://dx.doi.org/10.5014/ajot.2022.0493...
, apontando o ineditismo do artigo sobre o tema publicado por Monzeli et al. (2015)Monzeli, G. A., Ferreira, V. S., & Lopes, R. E. (2015). Entre proteção, exposição e admissões condicionadas: travestilidades e espaços de sociabilidade. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 23(3), 451-462. http://dx.doi.org/10.4322/0104-4931.ctoAO0518.
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, intitulado Entre proteção, exposição e admissões condicionadas: travestilidades e espaços de sociabilidade – resultado de uma pesquisa de mestrado no PPGTO/UFSCar em diálogo com o campo da terapia ocupacional social.

Trabalhos como os previamente mencionados vêm contribuindo para o delineamento do debate no interior da terapia ocupacional social, sobretudo para se pensar/fazer uma prática pautada na justiça social de forma bidimensional, sendo essa a tônica das histórias que envolveram as análises que dão origem a este texto, dentro daquilo que os modos de vida anunciam e que a terapia ocupacional social busca dar conta na vida que acontece para, em alguma medida, contribuir com um acontecer mais justo em prol da paridade de participação social e cotidiana.

Se a exposição à violência subjetiva e material compõe o cotidiano de pessoas trans – seja por meio da ausência ou insuficiência de políticas públicas ou pela violência simbólica da construção de um lugar marginal que reiteradamente diz respeito à “anormalidade” de não se enquadrar na norma (Melo, 2016Melo, K. M. M. (2016). Terapia Ocupacional Social, pessoas trans e teoria Queer: (re)pensando concepções normativas baseadas no gênero e na sexualidade. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 24(1), 215-223. http://dx.doi.org/10.4322/0104-4931.ctoARF0645.
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, 2021Melo, K. M. M. (2021). Entre rupturas e permanências: modos de vida e estratégias de enfrentamento à vida nas margens no cotidiano de pessoas trans (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.), a reconfiguração das redes de apoio diz respeito a uma potente estratégia de enfrentamento e sobrevivência, e busca reconhecimento em meio a hiatos de possibilidades mais democráticas na igualdade de acessos.

Esse reconhecimento ao qual nos referimos passa por uma dimensão subjetiva do reconhecimento de si enquanto parte de um constructo identitário, pelo objetivo, afetivo e humano do reconhecimento por parte dos pares e pelo reconhecimento institucional enquanto cidadã/o.

Na busca pelo reconhecimento, Talita reconfigura sua sociabilidade e, com isso, constrói alternativas de sustento e sobrevivência e, além disso, aprende novos códigos sobre como viver em um corpo não normativo. Se, nesse caso, a família não se configura como um lócus protetivo de sua materialidade, e nem tampouco de sua subjetividade, os espaços de prostituição remodelam seus limites protetivos e afetivos – como é possível perceber na forma que ela se refere às demais mulheres trans com as quais se relaciona nos espaços de prostituição, ao chamá-las de irmãs. O reconhecimento, nesse sentido, não é demandado da arena pública por Talita, tornando-se possível somente no interior de seu grupo, todavia fortalecendo-a para o trânsito nos demais espaços da vida social. Esses espaços não se ampliam, mas seus usos são mediados por estratégias como a hora do dia e os lugares onde se expõe menos à violência, a vestimenta mais possível para estar mais passável8 8 A passibilidade pode ser compreendida, de acordo com Duque (2020), como um regime de (in)visibilidade no qual se aciona um conjunto de signos e tecnologias corporais no sentido de “passar por” uma determinada identidade (aqui, de gênero) de acordo com as permissões e necessidades que um contexto ou situação demandem. em determinados espaços de circulação, a expressão corporal, a mobilização de acompanhantes e a não exposição da família. Todas essas são estratégias de proteção que acionam recursos de assimilação à norma numa tentativa de operacionalizar a vida, especialmente no que diz respeito aos trânsitos no espaço público, e nos informam sobre a importância do reconhecimento da igualdade e de pertencimento no fomento a possibilidades de participação social.

Assimilar a norma, para alguns, nesse sentido, configura-se como uma forma de busca por reconhecimento diante das imposições sociais, o que está presente nas estratégias que Talita mobiliza, mas não só. Marcela também nos mostra isso de maneira clara, por exemplo, quando se posiciona contra travestis e mulheres trans que se prostituem, afirmando a luta pela profissionalização das trabalhadoras do sexo como algo que “desmoraliza” o grupo, pautando-se nessa justificativa para não se posicionar a favor da causa.

As trabalhadoras do sexo, na visão de Marcela, carregam símbolos que denunciam o estigma. A interação entre os símbolos que a informação oferece e a percepção de quem a recebe estabelece, além da capacidade decodificadora de quem os observa, o estigma do qual Marcela quer se afastar como estratégia de minimizar o impacto do preconceito, ainda que o enfrentamento da norma não esteja presente, enfatizando nessa postura a sua busca por reconhecimento.

Assim, as narrativas descritas trazem, a partir das necessidades concretas da vida, a importância da dimensão de se compreender a justiça social nessas dimensões, inclusive dentro da prática terapêutico-ocupacional social, que historicamente tem desenhado e consolidado referenciais teóricos-metodológicos para intervir junto a grupos marcados por diferentes formas de opressão no que tange às impossibilidades de participação na vida social.

As histórias que percorremos ao longo da pesquisa que subsidia as discussões propostas neste texto anunciam que o sistema que normatiza as construções de gênero não opera somente como formador de subjetividade e de lugares sociais na experiência de pessoas trans. Para além disso, experiências nas mais diferentes etapas dos cursos de vida e nos mais diversos contextos apontam para práticas de resistência e enfrentamento do próprio sistema que produz seus lugares sociais e suas demandas por reconhecimento.

Os processos de estigmatização vivenciados por sujeitos que, no interior de um dado sistema, não se produzem nos contornos dos moldes hegemônicos, como é o caso das pessoas trans, resultam nas dificuldades e impossibilidades dessas pessoas quanto a seu direito fundamental à singularidade, de poderem exercitar o direito de ser, de viver e de serem respeitadas como todos os demais cidadãos (Peres & Toledo, 2011Peres, W. S., & Toledo, L. G. (2011). Dissidências existenciais de gênero: resistências e enfrentamentos ao biopoder. Revista Psicologia Política, 11(22), 261-277.). Suas existências, mediante suas expressões de gênero não conformes com os modelos binários, por si só, já produzem enfrentamentos tanto no campo da redistribuição como no campo do reconhecimento.

A ausência de possibilidades democráticas de participação na vida social fica evidente em experiências como as de Bianca, quando traz fortemente em sua narrativa a vivência de travestis marcada pela precarização da vida (Butler, 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.)9 9 Judith Butler, em seu livro “Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?”, publicado em 2015, discute que as vidas são precárias por natureza, podendo ser eliminadas de maneira proposital ou acidental, não importando o quanto se esforce para persistir. por conta da ausência de políticas de redistribuição para esse segmento populacional. A utilização de travestis no plural denota a trajetória de Bianca, que é narrada no atravessamento de múltiplas vozes, já que sua experiência no interior do movimento social a autoriza, segundo ela mesma, a falar em nome de um coletivo. A ausência de políticas públicas mais efetivas relacionadas ao acesso a direitos sociais compõe uma luta na qual Bianca se localiza e se insere: a busca pelo reconhecimento e redistribuição.

A luta por redistribuição refere-se a reivindicações de políticas públicas e direitos sociais, a lutas da/por cidadania que traduzam as demandas concretas desses sujeitos, como, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (2020)Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA. (2020). Dossiê assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019. São Paulo: Expressão Popular; ANTRA; IBTE., possibilidades menos subalternas no mercado de trabalho, estratégias de acesso e permanência de pessoas trans nos espaços educacionais, políticas de enfrentamento da violência e de segurança pública efetiva para todos, incorporação dos debates sobre gênero e sexualidade nos currículos escolares, promoção de espaços de sociabilidade, esporte e lazer, respeito ao nome e ao trato social, entre outras.

A inserção no mercado de trabalho, bem como a circulação nos espaços públicos, mostra-se como grande desafio na experiência de muitas pessoas trans, a exemplo de Talita e Bianca. Claramente, a dificuldade de inserção é resultado de uma composição que envolve o marcador da origem de classe nas suas histórias de vida, diferente das experiências de Dan e Tiago (que acessaram o mercado de trabalho antes de sua transição) e da experiência de Marcela (que teve acesso a recursos econômicos que possibilitaram sua qualificação profissional). Apesar das marcas do estigma atravessarem as experiências de sujeitos de múltiplas classes sociais, é no interior dos sistemas de classe que algumas ferramentas de enfretamento surgem e tornam algumas práticas possíveis de serem negociadas, e daí a necessidade de políticas sociais que visem minimizar os impactos da ausência de oportunidade e acesso.

“Ter carteira assinada”, “emprego fixo” ou qualquer outra categoria considerada socialmente digna agrega valor social ou estima social a quem as carrega (Carvalho, 2015Carvalho, M. F. L. (2015). “Muito prazer, eu existo!”: visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil (Tese de doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.), e sua ausência ou precariedade repercute de maneira direta nos cotidianos de pessoas trans. Se de maneira geral, nas experiências trans, esse acesso é dificultado, na trajetória de Dan, ele foi possível num momento anterior à transição de gênero, e sua permanência está ligada a negociações cotidianas que ele precisa mobilizar. Marinho & Almeida (2019, pMarinho, S., & Almeida, G. S. (2019). Trabalho contemporâneo e pessoas trans: considerações sobre a inferiorização social dos corpos trans como necessidade estrutural do capitalismo. Society and Culture, 22(1), 114-134. http://dx.doi.org/10.5216/sec.v22i1.57888.
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. 127), em uma pesquisa que aborda a história laboral de pessoas trans no Estado do Rio de Janeiro, discutem:

A busca de uma inserção laboral via concurso público, mesmo que não seja na área de sua formação, é muito procurada por pessoas trans perante a dificuldade de emprego em empresas privadas e pelo aspecto da proteção dos direitos trabalhistas e garantias de estabilidade. Além disso, as normativas sobre o uso do nome social no serviço público são atraentes por equacionarem, pelo menos em boa parte, os processos de assimilação social de sua identidade de gênero no ambiente de trabalho.

Apesar de Dan ter um cargo de professor no ensino público, e esse ser um fator que lhe garante inserção no mercado de trabalho, sua permanência envolve negociar constantemente o seu lugar de respeito e aceitação com os demais atores envolvidos em seu contexto de trabalho em face das práticas que traduzem, em maior ou menor grau, a transfobia.

Essas infindas negociações são mobilizadas a partir dos discursos apropriados por Dan no interior do movimento social, para reafirmar seu lugar no contexto do trabalho, e se constituem como um aparato de luta contra o sistema generificado e as impossibilidades que esse sistema traduz às pessoas trans no que concerne às demandas por reconhecimento e redistribuição. Isso porque, apesar da função assumida, Dan ainda precisa lidar com um processo de transição em andamento e a não alteração (ainda) do nome no seu registro, o que “denuncia” o seu lugar como pessoa trans. Como ele mesmo afirma, “não há alternativa senão resistir”, e essa resistência caminha, mais uma vez, na direção da busca por reconhecimento.

Essa luta pelo reconhecimento marca os modos de vida de pessoas trans na medida em que a inteligibilidade se torna uma condição básica de existência. Em entrevista à psicanalista Patrícia Porchat, Judith Butler afirma:

Quando falamos sobre o campo da inteligibilidade de gênero, estávamos falando sobre instituições, categorias e linguagens existentes que podem fazer com que o gênero tenha sentido. O reconhecimento é uma relação intersubjetiva, e, para um indivíduo reconhecer o outro, ele tem que recorrer a campos existentes de inteligibilidade. Mas o reconhecimento também pode ser o lugar onde os campos existentes de inteligibilidade são transformados (Knudsen, 2010, pKnudsen, P. P. P. S. (2010). Conversando sobre psicanálise: entrevista com Judith Butler. Estudos Feministas, 18(1), 161-170. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2010000100009.
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. 168).

Ela ainda continua:

[é preciso] marcar posição no campo da inteligibilidade, revisá-lo e expandi-lo, de modo que uma nova forma de reconhecimento seja possível. Ou o indivíduo pode dizer: “não quero ser reconhecido por meio de nenhum dos termos que você tem”, e nesse ponto aquele campo de inteligibilidade é recusado e uma distância crítica se estabelece. Invocamos campos de inteligibilidade quando reconhecemos outros, mas também podemos retrabalhá-los ou resistir a eles no curso de novas práticas de reconhecimento (Knudsen, 2010, pKnudsen, P. P. P. S. (2010). Conversando sobre psicanálise: entrevista com Judith Butler. Estudos Feministas, 18(1), 161-170. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2010000100009.
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. 168).

Chamando esse debate para a terapia ocupacional social, é importante destacar os caminhos empreendidos para se pensar a justiça social por essa subárea, dentro daquilo que se tece na análise dialética micro e macrossocial que, para nós, compõe uma crítica essencial aos debates que se reduzem ao neoliberalismo progressista. Estas tendem a reduzir os discursos da igualdade à meritocracia, configurando-se, por vezes, como uma lógica sutilmente perversa que se coloca como um caminho possível para pensar a justiça social pautada no empoderamento individual/vazio/simbólico (Fraser, 2018Fraser, N. (2018). Do neoliberalismo progressista a Trump – e além. Política & Sociedade, 17(40), 43-64. http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2018v17n40p43.
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, 2020Fraser, N. (2020). O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária.; Fernandes, 2020Fernandes, S. (2020). Se quiser mudar o mundo: um guia político para quem se importa. São Paulo: Planeta.).

O programa neoliberal progressista para atingir uma ordem de status justa não visava abolir a hierarquia social, mas “diversificá-la”, “empoderando” mulheres “talentosas”, pessoas de cor e minorias sexuais para que chegassem ao topo. E esse ideal era inerentemente específico a cada classe: voltado para garantir que indivíduos “merecedores” de “grupos sub-representados” [possam] atingir posições de prestígio e poder aquisitivo igual aos dos homens brancos heterossexuais de sua própria classe. A variante feminista diz isso; mas, infelizmente, não é a única. Focado em “afirmar-se” e “quebrar o teto de vidro”, seus principais beneficiários só poderiam ser os que já possuíam o necessário capital social, cultural e econômico. Todos os outros seriam mantidos no andar debaixo (Fraser, 2018, pFraser, N. (2018). Do neoliberalismo progressista a Trump – e além. Política & Sociedade, 17(40), 43-64. http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2018v17n40p43.
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. 47, grifos da autora).

Assim, a leitura proposta pela terapia ocupacional social, parametrizada pela crítica da cisão entre pessoa e grupo, indivíduo e coletivo, fortalece-se frente a essas perspectivas que disputam a concepção de justiça social, tendo em vista que se busca uma prática terapêutico-ocupacional social em prol do fomento da “[...] possibilidade de fortalecer a dimensão singular da pessoa, fortalecendo ao mesmo tempo a dimensão coletiva no sentido de pertencimento” (Barros & Galvani, 2016, pBarros, D. D., & Galvani, D. (2016). Terapia ocupacional: social, cultural? Diversa e múltipla! In R. E. Lopes & A. P. S. Malfitano (Eds.), Terapia ocupacional social: desenhos teóricos e contornos práticos (pp. 83-116). São Carlos: EdUFSCar.. 107). Logo, essa perspectiva coletiva de apreensão da realidade de grupos populacionais (Malfitano, 2016Malfitano, A. P. S. (2016). Contexto social e atuação social: generalizações e especificidades na terapia ocupacional. In R. E. Lopes & A. P. S. Malfitano (Eds.), Terapia ocupacional social: desenhos teóricos e contornos prático (pp. 117-133). São Carlos: EdUFSCar.) traz uma outra substância ao debate em torno do empoderamento individual e da meritocracia que não se esgota nos elementos dos indivíduos para pensar a ação e, de fato, dentro dos limites profissionais, intenciona uma prática para a emancipação social ou empoderamento social (Shor & Freire, 1986Shor, I., & Freire, P. (1986). Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra.).

Ademais, as narrativas das pessoas trans trazem elementos importantes que retomam aqui o que a terapia ocupacional social tomou como um dos eixos das ações: a cidadania (Lopes, 2016Lopes, R. E. (2016). Cidadania, direitos e terapia ocupacional. In R. E. Lopes & A. P. S. Malfitano (Eds.), Terapia ocupacional social: desenhos teóricos e contornos práticos (pp. 29-48). São Carlos: EdUFSCar.). Dentro dos limites da articulação de espaços pautados na justiça social, na sociedade capitalista, a cidadania tem se consolidado com uma possibilidade importante para os terapeutas ocupacionais sociais, marcada por uma intencionalidade (Farias & Lopes, 2021Farias, M. N., & Lopes, R. E. (2021). Terapia ocupacional social: formulações à luz de referenciais freireanos. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(4), 1346-1356. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoEN1970.
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) mais ampla de justiça - na ideia revolucionária, mas sendo utilizada nos seus limites. Como afirmam Bezerra et al. (2022, pBezerra, W. C., Lopes, R. E., & Basso, A. C. S. (2022). As estruturas da vida cotidiana e a terapia ocupacional: tensionando limites e possibilidades no/do exercício profissional. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30, 1-13. http://dx.doi.org/10.1590/2526-8910.ctoen22983031.
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. 11, grifos dos autores), é essencial que os profissionais “[...] possuam clareza da intencionalidade das suas ações, alinhando seus projetos profissionais a projetos societários intencionados e direcionados à transformação necessária do status quo”.

Pontua-se que os desafios para isso não são simples, dentro das configurações capitalistas, que, segundo Fraser et al. (2021)Fraser, N., Spano, A., & Herscovici, N. (2021). Interregno estadunidense: entrevista de Nancy Fraser a Alessandra Spano. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, 26(1), 165-173. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v26i1p165-173.
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, deflagram a crise do cuidado, consequência do capitalismo financeirizado, de caráter intensamente predatório, junto à erosão e ao colapso da assistência pública e seguridade social, “[...] que reflete o severo enfraquecimento dos poderes públicos causado pelas megacorporações, instituições financeiras e revoltas fiscais por parte dos ricos, resultando na paralisia e no subinvestimento em infraestrutura essencial” (Fraser et al., 2021, pFraser, N., Spano, A., & Herscovici, N. (2021). Interregno estadunidense: entrevista de Nancy Fraser a Alessandra Spano. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, 26(1), 165-173. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v26i1p165-173.
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. 166). Logo, direcionar as ações profissionais com aquela intencionalidade é complexo e exige que terapeutas ocupacionais assumam conflitos e entendam os lugares possíveis de subversão (ainda que limitada) nessa lógica.

Assim, as histórias e modos de viver articulados nas narrativas de Bianca, Dan, Marcela, Talita e Tiago anunciam não apenas os limites, mas também as possibilidades de se articular as múltiplas cidadanias como um caminho intencionado para a justiça social mais ampla, pautada em alguns processos de transformação social. Para Lopes (2016)Lopes, R. E. (2016). Cidadania, direitos e terapia ocupacional. In R. E. Lopes & A. P. S. Malfitano (Eds.), Terapia ocupacional social: desenhos teóricos e contornos práticos (pp. 29-48). São Carlos: EdUFSCar., é do lugar da cidadania, onde se articula a ampliação da igualdade e o reconhecimento das diferenças, que advoga a terapia ocupacional social, sendo uma leitura central também para as pessoas trans.

Considerações Finais

No que nos interessa para pensar a ação técnica da terapia ocupacional social, considerando a cidadania como seu eixo articulador, os caminhos possíveis são precedidos de uma inquietação que toma como ponto central o seguinte questionamento: Como pensar práticas de fomento à cidadania quando trabalhamos com pessoas, grupos ou populações que têm, além dos direitos sociais, a sua humanidade negada?

Uma ação terapêutico-ocupacional articulada por uma cidadania fundada na luta por justiça social nos parece potente, sobretudo por oferecer, na sua fundamentação, leituras acerca das desigualdades sociais e dos caminhos possíveis, dos “remédios” que podem ser mobilizados; especialmente, quando falamos de populações que, além dos direitos sociais, têm os direitos civis confrontados, questionados e cerceados, sem mencionar os direitos humanos, que transcendem as lutas por cidadania.

Não estamos falando apenas de fortalecimento de redes sociais de suporte e inserção no mercado de trabalho; estamos falando, sobretudo, do direito de existir e de conviver integralmente. Desse modo, nesse contexto, lutas por redistribuição e reconhecimento não se dissociam e são o tempo todo tensionadas, provocadas e tecidas num misto entre ter assegurado o status da cidadania e os direitos que daí decorrem (redistribuição) e, ao mesmo tempo, o status de humano livre (reconhecimento). Essa humanidade é atravessada pelas possibilidades de ter sua existência assegurada e respeitada, com a legitimidade do uso dos seus corpos na construção de identidades de gênero, enfim, pelas liberdades individuais. Isso não pode ser pensado descolado do reconhecimento do Estado e da sociedade no sentido da garantia dos mínimos sociais, direcionados a todos que pertencem e são tidos como iguais. A relação nos parece dialética e retroalimentada.

Se a práxis terapêutico-ocupacional social se propõe a articular técnica e politicamente o campo social, é necessário e urgente o entendimento dos múltiplos modos de vida dentro dos limites, possibilidades e tensionamentos da sociedade do capital, sobretudo das contradições que envolvem essas realidades, dentro daquilo que diz da subjetividade, da história, da cultura, das relações políticas, entre outros elementos, que desembocam no cotidiano das populações, para se construir e lutar por possibilidades de/para se viver melhor.

Por fim, esse percurso se dá no caminhar com os sujeitos e no lidar efetivo com as suas necessidades e demandas concretas, como aqueles que nos inspiram aqui com suas histórias, reivindicações e conquistas, para se entender as mudanças sociais e como podemos apreender (ou aprender com) as manhas que esses sujeitos lançam mão para afirmar suas existências, para talvez assim poder imprimir nossas contribuições no âmbito da assistência e da produção de conhecimento.

  • 1
    Termo utilizado, tomando-se os debates sobre gênero propostos por Butler (2003)Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., para referir-se às pessoas cuja identidade de gênero diverge dos modelos binários que foram socialmente instituídos a partir da heteronormatividade.
  • 2
    Para fins éticos, nesta pesquisa, os nomes dos/as interlocutores/as foram alterados para preservar suas identidades. Os dados produzidos foram revisados e aprovados pelos/as interlocutores/as.
  • 3
    O termo “estigma” se relaciona diretamente com a antiguidade clássica, momento histórico quando designava “[...] sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava” (Goffman, 1980, pGoffman, E. (1980). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar.. 11). Na era cristã, o termo ganhou a conotação de origem divina e, posteriormente, de problemas físicos. Na atualidade, a palavra “estigma” realoca a sua semântica para falar de algo que deve ser evitado, uma ameaça à sociedade, isto é, uma identidade social deteriorada. Goffman (1980, pGoffman, E. (1980). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar.. 41) discorre sobre como o estigma se constrói e marca os sujeitos: “[...] a pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de vista dos normais, adquirindo, portanto, as crenças da sociedade mais ampla em relação à identidade e uma ideia geral do que significa possuir um estigma particular”.
  • 4
    Termo utilizado pela socióloga Bento (2014)Bento, B. (2014). Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea, 4(1), 165-182.. A autora pontua: “A cidadania precária representa uma dupla negação: nega a condição humana e de cidadão/cidadã de sujeitos que carregam no corpo determinadas marcas. Essa dupla negação está historicamente assentada nos corpos das mulheres, dos/as negros/as, das lésbicas, dos gays e das pessoas trans (travestis, transexuais e transgêneros). Para adentrar a categoria de humano e de cidadão/cidadã, cada um desses corpos teve que se construir como corpo político. No entanto, o reconhecimento político, econômico e social foi (e continua sendo) lento e descontínuo” (Bento, 2014, pBento, B. (2014). Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea, 4(1), 165-182.. 167).
  • 5
    Nancy Fraser assinala, em várias de suas obras, que a participação envolve necessariamente o reconhecimento de diversos grupos invisibilizados socialmente e a redistribuição de recursos que viabilizem e fomentem a participação; lutas por reconhecimento e redistribuição decorrem de processos de subordinação que impedem a participação e produzem injustiça social. Para Fraser (2004)Fraser, N. (2004). Repensando a questão do reconhecimento: superar a substituição e a reificação na política cultural. In C. A. Baldi (Eds.), Direitos humanos na sociedade cosmopolita (pp. 601-621). Rio de Janeiro: Renovar., é necessária uma paridade de participação, que só será alcançada mediante o reconhecimento recíproco e a igualdade de status. Isso será retomado adiante neste texto.
  • 6
    Política pública intersetorial implantada no município de São Paulo voltada para a integração social de travestis e transexuais a partir da educação. Foi lançada em 2015, junto aos setores de serviços reunidos pelas secretarias municipais de Saúde, Educação, Trabalho, Mulheres e Assistência e Desenvolvimento Social, com o objetivo de fortalecer as atividades profissionais de pessoas trans. Para tanto, o programa propunha, no momento da inserção de Bianca, que as pessoas beneficiárias recebessem uma bolsa no valor de R$ 910,00 (ampliada em 2016) para a conclusão da Educação Básica e para uma educação profissionalizante. Visava-se à promoção de educação de jovens e adultos, aulas e direitos humanos, cursos profissionalizantes, preparação para o mercado de trabalho e estágio, totalizando uma carga horária semanal de 30 horas. O programa garantia o uso do nome social em todos os documentos da rede municipal de ensino, tratamento hormonal em unidades básicas de saúde, tomando como prioridade o acolhimento das participantes na Casa Abrigo do Brasil, exclusiva para travestis e transexuais em situação de rua, e também no Complexo Zaki Narch e no Centro de Referência da Mulher, garantindo atendimento prioritário às travestis vítimas de violência.
  • 7
    A Rede Metuia – Terapia Ocupacional Social, que surgiu como Projeto Metuia, refere-se ao grupo de ensino, pesquisa e extensão em terapia ocupacional social formado em 1998 por docentes da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade de São Paulo (USP) e Pontifícia Católica de Campinas (PUCC). Hoje, a Rede Metuia é composta pelos Núcleos da UFSCar, da USP-São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), da Universidade de Brasília (UnB) e o que agrega a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e a Universidade Estadual de Ciências da Saúde (UNCISAL). Ainda, de maneira não nucleada, outras/os pesquisadoras/es e profissionais também participam dessa rede.
  • 8
    A passibilidade pode ser compreendida, de acordo com Duque (2020)Duque, T. (2020). A Epistemologia da passabilidade: dez notas analíticas sobre experiências de (in)visibilidade trans. História Revista, 25(3), 32-50. http://dx.doi.org/10.5216/hr.v25i3.66509.
    http://dx.doi.org/10.5216/hr.v25i3.66509...
    , como um regime de (in)visibilidade no qual se aciona um conjunto de signos e tecnologias corporais no sentido de “passar por” uma determinada identidade (aqui, de gênero) de acordo com as permissões e necessidades que um contexto ou situação demandem.
  • 9
    Judith Butler, em seu livro “Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?”, publicado em 2015, discute que as vidas são precárias por natureza, podendo ser eliminadas de maneira proposital ou acidental, não importando o quanto se esforce para persistir.
  • Como citar: Melo, K. M. M., Farias, M. N., & Lopes, R. E. (2023). Terapia ocupacional social e justiça social: diálogos a partir das demandas trans. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 31, e3421. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO262234211
  • Fonte de Financiamento

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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Editado por

Editora de seção

Profa. Dra. Marta Carvalho Almeida

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2022
  • Revisado
    28 Set 2022
  • Revisado
    12 Dez 2022
  • Aceito
    12 Jan 2023
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