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Leituras da obra machadiana* * Resenha de: ZILBERMAN, Regina; SARAIVA, Juracy Assmann (Org.). Machado de Assis: intérprete da sociedade brasileira. Porto Alegre: Zouk, 2020. 322 p.

Readings of Machado’s Work

ZILBERMAN, Regina; SARAIVA, Juracy Assmann. (Org.). Machado de Assis: intérprete da sociedade brasileira. Porto Alegre: Zouk, 2020. 322 p.

Resumo

A resenha tem como propósito apresentar o livro Machado de Assis - Intérprete da sociedade brasileira, organizado por Juracy Assmann Saraiva e Regina Zilberman. Trata-se de uma coletânea de ensaios em que vários autores (re)discutem a obra de Machado de Assis a partir de diferentes perspectivas.

Palavras-chave:
Machado de Assis; sociedade; interpretação; perspectivas teóricas

Abstract

The purpose of the review is to present the book Machado de Assis - Interpreter of Brazilian society, organized by professors Doctors Juracy Assmann Saraiva and Regina Zilberman. It is a collection of essays in which several authors (re) discuss Machado de Assis's work from different perspectives.

Keywords:
Machado de Assis; Society; Interpretation; Theoretical Perspectives

O livro Machado de Assis - Intérprete da sociedade brasileira, organizado por Juracy Assmann Saraiva e Regina Zilberman reúne ensaios apresentados no evento denominado II Jornada de Estudos Machadianos, ocorrido em agosto de 2019 no Centro Cultural da UFRGS. Alguns textos são de autoria dos membros do grupo de pesquisa do CNPq (Machado de Assis: sistema poético e contexto), liderado pelas professoras organizadoras do livro. Outros textos, de autores que não pertencem ao grupo de pesquisa, somam-se aos primeiros.

A nominata de autores e autoras contempla algumas das mais reconhecidas personalidades, nacionais e internacionais, ligadas aos estudos acadêmicos sobre Machado de Assis. Mas agrega também pesquisadores e pesquisadoras das gerações mais novas, o que é significativo para o contexto, pois está a comprovar o inegável e perene fascínio que a obra machadiana exerce.

O livro foi publicado pela editora Zouk, de Porto Alegre, em 2020SARAIVA, Juracy Assmann, ZILBERMAN, Regina (Org.). Machado de Assis: intérprete da sociedade brasileira. Porto Alegre: Zouk, 2020. e conta com um texto de capa de Roberto Acízelo de Souza, que capta as intenções da obra de modo conciso e esclarecedor. Ressalto duas ideias por ele expostas: a de considerar Machado de Assis como legítimo “intérprete da sociedade brasileira”, a despeito das inúmeras controvérsias existentes na tradição crítica em torno do tema; e a de apontar para uma das características da mesma, que consiste em ser um compêndio que agrega as novas agendas acerca dos estudos da área.

Após essa apresentação inicial, pretendo, ainda, tecer algumas considerações sobre o título do livro, elencar os principais temas abordados, mencionar as obras de ficção que fazem parte do corpus dos ensaios e, de uma maneira genérica, encaixar os 21 autores em linhas temáticas.

A meu ver, enquanto estudiosa da obra de Machado de Assis, um dos méritos do livro, além, é claro, da qualidade indiscutível da investigação e da reflexão teórica, é provocar o diálogo, a discussão, e também o contraditório. Sabemos todos nós que nos dedicamos a compreender esse autor, que cada um tem “o seu Machado”, mas isso não pode invalidar os demais estudos.

Inicio a abordagem do conteúdo do livro com uma observação acerca do subtítulo: “intérprete da sociedade brasileira”, no que tange à abrangência do termo “intérprete”. Em princípio, ressalto a justeza e o acerto da escolha, uma vez que é, de fato, o que aglutina e representa a proposta do livro. Além disso, ele abre as portas para o exercício de uma crítica e de uma leitura não dogmáticas acerca do autor. Isso se torna relevante, tendo em vista que a tradição crítica relacionada a Machado de Assis foi, em grande medida, permeada pela polêmica das perspectivas dicotômicas.

Ora, em se tratando de interpretações, há que considerar as subjetividades e os pontos de vista a partir dos quais as temáticas são abordadas. Além disso, a interpretação se duplica, multiplica-se, pois há o intérprete originário e há os intérpretes do intérprete, indefinidamente. No meu caso, estou exercendo o papel de intérprete em terceiro grau, ou talvez mais, contando com os teóricos/intérpretes que aparecem nos ensaios. Trata-se de compreender, não só a obra de Machado, mas a sociedade que nela está representada, interpretada, seja nas crônicas ou na sua perspectiva enquanto editor, ou na utilização da ironia e do humor nas obras ficcionais, por exemplo. Nesse processo, no contato com os textos que tratam de outros textos, ampliam-se os horizontes de leitura dos livros e do mundo. É o exercício da literatura que assim se caracteriza.

Entretanto, que não se conclua disso que tudo é válido. Recorro a Umberto Eco para prevenir semelhante juízo. Em um de seus textos das Conferências Tanner, de 1990, parte de uma observação “maliciosa” de Todorov, em que este afirma que “um texto é apenas um piquenique onde o autor entra com as palavras e os leitores com o sentido” (2005, p. 28ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005.), para apresentar uma complexa teoria da interpretação. Ele adverte a respeito dos limites da interpretação, da superinterpretações, das interpretações suspeitosas, considerando as últimas como herança do pensamento hermético, da semiose hermética presentes em modalidades e intensidades diferentes em muitas teorias da interpretação. Basicamente, a suspeita se caracteriza pelo princípio de que certos elementos evidentes podem ser indício de algo não evidente e isso, para Eco, não seria patológico se constituísse uma base para a elaboração de uma hipótese inédita que pudesse ser submetida à prova.

Na visão de Umberto Eco, é preciso considerar, em contraposição ou em interação, os três aspectos básicos da prática hermenêutica: intentio operis, intentio auctoris e intentio lectoris. Ou seja, para validar a interpretação de um texto, é preciso ter em vista a tríade básica composta por autor, obra e leitor, e será sempre incompleta a perspectiva que vier a privilegiar um dos elementos. Certo, não é o momento para discutir a teoria de autor-modelo e leitor-modelo, desenvolvida por Eco. A referência ao autor é apenas para corroborar a ideia de que as interpretações devem ser, de um modo ou de outro, testadas.

Voltando ao subtítulo do livro, a palavra intérprete parece remeter a um sentido mais amplo, em consonância com a frase famosa de Nietzsche, de que não há fatos, apenas interpretações. Mas também pode remeter a uma estética, a uma visão do mundo, a uma perspectiva segundo a qual o escritor entende a sociedade. E o esforço dos intérpretes/ensaístas talvez seja mesmo esse, de decifrar em que consiste a estética e a compreensão de mundo machadiana.

Em princípio, julguei que seria proveitoso para os leitores se lhes apresentasse uma síntese dos ensaios, associados a cada um dos autores. No entanto, como são 21 textos, parece-me uma tarefa inviável, tanto pelos limites de espaço de uma resenha, como pela grande chance de não contemplar equanimemente a todos eles, além da possível superficialidade. Opto, então, por agrupar os autores em torno de temáticas, ou perspectivas dominantes em cada texto, objetivando apresentar os aspectos que, conforme a minha leitura, julgo mais relevantes.

No que se refere às obras machadianas, a maioria dos ensaios tem como corpus as consagradas, com vantagem para o romance Memórias póstumas de Brás Cubas; mas também aparecem Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Memorial de Aires, os contos de Papéis avulsos, Histórias sem data e os primeiros doze contos publicados nos jornais da época. Especial atenção é dada às crônicas e ao Machado editor.

Quanto às abordagens, alguns temas clássicos da tradição crítica machadiana são revisitados, tais como, a presença da ironia e do humor, o shandismo, o viés biográfico, a crítica social, questões de raça e de gênero, neste caso, com foco nas personagens femininas. Há também estudos de caráter histórico, que exploram o contexto em que as obras foram criadas e avaliam os pontos de vista do escritor.

Assim, numa tentativa de situar os ensaios dentro de um espectro temático, eu proporia uma classificação tal como segue. Em torno da ideia de gestualidade e teatralidade agrupo os textos de Kenneth David Jackson - “O gesto na ficção machadiana”, Juracy Assmann Saraiva - “Teatralidade: diálogo entre arte e vida”, Débora Bender - “O teatro da vida: a ópera em Dom Casmurro”, Tatiane Kaspari - “O prazer das velhas dores: Dom Casmurro e a formação de professores-leitores”.

Em relação ao Machado cronista estão os ensaios de Sidney Chalhoub - “A crônica machadiana: problemas de interpretação, temas de pesquisa”, e de William Moreno Boenavides - “Modernização à brasileira como princípio de leitura da série Balas de estado”. Associado ao tema, incluo o texto de Valdiney Valente Lobato de Castro, intitulado “De 1859 a 1869: Machado de Assis nas folhas públicas oitocentistas”.

Acerca das relações de Machado de Assis com o contexto editorial estão os ensaios de Regina Zilberman - “Machado de Assis e a poesia de Faustino Xavier de Novaes” e o de Lúcia Granja - “Machado de Assis: relações com o mundo editorial”.

Ensaios com enfoque nas problemáticas da ética, da crítica social, da memória e identidade, da cartografia são assinados pelos seguintes autores: Marinês Andrea Kunz - “Literatura e sociedade brasileira: Quincas Borba e o Humanitismo”, Denise Estácio - “Cartografia literária e o percurso do enforcamento em Quincas Borba”, Fernando Machado Brum - A memória através das datas - a falha como método”, Antônio Marcos Sanseverino - “Medalhão: profissão sem trabalho”, Ernani Mügge e Juracy Assmann Saraiva - “O espelho, de Machado de Assis: fendas entre realidade e aparência”, Priscila Célia Giacomassi - “As implicações do discurso memorialístico do anti-herói machadiano”.

A seguir, elenco os ensaios que enfocam as questões de gênero e as personagens femininas, assinados por: Christini Roman de Lima - “Memórias póstumas de Brás Cubas: o olhar do finado para as mulheres da sua história”, Maria da Glória Bordini - “Duas Floras: de Machado de Assis a Érico Veríssimo”, Paul Dixon - “Um código de honra feminino: “A senhora Galvão”, Atílio Bergamini - “Classe, raça e gênero nos primeiros contos de Machado de Assis”.

Por último, dois ensaios tratam de tradução e recepção da obra machadiana, um, de Válmi Hatje-Faggion - “A responsabilidade dos tradutores: Machado de Assis nas tramas da tradução com narrativa e sentido fraturados”, e outro, de Karina de Castilhos Lucena - “Machado de Assis, tradução e recepção hispano-americana”.

Trata-se de um livro oportuno, com uma variada gama de propósitos de leitura da obra de Machado de Assis. Poderá ser de muito proveito para os leitores iniciantes que nele encontrarão tanto as “novas agendas” da área, como também alguns dos principais elementos constituintes da tradição crítica, ou do cânone machadiano. E, para o leitor experiente, não será menor o interesse, pois nele encontrará bons motivos, seja para reler obras do escritor, seja para dialogar, discordar ou atualizar-se.

Recomendo a leitura de todos os ensaios do livro Machado de Assis - Intérprete da sociedade brasileira, mas, certamente, cada leitor terá as suas preferências, poderá eleger aqueles que melhor respondam aos seus propósitos de pesquisa e de reflexão teórica, ou aqueles com os quais compartilhe a interpretação dos textos e do mundo.

Referências

  • SARAIVA, Juracy Assmann, ZILBERMAN, Regina (Org.). Machado de Assis: intérprete da sociedade brasileira Porto Alegre: Zouk, 2020.
  • ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  • *
    Resenha de: ZILBERMAN, Regina; SARAIVA, Juracy Assmann (Org.). Machado de Assis: intérprete da sociedade brasileira. Porto Alegre: Zouk, 2020. 322 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2021
  • Aceito
    12 Abr 2021
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