Acessibilidade / Reportar erro

Terapia ocupacional e cultura: dimensões em diálogo 1 1 As reflexões deste texto decorrem do tema da pesquisa de doutorado de Antonio Lavacca, sob orientação de Carla Regina Silva, em construção teórica coletiva do Laboratório Atividades Humanas e Terapia Ocupacional (AHTO).

Resumo

Este manuscrito visa ampliar e fortalecer debates e diálogos sobre terapia ocupacional e cultura. Para isso, apresenta uma proposição a respeito da relação entre esses campos em três diferentes dimensões: i) os aspectos culturais das atividades humanas na terapia ocupacional; ii) as marcas da cultura nos processos históricos e constitutivos da terapia ocupacional, nos quais as artes são protagonistas; e iii) a cultura como campo de trabalho do terapeuta ocupacional com base nas políticas culturais e no entendimento de cultura como um direito. Assim, a cultura adquire diferentes contornos, oferecendo pistas sobre sua composição para as atividades humanas em uma retrospectiva reflexiva no campo da terapia ocupacional. O presente debate propõe considerar a cultura em relação às atividades humanas singulares, comunitárias e territoriais, que também participam de processos hegemônicos de poder, o que requer uma ação terapêutico-ocupacional consciente de suas reproduções, hierarquias, classificações, violações e colonizações, bem como de suas resistências. Reflete-se que os vínculos entre arte, cultura e terapia ocupacional estão diretamente ligados a marcos históricos para a construção da profissão e estão presentes em todas as áreas de atuação profissional. Debate-se que existe um campo de atuação diretamente relacionado às políticas culturais que requer referenciais teóricos e metodológicos próprios, que por sua vez estabelece possíveis interfaces com as políticas e setores de saúde, assistência social, educação, entre outros.

Palavras-chave:
Cultura; Terapia Ocupacional; Terapia Ocupacional/Tendências

Abstract

This manuscript aims to deepen and enrich discussions surrounding the intersection of occupational therapy and culture. It explores the relationship between these fields across three different dimensions: i) the cultural aspects of human activities in occupational therapy; ii) the influence of culture in the historical evolution and constitutive processes of occupational therapy, where the arts play a central role; and iii) the potential for culture to serve as a field of practice for occupational therapists, informed by cultural policies and the recognition of culture as a human right. In this framework, culture acquires different contours, providing insights into its relevance for human activities within the scope of occupational therapy. The present debate proposes that culture should be considered in the context of individual, community, and territorial human activities. These activities also participate in hegemonic processes of power that require an occupational-therapeutic approach, one that is cognizant of the complexities of cultural reproduction, hierarchical systems, classifications, violations, and colonization processes, as well as resistance to these factors. The study posits that the links between art, culture, and occupational therapy are merely coincidental but are important to the profession’s historical development and ongoing practice. Moreover, it contends that there exists a specialized field of action directly related to cultural policies, one that requires its own set of theoretical and methodological frameworks. This, in turn, enables potential collaboration with health, social assistance, education, and other sectors.

Keywords:
Culture; Occupational Therapy; Occupational Therapy/Trends

Introdução

Este ensaio é parte de uma pesquisa de doutorado que aborda as relações entre a terapia ocupacional e a cultura, e a reflexão aqui apresentada foi construída a partir da articulação teórica sobre o tema com experiências e práticas terapêutico-ocupacionais desenvolvidas em um grupo de pesquisa que realiza projetos integrados de ensino, pesquisa e extensão universitária neste campo.

Na busca pela compreensão do diálogo entre terapia ocupacional e cultura, apresentamos três dimensões importantes de serem refletidas: i) a primeira se refere aos aspectos culturais das atividades humanas na terapia ocupacional; ii) a segunda retoma marcas da cultura nos processos históricos e constitutivos da terapia ocupacional, nos quais as artes são protagonistas; iii) a terceira pauta a cultura como campo de trabalho para terapeutas ocupacionais a partir das políticas culturais e da compreensão da cultura como direito.

As reflexões apresentadas só podem ser compreendidas se considerarmos a cultura como conceitos polissêmicos que muitas vezes estão em disputa. Ao tratarmos da cultura de forma uniforme, incorremos relativizar, classificar e/ou minimizar cotidianos e atividades humanas, haja vista que o mundo é composto por diversos modos de vidas e múltiplas são suas práticas culturais.

Os Aspectos Culturais das Atividades Humanas na Terapia Ocupacional

De acordo com Chauí (2008), aChauí, M. (2008). Cultura e democracia. Crítica y Emancipación Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, 1(1), 53-76. cultura pressupõe um conjunto de expressões estruturantes do cotidiano humano presente nos diversos modos de vida.

As atividades humanas2 2 O termo atividades humanas é importante para a terapia ocupacional, sobretudo no contexto brasileiro. Neste trabalho, adota-se o uso desse termo seguindo as compreensões em consonância com Cardinalli (2022). estão imersas nas culturas e, por isso, podem ser compreendidas como expressões culturais coletivas, comunitárias e singularizadas, a cada tempo e modos de vida (Phelan & Kinsella, 2009Phelan, S., & Kinsella, E. A. (2009). Occupational identity: engaging socio‐cultural perspectives. Journal of Occupational Science, 16(2), 85-91.).

Como campo de conhecimento, a terapia ocupacional agrega conceitos, concepções e referenciais que embasam suas proposições teórico-práticas (Silva et al., 2019Silva, C. R., Cardinalli, I., Silvestrini, M. S., Almeida Prado, A. C., & Lavacca, A. B. (2019). Proposições da terapia ocupacional na cultura: processos sensíveis em contextos sociais. In C. R. Silva (Ed.), Atividades humanas e terapia ocupacional: saber-fazer, cultura, política e outras resistências (pp. 203-224). São Paulo: Hucitec.), que estruturam práticas, atitudes e éticas (World Federation of Occupational Therapists, 2010World Federation of Occupational Therapists - WFOT. (2010). Tomada de posição: diversidade e cultura. Recuperado em 20 de julho de 2022, de https://www.wfot.org/resources/diversity-and-culture
https://www.wfot.org/resources/diversity...
).

No Brasil, no início da década de 1990, Brunello (1991)Brunello, M. I. B. (1991). Reflexos sobre a influência do fator cultural no processo de atendimento de terapia ocupacional. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 2(1), 30-33. já apresentava sua preocupação sobre como compreender, considerar e apreender ao máximo a cultura de cada pessoa nas práticas terapêutico-ocupacionais, relacionando-se diretamente com o significado de cada atividade humana e afirmando essa relação com o coletivo, os contextos e as realidades das pessoas.

Posteriormente, adotamos o conceito de cotidiano na terapia ocupacional a partir da perspectiva sócio-histórica e contextualizada do sujeito. Tal compreensão incorporou “[…] a subjetividade, a cultura, a história e o poder social como elementos que influem na compreensão do fenômeno” (Galheigo, 2003, pGalheigo, S. M. (2003). O cotidiano na terapia ocupacional: cultura, subjetividade e contexto histórico-social. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 14(3), 104-109. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v14i3p104-109.
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-614...
. 108).

Considerar a cultura nas construções conceituais e teórico-metodológicas desenvolvidas na terapia ocupacional reflete não apenas um item a ser medido ou conferido, mas trata-se de compromisso ético-político, afinal:

A terapia ocupacional trabalha diretamente com questões sensíveis, como propósitos, significados e o que as pessoas realmente fazem. Ignorar como a cultura está conectada a esses aspectos pode levar a práticas antiéticas ou mesmo iatrogênicas, do nível individual ao global. O efeito disso é a negação da diversidade e da riqueza das práticas locais (Castro et al., 2014, pCastro, D., Dahlin-Ivanoff, S., & Mårtensson, L. (2014). Occupational therapy and culture: a literature review. Scandinavian Journal of Occupational Therapy, 21(6), 401-414.. 412).

Lima (2003, pLima, E. M. F. A. (2003). Desejando a diferença: considerações acerca das relações entre os terapeutas ocupacionais e as populações tradicionalmente atendidas por estes profissionais. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 14(2), 64-71.. 70) aponta que o compromisso ético-político dos terapeutas ocupacionais com os sujeitos e coletivos assistidos se relaciona com a defesa dos direitos e o desejo de diferença. “E desejar o dissenso, a alteridade, a diferença só é possível quando assumimos a multiplicidade que nos compõe”. Considerar e desejar nossa multiplicidade se relaciona diretamente com a cultura e com o fato de compreendê-la como estruturante da vida.

Hall (2017)Hall, S. (2017). A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação e Realidade, 22(2), 15-46. destaca a centralidade da cultura na interpretação da realidade e das ações, assim como no seu papel constitutivo em todos os aspectos da vida social, na construção da subjetividade e identidade.

Logo, dialogar sobre cultura é refletir: sobre qual cultura estamos falando? Quem fala? Quem pode falar? Questionamentos tal como nos convoca Spivak (2010)Spivak, G. (2010). Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG..

Para Bhabha (1998), aBhabha, H. K. (1998). O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG. cultura simboliza estruturas de poder: os elementos culturais representam relações artísticas e políticas, misturando o passado e o presente, o público e o privado, sendo não apenas uma forma de expressão, mas também de sobrevivência. Assim, quando não mencionamos, refletimos ou nos posicionamos sobre quais perspectivas estão estruturadas os saberes-fazeres em terapia ocupacional - significa que modelos hegemônicos estão sendo operados a partir de suas próprias lógicas.

Na terapia ocupacional, devemos também questionar sobre qual cultura ou culturas estão sendo consideradas para a atuação com pessoas, grupos ou comunidades.

Al Busaidy & Borthwick (2012)Al Busaidy, N. S., & Borthwick, A. (2012). Occupational therapy in Oman: the impact of cultural dissonance. Occupational Therapy International, 19(3), 154-164. explicitam as incoerências de modelos ocidentais de terapia ocupacional em contraste com aqueles dos países orientais e árabes/islâmicos. Para eles, determinadas práticas compartilham crenças, valores e atitudes muito diferentes entre si e podem constituir um risco, além de serem consideradas como inadequadas ou irrelevantes. Trata-se de reconhecer valores e ideologias dominantes produzindo suas lógicas. Nesse caso, os autores debatem como teorias hegemônicas enfatizam a importância e a responsabilidade individual, advindas de perspectivas neoliberais, contrastando com valores comunitários que priorizam a responsabilidade com grupos familiares e sociais, que por vezes serão avaliados como pouca ou insuficiente autonomia ou habilidade de empoderamento (Al Busaidy & Borthwick, 2012Al Busaidy, N. S., & Borthwick, A. (2012). Occupational therapy in Oman: the impact of cultural dissonance. Occupational Therapy International, 19(3), 154-164.).

Iwama et al. (2008)Iwama, M., Simó Algado, S., & Kapanadze, M. (2008). En busca de una terapia ocupacional culturalmente relevante. TOG (A Coruña), 5(8), 1-29. consideram a terapia ocupacional como uma entidade cultural e relatam como a diversidade e as cosmovisões existem em nossas próprias comunidades. Por isso, alertam para os perigos do colonialismo teórico, presentes quando se privilegiam imperativos culturais.

No Brasil, por exemplo, não há como não considerar todo o histórico de escravização de pessoas negras africanas, genocídio, violência perpetrada por uma série de outros mecanismos que impregnavam a pessoa negra como inferior e selvagem e enalteciam o processo de embranquecimento elevado à máxima da ‘democracia racial’, que por baixo dos conceitos de assimilação, aculturação e miscigenação, violavam, violentavam, silenciavam e exerciam o poder. Ou seja, institucionalizava-se o racismo de forma difusa e profundamente penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade brasileira (Nascimento, 2016Nascimento, A. (2016). O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva.).

Assim, quando nos referimos às dimensões culturais das práticas terapêutico-ocupacionais, referimo-nos também à toda relação de poder exercida a partir dos diferentes marcadores sociais, das interseccionalidades expressadas nas identidades e subjetividades de todas as pessoas com as quais nos relacionamos (Ambrosio & Silva, 2022Ambrosio, L., & Silva, C. R. (2022). Interseccionalidade: um conceito amefricano e diaspórico para a terapia ocupacional. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30, 1-11.).

Portanto, corroboramos Pino & Ulloa (2016, pPino, J., & Ulloa, F. (2016). Perspectiva crítica desde Latinoamérica: hacia una desobediencia epistémica en terapia ocupacional contemporánea. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 24(2), 421-427.. 425), pois esse debate nos leva a tomar uma posição ética-política-cultural radical, de um “[…] desprendimento epistêmico na esfera do social, um movimento que sai da compreensão universalista hegemônica, para uma pluriversatilidade da terapia ocupacional”.

Outra importante temática aqui correlacionada é a da interculturalidade, pois o conceito se relaciona a partir da integração entre diferentes culturas, considerando as relações de poder inevitavelmente estabelecidas entre elas. Fernández (2008)Fernández, G. (2008). La diversidad frente al espejo. Salud, Interculturalidad y contexto migratorio. Quito: Abya-Yala. aponta que a termo refere-se ao estabelecimento de relações entre pessoas sob o uso equilibrado do poder, no qual os participantes mostram boa disposição para a aprendizagem ativa e o respeito mútuo.

Para a terapia ocupacional, a interculturalidade pode significar uma intervenção a favor do desenvolvimento humano, da democracia pluralista e inclusiva e da nova cidadania, tendo em conta o enquadramento das questões culturais em conjunto com as políticas socioeconômicas e cívico-políticas (Zango, 2017Zango, I. M. (2017). Terapia ocupacional sociocomunitária. Madrid: Editora Síntesis.).

As Marcas da Cultura nos Processos Históricos e Constitutivos da Terapia Ocupacional nos Quais as Artes são Protagonistas

Nesta dimensão, precisamos compreender a importância das artes no campo da terapia ocupacional, entendidas como parte da expressão humana e da produção cultural. Há uma vinculação direta das artes com as práticas terapêutico-ocupacionais em todas as áreas e campos de atuação, além de considerarmos importantes marcas históricas para a construção da profissão (Castro & Silva, 2002Castro, E. D., & Silva, D. M. (2002). Habitando os campos da arte e da terapia ocupacional: percursos teóricos e reflexões. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 13(1), 1-8.; Perruzza & Kinsella, 2010Perruzza, N., & Kinsella, E. A. (2010). Creative arts occupations in therapeutic practice: a review of the literature. British Journal of Occupational Therapy, 73(6), 261-268.).

Morrison Jara (2018)Morrison Jara, R. (2018). O que une a terapia ocupacional? Paradigmas e perspectivas ontológicas da ocupação humana. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, 2(1), 182-203. nos apresenta que mesmo antes da formação do primeiro paradigma da profissão, diversas teorias, juntamente com os respectivos movimentos políticos e ideológicos, começaram a dar forma ao que foi denominado terapia ocupacional. As principais foram a Filosofia Pragmatista, o Tratamento Moral, o Movimento de Artes e Ofícios e a primeira onda do feminismo.

O Movimento de Artes e Ofícios trouxe conexões diretas para a construção do início da terapia ocupacional e desempenhou um papel fundamental nas casas de assentamento, como a Hull House, visto que os fundadores da Hull House faziam parte do Movimento de Artes e Ofícios de Chicago e acreditavam no uso da arte para elevar, educar e conectar as diversas comunidades durante um período de crise do trabalho industrial (Quiroga, 1995Quiroga, V. (1995). Occupational therapy: the first thirty years, 1900-1930. Bethesda: American Occupational Therapy Association.).

O Movimento de Artes e Ofícios, com raízes no Romantismo e no socialismo utópico, enfrentava as mudanças dos modos de produção do Capitalismo e da Revolução Industrial. O movimento era

[…] contra o crescente empobrecimento da classe operária e crê num certo espírito ontológico, no qual o cotidiano, o corpo, a arte, o artesanato, as redes comunitárias, a casa e a família estariam em função de uma vida ecologicamente simples, porém plena (Almeida & Costa, 2019Almeida, M. V., & Costa, M. C. (2019). Movimento de Artes e Ofícios: perspectiva ética-política-estética de constituição da terapia ocupacional. In C. R. Silva (Ed.), Atividades humanas e terapia ocupacional: saber-fazer, cultura, política e outras resistências (pp. 203-224). São Paulo: Hucitec.).

No Brasil, ainda temos como referência histórica o trabalho desenvolvido pela psiquiatra Nise da Silveira, de grande importância para a interface entre psiquiatria, artes e a terapêutica ocupacional. Nise se propôs a dar fundamentação científica, com trabalho inovador, envolvendo artistas e críticos de arte, e recorreu a um tratamento museográfico das obras dos pacientes (Castro & Lima, 2007Castro, E. D., & Lima, E. M. F. A. (2007). Resistência, inovação e clínica no pensar e no agir de Nise da Silveira. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 11(22), 365-376.).

Ainda que sejam marcos históricos e que a própria terapia ocupacional tenha desenvolvido uma série de outras reflexões, práticas e proposições na relação entre cultura, artes e cuidado, o fato que queremos destacar aqui é como essa relação esteve presente de forma representativa e contínua na profissão. É importante considerar que muitos modelos hegemônicos terapêutico-ocupacionais se afastam dessa relação, aproximando-se mais de práticas biomédicas e da reabilitação, e o uso das artes tem sido menos utilizado ou ressaltado na profissão (Thompson & Blair, 1998Thompson, M., & Blair, S. E. E. (1998). Creative arts in occupational therapy: ancient history or contemporary practise? Occupational Therapy International, 5(1), 48-64.). Contudo, ainda é preciso romper com essas polarizações, já que não se tratam necessariamente de relações excludentes entre si.

Ressalta-se a importância das artes em todo movimento de reforma psiquiátrica e de luta antimanicomial, na construção dos cuidados em saúde mental que rompessem com o paradigma psiquiátrico, o modelo hospitalocêntrico medicalizador e as instituições totais (Shimoguiri & Costa-Rosa, 2017Shimoguiri, A. F. D. T., & Costa-Rosa, A. (2017). From moral treatment to the psychosocial care: occupational therapy in the aftermath of Brazilian psychiatric reform. Interface: a Journal for and About Social Movements, 21(63), 845-856.). Movimentos que combatiam os controles, abusos, violações, torturas e mortes, por vezes empregadas com o consentimento do Estado, de profissionais e da sociedade, que eram denominados métodos de tratamento para a doença mental (Arbex, 2013Arbex, D. (2013). Holocausto brasileiro genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial.).

Entre as décadas de 1980 e 1990, vivenciamos um ponto de virada na constituição da terapia ocupacional: as lutas pela democratização e por direitos, a produção de teorias, estudos e práticas foram decisivas para ampliar o debate crítico no campo, “[…] articulado à produção de uma cultura de resistência que se fazia na participação em diversos movimentos sociais, no diálogo com a música, o teatro, a literatura e as artes” (Lima, 2021, pLima, E. M. F. A. (2021). Terapia ocupacional: uma profissão feminina ou feminista? Saúde em Debate, 45(1), 154-167.. 161).

O percurso da terapia ocupacional e sua incursão através o universo cultural, que parte de práticas artísticas, contribuíram para descentralizar o saber-poder médico e ajudaram a deslocar o lugar taxativo e definitivo dos diagnósticos, ampliar o conceito de saúde e a abrangência do cuidado de pessoas e coletivos, assim como, adotar compromissos éticos envolvendo práticas comunitárias e territoriais, participação social, cidadania, entre outros (Castro et al., 2016Castro, E. D., Inforsato, E. A., Buelau, R. M., Valent, I. U., & Lima, E. A. (2016). Território e diversidade: trajetórias da terapia ocupacional em experiências de arte e cultura. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 24(1), 3-12.; Castro & Silva, 2002Castro, E. D., & Silva, D. M. (2002). Habitando os campos da arte e da terapia ocupacional: percursos teóricos e reflexões. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 13(1), 1-8.).

Dessa forma, foi possível produzir mutações em relação às compreensões também sobre o sensível, a obra e as criações produzidas na fronteira com o campo clínico, criando um deslocamento nas relações entre arte, loucura e clínica no contemporâneo (Lima, 2006, pLima, E. M. F. A. (2006). Por uma arte menor: ressonâncias entre arte, clínica e loucura na contemporaneidade. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 10(20), 317-329. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832006000200004.
http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832006...
. 328).

Diante da ampliação da participação de terapeutas ocupacionais em dispositivos desenvolvidos na interface entre as práticas sociais, de saúde e de cultura, torna-se cada vez mais importante tecer reflexões que discutam problemáticas relativas às estratégias de participação social e cultural de pessoas que, por múltiplas questões, vivem situações de vulnerabilidade (Castro et al., 2016, pCastro, E. D., Inforsato, E. A., Buelau, R. M., Valent, I. U., & Lima, E. A. (2016). Território e diversidade: trajetórias da terapia ocupacional em experiências de arte e cultura. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 24(1), 3-12.. 838).

Siegmann (2018)Siegmann, C. (2018). Passagens, limiares e escrivências: pistas para uma terapia ocupacional inventiva (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. corrobora essas reflexões, pois busca potencializar a dimensão criativa e expressiva da vida, contrapondo-se aos modelos de representação e normatização dos corpos a partir de uma perspectiva inventiva da terapia ocupacional transversalizada pelas atividades expressivas, artísticas e culturais.

No trabalho com as juventudes, Takeiti & Vicentin (2016)Takeiti, B. A., & Vicentin, M. C. G. (2016). Jovens (en)cena: arte, cultura e território. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 24(1), 25-37. demonstram novas maneiras de se relacionar com a juventude periférica a partir das expressões artísticas e culturais, do lugar das potências como elaboradores de culturas e criadores de atividades.

Prado et al. (2020)Prado, A. C. S. A., Silva, C. R., & Silvestrini, M. S. (2020). Juventudes, trabalho e cultura em tempos de racionalidade neoliberal. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(2), 706-724. apresentam a cultura como campo de trabalho e debatem a inserção de jovens artistas e produtores de cultura, gerando novas relações com o trabalho como forma de engajamento e posicionamento social.

Silva & Teixeira (2021), aSilva, C. R., & Teixeira, D. I. V. (2021). O hip-hop é uma só família: processo criativo, produção cultural e militância. Políticas Culturais em Revista, 14(2), 75-99. partir do trabalho com juventude e movimento hip-hop, apontam as dificuldades do trabalho na cultura em relação ao poder público, assim como seus enfrentamentos: organização coletiva, divulgação e fomento da arte e criação de espaços para diálogo e reconhecimento social, afinal reconhece-se a potência do hip-hop enquanto expressão artística, militância e transformação social.

Lavacca (2018)Lavacca, A. B. (2018). Atividades musicais e corporais entre jovens e adolescentes na escola pública: pertencimento, subjetivação e cultura (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. analisa as expressões corporais e musicais, a dança e o teatro como ferramentas na escola pública para a criação de espaços onde jovens e adolescentes possam criar e recriar identidades coletivas e significados aos seus contextos e cotidianos, em espaços interventivos onde haja diálogo, afeto e liberdade.

Outra temática-conceito importante para o debate é o trabalho com o corpo, na relação com as artes e a cultura. Afinal temos uma série de experiências que valorizam a atuação corporal de forma a promover espaços híbridos entre cuidado, arte e corpo.

Ao hibridizar a arte e terapia ocupacional entende-se que a criação de espaços poéticos de arte, com potencial de abertura à sensibilidade, à percepção e à imaginação, estimula a afetação de um corpo nos encontros com outros corpos e, a partir dessa aproximação, cria novos corpos e novas formas de viver, revitalizando um estado permanente de arte (Elmescany et al., 2018, pElmescany, E. N. M., Piani, I. X., Freire, P. P., & Lima, W. S. (2018). Tecendo fios de ouro numa terapia ocupacional hibridizada com a arte. Revista do NUFEN, 10(1), 146-159.. 153).

Almeida (2011)Almeida, M. V. M. (2011). A selvagem dança do corpo. Curitiba: CRV. adota o conceito de corpo-arte para expressar a possibilidade de organizar corpos “territorializados” que guardam potências para formar uma obra e o corpo-artesanal que consiste na capacidade de modelar, criar e produzir um corpo, produto de um processo de insistência, por meio da repetição do fazer cotidiano.

Se ainda considerarmos práticas tidas como mais tradicionais da profissão, também temos inúmeros exemplos de como as artes são apresentadas como parte ou estratégia, seja em hospitais, clínicas ou serviços de saúde em geral, com os mais diversos públicos. Nalasco & Martins (2007, pNalasco, L. F., & Martins, D. L. S. S. (2007). Reflexões do uso da arte como recurso terapêutico ocupacional. Revista do Hospital Universitário UFMA, 8(1), 25-27.. 26) apresentam as artes tanto como instrumentos de diagnóstico como de tratamento segundo seus efeitos terapêuticos. “Através da ampliação da percepção, exteriorização de sentimentos, despertando a motivação e resgatando a autoestima, o que provoca mais capacidade do paciente ser criativo e expressivo”.

Lima (2005)Lima, L. J. C. (2005). The art of to live and to age with quality: interfaces of the occupational therapy, artistic activities and gerontology (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. apresenta propostas para um envelhecimento com qualidade, a partir da produção artística, nas interfaces da terapia ocupacional, arte e gerontologia.

O trabalho desenvolvido por Leite et al. (2013)Leite, A. S. C., Matos, A. H., Oliveira, I. B. S., & Araújo, L. S. (2013). Enveredando pelos caminhos da arte: a terapia ocupacional na produção de saúde de sujeitos infectados pelo HIV. Revista do NUFEN, 5(1), 64-81. relata a inserção da terapia ocupacional no contexto da assistência em saúde ao sujeito infectado pelo HIV por meio de atividades expressivas que afetam o cotidiano, possibilitando descobertas que proporcionaram a apropriação de si e de bem-estar.

Muitas outras práticas e estudos poderiam ser citadas, o fato é que temos o reconhecimento da interface saúde-cultura de forma transversal no campo da terapia ocupacional, além de outras áreas e organismos internacionais3 3 O relatório “What is the evidence on the role of the arts in improving health and well-being? A scoping review”, publicado pela OMS, é um bom exemplo. Ele sintetiza as evidências globais, em mais de 3.000 estudos, sobre o papel das artes na prevenção, promoção e gestão em saúde (Fancourt & Finn, 2019). .

A Cultura Como Campo de Trabalho do Terapeuta Ocupacional Com Base nas Políticas Culturais e no Entendimento da Cultura Como um Direito

Galheigo et al. (2018)Galheigo, S. M., Braga, C. P., Arthur, M. A., & Matsuo, C. M. (2018). Produção de conhecimento, perspectivas e referências teórico-práticas na terapia ocupacional brasileira: marcos e tendências em uma linha do tempo. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 723-738. apresentam as perspectivas teórico-metodológicas e referenciais teórico-práticos da terapia ocupacional brasileira entre 1956 a 2017; entre os quatro principais movimentos citados, temos que a relação com a cultura aparece com mais força no terceiro movimento: “[…] constituição dos campos de saber e prática da terapia ocupacional por meio de contextualização sociopolítica, problematização teórico-conceitual e proposição de práticas emancipatórias” (identificado entre 1997 e 2005).

A cultura aparece: i) identificada como campo de atuação profissional, relacionado com a ampliação de políticas públicas sociais; ii) representada na consolidação de um deslocamento da concepção de atividade como elemento da cultura, de caráter polissêmico e complexo, que se funda numa dimensão sociopolítica e afetiva da condição humana e iii) considerada nos contextos de pessoas e grupos em práticas profissionais voltadas para ao trabalho territorial e comunitário (Galheigo et al., 2018Galheigo, S. M., Braga, C. P., Arthur, M. A., & Matsuo, C. M. (2018). Produção de conhecimento, perspectivas e referências teórico-práticas na terapia ocupacional brasileira: marcos e tendências em uma linha do tempo. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 723-738.).

Para os fins do presente ensaio, debrucemo-nos sobre o primeiro item, que focaliza a cultura enquanto campo de atuação profissional. Podemos perceber a relação direta, sob essa perspectiva, entre a cultura e o campo profissional.

Afinal, as políticas engendradas pelo ministro da cultura Gilberto Gil (2003-2008) tiveram como enfoque o papel ativo do Estado na formulação e implementação de políticas de cultura, a abrangência das ações, as concepções da cultura e a conexão com a sociedade. Para Rubim (2008, pRubim, A. A. C. (2008). Políticas culturais do governo Lula/Gil: desafios e enfrentamentos. Intercom Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, 31(1), 183-203.. 196), “[…] essa abertura conceitual e de atuação significa não só o abandono de uma visão elitista e discriminadora de cultura, mas representa um contraponto ao autoritarismo e a busca da democratização das políticas culturais”.

Ainda que as políticas culturais desse período tenham sido extremamente embrionárias, insuficientes por sua pontualidade para a promoção da cultura em debate constante as demandas da racionalidade neoliberal (Silva et al., 2019Silva, C. R., Cardinalli, I., Silvestrini, M. S., Almeida Prado, A. C., & Lavacca, A. B. (2019). Proposições da terapia ocupacional na cultura: processos sensíveis em contextos sociais. In C. R. Silva (Ed.), Atividades humanas e terapia ocupacional: saber-fazer, cultura, política e outras resistências (pp. 203-224). São Paulo: Hucitec.), vimos o completo desinvestimento, falência e descaso, com algumas poucas ações resistentes ao desmonte entre 2016 e 2022.

De toda forma, as políticas culturais e os diálogos que a terapia ocupacional e a cultura puderam construir pautaram desdobramentos importantes no que tange à garantia dos direitos, da cidadania e da diversidade cultural e projetos que fomentaram a identidade inventiva e o compromisso ético-político (Silvestrini, 2019Silvestrini, M. S. (2019). Terapia ocupacional e cultura: uma curadoria de tessituras entre práticas, políticas, diversidade e direitos (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

A terapia ocupacional toma a cultura como parte descentralizadora dos modelos mais tradicionais de cuidado, dando voz às expressões, identidades, subjetividades e criações. A cultura passa a ser compreendida como necessidade básica e direito fundamental dos seres.

Segundo Sato & Barros (2016, pSato, M. T., & Barros, D. D. (2016). Cultura, mobilidade e direitos humanos: reflexões sobre terapia ocupacional social no contexto da política municipal para população imigrante. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 24(1), 91-103.. 16), devemos incluir essa pauta na formação acadêmica e na construção do conhecimento.

É fundamental, portanto, que a terapia ocupacional dialogue com essas novas dinâmicas, criando iniciativas de atuação e formação que trabalhem a pluralidade cultural, social e de vida em interação e movimento próprias a essas novas realidades e movências da contemporaneidade.

Silva et al. (2019)Silva, C. R., Cardinalli, I., Silvestrini, M. S., Almeida Prado, A. C., & Lavacca, A. B. (2019). Proposições da terapia ocupacional na cultura: processos sensíveis em contextos sociais. In C. R. Silva (Ed.), Atividades humanas e terapia ocupacional: saber-fazer, cultura, política e outras resistências (pp. 203-224). São Paulo: Hucitec. apontam que práticas terapêutico-ocupacionais focadas na cultura, envolvidas com garantia dos direitos culturais e o exercício da cidadania, investem em estratégias, a partir de diferentes interfaces, e mostram-se ativas no que se refere à novas interações sociais com as e/ou junto às pessoas que mais sofrem as desigualdades e exclusões dos processos hegemônicos de poder.

Nesse sentido, terapeutas ocupacionais podem contribuir para a produção de estratégias, reflexões e práticas contra-hegemônicas, anticoloniais, anti-heterocispatriarcais e antirracistas na busca pela ruptura e superação dos impactos gerados pelas práticas hegemônicas e violentas nos modos de vida e relações humanas (Silva et al., 2019, pSilva, C. R., Cardinalli, I., Silvestrini, M. S., Almeida Prado, A. C., & Lavacca, A. B. (2019). Proposições da terapia ocupacional na cultura: processos sensíveis em contextos sociais. In C. R. Silva (Ed.), Atividades humanas e terapia ocupacional: saber-fazer, cultura, política e outras resistências (pp. 203-224). São Paulo: Hucitec.. 934).

No campo da acessibilidade cultural, por exemplo, temos experiências que envolvem atuação direta em espaços culturais, formação pós-graduada, inclusão dos temas na graduação e reformulação de cursos e currículos em terapia ocupacional, ampliação dos estudos e produções, envolvimento com projetos e novas leis, que repaginam o diálogo entre terapia ocupacional e cultura (Dorneles et al., 2018Dorneles, P. S., de Carvalho, C. R. A., Silva, A. C. C., & Mefano, V. (2018). Do direito cultural das pessoas com deficiência. Revista de Políticas Públicas, 22(1), 138-154.).

Esse deslocamento apresenta desafios para terapeutas ocupacionais atuarem em funções como gestão, produção, promoção e difusão cultural. Assim, terapeutas ocupacionais desenvolvem práticas que respondem ao universo próprio da cultura, com possibilidades de fruição, produção e gestão, tal como sugerido Silva et al. (2019)Silva, C. R., Cardinalli, I., Silvestrini, M. S., Almeida Prado, A. C., & Lavacca, A. B. (2019). Proposições da terapia ocupacional na cultura: processos sensíveis em contextos sociais. In C. R. Silva (Ed.), Atividades humanas e terapia ocupacional: saber-fazer, cultura, política e outras resistências (pp. 203-224). São Paulo: Hucitec..

Ao adentrar os espaços como agentes ou produtores de cultura, terapeutas ocupacionais se debruçam sobre novos perfis de sua atuação, habilidades de gestão, implicados com todas as demandas e habilidades para a promoção cultural que se fazem engajadas, situadas, comprometidas e conscientes do trabalho no campo da cultura, como essencial para a mudança de qualquer sociedade, rompendo com processos hegemônicos de dominação.

Essas perspectivas devem ser compreendidas compondo com a dimensão econômica da cultura, afinal: “A cultura constitui uma dimensão fundamental do processo de desenvolvimento e contribuiu para fortalecer a independência, soberania e identidade das nações” (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1985, pInstituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. (1985). Declaração do México. Recuperado em 20 de julho de 2022, de http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Declaracao%20do%20Mexico%201985.pdf
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfin...
. 3).

É possível pensar a terapia ocupacional na interface com a cultura como um dispositivo transversal aos diversos campos e modos de se fazer e se reconhecer, “[…] afirmando escolhas e caminhos como potencializadores de vida (ética); exercitando a dimensão da invenção criativa (estética) e responsabilizando-se pelos efeitos produzidos (política)” (Takeiti & Vicentin, 2016, pTakeiti, B. A., & Vicentin, M. C. G. (2016). Jovens (en)cena: arte, cultura e território. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 24(1), 25-37.. 35).

A atuação profissional da terapia ocupacional no campo da cultura configura novas formas de compreender suas práticas, assim como estão atreladas ao compromisso ético-político, também composto pela defesa e luta pela ampliação dos direitos humanos e cidadania, respeito pela diversidade e participação social (Silvestrini, 2019Silvestrini, M. S. (2019). Terapia ocupacional e cultura: uma curadoria de tessituras entre práticas, políticas, diversidade e direitos (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

Para Silvestrini (2019, pSilvestrini, M. S. (2019). Terapia ocupacional e cultura: uma curadoria de tessituras entre práticas, políticas, diversidade e direitos (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.. 147), os desafios da terapia ocupacional no campo da cultura envolvem aspectos relacionados à gestão cultural, ao acesso às culturas e aos entraves políticos e econômicos. Assim como “[…] essa potência é representada pela ideia de um fazer coletivo, dialógico e engajado, interessado no empoderamento e nos formatos que rompem com as hierarquias, visando a ampliação da potência de ser, estar, agir no mundo”. “Entende-se a importância da busca pela justiça, equidade e respeito à diversidade humana e ambiental, cujas transformações passam necessariamente pela dimensão cultural das vidas humanas” (Silvestrini, 2019, pSilvestrini, M. S. (2019). Terapia ocupacional e cultura: uma curadoria de tessituras entre práticas, políticas, diversidade e direitos (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.. 934).

Considerações Finais

O presente texto é resultado de reflexões sobre a importância de considerarmos a relação entre cultura e terapia ocupacional. Assim este manuscrito propôs três dimensões principais, nos quais a cultura ganha diferentes desenhos, simbolizando os múltiplos e diversos modos de vida, cotidianos, atividades e ocupações inerentes à vida humana, e por isso são singulares, coletivas e comunitárias, participam dos processos hegemônicos de poder, o que demanda uma atuação terapêutico-ocupacional consciente desses processos, como também de suas reproduções, hierarquias, classificações, violações e colonizações.

Os elos entre artes, cultura e terapia ocupacional possuem uma vinculação direta, com importantes marcas históricas para a construção da profissão, e estão presentes em todas as áreas de atuação profissional. Assim, são destacadas suas interfaces sobre diversos movimentos estéticos, sob as perspectivas corporalista, comunitária, territorial e, sobretudo o posicionamento ético-político para se enfrentar os abusos, violações e controles da vida.

O que sugerimos é que a cultura, ademais das dimensões debatidas, possa ser considerada como campo de estudo e atuação para a terapia ocupacional, especialmente em sua relação como direito e transformação. Há um campo de atuação diretamente relacionado às políticas culturais, o que centra o trabalho em determinados espaços, com determinadas éticas, funções e propósitos próprios dessa relação com o setor cultural. Além disso, temos vasta relação desse trabalho com a cultura e suas possíveis interfaces com as políticas e os setores da saúde, assistência social, educação, entre outros.

Este artigo buscou trazer parte de um arcabouço sobre cultura para que se construíssem reflexões e diálogos acerca das possibilidades dos debates sobre cultura e terapia ocupacional. Almeja-se que tal trabalho possa contribuir para construir novas pontes e horizontes no que abrange as temáticas da cultura, em suas múltiplas dimensões, e da terapia ocupacional.

  • 1
    As reflexões deste texto decorrem do tema da pesquisa de doutorado de Antonio Lavacca, sob orientação de Carla Regina Silva, em construção teórica coletiva do Laboratório Atividades Humanas e Terapia Ocupacional (AHTO).
  • 2
    O termo atividades humanas é importante para a terapia ocupacional, sobretudo no contexto brasileiro. Neste trabalho, adota-se o uso desse termo seguindo as compreensões em consonância com Cardinalli (2022)Cardinalli, I. (2022). Ninho de nós: sentidos da atividade humana em terapia ocupacional (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos..
  • 3
    O relatório “What is the evidence on the role of the arts in improving health and well-being? A scoping review”, publicado pela OMS, é um bom exemplo. Ele sintetiza as evidências globais, em mais de 3.000 estudos, sobre o papel das artes na prevenção, promoção e gestão em saúde (Fancourt & Finn, 2019Fancourt, D., & Finn, S. (2019). What is the evidence ou the role of the arts in imprving health an well-being? Denmark: OMS/Europe.).
  • Como citar: Lavacca, A. B., & Silva, C. R. (2023). Terapia ocupacional e cultura: dimensões em diálogo. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 31, e3455. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoEN264934551

Referências

  • Al Busaidy, N. S., & Borthwick, A. (2012). Occupational therapy in Oman: the impact of cultural dissonance. Occupational Therapy International, 19(3), 154-164.
  • Almeida, M. V. M. (2011). A selvagem dança do corpo. Curitiba: CRV.
  • Almeida, M. V., & Costa, M. C. (2019). Movimento de Artes e Ofícios: perspectiva ética-política-estética de constituição da terapia ocupacional. In C. R. Silva (Ed.), Atividades humanas e terapia ocupacional: saber-fazer, cultura, política e outras resistências (pp. 203-224). São Paulo: Hucitec.
  • Ambrosio, L., & Silva, C. R. (2022). Interseccionalidade: um conceito amefricano e diaspórico para a terapia ocupacional. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30, 1-11.
  • Arbex, D. (2013). Holocausto brasileiro genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil São Paulo: Geração Editorial.
  • Bhabha, H. K. (1998). O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG.
  • Brunello, M. I. B. (1991). Reflexos sobre a influência do fator cultural no processo de atendimento de terapia ocupacional. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 2(1), 30-33.
  • Cardinalli, I. (2022). Ninho de nós: sentidos da atividade humana em terapia ocupacional (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.
  • Castro, D., Dahlin-Ivanoff, S., & Mårtensson, L. (2014). Occupational therapy and culture: a literature review. Scandinavian Journal of Occupational Therapy, 21(6), 401-414.
  • Castro, E. D., & Lima, E. M. F. A. (2007). Resistência, inovação e clínica no pensar e no agir de Nise da Silveira. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 11(22), 365-376.
  • Castro, E. D., & Silva, D. M. (2002). Habitando os campos da arte e da terapia ocupacional: percursos teóricos e reflexões. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 13(1), 1-8.
  • Castro, E. D., Inforsato, E. A., Buelau, R. M., Valent, I. U., & Lima, E. A. (2016). Território e diversidade: trajetórias da terapia ocupacional em experiências de arte e cultura. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 24(1), 3-12.
  • Chauí, M. (2008). Cultura e democracia. Crítica y Emancipación Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, 1(1), 53-76.
  • Dorneles, P. S., de Carvalho, C. R. A., Silva, A. C. C., & Mefano, V. (2018). Do direito cultural das pessoas com deficiência. Revista de Políticas Públicas, 22(1), 138-154.
  • Elmescany, E. N. M., Piani, I. X., Freire, P. P., & Lima, W. S. (2018). Tecendo fios de ouro numa terapia ocupacional hibridizada com a arte. Revista do NUFEN, 10(1), 146-159.
  • Fancourt, D., & Finn, S. (2019). What is the evidence ou the role of the arts in imprving health an well-being? Denmark: OMS/Europe.
  • Fernández, G. (2008). La diversidad frente al espejo. Salud, Interculturalidad y contexto migratorio. Quito: Abya-Yala.
  • Galheigo, S. M. (2003). O cotidiano na terapia ocupacional: cultura, subjetividade e contexto histórico-social. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 14(3), 104-109. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v14i3p104-109
    » http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v14i3p104-109
  • Galheigo, S. M., Braga, C. P., Arthur, M. A., & Matsuo, C. M. (2018). Produção de conhecimento, perspectivas e referências teórico-práticas na terapia ocupacional brasileira: marcos e tendências em uma linha do tempo. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 723-738.
  • Hall, S. (2017). A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação e Realidade, 22(2), 15-46.
  • Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. (1985). Declaração do México. Recuperado em 20 de julho de 2022, de http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Declaracao%20do%20Mexico%201985.pdf
    » http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Declaracao%20do%20Mexico%201985.pdf
  • Iwama, M., Simó Algado, S., & Kapanadze, M. (2008). En busca de una terapia ocupacional culturalmente relevante. TOG (A Coruña), 5(8), 1-29.
  • Lavacca, A. B. (2018). Atividades musicais e corporais entre jovens e adolescentes na escola pública: pertencimento, subjetivação e cultura (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.
  • Leite, A. S. C., Matos, A. H., Oliveira, I. B. S., & Araújo, L. S. (2013). Enveredando pelos caminhos da arte: a terapia ocupacional na produção de saúde de sujeitos infectados pelo HIV. Revista do NUFEN, 5(1), 64-81.
  • Lima, E. M. F. A. (2003). Desejando a diferença: considerações acerca das relações entre os terapeutas ocupacionais e as populações tradicionalmente atendidas por estes profissionais. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 14(2), 64-71.
  • Lima, E. M. F. A. (2006). Por uma arte menor: ressonâncias entre arte, clínica e loucura na contemporaneidade. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 10(20), 317-329. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832006000200004
    » http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832006000200004
  • Lima, E. M. F. A. (2021). Terapia ocupacional: uma profissão feminina ou feminista? Saúde em Debate, 45(1), 154-167.
  • Lima, L. J. C. (2005). The art of to live and to age with quality: interfaces of the occupational therapy, artistic activities and gerontology (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
  • Morrison Jara, R. (2018). O que une a terapia ocupacional? Paradigmas e perspectivas ontológicas da ocupação humana. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, 2(1), 182-203.
  • Nalasco, L. F., & Martins, D. L. S. S. (2007). Reflexões do uso da arte como recurso terapêutico ocupacional. Revista do Hospital Universitário UFMA, 8(1), 25-27.
  • Nascimento, A. (2016). O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva.
  • Perruzza, N., & Kinsella, E. A. (2010). Creative arts occupations in therapeutic practice: a review of the literature. British Journal of Occupational Therapy, 73(6), 261-268.
  • Phelan, S., & Kinsella, E. A. (2009). Occupational identity: engaging socio‐cultural perspectives. Journal of Occupational Science, 16(2), 85-91.
  • Pino, J., & Ulloa, F. (2016). Perspectiva crítica desde Latinoamérica: hacia una desobediencia epistémica en terapia ocupacional contemporánea. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 24(2), 421-427.
  • Prado, A. C. S. A., Silva, C. R., & Silvestrini, M. S. (2020). Juventudes, trabalho e cultura em tempos de racionalidade neoliberal. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(2), 706-724.
  • Quiroga, V. (1995). Occupational therapy: the first thirty years, 1900-1930 Bethesda: American Occupational Therapy Association.
  • Rubim, A. A. C. (2008). Políticas culturais do governo Lula/Gil: desafios e enfrentamentos. Intercom Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, 31(1), 183-203.
  • Sato, M. T., & Barros, D. D. (2016). Cultura, mobilidade e direitos humanos: reflexões sobre terapia ocupacional social no contexto da política municipal para população imigrante. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 24(1), 91-103.
  • Shimoguiri, A. F. D. T., & Costa-Rosa, A. (2017). From moral treatment to the psychosocial care: occupational therapy in the aftermath of Brazilian psychiatric reform. Interface: a Journal for and About Social Movements, 21(63), 845-856.
  • Siegmann, C. (2018). Passagens, limiares e escrivências: pistas para uma terapia ocupacional inventiva (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
  • Silva, C. R., & Teixeira, D. I. V. (2021). O hip-hop é uma só família: processo criativo, produção cultural e militância. Políticas Culturais em Revista, 14(2), 75-99.
  • Silva, C. R., Cardinalli, I., Silvestrini, M. S., Almeida Prado, A. C., & Lavacca, A. B. (2019). Proposições da terapia ocupacional na cultura: processos sensíveis em contextos sociais. In C. R. Silva (Ed.), Atividades humanas e terapia ocupacional: saber-fazer, cultura, política e outras resistências (pp. 203-224). São Paulo: Hucitec.
  • Silvestrini, M. S. (2019). Terapia ocupacional e cultura: uma curadoria de tessituras entre práticas, políticas, diversidade e direitos (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.
  • Spivak, G. (2010). Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG.
  • Takeiti, B. A., & Vicentin, M. C. G. (2016). Jovens (en)cena: arte, cultura e território. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 24(1), 25-37.
  • Thompson, M., & Blair, S. E. E. (1998). Creative arts in occupational therapy: ancient history or contemporary practise? Occupational Therapy International, 5(1), 48-64.
  • World Federation of Occupational Therapists - WFOT. (2010). Tomada de posição: diversidade e cultura. Recuperado em 20 de julho de 2022, de https://www.wfot.org/resources/diversity-and-culture
    » https://www.wfot.org/resources/diversity-and-culture
  • Zango, I. M. (2017). Terapia ocupacional sociocomunitária. Madrid: Editora Síntesis.

Editado por

Editora de seção

Profa. Dra. Ana Paula Serrata Malfitano

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Nov 2022
  • Revisado
    02 Mar 2023
  • Revisado
    01 Jun 2023
  • Revisado
    06 Jul 2023
  • Aceito
    14 Jul 2023
Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Terapia Ocupacional Rodovia Washington Luis, Km 235, Caixa Postal 676, CEP: , 13565-905, São Carlos, SP - Brasil, Tel.: 55-16-3361-8749 - São Carlos - SP - Brazil
E-mail: cadto@ufscar.br