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Das intenções geniais aos contextos literários reais: um breve percurso das noções de autoria e recepção

From Ingenious Intentions to Real Literary Contexts: a Brief History of the Notions of Authorship and Reception

RESUMO

Este artigo trata das categorias de “gênio” e “intenção” relacionadas à história das práticas literárias no Ocidente. Começando com uma crônica de Nelson Rodrugues sobre a noção de gênio no futebol, suas falhas, erros e malentendidos geniais, questionaremos a possibilidade da intencionalidade autoral ser considerada hoje como um dos elementos básicos da investigação literária, usando conceitos referentes a autoria e recepção nos estudos literários.

PALAVRAS-CHAVE
Literatura; Gênio; Autor; Recepção

ABSTRACT

This paper is about the categories of "genius" and “intention” as related to the history of literary practices in the West. Starting with a chronicle by Nelson Rodrigues about the notion of genius in soccer, its flaws, errors and brilliant misunderstandings, we will question the possibility of authorial intentionality being considered today as one of the basic elements of literary investigation, using concepts referring to authorship and reception in literary studies.

KEYWORDS
Literature; Genius; Author; Reader Response

I

A cena é bem conhecida e faz parte do imaginário esportivo-futebolístico nacional: na copa do mundo de 1970, Pelé viu a bola limpa à frente, no círculo do meio de campo, e, ao ver o goleiro tcheco adiantado, deu um chute por cobertura. A bola passou bem próxima à trave esquerda e entrou para a história como um lance maravilhoso, mas malogrado. A narrativa desta cena nos interessa principalmente pela questão da genialidade em si. Vejamos como é descrita por ninguém menos que Nelson Rodrigues na crônica “O Grande Sol do Escrete”:

Recomeça a partida e Pelé estava ainda no campo brasileiro. Apanha a bola. E, súbito, recebe a visita do próprio gênio. Viu que o goleiro tcheco estava fora de posição, muito adiantado. Fez, então, o que não ocorreria a ninguém. De onde estava, deu um prodigioso tiro de cobertura. A TV, que não sabe fantasiar e tem o escrúpulo da mais exata veracidade, descreveu-nos o lance. A câmera, numa tomada por trás do gol, mostra toda a curva implacável da bola. Por um momento, ninguém entendeu. Por que Pelé não passou? Por que atirava de tão espantosa distância? E o goleiro custou a perceber que era ele a vítima. Seu horror teve qualquer coisa de cômico. Pôs-se a correr, em pânico. De vez em quando, parava e olhava. Lá vinha a bola. Parecia uma cena d’Os três patetas. E, por um fio, não entra o mais fantástico gol de todas as Copas passadas, presentes e futuras. Os tchecos parados, os brasileiros parados, os mexicanos parados - viram a bola tirar o maior fino da trave. Foi um cínico e deslavado milagre não ter se consumado esse gol tão merecido. Aquele foi, sim, um momento de eternidade do futebol. [Publicado originalmente n’O Globo, 6/6/1970] (Rodrigues, 2013RODRIGUES, Nelson. A pátria de chuteiras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.. p. 54)

A história por detrás deste ato interessa, principalmente, pela atribuição de genialidade. Pelé, o gênio, errando uma jogada que todos considerariam ainda mais genial, caso fosse exitosa.

Mas qual a relação que um lance esportivo que não pode ser levado ao cabo poderia ter com o nosso trabalho? Para responder a essa questão, devemos inicialmente recorrer ao menos óbvio de todos os elementos que compõem o fazer artístico literário, sendo também o mais comum deles: o erro. E para fazê-lo, acho, devemos recorrer à história. E a história, quem nos conta é o cronista Nelson Rodrigues: “Eis o que eu queria dizer: - dedico esta crônica aos equívocos que, em certos casos, inauguram a estátua e, em outros, desencadeiam a vaia. Começarei falando de Pelé, o divino crioulo.” [Publicado originalmente n’O Globo, 6/6/1970] (Rodrigues, 2013RODRIGUES, Nelson. A pátria de chuteiras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.. p. 52)

Em sua crônica, da qual já destacamos o trecho anterior, o teatrólogo, e também apaixonado cronista, procura descrever a genialidade a partir não apenas do acerto, como faz a maioria, mas da defesa da ideia de que o gênio, a genialidade também derivam de uma intenção, de uma proposta, de um reflexo, de uma tentativa de fazer algo inusitado, ainda que se malogre: “Disse Rilke que a glória, o que chamamos glória, é a soma de mal-entendidos em torno de um homem e de uma obra. E não só a glória. Também a desonra pode ser outra soma de malentendidos.” (Idem, p.52)

Assim sendo, a soma dos malentendidos ou de uma ideia promissora pode, sim, ser sintoma de genialidade. Mas no seu texto, o autor também defende que os gênios já reconhecidos podem fazer o que bem entenderem, mesmo coisas extravagantes como abrir uma revista, em pleno campo, no meio de uma partida de futebol, porque isso sempre será genial. Nesse caso é-se genial mesmo sendo eventualmente medíocre. É o que pretende dizer na mesma crônica ao anunciar: “naquela tarde, ele foi pouquíssimo Pelé. E, então, começou a fúria popular. A ninguém ocorria que o supercraque não precisa jogar bem. O perna de pau é que tem de se matar em campo. De mais a mais, o gênio pode ter as suas nostalgias da burrice.” E diz mais: “...em qualquer clássico ou pelada, Pelé pode fazer tudo, porque é Pelé. Se abrir a Revista do Rádio no meio do campo, estará usando um dos privilégios do gênio.” (Ibidem. p.53)

Se pensarmos na ideia de genialidade a partir da etimologia do termo, lá na longínqua Arábia, de antes do Corão, veremos que, de certo modo, nosso cronista acerta ao dizer que o gênio pode fazer o que “bem lhe der na telha”. Gênio, “Jinn (em árabe: جن), é uma criatura sobrenatural que tem livre arbítrio, ele pode ser bom ou mau, assim meio sem caráter específico, como nossa divindade amazônica Makunaima/Macunaíma. Em alguns casos, os gênios do mal são vistos como seres humanos extraviados”. Na maioria das vezes, no entanto, são seres dotados de estalos geniais. - Eurekas!2 2 Eureka é uma interjeição que significa “encontrei” ou “descobri”, exclamação que ficou famosa mundialmente por Arquimedes de Siracusa. ... O termo tem a sua origem etimológica na palavra grega “heúreka”, o pretérito perfeito do indicativo do verbo “heuriskéin” que significa “achar” ou “descobrir”. - que os diferenciam de outros seres considerados medianos ou normais. Aliás, a etimologia da palavra craque é muito utilizada no futebol para determinar a figura do gênio - aquele que “quebra todas as defesas”; aquele que de um estalo resolve a partida - e tem sua grafia original na palavra - crack(onomatopeia de estalo em inglês) ou, como propõe o dicionário: “estalo, o que tem capacidade superior”. Nesse sentido é um termo bastante esclarecedor, no sentido de apontar aquele que dá a partida mais rápido, ou tão rápido quanto um estalo, ou aquele que quebra as expectativas e as defesas do time adversário, que pensa rápido, que acha soluções com um estalo de genialidade.

É exatamente esse livre arbítrio, de que nos falam os árabes antigos, essa falta de determinação histórico-social do destino, ou melhor dizendo, a capacidade de suplantar as barreiras da determinação que pode estabelecer a diferença entre o gênio e o ser comum. Isso, e o poder de criar algo a partir de quase nada. Tanto o excesso de poder criativo, típico dos gênios míticos (sem livre-arbítrio), que, quando amaldiçoados ou, por algum sortilégio superior, aprisionados em lâmpadas mágicas, ânforas e outros mecanismos vedados, atendiam os desejos de felizardos como Aladim, quanto a capacidade de fugir ao predeterminado da regras convencionais, daqueles que gozam do controle de suas vontades e destino, fazem do gênio/jinn um ser imprevisível. Daí porque o cronista futebolístico diz que não seria estranho que Pelé, sendo gênio, abrisse uma revista em pleno campo de futebol e se pusesse a lê-la.

Pensando na ideia de mediano/mediania como binômio oposto a gênio/genialidade, veremos que o gênio é aquele que se situa no limite, ou seja, é aquele que, em seus atos criativos, arrisca-se a fugir do convencional, arrisca-se a extrapolar o conhecido, a zona de conforto (da mediania), indo ao periférico, ao estranho, ao mágico, ao bárbaro de outros mundos e soluções - ocultos dos seres medianos pelo seu medo do estranho, pelas suas leis e regras - e de lá trazendo o diferente. É o seu “eureca” gritado a plenos pulmões, a busca de algo que seu livre arbítrio elegeu como um problema a ser resolvido, como uma solução a ser encontrada/achada, por vezes, em milésimos de segundo.

Ademais, segundo Nelson Rodrigues, gênios têm/gozam de privilégios. Dentre esses “privilégios”, que ressalta em seu texto, está a possibilidade de errar e continuar genial. O problema aí, reside no fato de que fracasso e genialidade estão, supostamente, em campos semânticos opostos. O que autorizaria, então, considerarmos alguém que errou, genial? Ou mesmo considerarmos o próprio lance infrutífero como algo genial?

Talvez seja preciso recuar para um pouco antes da consagração da imagem da genialidade, do gênio, romanticamente posto, para entendermos o enredo de elementos que constituem o contexto semântico do termo, na moderna idade pós-romântica. Voltemos, pois à Idade Média e a dois processos instituídos cruciais para a existência e a propagação das artes em geral e da literatura especificamente: o mecenato e a imitatio ou emulação.

II

Pensemos, então, no tempo de antes de Gutenberg e de sua invenção genial: a prensa. Esse objeto que revolucionou os conceitos de reprodução, de circulação e de impressão de um mesmo texto, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, ajudou a ampliar o mercado livreiro. Mas voltemos de olho num outro fenômeno, a ascensão de uma nova classe, que em breve se tornará a hegemônica: a burguesia. E nessa mirada, talvez seja necessário privilegiar um pouco a função do processo econômico e mercadológico na história como um elemento modificador do quadro geral da arte. Tentemos não exagerar nesse bosquejo, que, afinal, não é o ponto fulcral de nossa discussão.

É importante deixar claro, de saída, que esse é um panorama ilustrativo, cuja única função é tentar trazer mais para o centro de nossa atenção a ideia da genialidade, sendo, portanto, um panorama sem maiores pretensões cronológicas, acadêmicas, bastante aligeirado, de modo a não nos desviar muito de nosso foco.

Para tentarmos fazer tal movimento, é preciso identificar dois diferentes modos, do ponto de vista da circulação, produção e difusão de livros e autores a serem considerados, cuja ambiência pode ser mais bem apresentada, quando associados, do ponto de vista econômico, no ocidente, com a ascensão e queda de duas distintas classes: a nobreza e a burguesia. Desta forma, a título esquemático, chamemos o primeiro de “Paradigma nobre” e o segundo de “Paradigma burguês”.

No primeiro ambiente, o paradigma nobre, teremos uma arte ocidental (e consequentemente a produção de textos literários) majoritariamente sustentada pela aristocracia europeia, através do mecenato, patrocinado por reis, príncipes, e demais membros da nobreza cujas famílias, para evitar disputas fratricidas por poder e heranças, compraram cargos na hierarquia episcopal da igreja, ou seja, o alto clero. Esse paradigma terá como base a cópia, tanto no que se refere à reprodução das obras de arte (em particular, no que se refere à produção de livros, que eram copiados à mão página a página pelos monges copistas), quanto no que se refere a modelos. A arte seguia, então, o modelo das guildas e dos artesãos, em geral, que adotavam pupilos, os quais, por seu turno, copiavam seus mestres no estilo e nos modos de compor e produzir. Sua duração, de certo modo abarca a maioria do período medieval da história do ocidente. Sua estrutura, do ponto de vista do modelo criativo, está ancorada na normatização oriunda das poéticas clássicas e nas diretrizes eclesiásticas da idade média e na cópia dos grandes mestres. A esse último processo, imitativo, por natureza, chamamos imitatio ou poética da emulação. Ao outro, o processo de circulação da arte financiado pelos reis, senhores feudais, nobres em geral e pelo alto clero, chamamos mecenato. Ambos, assim como outras características que descreveremos en passant a seguir, deram sustentação ao nosso primeiro paradigma (o nobre).

Durante boa parte desse período, a criatividade consistia em melhorar o modelo dentro das regras vigentes, nunca extrapolando-as. Assim funcionava a imitatio ou emulação. Fator que certamente contribuía para que a arte tivesse mestres e discípulos e funcionasse como modelo precursor das nossas escolas. Daí porque o termo escola é frequentemente associado a ideia de estilo. Imitando os mestres, os discípulos garantiam a permanência de um estilo ou escola por muitas gerações, aprimorando-o, quando possível.

O indivíduo ainda tinha pouca importância como elemento social, especialmente o indivíduo comum, súdito. Obedecia à vontade de seu soberano (que tinha, em geral, poder de vida e morte sobre ele) e boa parte das instituições como as conhecemos hoje, inexistiam, ou tinham um funcionamento totalmente diverso da atualidade. Até mesmo o mercado, situado nas praças externas e adjacências dos castelos, conectado aos burgos, surgidos da atividade dos mercadores que ali viviam, tinha características profundamente diferentes de nossos dias.

O tripé que hoje, segundo Antonio Candido ([1959]1980), no prefácio d’A Formação da Literatura no Brasil: momentos decisivos, sustenta o sistema literário (autor-obra-público) inexistia como tal, porque a literatura como a conhecemos e como conceito também não existia antes do nosso Arcadismo. Roberto Acízelo de Souza dirá que o conceito e a definição de literatura, no ocidente, datam, inicialmente, do século XVIII:

Por esse tempo, assim, o termo literatura começa a circular. Resultou de uma restauração erudita do latim litteratura, neologismo no tempo de Cícero (séculos II-I a.C.), sinônimo da palavra tradicional litterae (letras). Em português, seu registro mais antigo em dicionário data de 1727, mas numa acepção não coincidente com a moderna: literatura lá se define como “erudição ou conhecimento das letras”, tratando-se, pois, de um atributo do indivíduo letrado, do qual se poderia dizer, por exemplo, que “tem literatura”. (Acízelo, 2014. p. 206)

Em função dessa definição mais antiga, é comum que se argumente que quase não havia escritores fora do mundo nobre-filosófico-eclesiástico, ou seja, havia poucos indivíduos que “tinham literatura”. Os leitores eram um pequeno punhado de pessoas, a maioria nobres e eclesiastas, num universo de milhares de analfabetos. Em contrapartida, havia cantadores e contadores, bardos, menestréis, mambembes e artistas ambulantes que iam de castelo em castelo, feira popular em feira popular mostrar e viver de seu trabalho. E isso é o que se pode resumir do mercado de então.

A coletividade, em alguns casos, tinha uma força maior, em contraste com o poder que atribuímos, em nossos dias, ao indivíduo e à subjetividade. Exemplo de como as coisas eram diferentes de nosso dias é o que diz Roger Chartier (1999CHARTIER, Roger. A Aventura do Livro do Leitor ao Navegador: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.), no seu A Aventura do livro do Leitor ao Navegador, que, em função da inexistência de um sistema de ensino como o conhecemos hoje, em função da inexistência de escolas e do alto índice de analfabetismo entre a população, o leitor muito raramente poderia se apropriar de um texto e lê-lo para si, silenciosamente, como fazemos hoje. Tratava-se de imensa falta de sensibilidade, respeito e educação para com os demais circundantes.

Também, pudera, as cópias de livros disponíveis no mercado, dada a demora da cópia à mão, eram raríssimas, e os livros eram pesados, grandes e caros. Somente uns poucos tinha acesso à cultura letrada. Esses, em sua grande maioria, eram os nobres, cujos filhos tinham preceptores em seus castelos e bibliotecas à disposição e alguns burgueses tocados pelas luzes do Renascimento. O leitor comum, o padre, o monge, o bardo, eram, assim como o arauto, figuras públicas que tinham que ler em voz alta, em respeito aos presentes analfabetos, ávidos de novidades. As seções de leitura dos salões da nobreza, quando não se tratava das aulas ministradas pelos preceptores para os filhos dos nobres, quase sempre eram animadas, acompanhadas por música, poetas, bardos, trovadores, menestréis e companhias de teatro, financiados pela nobreza, nos seus saraus.

Do final da Idade Média, por volta de meados do século XV (com a descoberta de novas terras, mercados, jazidas e rotas comerciais), à revolução francesa (marco final da ascensão burguesa), no século XVIII, ocorre um longo processo de declínio do poderio econômico e do prestígio social da nobreza. Nesse ínterim, a prensa é inventada por Gutenberg, em 1455, iniciando o processo gradual de desmonte do que chamamos acima de paradigma da emulação.

Ainda que o panorama que estamos traçando seja aligeirado, é preciso notar que todas essas mudanças e revoluções na cultura não aconteceram de modo imediato, tratando-se antes de processo demorado e contraditório. É que um paradigma, assim como uma classe, demoram a se dar por vencidos e ressurgem, aqui e ali, destacando uma ou mais de suas características e reivindicando um ou mais espaços de hegemonia. Trata-se sempre de uma luta renhida através dos tempos (diria Marx, uma luta de classes!). Assim é que, em determinadas épocas, modelos, teses, teorias e outros elementos são revisitados, trazendo consigo seus signos e seus processos ideológicos embutidos, assim como todo o seu processo dialógico: sua dialogia em termos diacrônicos, diria Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1979BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979.).

Mas, sigamos. Em consequência da decadência da nobreza, pouco a pouco a classe burguesa vai assumindo importantes posições sociais e os nobres vão, paulatinamente, falindo e perdendo seu poder. Na literatura, um fato notável, exemplo de como um processo em suas contradições históricas se reflete ideológica e diretamente na produção artístico literária, com seus renascimentos e reincidências em antigos modelos ou características, é o surgimento já no século XVIII das arcádias. Isso se dá séculos depois de iniciado o processo de ascensão burguesa (no fim da Idade Média), no movimento literário que convencionamos chamar de Arcadismo, e que retoma temas caros à nobreza. As características que se atribuem à poesia árcade, em quase tudo parecem afrontar a burguesia, já, então, francamente hegemônica: a fuga das cidades para o campo - contrária à índole burguesa, ligada aos grandes mercados e à urbe; a predominância do verso; a imagem do bon sauvage (resgatado em Rosseau, pregando a necessidade da ausência de ambições). É talvez o último canto do cisne-nobreza na sua tentativa de permanência ideológica, num século que trará consigo o derradeiro e definitivo golpe burguês, marco da revolução burguesa: a queda da Bastilha, em 1789.

De modo geral, é preciso pontuar, correndo o risco de parecer generalista, que os burgueses, de modo geral, nem sempre tiveram grande afinidade com os poetas, músicos e escritores. A origem desse preconceito, entre mercadores, talvez date de um tempo muito anterior ao surgimento dos burgueses europeus, no tempo em que imperava a moral dos primeiros mercadores do Oriente, presente nas fábulas das mil e uma noites, transposta no ocidente, desde os áureos tempos de Esopo. Basta ler a Cigarra e a Formiga para entender o porquê desta aversão pela arte (ou, olhando a questão por outro ângulo, mais culto, leia-se Platão, que não queria os poetas em sua República3 3 Sócrates declara a Glauco: “O de não admitir em nenhum caso a poesia imitativa. Parece-me mais do que evidente que seja absolutamente necessário recusar admiti-lo, agora que estabelecemos uma distinção clara entre os diversos elementos da alma” Platão. A República. p. 424. ). O fato é que fosse pelo que fosse, de modo geral, a poesia se configurava para o burguês como um luxo perverso, e os poetas, nessa concepção, tocados pelo dom das musas (e não pelo esforço próprio), eram desocupados sem profissão que não valia a pena sustentar; não da mesma forma como os nobres o faziam, para seu próprio deleite, via mecenato.

Para a classe que, em sua maioria, de início, poucas letras tinha, que preferia o prático ao estético da retórica e da arte, que havia se criado no mundo do trabalho, que abominava a inspiração e cultuava o suor, o artista em geral, não merecia nenhum centavo de seus bolsos. Por outro lado, com a ascensão burguesa, tangida inicialmente pela revolução comercial-mercantilista e mais tarde pela revolução industrial, os nobres estavam aos poucos desaparecendo, e com eles, o mecenato que sustentava a classe artístico-literária. Ainda assim, embora carecesse de refinamento, a classe ascendente procurava assumir esses espaços de poder simbólico, impondo-se também pelo consumo de bens da alta cultura.

Restava, então, encarar o mercado, tal como ele começava a se reconfigurar e conquistar o burguês. Assim como, ao burguês, a busca por esses bens e luzes equivalia a uma forma de afirmação social. E esse foi um processo de trocas simbólicas longo e demorado. Tão demorado e acidentado, prenhe de revoluções, “mortes” e erros “geniais”, quanto a conquista da hegemonia política e econômica pela classe ascendente. O processo de mudança, como a moeda, tinha duas faces: o poeta/escritor e o público. O Romantismo é o momento em que essas trocas entre ambas faces da moeda parecem se estabilizar.

Há, no filme Amadeus - que trata da vida de Mozart (que, para nossos estudantes de graduação, merecia ser exibida e reexibida todo semestre no qual se fosse falar sobre mecenato), cenas, nas quais se mostra o comportamento do compositor em dois diferentes cenários: entre os príncipes da nobreza (que o sustentavam), nos salões, e no teatro popular, para o qual convergiam os burgueses em busca de diversão barata, simples, paródica e picante. A diferença, na produção musical é grande.

No filme, dirigido por Milos Forman, em 1984AMADEUS. Direção de Milos Forman. Holywood: 1984. (161 min.)., com roteiro escrito por Peter Shaffer, esse ficcional Mozart, sob os olhos atentos de seu rival, se diverte, sendo efusivamente aplaudido pelos presentes, num teatro de baixa extração, zombando parodicamente dos empolados compositores, seus contemporâneos. De certo modo, a cena ilustra, ao enfocar o público que lotava o teatro em delírio, o desprezo que a classe média e parte da burguesia votavam aos grandes compositores (ainda sustentados, na corte vienense, pelos príncipes) e por suas rebuscadas composições.

Aparentemente a solução encontrada para vender arte/literatura foi que os artistas, em especial os românticos, começam a pensar mais no leitor/público. E pensando no público, descobriram definitivamente, inclusive, o nascente público feminino. Os burgueses, já nesse momento, eram tidos como leitores ideais e como pessoas cujos interesses eram semelhantes aos da corte, mesmo que um pouco mais caricatos ou simplificados. Todavia, é preciso que se diga que esse não foi um processo que abarcou especificamente apenas escritores e seu público. Não. Os editores, os livreiros, os periodistas, os donos de jornais e magazines, todos os envolvidos começam a prestigiar uma linguagem mais próxima do vulgo, migrando, aos poucos, para tentar entender o gosto do leitor. E esse, tinha um tipo ideal.

Discutindo a abrangência das teorias que dão voz ao leitor ideal, José Luís Jobim em A poética do Fundamento, destaca que:

Uma certa interpretação das obras de Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss, teóricos com quem Ricoeur dialoga em Temps et récit, pode conduzir a uma visão peculiar da relação entre autor, texto e leitor. O autor criaria o texto a partir dos meios e modos de produção de sentido disponíveis no momento da criação, pressupondo um leitor que seria capaz de entender em toda sua extensão aquilo que ele escreveu. Como visa a esse leitor ideal, geralmente seu contemporâneo, a estratégia de criação textual pressupõe o domínio, por parte desse receptor, de um repertório para decodificar os meios e modos adotados pelo autor. Em outras palavras, o autor prevê um leitor ideal, capaz de refigurar o que foi configurado. (Jobim, 1996JOBIM, José Luís. A Poética do Fundamento. Niterói: Eduff, 1996., p. 47/48)

O autor d’A Poética do Fundamento, vai ressaltar que essa interpretação não caberia em nossa época porque: “Cria[ría]mos uma esfera normativa, ainda que não o declaremos, pois a leitura ideal passa[ria] a ter o peso de norma padrão, a partir da qual as outras são[seriam] vistas como desvios” (Jobim, 1996JOBIM, José Luís. A Poética do Fundamento. Niterói: Eduff, 1996., p.48)

Não esqueçamos, porém, que embora a afirmativa esteja em tudo correta, esse não era o entendimento do público da época, autores, críticos, leitores, e que, a figura do leitor ideal, antes de meados do século XX, era cultuada e festejada por autores e professores de literatura nas salas de aula de então.

Tanto é que em algum romântico momento, entre o fim da Idade Média e o século XX, a ideia foi considerada um avanço, no sentido de permitir que cada autor elegesse seu estilo, seu leitor ideal. Foram precisos séculos até se cambiar a hegemonia da produção literária publicada para a prosa, por exemplo. Até se perceber que o verso, a poesia, em literatura, no teatro, e nas demais artes, pela concisão, pela necessidade da métrica, do ritmo, da rima e dos demais elementos que configuravam a narrativa em verso, eram por demais difíceis de dar a ler (e comprar e vender). A menos, é claro, que se tratasse do verso das feiras, do repentismo de bardos e menestréis populares - esses, aos poucos, cada vez mais empurrados para o que hoje conhecemos como cordel, poesia popular, também alcunhada, por anos de “literatura de baixa extração”. O poema, e principalmente, o verso, objeto dessa revisão paulatina, no entanto, não morre, ele se reinventa, deslizando aos poucos para o segundo plano, em termos de consumo.

Ao longo dos séculos, depois da Idade Média, os escritores, cada vez mais, começaram a dar preferência aos escritos em prosa. Nada mais de inversões de sujeito e objeto, nada mais de linguagem rebuscada e do estilo empolado dos salões cultos. Seu leitor ideal, imaginavam, preferia a prosa. Os editores, por seu turno, passaram a investir fortemente na tendência em prosa. O mercado voltava suas preferências à prosa e se ampliava para outros públicos. Periódicos e folhetins foram aos poucos assalariando autores e conquistando leitores. Essa tendência à profissionalização se torna definitiva no período Romântico. Narrativas diretas, cujo suspense mantinha os leitores ao pé da página, ou do ouvido, como bem supôs Sheherazade, muitos séculos antes disso, ao tornar Shariar seu mais fiel ouvinte.

A submissão aos valores do mercado, porém, criava uma expectativa: as narrativas em prosa (mesmo os textos líricos, em verso) e a criação artística de modo geral, deveriam ter algum elemento distintivo, algo que as tornasse extraordinárias, objetos únicos, e cada vez mais os artistas se empenharam em buscar as novidades da forma, do tema, as reviravoltas e surpresas.

Claro está, que mesmo migrando através dos tempos de um modelo para outro, a literatura, equivale dizer, artistas, poetas em geral não poderiam descartar completamente as práticas produtivas, os modelos e mesmo o conjunto do paradigma anterior. Isso, segundo Michael Löwy (1988LÖWY, Michael. As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 6ªed. São Paulo: Cortez, 1988. ), equivaleria a arrancar-se do atoleiro, pelos próprios cabelos, com cavalo e tudo, tal e qual o velho Barão de Münchhausen, como tentaram os cientistas positivistas evocando a neutralidade para si. Mário de Andrade, já em plena modernidade, no Prefácio interessantíssimo endossa essa posição: “E desculpem-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem.” (Andrade, 1980ANDRADE, Mário de. Prefácio Interessantíssimo [Paulicéia Desvairada]. In: Poesias Completas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 17-31 (pdf). p. 17)

A tradição artístico-literária, isto é, toda a arte-literatura produzida até então, ainda que como objeto de críticas, ou, como modelo enraizado no aprendizado das novas gerações, permanecia como processo a ser aprendido e ensinado, canonizado, ou execrado, em alguns casos. O que mudava era o processo de produção e a rejeição de uma cópia direta de modelos pré-determinados (normativos). Isso, muito embora, alguns mais radicais, tenham decretado, aqui e ali, a morte da tradição. Querelas entre antigos e modernos não faltaram e posições extremadas, tampouco.

Para Acízelo, “A partir do século XIX o Romantismo faz ruir a preceptística que assinalara épocas anteriores - Baixa Antiguidade, Idade Média, Classicismo Moderno” (Acízelo, 2018. p. 19). O autor argumenta que:

(...) na sua prática, os escritores românticos partem da premissa de que a obra literária constitui criação singular de um indivíduo dotado de genialidade, razão pela qual não seria possível conformá-la a um receituário. Com isso, rejeitado o normativismo, a reflexão sobre as letras e seu cultivo torna-se francamente especulativa, favorecendo o desenvolvimento das mais diversas teorias, empenhadas tanto em reinterpretar as obras antigas, como em propor explicações adequadas para os rumos da produção literária romântica e pós-romântica, crescentemente múltiplos e destoantes dos padrões clássicos. (Acízelo, 2018. p. 20)

Para o autor de Teoria da Literatura: trajetória, fundamentos, problemas, essa nova fase dos estudos literários vai adquirir um caráter diferente por se tornar mais descritiva que propositiva. Descritiva porque destaca modos e forma, a partir daquilo que foi criado, descrevendo-o. Esse método que tenta entender um escrito após sua publicação, abre espaço para o surgimento de inúmeras teorias, tantas quantas necessárias para que se consiga explicar essa nova forma de conceber e seus frutos. Para o autor esse é também o momento em que se inauguram os modernos sentido e estudo da literatura.

Talvez seja importante destacar que o processo não abrange apenas os chamados críticos. A seu modo, escritores e poetas também são influenciados pelo surgimento dos estudos literários incorporando parte de sua retórica. A linguagem dos manifestos, assim como boa parte da realização metapoética desses autores, pode ser considerada influenciada diretamente pelos estudos literários.

José Luís Jobim, vai destacar como desdobramentos do subjetivismo dois aspectos: “1) a visão do autor como gênio e; 2) a expectativa de originalidade.” (Jobim, 1999JOBIM, José Luís. Subjetivismo. In: Jobim, José Luís (org.) Introdução ao Romantismo. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999. p. 133-142 p.133), indicando: “A visão do autor como gênio - diferente do comum dos mortais - é uma das pedras de toque do Romantismo. Através dela se justifica para o leitor a estética da expressão do eu autoral. Essa estética valorizava o texto como manifestação das ideias e emoções do escritor.” (idem, p.134) Jobim destacará na sequência a relação entre a individualidade/originalidade e a genialidade como intrínseca: “O seu nome na capa do livro poderia ser visto como a demonstração da sua responsabilidade pela criação, ou como marca da autenticidade da obra - uma garantia de originalidade.” (ibidem, p.134)

Chegamos, pois, à ideia de genialidade e ao nascimento do gênio como ser especial, acima da média, digno de ser lido por todo e qualquer leitor. O gênio é, portanto, o distintivo, ele é a marca de um modelo que privilegiava a individualidade; marca da afirmação da recém-nascida subjetividade como emblema desses novos tempos. Só o gênio pode oferecer ao mercado um produto exclusivo, algo que só ele é capaz de produzir, uma marca, um estilo, em última instância o equivalente romântico de nossa moderna griffe.

Claro que, por se tratar de processo histórico, diacrônico, complexo e sujeito à realidade de cada lugar, não houve homogenia nem mesmo na Europa, nem estalos, nem caminho direto para essa condição. José Luís Jobim dirá, sobre a permanência dessa ideia entre nós, ainda em nossos dias, que: "Dentre os sentidos mais pontuais ou de duração menor, poderíamos citar a idéia do autor como gênio que expressa no texto a sua subjetividade privilegiada, que fez parte da ideologia romântica e ainda permanece como um certo substrato de sentido nos dias de hoje" (Jobim, 2002JOBIM, José Luís. Formas da Teoria: sentidos Conceitos, Políticas e Campos de Força nos Estudos Literários. Rio de Janeiro: ed. Caetés, 2002.. p. 144). Ou seja, um passo para frente aqui, dois atrás ali, uma característica mais progressista acolá, outra menos aqui, permanência e ocultação/esquecimento, assim caminhou a humanidade de modo lento em direção ao novo modelo, o mercado. E nesse pari passu autor tornado gênio; gênio tornou o leitor.

Mas em que consistia a genialidade do leitor? Simples: consistiria em ser único, em sentir, em interpretar, em construir uma subjetividade tão única quanto a grife do autor. Ele só não sabia disso ainda (mas saberá, quando chegarmos aos meados do século XX).

A subjetivização da produção, passa, pois, pela busca de novidades e da superação de fronteiras. O artista romântico, em geral, se torna uma espécie de escravo da própria genialidade/criatividade, tendo que oferecer ao mercado sempre mais e mais exclusividade subjetiva. Isso é que o torna um gênio ao mesmo tempo em que modifica o panorama da arte a cada momento, na busca do novo e da novidade; na quebra de expectativas; na abolição gradual de um modelo de cópia, cambiado pela nova força motriz paradigmática, a criatividade. A essas mudanças constantes, nenhuma normativa, nenhuma normatização é capaz de abranger. Principalmente quando o cenário produtivo se fragmenta em fractais cada vez mais rápido, criando novas categorias, hibridismos, e outras situações mais.

As constantes modificações, permissões e aprimoramentos, tanto da forma, quanto da temática, no entanto, além de acelerarem a entrada em cena de novos modelos, escolas, períodos, cada vez mais vertiginosamente, em espaços menores de tempo, constituíam um empecilho para que esse novo paradigma fosse compreendido como uma tradição e se pudesse lê-lo a partir de uma organicidade. Acostumada, desde os áureos tempos da oralidade, à tradição normativa como descortinadora dos mistérios dos poetas e dos profetas, essa humanidade ocidental bem específica, carecia, agora, de regras e de uma normatividade que explicasse a genialidade transformada em obra. Simplesmente, à medida em que mais se avançava era moderna adentro, parecia não haver uma regra, parecia não mais haver uma chave de leitura.

Em contrapartida, Roberto Acízelo de Souza, em seu artigo intitulado: “A confluência literatura / educação: suas realizações históricas” assinala, em relação à normatividade literária e sua relação com a educação, na Grécia antiga, que:

Espécie de suporte rítmico e bem embalado para a circulação dos mitos etiológicos e das regras para se viver, os poemas constituíam fonte de conhecimento e sabedoria, respondendo, pois, pela formação cultural dos antigos helenos. A partir de certo momento, além da poesia outras práticas letradas - a oratória, a história e a filosofia - passariam a integrar tal fonte, que, devidamente assimilada, concretizaria a paideia, isto é, a educação do indivíduo, a plenitude de sua formação cultural. (Souza, 2018SOUZA, Roberto Acízelo Quelha de. Teoria da Literatura: trajetória, fundamentos, problemas. Biblioteca Humanidades. São Paulo: É Realizações, 2018;. p. 206)

É a norma, a Paideia, que regula o fazer literário durante boa parte da antiguidade clássica e boa parte da Idade Média. Com o passar dos séculos, porém, e a aproximação do Romantismo a ausência de certa normatividade da produção fica evidente nos autores cuja presença do subterfúgio metapoético é mais pronunciado. Em muitos aspectos, os artistas/escritores que fomentaram, com sua constante produção de novidades geniais, a reflexão sobre a forma de apresentação de sua arte (se adotavam prosa ou verso, se a propunham mais elaborada ou mais compreensível, se mais pessoal ou mais coletiva, etc), não tendo que seguir à risca modelos pré-determinados, passaram a se apoiar mais no recurso textual da explicação de seu fazer literário via metapoética e a incorporá-la, aos poucos, cada vez com mais frequência em seus textos.

Mikhail Bakhtin, em 1929, e Júlia Kristeva, em 1966, utilizaram-se, respectivamente dos conceitos de dialogia e intertextualidade, para indicar o modo como esses novos escritores marcavam seus próprios lugares na corrente da tradição, trazendo para dentro de seus textos os textos referência de suas leituras e/ou formação.

Deste modo o leitor poderia entender não apenas o teor literário-ficcional dessas novas formas de narrar, mas também ter acesso ao modo de produção, ao livro de regras internas desse ou daquele escritor, desse ou daquele escrito em particular. Desse modo, os escritos, cada vez mais, com o passar do tempo, passaram a conter suas próprias regras de produção, ou uma ou outra questão teórica em seu bojo, além de sua filiação literária. Embora aparentemente morta, a poética da emulação deixava seus rastros na modernidade: o poeta, agora, introduzia em seus textos elementos de outrem, sua própria história social, suas leituras, e as dicas de como produzia. Isso, quando não apelava diretamente para o manifesto, almejando a criação deste ou daquele movimento e explicitando suas regras e proposta.

III

Vejamos a seguir três exemplos distintos de como esse manual de regras individualizado (e não mais uma norma coletiva) é apresentado ao leitor, diretamente pelo autor, de forma diferente a cada produção. Nesse caso, saídos da pena de autores considerados a seu tempo (e ainda hoje) como geniais. No primeiro exemplo (Poe), o escritor busca demonstrar a existência do artifício da criação a partir de pressupostos teóricos e metodológicos, em um ensaio à parte do texto e posterior à publicação deste. No segundo exemplo (Machado), há momentos em que o processo extrapola a trama de modo a colocar o leitor em crise, ao invés de clarificar seu entendimento do texto, isso embora os diálogos encetados pelo autor se dirijam ao leitor, provocando-o, atualizando-o, incitando-o. O terceiro exemplo (Bilac), é o mais intratextual dos três, e, de certo modo, o mais característico representante de uma ação metapoética.

Edgar Allan Poe, no belíssimo texto A Filosofia da Composição, no qual analisa seu próprio poema O Corvo se utiliza de um misto de manifesto, ensaio e de tese interpretativo-analítica, apartada do texto literário. Ou seja, um estudo descritivo dos procedimentos de composição dado pelo próprio autor, dando a entender a seu público que tudo na construção desse texto poético é fruto de um trabalho amplamente projetado, artificiosamente pensado, antecipado:

Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista, por um autor que quisesse, isto é, que pudesse pormenorizar, passo a passo, os processos pelos quais qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de acabamento. Por que uma publicação assim nunca foi dada ao mundo é coisa que eu não sei explicar, mas talvez a vaidade dos autores tenha mais responsabilidade por essa omissão do que qualquer outra causa. Muitos escritores, especialmente os poetas, preferem ter por entendido que compõem por meio de uma espécie de sutil frenesi, de intuição estática; e positivamente estremeceriam ante a ideia de deixar o público dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e trabalhosas do pensamento, para os verdadeiros propósitos só alcançados no último instante, para os inúmeros relances de ideias que não chegam à maturidade da visão completa, para as imaginações plenamente amadurecidas e repelidas em desespero como inaproveitáveis, para as cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e interpolações; numa palavra, para as rodas e rodinhas, os apetrechos de mudança no cenário, as escadinhas e os alçapões do palco, as penas de galo, a tinta vermelha e os disfarces postiços que, em noventa e nove por cento dos casos, constituem a característica do histrião literário. (Poe, 1999POE, Edgar Allan. A Filosofia da Composição. In: http://www.eniopadilha.com.br/documentos/ Platao_A_ Republica.pdf. Poemas e ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. São Paulo: Globo, 1999.
http://www.eniopadilha.com.br/documentos...
)

Até mesmo as reações do seu leitor médio, ao se deparar com esse ou aquele aspecto, na construção gradual do clímax do poema, são objeto da discussão que Poe elenca para a produção de seu poema mais conhecido:

Parece evidente, pois, que há um limite distinto, no que se refere à extensão para todas as obras de arte literária, o limite de uma só assentada, e que embora em certas espécies de composição em prosa, tais como Robinson Crusoé (que não exige unidade), esse limite pode ser vantajosamente superado, nunca poderá ser ele ultrapassado convenientemente por um poema. Dentro desse limite, a extensão de um poema deve ser calculada, para conservar relação matemática com seu mérito; em outras palavras, com a emoção ou elevação; ou ainda em outros termos, com o grau de verdadeiro efeito poético que ele é capaz de produzir. Pois é claro que a brevidade deve estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido, e isto com uma condição, a de que certo grau de duração é exigido, absolutamente, para a produção de qualquer efeito. (Poe, 1999POE, Edgar Allan. A Filosofia da Composição. In: http://www.eniopadilha.com.br/documentos/ Platao_A_ Republica.pdf. Poemas e ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. São Paulo: Globo, 1999.
http://www.eniopadilha.com.br/documentos...
)

Como podemos ver, Poe ressalta haver um efeito de sentido, cuja intensidade dependerá do tamanho do poema e de outros elementos que vai elencando ao longo do ensaio. Isso coloca a destreza do autor, em alcançar esse efeito, em primeiro plano, eliminando quase que por completo o auxílio das musas. O fazer poético se torna marca da individualidade, como se não houvesse toda uma tradição dialógica, segundo Bakhtin (1979BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979.) a ser incorporada ao ato criativo.

Mas, se não houvesse a tradição, se apenas a individualidade genial fosse responsável pela criação, como poderia Poe saber dos efeitos de sentido pretendidos por ele antes de compor o poema?

Há, também, entre muitos outros, no Brasil, o caso extremo de Machado de Assis, que enceta grandes diálogos com seu leitor, de modo didático, como comprovam Lajolo e Zilberman (1996LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. A Formação da Leitura no Brasil. Série Temas, Nº 58. São Paulo: Ática, 1996. ) n’A Formação da Leitura No Brasil, invadindo, com suas digressões, o espaço extra-diegético. Todas essas formas são diferentes manifestações metapoéticas, auto-explicadoras do processo de produção das obras em questão, necessárias à condição de intencionalidade autoral.

Há, ainda (para nos fixarmos somente em três), o caso do Profissão de Fé, de Olavo Bilac (2002BILAC, Olavo. Poesias. São Paulo: Martin Claret, 2002.), em que essa manifestação da forma, do modelo de composição, de um projeto de crença autoral, faz parte do texto poético-literário em si. Aliás, sobre o Profissão de Fé, destacamos alguns trechos nos quais o poeta professa sua fé, indicando para seu leitor que sua poesia decorre do suor e do trabalho, contradizendo os que insistem em crer, em pleno XIX, quase XX, que se trata de mistificação, fruto do hálito das musas (inspiração) e do ócio do poeta:

(...)Torce, aprimora, alteia, lima A frase; e, enfim, No verso de ouro engasta a rima, Como um rubim. Quero que a estrofe cristalina, Dobrada ao jeito Do ourives, saia da oficina Sem um defeito: E que o lavor do verso, acaso, Por tão subtil, Possa o lavor lembrar de um vaso De Becerril. E horas sem conto passo, mudo, O olhar atento, A trabalhar, longe de tudo O pensamento. Porque o escrever - tanta perícia, Tanta requer, Que oficio tal... nem há notícia De outro qualquer. Assim procedo. Minha pena Segue esta norma, Por te servir, Deusa serena, Serena Forma! (...) (Bilac, 2002BILAC, Olavo. Poesias. São Paulo: Martin Claret, 2002., p. 14)

O poeta considera importante frisar que se trata verdadeiramente de um ofício dos mais difíceis, daqueles que “tanta perícia,/ Tanta requer, /que ofício tal... nem há notícia/ De outro qualquer.”, afastando por completo a possibilidade de se tratar de algo alcançado pela inspiração. Assim, Bilac acredita não apenas marcar no leitor seu estilo de compor, mas preencher uma lacuna, (re)estatuindo a “profissão” de poeta pelo suor, pelo esforço do trabalho. Esse estatuto, que também é sua crença pessoal (fé), decorre de um ato metapoético, que busca discutir a arte/literatura/poesia por outro prisma, o de uma outra arte, essa sim, valorizada pelo mercado consumidor como trabalho efetivo: a ourivesaria. Consideramos o texto de Bilac o exemplo mais intratextual porque a explicação sobre o fazer poético é o tema central no poema em tela.

De modo geral, nas escolas de Ensino Médio, nas disciplinas que estudam nossos poetas e autores, dá-se a essa característica, na qual se utiliza uma arte para falar de outra, o nome de arte-pela-arte. De fato, trata-se de um nome adequado, o problema é que a explicação que se dá é apenas de que um poeta incorre no uso dessa técnica quando cita uma outra arte em seu poema, como se citando uma outra arte, avulsamente, ao longo de seu poema, fosse capaz de desenvolver uma técnica tão complexa.

Olhando o poema de Bilac, percebemos haver mais que isso. A ourivesaria é uma arte, originalmente escultórica, que trabalha com metais raros (ouro, prata), ligas metálicas delicadas (platina) e pedras preciosas. Seu valor, está tanto na obra de arte final, decorrente do processo artístico de moldagem/engaste/lapidação, que agrega valor pela manufatura/manipulação desses materiais, quanto e, principalmente, pelo valor de mercado da matéria prima. Daí ser uma arte de mercado, daí ter um valor ideológico inquestionável até mesmo para o mais cético dos burgueses.

O que Bilac faz, com seu arte-pela-arte é explicar o valor de sua arte, o trabalho que dá concebê-la, brindando o seu público com um exemplo prático: a alteração do termo “rubi” para “rubim”, em “Torce, aprimora, alteia, lima/ A frase; e, enfim, /No verso de ouro engasta a rima,/ Como um rubim”, optando pela forma fonética do termo, de modo a construir sua rima perfeita com “enfim”. É o artifício exemplar de como ele e o ourives constroem seus respectivos poema/joia. Artes similares, artes que se explicam sem mistificações, apenas método e metapoética e muita perícia, para não estragar materiais tão caros e de tanta responsabilidade.

Esse modelo metapoético/metalinguístico, já presente em textos literários desde um pouco antes do romantismo estimula o primado da autoria sobre os sentidos do texto, e sobre o modo como um texto deveria ser lido. Esse modelo seria, mais tarde, gradualmente suplantado pela entrada em cena dos textos fundadores da estética da recepção, em especial A Morte do Autor, de Roland Barthes (1967), e A Obra Aberta (1968ECO, Umberto. A Obra Aberta. Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva, 1968.), de Umberto Eco. No entanto, enquanto a vigência do modelo de produção com base na autoridade do autor sobre os sentidos do texto era hegemônica, abriu caminho para que mercado e, consequentemente, leitor passassem a acreditar na ideia de que por trás de um bom texto, sempre haveria um excelente autor e, portanto, um gênio. E, que por trás da genialidade criativa de um gênio, haveria um projeto, uma proposta, uma intenção a ser estudada e descrita.

Era em função da crença nessa intenção, nesse projeto que durante décadas foi perseguida (por professores e alunos, em muitas escolas), a resposta para a pergunta: O que o autor teria querido dizer?, pois importava mais saber o que o gênio oracular dissera, do que o que poderia ter sido compreendido pelo leitor/aluno.

Mais do que atormentar algumas gerações com a pergunta fatídica sobre o que teria querido dizer o autor com aquele texto (até hoje vigente em alguns cursos e vestibulares por aí!), a ideia de que deveria haver um projeto, uma fagulha, uma intenção por detrás de todo gênio criativo, atormentou também (e talvez principalmente) poetas e escritores em várias partes do globo. Era preciso, por conseguinte, ter uma proposta, um projeto, uma “Filosofia da composição”? E talvez - nos cursos de Letras - fosse necessário saber descrever tecnicamente esse projeto, essa proposta autoral, essa “Filosofia”?

O gênio, tido como aquele capaz de desequilibrar, parece conviver quase pacificamente com o primado do leitor, ainda em nossos dias. Aqui temos, segundo nosso cronista Nelson Rodrigues, o Pelé, mais uma vez, cuja intenção não se lhe adivinha, chutando, de seu campo, uma bola aparentemente inocente, visando o nada... E para quê? Para contrariar as expectativas. Para pegar o adversário desprevenido. Para contrariar a ordem estabelecida pelo ritmo da partida, tornando desiguais os procedimentos: desequilibrando o jogo. Isso, de algum modo, talvez explique o fascínio que nossa sociedade tem, ainda em nossos dias pelos que se põem acima da lei ou fora dela: nossos anti-heróis geniais.

Digo, “ainda em nossos dias” pensando na instituição da figura do gênio (esse anti-herói contrário às expectativas) como um fenômeno romântico, portanto, de certa forma ultrapassado pela modernidade das vanguardas e pela pós-modernidade das pós-vanguardas, ou não?

IV

O que importa para nosso trabalho o fato de Nelson Rodrigues acreditar, ainda nos anos 70 na figura do gênio? Nós que já conseguimos (a duras penas) matar nossos gênios-heróis de overdose (como dizia Cazuza) de leituras e leitores, porque precisamos nos perguntar se há/houve genialidade nos autores que pesquisamos atualmente? Que relevância teria atribuirmos laivos, ou mesmo genialidade plena, a um autor em nossa era de sentidos co-construídos, no primado do leitor?

Não cremos que as posições entre o projeto de uma obra e a leitura polissêmica que possa ser feita dela, por outrem, sejam assim tão antagônicas. Mesmo Umberto Eco, anos depois do lançamento de A Obra aberta (1968ECO, Umberto. A Obra Aberta. Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva, 1968.), considerou que havia Os Limites da Interpretação (1995) e que esses, uma vez ultrapassados, apesar de acrescentarem significado ao texto, o faziam recriando, ou melhor, criando algo novo, que não pertencia à obra em si, mas interagia com ela.

Se, por analogia, é certo que desejar o amor de alguém não equivale, na prática, a tê-lo, também é certo que pelo menos por uma das partes existiu o desejo. E esse desejo o que pode configurar além de um projeto, de uma proposta de convívio amoroso? Em boa parte, o sucesso de uma empresa amorosa só pode ser medido pela capacidade do apaixonado, que a propõe, de convencer, de seduzir, de envolver seu/sua amado(a) nela.

Abusando um pouco da analogia, pode ser que sua contraparte, seu/sua leitor(a)/amante entenda a proposta apenas como flerte, como uma relação sexual pontual, ou como um romance tórrido, podendo recusá-la parcial ou totalmente, bem como, aceitá-la nas mesmas condições. O que podemos dizer de efetivo, é que se trata de empresa ambiciosa, uma vez que envolve muitos(as) parceiros(as) na sua contraparte. E talvez por isso possamos considerá-la promíscua; morta nunca.

Saberemos, em boa parte das situações apontadas na analogia, quando ela lograr os êxitos que pretende, pela aclamação que receberá de ambos, autor e leitores. No entanto, assim como Pelé, em seu “tiro genial”, algo pode não sair como planejado. Como classificar então nosso enamorado propositor e sua proposta?

Uma das vantagens da fragmentação do discurso histórico e do constante questionamento a que se sujeitou o discurso histórico oficial, é a de que a verdade dos fatos não pertence apenas aos vencedores. Mesmo narrativas cujo teor tem como perspectiva a história dos vencidos, têm relevância histórica. Significa dizer que mesmo a história do mais insignificante dos seres deve ser levada em consideração, se pretendemos entender um fato a partir das múltiplas narrativas que o circundam e definem.

Nesse caso interessa saber o que acontece com os pretendentes à genialidade que ousam tentar extrapolar os limites do mediano, da regra, da cópia, dos malogrados, esquecidos pela história. Tinham um projeto? Uma proposta genial ou não? Que destino é dado a essas proposições de livre arbítrio (entendendo arbítrio como regra imposta a todos, leis naturais, etc. e livre-arbítrio como seu oposto, ou seja, liberdade para extrapolar esses limites), esses arroubos de gênio, cujo resultado não é exatamente o desejado “eureca”?

A aspiração à genialidade, uma vez frustrada, parcial ou totalmente, não confere a seu formulador a categoria de gênio, mas, o fato em si, num polissêmico mundo de vencedores, nada vale? O projeto por detrás da busca, a perseguição da resposta ao problema auto imposto, o desenvolvimento de uma técnica (ainda que equivocada), de um modelo, o esforço criativo, nada disso é importante? Mas, se, segundo Nelson Rodrigues, até os gênios podem ser medíocres, de vez em quando, o que pode diferenciar um caso do outro? O contexto?

Olhem Pelé, examinem suas fotografias e caiam das nuvens. É, de fato, um menino, um garoto. Se quisesse entrar num filme de Brigitte Bardot, seria barrado, seria enxotado. Mas reparem: - é um gênio indubitável. Digo e repito: - gênio. Pelé podia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão: - “Como vai, colega?” De fato, assim como Miguel Ângelo é o Pelé da pintura, da escultura, Pelé é o Miguel Ângelo da bola. Um e outro podem achar graça de nós, medíocres, que não somos gênios de coisa nenhuma, nem de cuspe a distância. [Publicado originalmente em Manchete Esportiva, Anuário de ouro, Edição especial, janeiro de 1959] (Rodrigues, 2013RODRIGUES, Nelson. A pátria de chuteiras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.. p.38)

A equiparação a Homero, Miguel Ângelo e Dante sugere a presença da arte nessa genialidade. A temporalidade e a relação desses escritores com ela, parece ser um fator preponderante na questão. Bem se vê que Nelson Rodrigues, ao dizer que um gênio como Pelé tudo pode, já tem claro, de antemão, que esse Pelé é gênio, não importa o que ocorra. Mas, se assim é, já estamos falando do consagrado, de algo dado e reconhecido por quase todos, ou seja, do passado. Pelé já era gênio quando sua genialidade é, mais uma vez, posta à prova, com um tiro incerto contra a meta da Tchecoslováquia.

Então, o gol que não fez, é mais um ato de genialidade, no entanto, malograda. Mas, o que torna esse ato genial, mesmo sem o êxito esperado? A plasticidade estética da curva caprichosa que a bola fez? A proposta/intenção impensável de dar um chute surpreendente? Certamente não se trata da técnica, posto que essa falhou. Ou, o ato em si não importa, desde que tenha tido origem no gênio já consagrado? Teria sido o plano/ a proposta única em sua ousadia e genialidade?

Na sua tese de doutorado, a professora Sheila Praxedes destaca uma passagem em que Mário de Andrade, por exemplo, se queixa de seu insucesso com Macunaíma:

E isso vai em direção ao projeto de Mário em encontrar uma unidade para um país “tão separado”. E é essa busca incessante pela unidade, por conceder um corpo único ao Brasil, que, em certa medida, passa a ser o ponto nevrálgico da obra do modernista. Seu reconhecimento mais tarde de fracasso em e com Macunaíma vai além do seu inconformismo com a crítica. Em Macunaíma porque, como narrador, crê no malogro do herói e, portanto, na sua intenção de fazê-lo “sintoma” do brasileiro de norte a sul, e ter sido reconhecido como tal. Para além do projeto inicial, Macunaíma, híbrido e múltiplo, multiplicou-se no jogo de espelhos e ressonâncias. Nesse sentido, Mário talvez tenha percebido que seu herói não foi sintoma, representação, símbolo ou mesmo síntese, que sua complexidade era bem maior e mais ampla do que uma rapsódia poderia reunir. A rapsódia, assim, tornou-se dissonante. O brilho inútil da estrela, mesmo visto de todo o Brasil, como em um caleidoscópio, é fragmentado, multifacetado, fractal até... E, nesse ponto de vista, não alcança a realidade, seja ela qual for. (Campos, 2019CAMPOS, Sheila Praxedes Pereira. Do Uraricoera à Ursa Maior: notas e atualizações de um projeto para o Brasil de Macunaíma. Tese (Doutorado em Estudos de Literatura) - Faculdade de Letras, Universidade Federal Fluminense. Niterói: UFF, p. 106. 2019.. p. 49/50)

É em uma de suas cartas que, “encontramos a mesma dor lá do início de nossas discussões e confessada a Álvaro Lins quase no fim da vida, reflexo da sensação de fracasso, de ‘não-conformismo revoltado’, de culpa pela autoria de um herói que não alcança seu intento, como projeto que era, em revelar um Brasil real...” (Campos, 2019CAMPOS, Sheila Praxedes Pereira. Do Uraricoera à Ursa Maior: notas e atualizações de um projeto para o Brasil de Macunaíma. Tese (Doutorado em Estudos de Literatura) - Faculdade de Letras, Universidade Federal Fluminense. Niterói: UFF, p. 106. 2019.. p. 97) Vê-se aqui a consciência de que sua obra prima, Macunaíma, teria malogrado, não teria alcançado o objetivo projetado por ele. Excesso de modéstia? Incapacidade de ver o que o futuro reservou ao seu texto? Ou, efetivamente, os planos dele, Mário de Andrade, teriam feito uma curva ligeira, passando por fora, bem pertinho da trave, rumo à linha de fundo do campo?

Independentemente de acharmos em Mário a figura do gênio perdido, como ele mesmo declara no Prefácio Interessantíssimo “Por muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora não me digam que ando à procura de originalidade, porque já descobri onde ela estava, pertence-me, é minha.” (Andrade, 1987. [p.75] p. 23 no pdf), podemos avaliar o esforço de concepção que passa pela pensamenteação de uma proposta, de uma obra, de um rascunho?

Pensemos num outro exemplo (desta vez, amazônico): Nenê Macaggi. Mulher, solteira, bonita, que, por volta dos seus vinte e sete anos de idade, depois de viver alguns anos na capital da República, Rio de Janeiro e ali colaborar com jornais e revistas como cronista, jornalista e escritora, vem a Roraima, no início da década de 40, a mando de Getúlio Vargas, para chefiar o recém criado SPI (Serviço de Proteção ao Índio). Aqui chegando, tendo já três livros publicados, Água Parada (1933), Contos de dor e de sangue (1935) e Chica Banana (1938), torna-se a primeira dama da literatura roraimense ao publicar, em 1976, o Romance A Mulher do Garimpo. Primeira escritora a publicar no estado, primeiro escritor a publicar um livro literário no estado, primeira romancista a publicar no estado, e um romance de alguém que esteve efetivamente no garimpo. No garimpo! Mulher, solteira... Na Amazônia inóspita e exótica. Candidata à genialidade?

O romance A Mulher do Garimpo, por ser escrito em meados dos anos 70 do século XX, não difere muito das técnicas de composição vigentes então. Colagem de estilos e textos, o romance congrega informações de almanaque sobre a Amazônia (volume de água dos rios, dimensões territoriais, curiosidades...) com enredos já conhecidos da tradição literária brasileira. A personagem central, inicialmente chamada Ádria, ainda em sua infância no cortiço, torna-se José Otávio, imitando o argumento de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas e Aluísio de Azevedo em O Cortiço. O texto macaggiano avança no sentido de narrar a vinda da personagem desde o Rio de Janeiro a Boa Vista, utilizando boa parte das técnicas de produção mais recentes, para os anos 70 do século XX, tais como a apropriação, a collage e a emulação dos clássicos, de modo a se situar na tradição literária. Esse procedimento, como já vimos, alhures, serve para demonstrar não apenas que sua autora é uma leitora da tradição, como para filiá-la àqueles que julga importantes para sua formação.

No entanto, apesar de toda técnica, de todo conhecimento e de uma proposta relativamente revolucionária, apesar de toda a sanha precursora, para as letras de Roraima, que envolve o texto, sua autora não logra fazê-lo aprazível ou mesmo legível. Nesse caso, como no gol que Pelé não logrou fazer, a ideia é boa, a intenção de dar vazão a uma identidade roraimense com base em técnicas de produção literária de vanguarda, também é coisa do gênio, mas...

O gol que Pelé não marcou, por um lado, atesta que as intenções e maquinações do autor nem sempre dão certo; por outro, indicam, claramente, que elas podem existir, assim como a explosão de inteligência que as concebe, mas que elas dependem igualmente de outros fatores, coincidentes, para tornarem-se memoráveis:

Que fez o escrete? Deu-nos a maior alegria de nossa vida. Tornou qualquer vira-lata em campeão do mundo. Mas a nossa gratidão logo secou como uma bica da Zona Sul. Tratamos de esquecer a jornada estupenda. Mas eu vos digo: - “esquecer” não é bem o termo. Ou por outra: - o brasileiro pode “esquecer” da boca para fora. Mas na verdade um Pelé é inesquecível. Insisto: - apesar de toda a nossa ingratidão, Pelé é imortal. E por isso, porque ninguém pode enxotá-lo da nossa memória, eu o promovo a meu personagem do ano. [Publicado originalmente em Manchete Esportiva, Anuário de ouro, Edição especial, janeiro de 1959] (Rodrigues, 2013RODRIGUES, Nelson. A pátria de chuteiras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.. p. 32)

Um desses fatores, talvez seja a presença do cronista, esse Nelson Rodrigues que assiste a tudo atento, ele também, um agente da história, da ideologia, da linguagem, portanto. Ele e sua pena, que, inconformados com o aparente fracasso, da malfadada jogada, ainda lutarão pela imortalização dela como potencial genial. Ele, que “nem [campeão] de cuspe à distância [é]somos”. Ele, o cronista, o crítico, no entanto, é quem imortalizando-os (os fracassos, por que não?!), imortaliza a si também. Esse é, talvez, o motivo pelo qual segue havendo gênios. É esse talvez o motivo pelo qual, apesar dos preconceitos que veicula em seu texto, devamos rever a posição em relação à primeira dama das letras de Roraima. Nós, os que, ainda hoje, fabricamos os gênios para as futuras gerações, tornando-os inesquecíveis, ainda que seja pelo que não fizeram, também, para nossa honra e glória.

REFERÊNCIAS

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  • 2
    Eureka é uma interjeição que significa “encontrei” ou “descobri”, exclamação que ficou famosa mundialmente por Arquimedes de Siracusa. ... O termo tem a sua origem etimológica na palavra grega “heúreka”, o pretérito perfeito do indicativo do verbo “heuriskéin” que significa “achar” ou “descobrir”.
  • 3
    Sócrates declara a Glauco: “O de não admitir em nenhum caso a poesia imitativa. Parece-me mais do que evidente que seja absolutamente necessário recusar admiti-lo, agora que estabelecemos uma distinção clara entre os diversos elementos da alma” Platão. A República. p. 424.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2019
  • Aceito
    21 Dez 2019
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