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Projetar a vida sendo menina: contribuições da terapia ocupacional social

Resumo

A condição da mulher em nossa sociedade tem importantes implicações em termos de hierarquia, assimetria, discriminação e desigualdade, cerceando possibilidades na projeção da vida. Considerando que ser uma jovem menina traz implicações que se materializam na vivência da juventude e nos sonhos e projetos que podem se construir nessa fase, esta pesquisa buscou conhecer dimensões da vida de meninas/mulheres estudantes do Ensino Médio que influenciam a projeção de suas vidas, bem como as possíveis contribuições da terapia ocupacional social no enfrentamento desta problemática. Para que tais objetivos fossem cumpridos, utilizou-se de uma metodologia participativa, na modalidade pesquisa-intervenção, realizada em uma escola pública, por meio da construção de um “Clube das Meninas”, onde foram realizadas Oficinas de Atividades, Dinâmicas e Projetos. Os resultados apontaram que as convenções sociais de gênero permeiam a relação estabelecida entre as meninas/mulheres, os seus corpos e seus cotidianos; exposição a situações de violência desde a infância e, quando jovens, de maneira mais evidente nos relacionamentos afetivos e/ou sexuais; fragilidades e rupturas de vínculos familiares e de amizade; de redes sociais de suporte consistentes e protetivas, em especial, o não reconhecimento da escola como componente dessa rede; elementos que atravessam a construção de seus projetos de vida. Discute-se que a terapia ocupacional social, por meio de suas tecnologias sociais, pode contribuir com o enfrentamento das problemáticas cotidianas resultantes da construção social relacionada ao ser menina/mulher na ampliação de vivências com vistas à autonomia e à emancipação, assim como no fortalecimento das redes sociais de suporte e no enfrentamento de situações de violência.

Palavras-chave:
Projetos; Escolas; Juventudes; Terapia Ocupacional; Equidade de Gênero

Abstract

The condition of women in our society has important implications in terms of hierarchy, asymmetry, discrimination, and inequality, limiting possibilities in the projection of life. Considering that being a young girl has implications that materialize in the experience of youth and in the dreams and projects that can be built at this stage, this research sought to understand dimensions of the lives of girls/women that are high school students that influence the projection of their lives, as well as the possible contributions of social occupational therapy in tackling this problem. For these objectives to be met, a participatory methodology was used, in the research-intervention modality, carried out in a public school, through the construction of a “Girls Club”, where Activities, Dynamics and Project Workshops were held. The results showed that social gender conventions permeate the relationship established between girls/women, their bodies and their daily lives; exposure to situations of violence since childhood and, when young, more evident in affective and/or sexual relationships; weaknesses and ruptures in family and friendship ties; consistent and protective support social networks, in particular, the non-recognition of the school as a component of this network; elements that permeate the construction of their life projects. It is discussed that social occupational therapy, through its social technologies, can contribute to confronting everyday problems resulting from the social construction related to being a girl/woman in expanding experiences with a view to autonomy and emancipation, as well as strengthening of support social networks and in confronting situations of violence.

Keywords:
Projects; Schools; Youth; Occupational Therapy; Gender Equity

Introdução

Esta pesquisa partiu da compreensão de que as juventudes são, a todo tempo, atravessadas pelos marcadores sociais da diferença que mobilizam diversas formas de opressão, que trabalham juntas na produção de injustiças, em práticas de estigmatização, inferiorização, vitimização pela violência e criminalidade, exclusão e/ou discriminação em arenas como emprego, educação, moradia, saúde, lazer, entre outros. Com isso, as juventudes demandam ações voltadas ao “[…] acesso ao sistema educativo, oportunidade de emprego e ações produtivas e combate às distintas formas de violência física e simbólica” (Brasil, 2013, pBrasil. (2013). Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI.. 13).

Os marcadores sociais das diferenças são uma maneira de designar como estas são socialmente instituídas e podem conter implicações em termos de hierarquia, assimetria, discriminação e desigualdade (Almeida et al., 2018Almeida, H., Simões, J., Moutinho, L., & Schwarcz, L. (2018). Numas, 10 anos: um exercício de memória coletiva. In G. Saggesse, M. Marisol, R. A. Lorenzo, J. A. Simões & C. D. Cancela (Eds.), Marcadores Sociais da Diferença: Gênero, sexualidade, raça e classe em perspectiva antropológica (pp. 19-44). São Paulo: Gamma.). Entretanto, Brah (2006)Brah, A. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, (26), 329-376. ressalta que a diferença, por si só, não é sempre um marcador de hierarquia e opressão. Assim, é necessário compreender se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política. As diferenças estão inscritas nas categorias gênero, sexualidade, raça/cor, classe, etnia, geração, religião, entre outras e, quando conformam em desigualdade, diferentes dimensões da vida social podem ser marcadas por formas de opressão. Dessa maneira, de modo implícito ou explícito, “[…] vidas reais são forjadas a partir de articulações complexas dessas dimensões” (Brah, 2006, p. 341).

Tendo em vista que diversas pesquisas apontam as expressivas violações de direitos e exposição a riscos e violências a que estão submetidas mulheres e meninas, situação agravada pelo contexto da pandemia de Covid-19 a partir de 2020 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2019). Síntese de indicadores sociais. Recuperado em 12 de janeiro de 2023, de https://anda.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/habitacao/9221-sintese-de-indicadores-sociais.html?edicao=25875#:~:text=S%C3%ADntese%20de%20Indicadores%20Sociais%3A%20em,2012%20a%202019%2C
https://anda.ibge.gov.br/estatisticas/so...
, 2021Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2021). Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil - 2ª edição. Rio de Janeiro: IBGE.; Plan International, 2021Plan International. (2021). Por ser menina no Brasil: resumo executivo. Recuperado em 12 de janeiro de 2023, de https://plan.org.br/estudos/resumo-executivo-pesquisa-por-ser-menina-no-brasil/
https://plan.org.br/estudos/resumo-execu...
; Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar, 2022Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar – PENSSAN. (2022). II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil [livro eletrônico]: II VIGISAN: relatório final. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert, Rede PENSSAN.; World Economic Forum, 2021World Economic Forum – WEF. (2021). Global gender gap report 2021. Recuperado em 12 de janeiro de 2023, de https://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2021.pdf
https://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2...
), tomou-se aqui o gênero como primeiro marcador.

As mulheres, nos diferentes períodos da vida, sofrem violência de gênero em suas várias expressões: restrições no campo da autonomia sexual, dificuldades de acesso à saúde sexual e reprodutiva, sobrecarga de responsabilidades, segregação ocupacional, discriminação salarial, baixa presença nos espaços de poder, má distribuição dos afazeres domésticos, entre outras – dados discutidos com mais detalhes nas referências mencionadas anteriormente (Carrara et al., 2010Carrara, S., Barreto, A., Manica, D., Zanetti, J., & Araújo, L. (2010). Curso de especialização em gênero e sexualidade (Vol. 1). Rio de Janeiro: CEPESC/Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Gênero, sexualidade e desigualdades, pp. 82-124.).

Assim, esses agravantes permeiam a vida de mulheres e meninas, impactando diretamente suas condições de vida e influenciando na construção de seus projetos de vida. Tal fato, ao se articular com o debate das juventudes, lança luz sobre a escola pública e o seu lugar central como espaço de aprendizagem de conteúdos formais, considerados conhecimentos produzidos e acumulados pela humanidade e a que todos e todas têm o direito de acesso e apreensão. Além disso, é na escola onde se pode aprender a conviver com a diversidade, estabelecer laços e relações sociais, compartilhar vivências e realidades, elementos que compõem, conforme apontado por Cury (2002)Cury, C. R. J. (2002). Direito à educação: direito à igualdade, direito à diferença. Cadernos de Pesquisa, (116), 245-262., bases para o exercício da cidadania e, de certa forma, para a construção da própria vida.

Junto a isso, a terapia ocupacional social, em sua proposta de trabalho com as juventudes, tem problematizado a centralidade da escola pública como um espaço a ser fortalecido como rede social de suporte desse público, bem como acumulado experiências que sustentam a pertinência de tomá-la como um lócus para o desenvolvimento de ações terapêutico-ocupacionais que visem processos de participação e emancipação pessoal e social (Pan & Lopes, 2022Pan, L. C., & Lopes, R. E. (2022). Ação e formação da terapia ocupacional social com os jovens na escola pública. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30, 1-22.).

Enquanto um campo de saber e prática, a terapia ocupacional social apresenta tecnologias sociais capazes de fomentar esses processos, integrando e articulando ações de abrangência macro e microssocial, articuladas à questão social colocada para a vida individual e coletiva de diversos sujeitos (Lopes et al., 2014Lopes, R. E., Malfitano, A. P. S., Silva, C. R., & Borba, P. L. O. (2014). Recursos e tecnologias em terapia ocupacional social: ações com jovens pobres na cidade. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 22(3), 591-602.).

Assim, pautando-se nos arcabouços teórico-metodológicos da terapia ocupacional social, bem como nas problemáticas da correlação gênero e juventudes, delineou-se o desenvolvimento desta pesquisa, que teve como objetivo conhecer dimensões da vida de meninas/mulheres estudantes do Ensino Médio de uma Escola Pública que influenciam a projeção de suas vidas, a saber: gênero, cotidiano, relacionamentos, redes sociais de suporte e projetos de vida, bem como compreender como o trabalho da terapia ocupacional social com jovens meninas, voltado para a produção de emancipação, contribui para a construção desses projetos com autonomia.

Percurso Metodológico

Este é um estudo qualitativo, com enfoques definidos pela pesquisa participativa, na modalidade pesquisa-intervenção. Essa prática se baseia na compreensão de que os dados sobre a realidade retratada não são “colhidos”, mas produzidos pelas lentes do método. Nesse sentido, entende-se que o pesquisador também está em relação social, não havendo neutralidade a partir da sua presença nas condições de aplicação e operacionalização do método (Ferreira, 2017Ferreira, V. S. (2017). Pesquisar jovens: caminhos e desafios metodológicos. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.).

A pesquisa participativa parte da realidade concreta da vida cotidiana dos próprios participantes individuais e coletivos do processo, em suas diferentes dimensões e interações. Ademais, esta deve ser desenvolvida como um ato de compromisso, de presença e de participação claro e assumido, garantindo a autonomia de seus sujeitos na gestão do conhecimento e das ações sociais dele derivadas (Brandão & Borges, 2007Brandão, C. R., & Borges, M. C. (2007). A pesquisa participante: um momento da educação popular. Revista de Educação Popular, 6, 51-62.).

A produção de dados teve como estratégia central a utilização de Oficinas de Atividades, Dinâmicas e Projetos, metodologia da terapia ocupacional social (Lopes et al., 2014Lopes, R. E., Malfitano, A. P. S., Silva, C. R., & Borba, P. L. O. (2014). Recursos e tecnologias em terapia ocupacional social: ações com jovens pobres na cidade. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 22(3), 591-602.), integradas ao diário de campo e às conversas informais.

Segundo Lopes et al. (2011Lopes, R. E., Borba, P. L. O., Trajber, N. K. A., Silva, C. R., & Cuel, B. T. (2011). Oficinas de atividades com jovens da escola pública: tecnologias sociais entre educação e terapia ocupacional. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 15(36), 277-288., 2014Lopes, R. E., Malfitano, A. P. S., Silva, C. R., & Borba, P. L. O. (2014). Recursos e tecnologias em terapia ocupacional social: ações com jovens pobres na cidade. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 22(3), 591-602.), as Oficinas de Atividades, Dinâmicas e Projetos são uma metodologia de intervenção coletiva que permitem a aproximação, acompanhamento, apreensão das demandas e fortalecimento dos sujeitos individuais e coletivos. Por meio delas, partindo do uso de atividades como mediadoras das relações e disparadoras para o processo de intervenção, é possível produzir espaços de experimentação, aprendizagem, trocas, debates, processos de reflexão e conscientização, concebendo cada participante como ser ativo no processo de construção de subjetividade.

As oficinas foram realizadas por meio de um Clube Juvenil1 1 Os Clubes Juvenis são “grupos temáticos criados e organizados pelos estudantes, com o apoio de professores(as) e da direção escolar”, fazendo parte das metodologias do Modelo Pedagógico do Programa Ensino Integral (PEI) no estado de São Paulo (São Paulo, 2021a). , intitulado “Clube das Meninas”, para estudantes do Ensino Médio de uma escola pública integrante do Programa de Ensino Integral (PEI), do estado de São Paulo, que se identificassem como menina/mulher, que aceitassem participar da pesquisa voluntariamente e, consequentemente, do Clube.

Foram realizadas 11 oficinas no Clube das Meninas, no primeiro semestre de 2022, com as seguintes temáticas, com base na literatura científica sobre gênero e juventudes: Como é ser menina/mulher?; cotidiano e trabalho invisível; relacionamentos afetivos e/ou sexuais; projetos de vida; redes sociais de suporte e impactos da pandemia, com encontros semanais com duração de 1h30, com a participação de oito meninas. Todas as oficinas realizadas foram gravadas em áudio, e, posteriormente, transcritas e analisadas.

Ressalta-se que todas as participantes apresentaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE) assinados e que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da UFSCar com base no parecer n. 5.188.885.

A análise dos dados foi realizada pela categorização das temáticas que ganharam evidência durante sua produção, por meio de revisão e sistematização da literatura, acerca da realidade sobre a qual se debruça este estudo. Assim, focou-se nas questões de gênero e nos estudos do campo da sociologia sobre projetos de vida e juventudes, nas implicações dos marcadores sociais da diferença nesse âmbito e nas contribuições da terapia ocupacional em geral e da terapia ocupacional social em particular.

Resultados e Discussões

Desafios iniciais

O Clube das Meninas se iniciou com participantes que eram de turmas e anos diferentes do Ensino Médio. Elas tinham entre 15 e 18 anos, muitas apenas se conheciam de vista e não havia qualquer relação de amizade ou proximidade entre a grande parte delas, aspecto que inicialmente dificultou a vinculação e disponibilidade para trocas e diálogo entre as participantes.

Nos três primeiros encontros, foi comum a procura de algumas meninas pela responsável pelas Oficinas para manifestar o incômodo com a presença de outras participantes e o receio de compartilhar questões de ordem íntima e pessoal. Inclusive, outras potenciais integrantes manifestaram desejo de participar do Clube e vinham buscar mais informações ao longo das primeiras semanas, mas se recusavam a estar com outras meninas de quem “não gostavam”.

Foi necessário, após a identificação dos possíveis conflitos e inimizades, realizar a mediação de maneira mais próxima com algumas participantes e construir, dentro do Clube, acordos e combinados que envolviam: o sigilo absoluto sobre todas as informações e histórias compartilhadas, a responsabilização coletiva pelo cuidado com cada participante e relato ouvido, além da necessidade de construção compartilhada de um espaço seguro e respeitoso para todas.

Com muito diálogo, mediação e utilizando os próprios conteúdos e relatos que surgiam no decorrer das Oficinas para sensibilizá-las, foi possível garantir que as participantes permanecessem no Clube, ainda que inicialmente não estabelecessem relações de amizade e/ou proximidade entre elas, reforçando sempre que as diferenças eram importantes e que não inviabilizavam a participação de nenhuma delas.

Com a compreensão de que, nas Oficinas de Atividades, Dinâmicas e Projetos, “[…] no momento da ação, as defesas, as amarras mentais ou comportamentais se afrouxam” (Pereira & Malfitano, 2014, pPereira, P. E., & Malfitano, A. P. S. (2014). Olhos de ver, ouvidos de ouvir, mãos de fazer: oficinas de atividades em terapia ocupacional como método de coleta de dados. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 18(49), 415-422.. 1), possibilitando encurtar as distâncias, dissolver preconceitos, repensar concepções e, também, ser transformado pelos encontros com as diferenças, foi possível observar a superação das barreiras iniciais e a abertura para a proposta do Clube.

As principais razões identificadas como causa de inimizade entre algumas participantes se referiam a boatos que circulavam pela escola sobre as escolhas afetivas e sexuais de algumas meninas, as condutas consideradas inapropriadas, como o uso de substâncias psicoativas, o histórico de relacionamentos anteriores com meninos da escola, a maneira como falavam e se portavam no Clube e na escola, além do julgamento sobre os espaços de circulação de algumas participantes fora da escola, como as “revoadas 2 2 O termo ficou popular no funk paulista e nas periferias, por meio de diversos hits lançados nos últimos anos, os quais fazem referência aos encontros de socialização dos jovens que se reúnem em torno de diferentes expressões culturais, como a música, a dança, entre outras, e tornam visíveis, pelo corpo, pelas roupas e pelos comportamentos próprios, as diferentes formas de se expressar e de se colocar diante do mundo. Nesses encontros, estabelecem trocas, experimentam, divertem-se, produzem, sonham, enfim, vivem determinado modo de ser jovem e quase sempre são associados à violência, à marginalidade e à perversão. ”.

No que diz respeito à rivalidade, as mulheres são o grupo mais vitimado pela opressão sexista e, durante a realização das Oficinas, em especial nas três primeiras, onde os conflitos e inimizades ganharam centralidade, foi possível identificar as consequências do sexismo no relacionamento entre as participantes. Sobre isso, Hooks (2019, pHooks, B. (2019). Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva.. 79) discorre

[…] o sexismo é perpetuado por estruturas sociais e institucionais; por indivíduos que dominam, exploram ou oprimem; e pelas próprias vítimas, educadas socialmente para agir em cumplicidade com status quo. […] Fomos ensinadas que nossas relações umas com as outras não nos enriquecem, mas, pelo contrário, deixam-nos ainda mais pobres. Fomos ensinadas que as mulheres são inimigas “naturais” uma das outras, que a solidariedade nunca irá existir entre nós porque não sabemos nem devemos nos unir. E essas lições foram muito bem aprendidas.

O Clube das Meninas se tornou, então, um espaço para desaprender essas lições, aprender a viver e a trabalhar em solidariedade entre meninas/mulheres e reconhecer de onde vêm essas construções de gênero que distanciam as mulheres umas das outras e perpetuam violências.

Nesse sentido, as estratégias utilizadas durante as oficinas possibilitou não “apenas” um importante e potente recurso para a apreensão de suas realidades no âmbito da pesquisa, mas, principalmente, na linha do que aponta Farias & Lopes (2021b)Farias, M. N., & Lopes, R. E. (2021b). Terapia ocupacional social: formulações à luz de referenciais freireanos. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(4), 1346-1356., como possibilidade de a terapia ocupacional social promover processos de conscientização, colaborar para desvencilhar o sexismo das relações ali estabelecidas, com base no reconhecimento do “inimigo interno”, que se refere ao sexismo internalizado que nos faz competir umas com as outras pela aprovação patriarcal, olhar umas às outras com inveja, medo e ódio (Hooks, 2018Hooks, B. (2018). O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras (1ª ed.). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.).

As questões sociais de gênero que a todo tempo atravessavam o Clube das Meninas e que, em um primeiro momento, trouxeram à tona os conflitos e inimizades entre as participantes, não foram deixadas de lado (porque isso não seria possível), mas tornaram-se um recurso mediador, pois promoveram diálogos, descobertas, reflexões e a conscientização sobre o papel de cada uma no enfrentamento ao sexismo.

Como é ser menina/mulher?

A primeira temática desenvolvida no Clube das Meninas tinha como objetivo fomentar que as participantes pudessem refletir e compartilhar suas percepções sobre como é ser menina/mulher, com base na vivência individual de cada uma, e também identificar quem é/são a(s) mulher(es) de sua vida, aquelas que as inspiram, influenciam e são suas referências. Essa abordagem tinha o intuito de estimular que elas pudessem se reconhecer umas nas outras, ainda que com suas individualidades e diferenças, rompendo a barreira inicial da inimizade e apostando na sensibilização e na afetação ao ouvir a história umas das outras.

Os primeiros aspectos que chamaram atenção se referem à associação imediata de ser menina/mulher com a responsabilidade de realizar as tarefas domésticas, a dificuldade de se sentir bem com a própria imagem em decorrência do padrão estético vigente, causando grandes prejuízos à autoestima e desencadeando questões de saúde mental, como crises de ansiedade recorrentes, automutilação e ideação suicida, além do apontamento de que viver um relacionamento abusivo é parte de como é ser menina/mulher.

No que se refere às tarefas domésticas, foi consenso entre as participantes que, por serem meninas, tinham como responsabilidade garantir a sua realização, ainda que convivessem com mais pessoas dentro de casa. As participantes que tinham irmãos, em especial meninos/homens, reforçaram a dificuldade de que estes compreendam a importância da divisão das tarefas, mesmo as mais básicas, como organizar o próprio quarto, cuidar da própria roupa, substituir itens quando eles terminam ou providenciar o próprio alimento.

Embora todas reconhecessem que as tarefas domésticas não deveriam ser de responsabilidade única das meninas e mulheres da casa, há um certo conformismo e descrença em relação às possíveis mudanças nesse cenário, em especial porque, ainda que cause cansaço e as impeçam que se dediquem a outras atividades, elas consideram que os meninos e homens “não sabem fazer do jeito certo” (sic).

Os relatos sobre as tarefas domésticas serem de responsabilidade das mulheres/meninas reforçam que a divisão sexual do trabalho doméstico é desigual e desfavorável às mulheres e que a percepção dos papéis de gênero “[…] constrói uma identidade do feminino e do masculino que encarcera homens e mulheres em seus limites” (Torrão Filho, 2005, p. 136), mantendo desigualdades em diversos âmbitos.

Saffioti (2004, pSaffioti, H. (2004). Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Perseu Abramo.. 75) explica que:

A desigualdade, longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais. Nas relações entre homens e entre mulheres, a desigualdade de gênero não é dada, mas pode ser construída, e o é, com frequência.

Assim, é possível compreender como e por que as meninas reproduziam nos seus relatos e percepções o lugar da mulher atrelada ao ambiente doméstico, sendo esta uma combinação histórica e culturalmente construída, inclusive como mecanismo para estruturação da sociedade capitalista (Federici, 2019Federici, S. (2019). O Calibã e a Buxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante.).

Corpo, beleza, autoimagem, procedimentos estéticos, peso, autoestima, gordofobia, preterimento, influências digitais e fitness, além da solidão por, muitas vezes, odiar o próprio corpo. Foram muitos os relatos durante os encontros sobre a temática de como ser menina/mulher se atrela à estética, especialmente como elemento causador de sofrimento, estando presente na vida de todas as participantes.

Naomi Wolf (2018, n.p.), em “O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres”, aprofunda as discussões sobre como a ideologia da beleza se fortaleceu para assumir a função de coerção social que os mitos da maternidade, domesticidade, castidade e passividade não conseguiram impor com tanto sucesso nas últimas décadas, os quais tinham também como objetivo “[…] eliminar a herança deixada pelo feminismo, em todos os níveis, na vida da mulher ocidental”.

A autora defende que todas as gerações, desde cerca de 1830, tiveram de enfrentar sua versão do mito da beleza, visto que “[…] como muitas ideologias da feminilidade, muda [o mito da beleza] para se adaptar a novas circunstâncias e põe em xeque o esforço que as mulheres fazem para aumentar seu próprio poder” (Wolf, 2018, nWolf, N. (2018). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos..p.). Inerente a isso, a “[…] manipulação consciente do mercado”, composta por indústrias poderosas e bilionárias, como a das dietas, dos cosméticos, da cirurgia plástica estética e da pornografia, segue crescendo por meio do “[…] capital composto por ansiedades inconscientes e conseguem, por sua vez, através de sua influência sobre a cultura de massa, usar, estimular e reforçar a alucinação numa espiral econômica ascendente” (Wolf, 2018, nWolf, N. (2018). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos..p.).

Ser uma menina/mulher gorda foi uma questão bastante discutida entre as participantes, evidenciando aspectos relacionados à naturalização da gordofobia e o preterimento vivenciado por muitas por “estar acima do peso” (sic). É o ambiente escolar o espaço mais citado quando relatam situações de bullying e gordofobia que já viveram.

As meninas que não se identificavam como gordas não ficam livres da pressão estética, trazendo relatos sobre a constante insatisfação com o próprio corpo, as comparações diárias com outras meninas/mulheres e a incansável luta para estar sempre “bonita”. Nesse aspecto, as redes sociais foram citadas como desencadeadoras de questionamentos sobre a autoimagem, reverberando em insatisfação e baixa autoestima.

Procedimentos estéticos e uma “vida fitness”, questões tão difundidas pelas mídias, por influenciadoras/es digitais como algo simples e possível para todas/os, também foram apontados como desejo de algumas participantes. Elas reconhecem os prejuízos causados pelo consumo de tais conteúdos, referindo impactos na saúde mental em razão do descontentamento com o próprio corpo. Algumas relataram, inclusive, que já tiveram episódios de crise de ansiedade e isolamento, já deixaram de usar algumas roupas por pensarem ser inadequadas para o próprio corpo ou se utilizaram delas para escondê-lo (roupas em tamanhos maiores ou menores), tiveram pensamentos ruins sobre si, além de já terem feito uso de medicação para emagrecer e/ou terem aderido a dietas e prescrições sugeridas por influenciadoras digitais.

Para Wolf (2018, n.p.),

O mito da beleza no momento é mais insidioso do que qualquer mística da feminilidade surgida até agora. [...]. Os estragos contemporâneos provocados pela reação do sistema estão destruindo nosso físico e nos exaurindo psicologicamente. Se quisermos nos livrar do peso morto em que mais uma vez transformaram nossa feminilidade, não é de eleições, grupos de pressão ou cartazes que vamos precisar primeiro, mas, sim, de uma nova forma de ver.

Medeiros & Zanello (2018)Medeiros, M. P., & Zanello, V. (2018). Relação entre a violência e a saúde mental das mulheres no Brasil: análise das políticas públicas. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 18(1), 384-400. questionam se as políticas públicas desenvolvidas para as mulheres e aquelas resultantes da Reforma Psiquiátrica dialogam entre si sobre os impactos da violência de gênero na saúde mental das mulheres e apontam que esta não tem sido tratada claramente como um fator de risco para a saúde mental. Embora a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), criada em 2003, e posteriormente designada de Ministério até 2015, tenha institucionalizado a questão de gênero e incorporado suas especificidades nas políticas públicas, no que diz respeito ao cuidado em saúde mental, o olhar com um viés de gênero em diagnósticos e tratamentos/atendimentos ainda depende da conduta profissional individual.

Zanello (2014, pZanello, V. (2014). A saúde mental sob o viés de gênero: uma releitura gendrada da epidemiologia, da semiologia e da interpretação diagnóstica. In V. Zanello & A. P. M. Andrade (Eds.), Saúde mental e gênero: diálogos, práticas e interdisciplinaridade (pp. 41-58). Curitiba: Appris.. 116) afirma que o viés de gênero provoca um grande desconforto para a área de saúde mental, “[…] pois abala as certezas de uma suposta neutralidade, traz o íntimo para o político e questiona as próprias relações de poder neste campo, bem como seus valores”. Muitas situações de violência de gênero contra mulheres acabam sendo desqualificadas e reduzidas ou patologizadas e medicalizadas no contexto clínico.

Ao mesmo tempo que as participantes demonstram sofrer as consequências da pressão estética, foi possível observar a dificuldade de não se referirem ao corpo de outras meninas e mulheres de maneira depreciativa. Como já mencionado, a rivalidade e as inimizades que ficaram mais evidentes no início do Clube traziam componentes que reforçam essa cobrança estética pelo “corpo perfeito” e as comparações entre elas.

Nesse sentido, os dispositivos de gênero atuam minando as relações entre as mulheres e evidenciam como “[…] a rivalidade, o ressentimento e a hostilidade provocados pelo mito da beleza são profundos” e como é

[…] doloroso para as mulheres falarem da beleza porque, sob o domínio do mito, o corpo de uma mulher é usado para magoar uma outra. Nosso rosto e nosso corpo se transformam em instrumentos para castigar outras mulheres, muitas vezes usados sem nosso controle e contra nossa vontade (Wolf, 2018, nWolf, N. (2018). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos..p.).

Além disso, a vivência de relacionamentos abusivos enquanto menina/mulher também foi trazida por todas as participantes, com relatos que demonstraram o início de relacionamentos afetivos e sexuais desde muito novas, majoritariamente com meninos e homens mais velhos e que as expuseram a situações de violência de várias ordens. Os dados relativos aos relacionamentos afetivos e/ou sexuais, em especial os relacionamentos abusivos, também serão desenvolvidos posteriormente, mas é importante frisar que essa questão foi associada à experiência de ser menina e mulher.

Cotidiano, trabalho invisível, cuidado de si e pandemia

A segunda temática trabalhada teve como objetivo compreender como se estruturava parte do cotidiano das meninas que participavam da pesquisa, de modo que fosse possível investigar quais atividades compunham seu dia a dia, o que era considerado prioridade para elas, quais atividades significativas desenvolviam e, também, quais os desafios e dificuldades para consolidação de um cotidiano que considerassem prazeroso de ser vivido.

Os principais pontos identificados se referem: a) à dificuldade de refletir sobre onde e como ocupam seu tempo; b) à responsabilização pelas tarefas domésticas e cuidados com terceiros, sendo unanimidade entre elas; c) à dimensão do cuidado de si como pouco presente no cotidiano das participantes – inclusive, apresentaram dificuldade de refletir sobre o que seria esse cuidado e; d) à pandemia, que intensificou ainda mais as responsabilidades de cada uma, mas que, segundo elas, não houve outros impactos em seu cotidiano.

Sistematizar, no papel, conforme atividade proposta, o cotidiano vivido diariamente não foi uma tarefa simples. Dessa forma, o primeiro ponto relacionado à dificuldade de refletir sobre onde e como ocupam seu tempo foi identificado no relato de todas as participantes. Conforme exposto por elas, não há o hábito de pensar sobre o dia a dia, de modo que algumas atividades são realizadas de maneira automática, sem que consigam identificar a quantidade de tempo que acabam dedicando para sua realização.

Nesse aspecto, Heller (2016)Heller, A. (2016). O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra. defende que todas as pessoas já nascem inseridas em sua cotidianidade, de modo que, mediatizadas pelas relações e grupos sociais que estão inseridas, aprendem e vivem. Farias & Lopes (2021a, pFarias, M. N., & Lopes, R. E. (2021a). Circulação cotidiana e uma práxis terapêutico-ocupacional social. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 25, 1-13.. 5) discutem como esse cotidiano pode se tornar alienado e apontam

[…] a necessidade dos sujeitos se compreenderem no mundo de forma consciente e como agentes, em que o mecânico e utilitário não forjem alienações, e que indivíduos, grupos e classes se entendam como atores da vida coletiva, capazes de agenciar transformações e vida criativa.

As atividades relacionadas às tarefas domésticas e ao cuidado de terceiros ficaram invisibilizadas em primeiro momento, sendo necessário listar como exemplo as possíveis atividades desenvolvidas nessas áreas (cozinhar, lavar louça, cuidar de familiares, levar irmãos/primos na escola/creche). A naturalização das tarefas domésticas e de cuidado de terceiros como parte obrigatória do cotidiano e, consequentemente, o não reconhecimento sobre o tempo de vida que gastam quando tais tarefas ocupam parte significativa dos seus dias reforçam essa alienação do cotidiano e, ainda mais, o trabalho invisível que exercem por serem mulheres e meninas.

A sociedade reforça de diversas formas os estereótipos de gênero onde as atividades de cuidado e as tarefas domésticas são assumidas como de responsabilidades de mulheres e meninas, condicionando-as à vida privada. Essa realidade é explicada por meio do conceito de “divisão sexual do trabalho”, que se refere à distribuição de homens e mulheres no mercado de trabalho, nos ofícios e nas profissões, nas variações de tempo e espaço dessa distribuição, além de como ela se associa à divisão desigual do trabalho doméstico entre os sexos (Hirata & Kergoat, 2007Hirata, H., & Kergoat, D. (2007). Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, 37(132), 595-609.).

Hirata & Kergoat (2007, pHirata, H., & Kergoat, D. (2007). Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, 37(132), 595-609.. 599) conceituam a “divisão sexual do trabalho” como:

[…] a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc.).

É importante mencionar que, no sistema capitalista e patriarcal em que vivemos, o trabalho produtivo ganha centralidade em detrimento do trabalho reprodutivo, e não se reconhece trabalho doméstico como gerador de riqueza, mesmo que garanta o atendimento às necessidades básicas de alimentação, repouso e conforto para que seja possível a dedicação ao trabalho externo e à produção. Com isso, estabelece-se uma hierarquia que rege a organização do tempo social, onde o tempo do trabalho produtivo e remunerado tem precedência sobre os outros tempos, especialmente na vida cotidiana das mulheres (Brasil, 2012Brasil. Datapopular/SOS Corpo. (2012). Trabalho remunerado e trabalho doméstico: uma tensão permanente. Recuperado em 12 de janeiro de 2023, de https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/assuntos/pnpm/48a-reuniao/palestra-6-trabalho-domestico-sos-corpo.pdf
https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por...
).

Foi consenso o cansaço e a sobrecarga vivenciada no ambiente doméstico em razão de serem responsabilizadas pelas atividades mencionadas anteriormente. Embora tenha sido proposta a reflexão sobre os dias de segunda a sexta-feira, houve relatos que aos finais de semana “[…] fica ainda pior porque todo mundo está em casa(sic), referindo-se ao aumento das tarefas domésticas.

É nesse momento que surgem os relatos sobre serem as responsáveis por grande parte das tarefas domésticas, com divisão desigual entre os demais moradores da casa, em especial homens, especificamente irmãos e primos, fato avolumado nas situações em que a genitora ou responsável trabalha fora. Aquelas que possuem crianças em casa compartilharam ocupar grande parte do tempo com seu cuidado, precisando, muitas vezes, abdicar de atividades que gostariam de fazer (sair com amigos, ficar na rua, estudar).

O peso das tarefas domésticas informa sobre o cerceamento da circulação cotidiana dessas meninas, visto que elas dedicam parte considerável de seu tempo para o desempenho dessas tarefas, mesmo quando possuem o desejo de realizar outras atividades. A circulação não acontece por si só, “depende de fatores técnicos, organizacionais, sociais, culturais, econômicos e políticos”; no caso das mulheres e meninas, também está condicionado ao gênero, “[…] marginalizando o desejo, a emancipação e a busca de participação social significativa” (Farias & Lopes, 2021a, pFarias, M. N., & Lopes, R. E. (2021a). Circulação cotidiana e uma práxis terapêutico-ocupacional social. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 25, 1-13.. 8).

A escola – no caso dessas participantes, a escola de ensino integral – ganha centralidade no diálogo e surge como empecilho para a vivência de atividades que consideram importantes e significativas, principalmente nas áreas de profissionalização e emprego. Embora reconheçam a importância dos estudos para alcançarem seus projetos de vida, foi queixa reiterada que estudar em tempo integral interfere nas possibilidades de participarem de cursos e de programas de inserção no mercado de trabalho, como aqueles relacionados à Educação Profissional Técnica, disponibilizados pelos Institutos Federais, por exemplo, além daqueles de aprendizagem, previstos pela Lei n. 10.097/2000, realizados por instituições de ensino do sistema S (SENAC, SENAI) ou outras, que estejam vinculadas aos Serviços Nacionais de Aprendizagem (SNA).

Para as participantes, estudar ficou restrito ao período em que estavam na escola, de modo que nenhuma delas declarou participar de outra atividade nesse campo. Todas manifestaram desejo de realizar cursos em diversas áreas, mas, devido ao período escolar, as possibilidades são bastante restritas em razão do horário. Não foi incomum falas relacionadas ao desejo de abandonar a escola ou mudar para uma que não fosse de período integral.

Embora se compreenda o desejo das participantes de vivenciarem formações e qualificações no âmbito técnico e profissionalizante como expectativas de ascensão social, defende-se aqui uma escola que fomente uma formação humanista e cidadã de seus estudantes, contrapondo-se à compreensão liberal e hegemônica de uma escola, sobretudo ao nível do Ensino Médio, dualista: a depender da classe social, tem-se como objetivo a formação para o trabalho ou para o Ensino Superior (Nosella, 2015Nosella, P. (2015). Ensino médio: unitário ou multiforme? Revista Brasileira de Educação, 20(60), 121-142.).

A conjuntura social e política do Brasil tem trazido com mais intensidade o já conhecido discurso da necessidade de um Ensino Médio Técnico, capturando parte da comunidade escolar e da sociedade, que não vislumbram outras possibilidades de vida que não estejam relacionadas à inserção no mercado de trabalho. Assim, quando a escola não dialoga diretamente com esses anseios, vai perdendo seu significado, sendo necessário, portanto, um resgate do valor humanitário da educação em sobreposição ao seu valor utilitário. Durante a realização do Clube, foi possível apreender que o sentido atribuído pelas participantes à escola, em geral, não é positivo, de forma que em muitas passagens elas referem que estar na escola atrapalha, não conseguindo reconhecer esse espaço como oportunidade de sociabilidade, de ampliação de repertório, divertimento, de possibilidade de aprender coisas novas e até mesmo se constituir como uma rede social de suporte ou caminho necessário para a construção de seus projetos de vida.

Um elemento que também chamou atenção durante a realização da atividade se refere ao fato de terem poucos momentos em seus cotidianos destinados ao cuidado de si, entendido aqui como:

[…] um conjunto de processos de constituição do sujeito nos quais é importante estabelecer uma intensidade de relações de si para consigo, relações em que o sujeito consiga tomar a si mesmo [e suas relações] como objeto de conhecimento e ação. É por meio das relações de si em produção que o sujeito pode transformar-se. Assim, o sujeito encontra sua singularidade por meio da valorização e do conhecimento de si realizado mediante o cuidado como uma prática ética (Depole & Ferigato, 2022, pDepole, B. F., & Ferigato, S. H. (2022). Quem é que vai cuidar de mim LGBTQIA+? Retratos de um Cuidado de Si. Cadernos Gênero e Tecnologia, 15(46), 292-318.. 296).

Inicialmente, três práticas foram citadas como de autocuidado pelas participantes, sendo elas: fazer as próprias unhas, assistir a séries e dormir. Quando sugerido que pensassem melhor em outras atividades que lhes dessem prazer e que fossem significativas, as participantes não conseguiram identificá-las, expondo o esvaziamento de práticas de cuidado cotidiano e o pouco repertório em relação ao que compreendem como cuidado de si, além da incorporação do ser menina/mulher, que está ligado sempre ao cuidado do outro.

Em relação à pandemia da Covid-19, durante o ano de 2020, as participantes relataram que as mudanças em seu cotidiano, no período em que estavam realizando aulas de maneira remota, estavam relacionadas ao aumento de tempo dedicado a tarefas domésticas e ao cuidado de terceiros, sendo obrigadas a assumir mais responsabilidades em casa, pois “[…] não tinham nada pra fazer”, conforme diziam seus responsáveis, corroborando estudos mais amplos sobre esta temática (Plan International, 2021Plan International. (2021). Por ser menina no Brasil: resumo executivo. Recuperado em 12 de janeiro de 2023, de https://plan.org.br/estudos/resumo-executivo-pesquisa-por-ser-menina-no-brasil/
https://plan.org.br/estudos/resumo-execu...
). Apesar disso, algumas participantes relataram que ter permanecido em casa nesse período privilegiou a aproximação com a família.

A mudança abrupta no cotidiano, a impossibilidade de interagir com professores e colegas da turma, assim como as dificuldades impostas pelas políticas de distanciamento social, o medo do vírus e o risco de perda de renda ou desemprego não foram elementos trazidos pelas participantes.

Apesar dos inúmeros relatos sobre a dificuldade de acesso às aulas de maneira virtual e da falta de infraestrutura para isso, muitas não queriam ter retornado para escola, justificando estarem desmotivadas, pois no ambiente remoto era mais fácil atingir as notas necessárias, pois a cobrança e o nível de dificuldade das atividades e tarefas eram menores por parte dos professores. Retomar a vida cotidiana após o período mais crítico da pandemia, especialmente no que diz respeito ao retorno escolar, não foi avaliado positivamente pelas participantes, que compartilharam dificuldades de socialização e vinculação, além de dificuldades de readaptação com horários e tarefas escolares.

O ensino mediado pelas tecnologias, que exigiu um reajuste nas relações que se estabelecem cotidianamente entre os membros de uma comunidade escolar, tornou-se, para as participantes, um modo de não estar presencialmente na escola, lugar que, nos relatos anteriores, já era apontado como um espaço que elas não gostavam de estar. Assim, é possível problematizar as novas relações promovidas e criadas por meio do espaço virtual, onde o processo de aprendizagem e mesmo a vinculação com a escola não se deu de maneira igualitária para todos os alunos e alargou ainda mais as desigualdades educacionais e de gênero as quais foram expostos (Guizzo et al., 2020Guizzo, B. S., Marcello, F. A., & Müller, F. (2020). A reinvenção do cotidiano em tempos de pandemia. Educação e Pesquisa, 46, 1-18.).

A pesquisa revelou também que a falta de sentido para o Ensino Médio foi agravada pela vivência da pandemia, de modo que o retorno escolar posteriormente foi difícil ao ponto de até pensarem em não retornar. Lebourg & Coutrim (2018)Lebourg, E. H., & Coutrim, R. M. E. (2018). Eu Não Queria Estar Aqui: juventude, ensino médio e deslocamento. Educação e Realidade, 43(2), 609-627. discutem como, para muitos jovens das camadas populares, o Ensino Médio é atravessado por uma série de dificuldades de permanência, em razão da oferta de conteúdos disciplinares formais, pouco atrativos e de problemas com a criação de espaços de sociabilidade que deem valor à sua cultura extraescolar.

Relacionado a isso, Dayrell (1996)Dayrell, J. (1996). A escola como espaço sociocultural: múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG. problematiza a homogeneização dos alunos, que ignora o que é vivenciado por eles e não estabelece relação com o conhecimento escolar e o extraescolar, reverberando em uma desarticulação que, inclusive, distanciam-nos da escola e de tudo que ela pode ser em suas vidas, aspectos agravados com a pandemia e que necessitam, ainda mais neste momento posterior, de serem lidados.

Nesse sentido, reflete-se aqui sobre a necessidade de reinvenção da escola pública, sobretudo após a pandemia de Covid-19, para a criação de sentidos que mobilizem os desejos de jovens meninas, mas não apenas, de frequentarem cotidianamente a escola, na defesa da importância da Educação Básica como elementos que subsidiam a construção de projetos de vida.

Relacionamentos afetivos e/ou sexuais

A temática sobre relacionamentos afetivos e/ou sexuais esteve presente em todos os encontros do Clube das Meninas, ora com relatos sobre situações que estavam acontecendo naquele momento da vida das participantes, ora com relatos sobre situações vivenciadas em relacionamentos anteriores.

Para tornar a temática mais fácil de ser desenvolvida, foi proposto um jogo de cartas construído pelas participantes, categorizado de duas formas: 1) cartas que traziam situações e afirmações sobre a experiência da sexualidade; 2) cartas que abordavam situações e afirmações relacionadas à vivência de relacionamentos abusivos.

Durante o jogo, um relato específico sobre a vivência de violência doméstica e familiar que, inclusive, acarretou a solicitação de medida protetiva de urgência por uma das garotas, desencadeou no aprofundamento do diálogo sobre a Lei Maria da Penha, o ciclo da violência e a importância da rede de apoio nesses momentos. Além disso, o relato estimulou que outras participantes também pudessem compartilhar as situações de violência em seus relacionamentos afetivos e/ou sexuais. É importante mencionar que a garota mais velha no Clube possuía apenas 18 anos, evidenciando a exposição a situações de violência já nos primeiros relacionamentos.

A mesma garota também compartilhou relatos de violência sexual, situação em que foi convidada a ir até a casa de um garoto. Este, em um dado momento da visita, pediu para que ela o acompanhasse até seu quarto para buscar um carregador e, em seguida, trancou a porta. Segundo a participante, “rolou mas não rolou” (sic), e continuou dizendo que não queria estar naquela situação “eu ia fazer o que? Tava ali e... não queria” (sic). O relato é entendido por ela como uma situação de violência sexual, mas que nunca foi exposta ou denunciada. Na ocasião, tinha 12 anos.

Com base nesse relato, discutiu-se sobre consentimento e violência sexual, apontando exemplos que abarcassem formas menos populares desse tipo de violência (como retirar o preservativo durante a relação sexual sem que a pessoa note, por exemplo), mas igualmente comuns. O tema gerou incômodos e surpreendeu algumas garotas que sequer sabiam que violência sexual não se refere exclusivamente ao estupro por penetração, expondo as fragilidades de informação.

As cartas presentes no jogo também levantaram discussões sobre liberdade sexual, sendo destacadas as convenções sociais de gênero no posicionamento das participantes, as quais reforçaram estereótipos e condenaram condutas e práticas sexuais que mulheres e garotas poderiam desenvolver, como beijar mais de três pessoas em uma noite, por exemplo. Foi consenso que muitas vezes já rotularam outras garotas por se comportarem de maneira considerada inadequada e vulgar.

O ciúme também foi trazido por muitas garotas como um elemento sempre presente nos relacionamentos e que, muitas vezes, desencadeia rivalidade feminina, insegurança, discussões e controle excessivo nos relacionamentos. Algumas participantes relataram que já deixaram de conversar com algumas pessoas a pedido do namorado e que o controle das redes sociais, o acesso a senhas e conversas é também prática comum e esperada.

Além de motivar agressões físicas, o ciúme é também valorizado pelos adolescentes como uma expressão de amor e cuidado. Em estudo com jovens brasileiros, Nascimento & Cordeiro (2011)Nascimento, F. S., & Cordeiro, R. L. M. (2011). Violence in relationships according to young residents of Recife, Brazil. Psicologia e Sociedade, 23(3), 516-525. mostram que comportamentos controladores, cerceamento da liberdade do outro, xingamentos e tapas, muitas vezes, são percebidos como brincadeiras entre namorados.

Quando questionadas sobre como lidavam com o próprio ciúme, surgiram relatos de que já arranharam, beliscaram ou deram tapas em seus namorados, como forma de contê-los ou de manifestar descontentamento com a situação. Ameaças de agressão física a outras mulheres e garotas motivadas por ciúmes também fizeram parte dos relatos.

Não houve relatos sobre a abordagem de conteúdos sobre relacionamentos afetivos e/ou sexuais no cotidiano escolar, evidenciando a necessidade de ações educativas e de prevenção à violência de gênero, respaldadas pela Constituição Brasileira (Brasil, 1988Brasil. (1988, 5 de outubro). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília.), pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996Brasil. (1996, 23 de dezembro). Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília.), pelas Diretrizes Nacionais de Educação e Diversidade, pelas Diretrizes Curriculares do Ensino Médio (art. 16), elaboradas pelo Conselho Nacional de Educação, e pela Lei Maria da Penha (Brasil, 2006Brasil. (2006). Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília.).

Ao longo de todo desenvolvimento do Clube das Meninas, direta ou indiretamente, os relacionamentos afetivos e/ou sexuais já vivenciados pelas participantes atravessaram as temáticas abordadas, seja reiterando sua importância na construção da identidade e autoimagem das participantes, seja materializando as inúmeras estatísticas que denunciam a exposição à violência de gênero de mulheres e meninas em seus relacionamentos, com impactos em seu cotidiano e projetos de vida.

Redes sociais de suporte

A fim de compreender como e quais são as redes sociais de suporte das meninas que participaram do Clube das Meninas, foi proposto que elas elencassem quem são as pessoas, serviços, equipamentos ou locais que compõem suas redes de suporte, compreendendo que, segundo Bardi & Malfitano (2014, pBardi, G., & Malfitano, A. P. S. (2014). Pedrinho, religiosidade e prostituição: os agenciamentos de um ser ambivalente. Saúde e Sociedade, 23(1), 42-53.. 44):

[…] podem ser de cunho formal, representadas pelas formas de articulação entre agências governamentais e/ou dessas com redes sociais, organizações privadas ou grupos que lhes permitem enfrentar problemas; ou informais, quando se referem a um conjunto de interações espontâneas passíveis de descrição, podendo ser compostas por amigos, familiares, auxílios religiosos, inserções ilegais, entre outros.

Após refletirem sobre isso, foi entregue dentro de um envelope um quebra-cabeça com 7 peças que, juntas, formavam um coração. As participantes foram orientadas para que nomeassem cada peça com um componente de sua rede de suporte e que a colassem em uma folha de sulfite, de modo que, ao encaixar uma na outra, o quebra-cabeça se completasse.

Feito isso, elas também foram orientadas para que, fora do coração, fossem nomeados quais componentes as participantes sentiam falta e gostariam de ter em suas redes sociais de suporte. Apenas uma participante não inseriu os termos “família”, “pais”, “pai” e “irmão”; todas as outras trouxeram relatos de rompimento ou fragilidade nas relações familiares e parentais. O distanciamento do genitor e a ruptura de vínculos também foram relatos recorrentes.

A falta de relações de amizade para compor essa rede de suporte também esteve presente no relato de grande parte das participantes. O sentimento de não ter com quem contar, em grande medida potencializado nos momentos em que estão vivendo situações difíceis, foram trazidos com tristeza. Além disso, uma das participantes enfrentou dificuldades de identificar quem compunha sua rede de suporte, inclusive se diferenciando das demais quando aponta o “remédio” e seu “quarto” como parte dessa rede, aspectos que apontam para processos de medicalização da vida.

Compreende-se a medicalização como:

[…] o processo por meio do qual as questões da vida social – complexas, multifatoriais e marcadas pela cultura e pelo tempo histórico – são reduzidas a um tipo de racionalidade que vincula artificialmente a dificuldade de adaptação às normas sociais e a determinismos orgânicos que se expressariam no adoecimento do indivíduo (Conselho Federal de Psicologia, 2015, pConselho Federal de Psicologia – CFP. (2015). Recomendações de práticas não medicalizantes para profissionais e serviços de educação e saúde. Grupo de Trabalho Educação e Saúde do Fórum sobre Medicalização da Educação e Saúde. Brasília: CFP.. 11).

Assim, entende-se que o sofrimento não pode ser desassociado da relação entre cultura, situação socioeconômica, gênero, faixa etária e uma série de outros marcadores sociais que se interseccionam ao universo privado da vida. A participante que descreveu o remédio e seu quarto como componentes de sua rede de suporte apresentava uma sociabilidade e um cotidiano marcados pela ausência de redes de suporte de quaisquer tipos, demonstrando que suas dificuldades extrapolavam as demandas de um cuidado em saúde (Malfitano et al., 2011Malfitano, A. P. S., Adorno, R. C. F., & Lopes, R. E. (2011). Um relato de vida, um caminho institucional: juventude, medicalização e sofrimentos sociais. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 15(38), 701-714.; Contatore et al., 2019Contatore, O. A., Malfitano, A. P. S., & Barros, N. F. (2019). Por uma sociologia do cuidado: reflexões para além do campo da saúde. Trabalho, Educação e Saúde, 17(1), 1-23.).

O Clube das Meninas também é citado como parte da rede de suporte da maioria das participantes. Quando o clube é mencionado pela primeira vez, surgem muitos relatos sobre as relações construídas com o auxílio dos encontros, a importância das discussões levantadas, além do manejo e da mediação das situações que foram surgindo ao longo dos meses na vida de cada uma, os quais, muitas vezes, extrapolaram o espaço do clube e da pesquisa, desdobrando-se em Acompanhamentos Singulares e Territoriais (Lopes et al., 2014Lopes, R. E., Malfitano, A. P. S., Silva, C. R., & Borba, P. L. O. (2014). Recursos e tecnologias em terapia ocupacional social: ações com jovens pobres na cidade. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 22(3), 591-602.), desenvolvidos pela terapeuta ocupacional responsável pelas ações.

Por meio dos Acompanhamentos, que fomentaram maior vinculação e proximidade com algumas participantes, foi possível identificar, de maneira mais explícita, o que se propunha enquanto objetivos da pesquisa, visto que as situações desafiadoras, muitas vezes, estavam relacionadas a alguma violação de direitos, e interferiam de maneira significativa em várias dimensões de suas vidas, como na dimensão escolar, por exemplo. Muitas jovens acompanhadas, quando estavam vivenciando essas situações desafiadoras, ausentavam-se da escola e, consequentemente, do Clube, retornando após as ações decorrentes do acompanhamento.

Associado a isso, houve relatos sobre como se sentiram acolhidas e ouvidas quando compartilharam vivências e situações difíceis, tornando o Clube um espaço de confiança e cuidado, o que justificou a permanência e o desejo de continuidade no semestre seguinte. Apesar disso, também foi exposto que, em muitos momentos, o Clube também abordou questões que geraram incômodos e desencadearam sentimentos desagradáveis, uma vez que fazia com que entrassem em contato com aspectos difíceis de serem lidados em suas vivências cotidianas.

Durante a atividade, também foi identificada a ausência de espaços formais compreendidos como rede de suporte, em especial a escola, os equipamentos da assistência social e saúde. No que diz respeito à escola, nenhuma participante relata se sentir confortável em buscar apoio no ambiente escolar, desconhecendo canais de suporte, profissionais de referência ou formas de reverter essa situação e construir uma relação de vínculo. Uma fala recorrente quando questionadas sobre o motivo disso ocorrer foi por não sentirem disponibilidade dos profissionais da escola para serem rede de suporte e o receio da exposição e/ou julgamento caso busquem por ajuda.

Observou-se uma grande resistência por parte das participantes em reconhecer a potência da escola enquanto rede de suporte e a importância de fomentar que toda a comunidade escolar também consiga reconhecer o ambiente escolar como um local seguro, protetivo e fonte de apoio para enfrentar as mais diversas situações, entre elas, aquelas relacionadas à violência e às dificuldades que vivenciam fora das salas de aula e que afetam diretamente a forma como se sentem em relação a esse espaço.

A fragilidade da relação das participantes com o espaço escolar e com o que ele poderia ser localiza os problemas e desafios na relação dos jovens com a escola e da escola com os jovens. Os dados encontrados não devem ser utilizados de maneira tendenciosa, alimentando a ideia de fracasso da instituição escolar ou de estigmatização das juventudes, mas, sim, fomentar reflexões que viabilizem a construção de caminhos para repensar a escola que queremos, considerando as múltiplas dimensões da condição juvenil, tomadas neste estudo pelo marcador do gênero, sua construção socio-histórica-cultural, bem como suas necessidades atuais (Dayrell, 2007Dayrell, J. (2007). A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educação & Sociedade, 28(100), 1105-1128.).

Chama atenção o fato de as participantes reconhecerem, no Clube das Meninas – um elemento do PEI e desenvolvido dentro da escola –, uma rede de suporte, mas não reconhecerem a escola em si neste lugar, evidenciando potencialidades de construções de um cuidado social e coletivo, desde que intencionadas e trabalhando-se com as diferenças.

Nesse sentido, a instituição escolar precisará de investimentos públicos, seus profissionais e educadores necessitarão de melhores condições para desenvolver ações e práticas educativas que dialoguem com as necessidades dessas juventudes. Para que a escola possa se tornar um espaço significativo, capaz de produzir cuidado à comunidade escolar e, assim, tornar-se uma rede de suporte que fomenta a construção de projetos de vida emancipatórios, ela precisa obrigatoriamente se tornar centralidade nos planos de governo em todos os âmbitos (municipal, estadual e federal).

Espiritualidade e religião foram apontadas em alguns relatos, mas não ganharam centralidade nas discussões. Os relacionamentos afetivos e/ou sexuais surgiram como rede de suporte apenas para as participantes que estão em um namoro. As relações casuais ou que não se enquadram dentro do que é considerado “relacionamento sério” não foram mencionadas, embora fosse do nosso conhecimento que elas existiam.

Por intermédio da atividade proposta, muitas questões identificadas nos encontros anteriores ganharam contornos importantes, visto que as participantes apresentaram poucas e frágeis redes sociais de suporte, evidenciando as poucas opções para recorrerem quando vivenciam situações difíceis e de risco, expondo também o não acesso e o não reconhecimento dos serviços e equipamentos básicos como caminhos possíveis para serem rede de suporte.

Com base na análise da coesão social, nos eixos trabalho e rede relacional, mais especificamente em Castel (2012)Castel, R. (2012). As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário (10ª ed.). Petrópolis: Vozes., jovens em idade escolar não deveriam ter o trabalho como uma necessidade. Entretanto, ao conhecer a realidade das famílias das jovens meninas, que se constituem por inserções precárias, quando existem, no trabalho, associadas a redes de suporte frágeis, ou mesmo ausentes, indica a conformação de situações de vulnerabilidade social.

Corrobora-se, assim, a pertinência da proposição de ações da terapia ocupacional social que se voltem para o fortalecimento das redes sociais de suporte como forma de enfrentamento às situações de vulnerabilidade social, tendo em vista os apontamentos feitos pelas participantes acerca do lugar significativo construído pelo Clube das Meninas.

Além disso, indica-se, também, a necessidade de se repensar e transformar as formas de se constituir as relações na escola pública, no sentido de favorecer a criação de redes de suporte social entre os próprios jovens e entre os profissionais e os jovens, de forma que a escola possa efetivamente contribuir com o enfrentamento dessas situações ao fortalecer a rede de apoio dos seus alunos, sendo, além de um local de aprendizado, um espaço de cuidado.

Projetos de vida

O último tema abordado, em complemento aos demais, teve como objetivo compreender quais os projetos de vida das meninas que compunham o Clube e, consequentemente, dar oportunidade para que elas expusessem seus sonhos e compreensões sobre o que consideram ser “projetos de vida” para cada uma.

Os projetos de vida expressos pelas participantes foram categorizados em 5 dimensões: a) Profissionalização e inserção no Ensino Superior; b) Inserção no mercado de trabalho e estabilidade financeira; c) Ajudar financeiramente os pais e/ou familiares; d) Constituir família (casar e ter filhos); e) Viagens, intercâmbios e projetos pessoais.

O desejo pela profissionalização e/ou inserção no Ensino Superior esteve presente em todos os relatos. A compreensão de que os estudos podem possibilitar uma vida mais digna e distante das vulnerabilidades sociais foi consenso entre as participantes. Porém, foi possível observar que, mesmo estando no Ensino Médio, a grande maioria não tinha conhecimento sobre as formas de acessar o Ensino Superior, ou outras formas de continuar os estudos, e ainda menos sobre as políticas de ações afirmativas das quais pudessem se beneficiar.

A profissionalização é um projeto de vida que tem sido adiado pelas participantes em razão de estudarem em uma escola de ensino integral, que não possibilita a inserção em cursos no período contrário à escola. Mais uma vez, esse ponto ganha centralidade e todas as participantes manifestaram o descontentamento com a carga horária dentro da escola, inviabilizando a participação em diversos cursos de seu interesse.

O segundo item se refere à inserção no mercado de trabalho, questão recorrente em pauta no Clube, visto que o acesso a bens de consumo e sobrevivência dependem das possibilidades financeiras de cada uma. A “estabilidade financeira” surgiu em várias falas como meio para alcançar outros projetos, como ajudar os pais e/ou família, por exemplo.

Constituir família, mais especificamente casar e ter filhos, apareceu em apenas dois relatos durante a realização da atividade. No primeiro, gestar uma criança não foi apresentado como um desejo, causando, inclusive, muitas surpresas ao grupo, especialmente quando a alternativa apresentada foi a adoção. Já no segundo relato, foi possível identificar elementos relacionados à religião e ao amor romântico, atribuindo ao casamento, à família e aos filhos concepções mais conservadoras.

Nessa questão, muitas meninas compartilharam as expectativas de gênero que a sociedade reproduz, em especial aquelas relacionadas à maternidade e à necessidade da formalização dos relacionamentos por meio do casamento religioso. Foi problematizado também o fato de constantemente o argumento biológico ser utilizado para convencer que as mulheres nascem com instinto materno e consequentemente precisam seguir um “passo a passo”: namorar-casar-ter filhos.

Projetos que não estivessem relacionados ao trabalho e à profissionalização foram incomuns nos relatos, sugerindo que tais elementos têm ganhado centralidade, em articulação com a proposta curricular da disciplina de projetos de vida inserida no currículo paulista, a qual mantém a concepção dualista do Ensino Médio, como citado anteriormente (Nosella, 2015Nosella, P. (2015). Ensino médio: unitário ou multiforme? Revista Brasileira de Educação, 20(60), 121-142.).

Ainda que se compreenda a correlação entre o processo de escolarização e a construção de projetos de vida, faz-se necessário o questionamento, assim como vem apontando pesquisas da área da educação, acerca do conteúdo trabalhado nestas disciplinas, com vistas à ampliação de perspectivas e possibilidades, para além da instrumentalização para o mundo do trabalho, como a formação para exercício da cidadania (Silva & Estormovski, 2023Silva, R. R., & Estormovski, R. C. (2023). Projetos de vida e a fabricação de subjetividades monetizáveis: uma crítica curricular ao Novo Ensino Médio no Sul do Brasil. Revista Espaço Pedagógico, 30, 1-17.; Vieira da Silva et al., 2023Vieira da Silva, F., Diógenes de Melo Brunet, P., & Soares de Moura, T. (2023). “O futuro já começou”: a constituição do empreendedor de si em coleções didáticas do Projeto de Vida, do Novo Ensino Médio. Revista Espaço Pedagógico, 30, 1-22.). Quando surgiram relatos que se desprenderam desse binômio trabalho-profissionalização, estavam relacionados a viagens, intercâmbios e projetos artísticos. Poucas participantes trouxeram dimensões relacionadas ao cuidado de si, lazer, saúde e organização do tempo.

Apesar disso, compreende-se que, para as juventudes, a inserção no trabalho pode proporcionar autonomia parcial em suas vidas, tornando-se um elemento de centralidade no cotidiano dessas jovens justamente porque, por meio disso, passam a ampliar sua circulação cotidiana por territórios e espaços que não eram possíveis sem o acesso à renda, como frequentar espaços culturais ou realizar atividades extraescolares fora de seu território, por exemplo (Lebourg & Coutrim, 2018Lebourg, E. H., & Coutrim, R. M. E. (2018). Eu Não Queria Estar Aqui: juventude, ensino médio e deslocamento. Educação e Realidade, 43(2), 609-627.).

Conforme expõe Dayrell (2007)Dayrell, J. (2007). A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educação & Sociedade, 28(100), 1105-1128., uma parcela significativa dos jovens só se torna capaz de vivenciar sua condição juvenil devido ao trabalho, que é diretamente responsável por garantir os recursos para o lazer, o consumo, o namoro, para a ampliação da rede de relações e, consequentemente, para a circulação cotidiana.

Compreende-se a circulação cotidiana como uma dimensão substancial da vida,

[…] forjada nos processos históricos, sociais, políticos, subjetivos e culturais que se estabelecem pela realidade social, nas contradições, nos dilemas, nos acidentes, na alienação, nas relações de poder, na desigualdade, na resistência, nas escolhas, na possibilidade de liberdade, de conservação, de transformação, nas intencionalidades, ou seja, na práxis que compõe a cotidianidade (Farias & Lopes, 2021a, pFarias, M. N., & Lopes, R. E. (2021a). Circulação cotidiana e uma práxis terapêutico-ocupacional social. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 25, 1-13.. 6).

Nesse caminho, os projetos de vida mencionados pelas participantes que apontam o trabalho e a profissionalização como dimensões centrais são atravessados por suas vivências e hierarquizados conforme suas necessidades.

Sobre isso, Farias (2021)Farias, M. N. (2021). Jovens rurais de São Carlos - SP: circulação cotidiana, projetos de vida e os sentidos da escola (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. propõe a distinção dos projetos de vida em dois âmbitos. O primeiro se refere aos projetos-necessidade, que estão ligados à vida mais urgente; no caso dos relatos expostos pelas participantes, a busca pelo trabalho, a responsabilidade em ajudar em casa e a necessidade de autonomia financeira. O segundo compreende os projetos-sonhos, que envolvem intenções mais longínquas, como a inserção no Ensino Superior, viagens, intercâmbios e projetos pessoais (fazer um documentário e ter sua própria galeria de arte), por exemplo.

Nessa perspectiva, é fundamental a reflexão sobre o campo de possibilidades (Velho, 2003Velho, G. (2003). Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas (2ª ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.) concretas dessas jovens, o que implica reconhecer os dados apontados por elas mesmas no decorrer deste trabalho, especialmente aqueles relacionados ao marcador de gênero, atrelado à classe, que evidenciam desigualdades e restrições importantes para construção, ampliação e efetivação de seus projetos, sejam eles no âmbito das necessidades ou dos sonhos.

Conclusão

Nesta pesquisa, as histórias das jovens estudantes ressaltaram que em suas vidas cotidianas ainda persistem inúmeros obstáculos para a efetivação da equidade de gênero e que esses obstáculos interferem de maneira significativa na construção de seus projetos de vida, visto que delimitam seus campos de possibilidades, cerceiam sua autonomia e, consequentemente, sua oportunidade de emancipação. Além disso, permitiram o reconhecimento dos limites e possibilidades desse encontro entre a prática terapêutico-ocupacional e as questões de gênero.

Com base em Paulo Freire, para pensar uma abordagem profissional crítica, intencionada para construir junto a populações em situação de vulnerabilidade social movimentos de transformação social que considerem os atravessamentos das questões micro e macrossociais, “[…] temos a responsabilidade ética de revelar situações de opressão” (Freire, 2020, pFreire, P. (2020). Pedagogia dos sonhos possíveis. Rio de Janeiro: Paz e Terra.. 49).

Nesse sentido, pensar o trabalho que foi desenvolvido ao longo desta pesquisa e o que podemos indicar como contribuição da terapia ocupacional no trabalho com jovens meninas, no fomento a projetos de vida, com e na escola pública, significa inicialmente reconhecer o papel fundamental das tecnologias sociais da terapia ocupacional social para revelar essas situações de opressão a que especialmente esse grupo, mas não apenas, estão expostos. Ademais, ressalta-se também o lugar dessas tecnologias para construir conhecimentos teóricos e práticos frente a essas problemáticas complexas, que envolvem sujeitos individuais e coletivos, assim como as contradições, desigualdades sociais e culturais do/no Brasil (Farias, 2021Farias, M. N. (2021). Jovens rurais de São Carlos - SP: circulação cotidiana, projetos de vida e os sentidos da escola (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

As Oficinas de Atividades, Dinâmicas e Projetos, metodologia de intervenção coletiva da terapia ocupacional social, aqui utilizadas também para a produção de dados na pesquisa em terapia ocupacional, proporcionou o desenvolvimento de uma pesquisa efetivamente participativa, com o contato mais próximo com e entre as participantes, por meio da promoção de espaços de convívio com a diversidade, de fomento à sociabilidade e experimentação de possibilidades, do fortalecimento das redes sociais de suporte e de ações de prevenção e enfrentamento da violência de gênero, além do fortalecimento e ressignificação da instituição escolar.

Com base no que foi o Clube das Meninas e naquilo que Farias & Lopes (2021a)Farias, M. N., & Lopes, R. E. (2021a). Circulação cotidiana e uma práxis terapêutico-ocupacional social. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 25, 1-13. assinalam como a importância de, tomando o cotidiano como objeto da terapia ocupacional, operar processos junto às populações com as quais trabalham para compreensão crítica dos seus cotidianos, podemos indicar que as oficinas produzidas se constituíram como um espaço de suspensão desse cotidiano ao criar um espaço-tempo que favoreceu processos de reflexão e conscientização. Tal fato se deu na medida que foram fomentadas discussões que exigiam o rompimento com ações e compreensões mecanizadas, pré-concebidas e erroneamente transmitidas de geração em geração pela cultura, como as concepções de gênero, por exemplo, as quais, muitas vezes, dão “[…] a impressão que são consequência de causas naturais, não reconhecidas como fruto de ação e relações sociais” (Farias & Lopes, 2021a, pFarias, M. N., & Lopes, R. E. (2021a). Circulação cotidiana e uma práxis terapêutico-ocupacional social. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 25, 1-13.. 3).

No decorrer do processo de apropriação do Clube pelas meninas, por intermédio das atividades como recurso mediador do trabalho que permitiu maior contato e convivência entre as próprias participantes, proporcionando um espaço de vínculo, escuta, trocas, questionamentos, problematizações, protagonismo e, também, produção de cuidado, construiu-se a possibilidade de superação da alienação cotidiana a qual estamos constantemente expostos.

Desvelar o mundo das opressões e, com isso, comprometer-se, na práxis, com sua transformação, é parte dos pressupostos que norteia o que compreendemos sobre conscientização, aspecto colocado como um dos objetivos da terapia ocupacional social que toma os referenciais de Paulo Freire como direcionador da ação, conforme colocado por Farias & Lopes (2021b)Farias, M. N., & Lopes, R. E. (2021b). Terapia ocupacional social: formulações à luz de referenciais freireanos. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(4), 1346-1356.. Nesse aspecto, é fundamental reconhecer a centralidade e importância dos processos de conscientização para a ampliação dos projetos de vida, pois, na medida que colocam em pauta os limites do campo de possibilidade das/dos jovens, os convocam a lidar com eles e os instrumentalizam para isso.

Freire (2020, pFreire, P. (2020). Pedagogia dos sonhos possíveis. Rio de Janeiro: Paz e Terra.. 98) nos lembra que

Na medida em que os homens [e as mulheres], simultaneamente refletindo sobre si e sobre o mundo, vão aumentando o campo de sua percepção, vão também dirigindo sua “mirada” a “percebidos” que, até então, ainda que presentes, não se destacavam, “não estavam postos por si”.

Dessa forma, a terapia ocupacional social e suas tecnologias sociais fomentam que esses processos de conscientização ocorram de uma forma que, pensar-se a si mesmo e o mundo, simultaneamente, inseridos no âmbito de suas relações sociais e de seus modos de vida, contribua para que seus projetos de vida não se restrinjam apenas ao socialmente posto na esfera do trabalho ou estudos e às questões que envolvem o tempo futuro, próximo ou distante, mas que estão diretamente relacionados com suas histórias de vida, identificações, circulação, relação com o território e com as instituições, com suas redes de suporte social ou a falta delas, bem como com suas condições de vida, que envolvem suas trajetórias individuais, mas também coletivas.

Associado a isso, esses processos de conscientização promovidos pelas oficinas também podem permitir uma reflexão de si, de quem se é, de quais são seus desejos, projetos, sonhos, aspecto fundamental para se pensar em quem se quer ser, em quais projetos de vida querem se dedicar, além da compreensão de que eles não precisam ser necessariamente imutáveis ou alinhados com as convenções de gênero, ou quaisquer outras, que atuam sobre meninas e mulheres.

A oportunidade de experimentarem novas atividades, reflexões e descobertas por meio do encontro com as diferenças, oportunizado pelas oficinas, também permite que se aprofundem na leitura de suas necessidades individuais, (re)descobrindo o direito à escolha, o direito a se reconhecer como um sujeito que faz, que pensa, que experimenta e que deseja. Esse processo contribui para que se subverta à lógica de destinos e projetos de vida preestabelecidos e determinados, privilegiando os projetos-sonho.

Os aspectos citados, da perspectiva que aqui se apresenta, deveria compor uma ação educativa direcionada para o exercício da autonomia e para os processos de emancipação não apenas quando se é menina/mulher, mas assumindo como um aspecto essencial a ser trabalhado, entendendo-se todos os atravessamentos sociais, culturais e históricos que impõem as diferenças de condição entre homens e mulheres. A emancipação passa obrigatoriamente pela liberdade de escolher quais projetos de vida se deseja viver, associada à conscientização dos atravessamentos que impõem restrições para sua efetivação e pela ação prática de tencionar e romper com as mais diversas formas de opressão citadas neste trabalho.

Ressalta-se esse processo como possibilidade de contribuição para a produção de significado para a escola, aspecto fundamental para que as jovens (mas também os meninos) queiram estar nesse ambiente e, da mesma forma, para a construção de seus projetos de vida. O terapeuta ocupacional, nessa perspectiva, pode atuar como facilitador, com ações que não tratem de manter a escola “apenas” como um local ensino do conhecimento, mas capaz de dialogar com a história de vida da comunidade escolar, ofertando espaços de experimentação, trocas e construção de vínculos que valorizem os sujeitos e onde prevaleça a convivência entre as diferenças, o compartilhamento de culturas, o encontro, a escuta, o reconhecimento do outro como aliado e a construção coletiva de estratégias de enfrentamento das mais diversas problemáticas.

  • Errata

    No artigo “Projetar a vida sendo menina: contribuições da terapia ocupacional social”, DOI https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO273735621, publicado no periódico Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, vol. 31, 2023, e3562, na página 1:
    No texto em inglês, onde se lê:
    “Projecting life as a young girl: contributions of occupational social therapy”
    Leia-se:
    “Projecting life as a young girl: contributions of social occupational therapy”
  • 1
    Os Clubes Juvenis são “grupos temáticos criados e organizados pelos estudantes, com o apoio de professores(as) e da direção escolar”, fazendo parte das metodologias do Modelo Pedagógico do Programa Ensino Integral (PEI) no estado de São Paulo (São Paulo, 2021a).
  • 2
    O termo ficou popular no funk paulista e nas periferias, por meio de diversos hits lançados nos últimos anos, os quais fazem referência aos encontros de socialização dos jovens que se reúnem em torno de diferentes expressões culturais, como a música, a dança, entre outras, e tornam visíveis, pelo corpo, pelas roupas e pelos comportamentos próprios, as diferentes formas de se expressar e de se colocar diante do mundo. Nesses encontros, estabelecem trocas, experimentam, divertem-se, produzem, sonham, enfim, vivem determinado modo de ser jovem e quase sempre são associados à violência, à marginalidade e à perversão.
  • Como citar: Oliveira, M. T., & Pan, L. C. (2023). Projetar a vida sendo menina: contribuições da terapia ocupacional social. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 31, e3562. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO273735621
  • Fonte de Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Código 001.

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Editado por

Editora de seção

Profa. Dra. Késia Maria Maximiano de Melo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2023
  • Revisado
    09 Maio 2023
  • Revisado
    30 Ago 2023
  • Aceito
    03 Out 2023
  • Corrigido
    15 Jan 2024
Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Terapia Ocupacional Rodovia Washington Luis, Km 235, Caixa Postal 676, CEP: , 13565-905, São Carlos, SP - Brasil, Tel.: 55-16-3361-8749 - São Carlos - SP - Brazil
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