Acessibilidade / Reportar erro

O diário como possibilidade para a antificção romanesca

The diary as a possibility to a novelistic antifiction

RESUMO

O conceito de antificção tem sido usado por teóricos como Lejeune e Alberca para explicar a demanda por gêneros não-ficcionais, como o diário e a autobiografia. A proposta do presente estudo é estender o conceito de antificção às estéticas que se definem como romanescas. Entre essas estéticas estão algumas possibilidades da autoficção, como a praticada pelo francês Hervé Guibert. Ou aquela forma romanesca desenvolvida pelo brasileiro Ricardo Lísias, em que o ensaio sobre o presente é categorizado como um gênero ficcional. Os dois autores partem de diários para a elaboração de seus romances. A forma do diário, tornada romance e ainda mantendo o relato de realidade, é uma forma notável do que se pode definir como antificção romanesca.

PALAVRAS-CHAVE:
antificção; diário; romance; autoficção

ABSTRACT

The concept of antifiction has been used by theorists such as Lejeune and Alberca to explain the demand for non-fiction genres such as the diary and autobiography. The purpose of this study is to extend the concept of antifiction to aesthetic manifestations that define themselves as novels. Among these manifestations are some possibilities of autofiction, such as that practiced by Frenchman Hervé Guibert. Or that novel form developed by Brazilian author Ricardo Lísias, in which the essay on the present is categorized as a fictional genre. These two authors depart from diaries to elaborate their novels. The diary form, made into a novel and still retaining the account of reality, is a remarkable form of what might be defined as novelistic antifiction.

KEYWORDS:
antifiction; diary; novel; autofiction

Antificção: o conceito e as implicações

O conceito de antificção é recente. Philippe Lejeune criou-o para falar especificamente do diário, em conferência pronunciada em 2005. O teórico contrapunha os gêneros canonicamente atrelados às escritas-de-si à narrativa de ficção. Falava, em “ Le journal comme ‘antifiction’”, dessa condição da escrita do real como demanda do público contemporâneo.

O termo foi utilizado pelo espanhol Manuel Alberca para falar de autobiografia. A autobiografia seria, no seu país, o gênero que viria polarizando a demanda por antificção.

O termo ficou confinado nesses gêneros de escritas-de-si muito mais com jeito de modismo que de configuração estética. Mas o fenômeno, sem dúvida, é maior que essa limitação; ele pode ser focalizado como denominador para um conjunto de procedimentos estéticos, um exacerbamento não apenas do retorno do autor como da mimetização dessas escritas em que o eu fala de si.

Antificcional é, nesse sentido, a tendência da produção romanesca. Já se falou de modo insistente em um retorno do real na literatura das últimas décadas. De um modo menos enfático e ainda sob desconfianças, também se tem admito um retorno do autor e do eu. O teórico Karl Erik Schollhammer, em Ficção brasileira contemporânea, parte da exigência do real para chegar ao autor e ao eu como determinantes de estéticas que têm integrado a produção narrativa literária brasileira. Diante dessa relação de complementaridade ou até mesmo de causalidade, as duas formas de retorno encontram na sua junção a expressão mais paradigmática do que pode ser definido como “antificção” na elaboração de gêneros canonicamente ficcionais, sobretudo do romance.

O romance quis ser a representação de realidades específicas nas últimas décadas. Esse apelo ao real, que já não se configura como fixação de identidades nacionais, mas de culturas e grupos devidamente marcados historicamente pela exclusão, não quis recorrer às estéticas objetivas que ficaram atreladas, no passado, à objetividade de uma voz não pertencente a ninguém isolado. Procurou configurar-se como elaboração de falas devidamente reconhecíveis. O reconhecimento da fala e de seus determinantes histórico-culturais marca o retorno daquela identidade narrativa, que a década de 1960 tanto negara, mas que já foi assumida pelas estéticas realistas da década posterior. Tem-se o reconhecimento de que a subjetividade dá à narrativa em que a voz se assume como testemunha a passionalidade capaz de representar o real não somente como fato acontecido, mas a partir de sua repercussão na experiência de quem o vivenciou.

Por isso, a antificção já foi atrelada, de modo ainda tímido, às principais manifestações narrativas do que se tem definido como literatura pós-moderna. Ela é, para os que a observam, metaficção, modo de a narrativa evidenciar-se como configurada a partir de gêneros textuais que integram diversas esferas de circulação. Mikhail Bakhtin (2015BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.) já havia dado a devida atenção a essas possibilidades de assimilação, pelo romance, de todos os gêneros que interessassem à sua configuração.

É um fenômeno que vem se exacerbando. A antificção romanesca ultrapassou há muito o âmbito da mimetização transformada pelas exigências do romance mais canônico para investir na transgressão dos cânones narrativos. Consegue fingir não ser ficção. Ou às vezes só tem como respaldo para sê-lo o fato de se definir como romance. As duas possibilidades têm sido largamente observadas: ora se narra apenas fato real, a partir de configurações reconhecíveis do gênero romance; ora se inventam fabulações que, por serem configuradas a partir da mimetização de gêneros destinados ao exercício da vida cotidiana, são recebidas como se narrassem fatos reais.

A complexidade das experimentações do romance antificcional tem demandado ainda estudos de grande extensão. Normalmente, eles são atrelados ao estudo da autoficção. Ou dos gêneros de escritas-de-si que ela mimetiza. É nesse sentido que é produtivo, para o estudo do fenômeno, retomar Lejeune e suas observações sobre o diário como antificção. Alguns dos estudos mais profícuos a respeito dessas estéticas partem do diário como configuração primordial para experimentações que têm buscado o real de volta sem a objetividade de estéticas realistas já centenárias. A autoficção é uma dessas modalidades. Não basta falar dela a partir da ambiguidade daquilo que narra. A autoficção é um exemplo de experimentação como antificção, através da assimilação de gêneros que podem ser, nas obras, cópias de textos não-ficcionais.

Existem fenômenos muito diversos sendo tratados pelos estudos da autoficção. Em muitos casos já não se trata de uma autoficção já canônica, pois a narrativa não possui teor autobiográfico. Ela se volta para o real a partir daqueles gêneros que, em sua condição original, fazem parte do que, de modo mais apressado, Lejeune e Alberca têm chamado de antificção. Passou-se, muitas vezes, a enxergar nesse auto- do termo não somente o autobiográfico, mas a expressão do fato real.

Os exemplos aqui observados deixam evidente essa condição. Há uma autoficção antificional, sobretudo como romance. O caso da mimetização do diário mostra que o conceito não pode mais ficar restrito ao diário como autêntica escrita-de-si. A sua assimilação pelo romance tem resultado em experiências que geram novas formas de assimilação de gêneros. É por isso que o brasileiro Ricardo Lísias ocupa a maior parte de nossa atenção aqui. Trata-se de um caso exacerbado de passagem da mimetização do diário para a de outros gêneros, fazendo com que o próprio livro perca a sua forma como brochura ou com que as obras produzidas se espalhem no universo da internet. Enxerga-se a atenção que o diário dá ao presente, como já apontava Bakhtin. O outro caso é o do francês Hervé Guibert, pela passagem do diário, da condição de autoficção que narra fatos reais, para a daquela que narra o puramente ficcional, mas que continua formando uma unidade de configuração com a primeira. Fenômenos que jogam com as diversas definições de pacto autoficcional e mostram a fluidez que esse alcançou, depois de categorizações mais estanques.

Percebe-se que o próprio gênero diário acabou, em estudos mais detalhados, a assumir uma categorização confusa e duvidosa, que transcende em muito a ideia de escrita-de-si. Esse olhar para o diário tem muito a ver com os modos como o romance vem fazendo uso do gênero. Por isso, é essa antificção limitada de Lejeune que tem sofrido os efeitos do romance antificcional; não o contrário.

Hamburger, Bakhtin e Searle: modos de se enxergar a ficção na constituição do gênero romanesco

Quando a teórica alemã Käte Hamburger, em A lógica da criação literária, livro de 1957, defende que apenas a narrativa em terceira pessoa pode ser considerada ficcional, a ideia soa ingênua e redutora. Afinal, Hamburger (1986HAMBURGER, Käte. A lógica da criação literária. Tradução de Margot P. Malnic. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986.) pressupunha uma lógica enunciativa extraída das categorias de Émile Benveniste, de pessoa, tempo e espaço. Benveniste atentava para a natureza efetiva da enunciação e não para o fingimento dela nas inúmeras formas de representação literária: “É preciso ter cuidado com a condição específica da enunciação: é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado” ( BENVENISTE, 1993BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I. Tradução de Eduardo Guimarães et al. Campinas: Editora Pontes, 1993., p. 82). Isso leva Hamburger a olhar para a representação artística como se olhasse sempre para a enunciação do artista, de fora da obra. O que gera um cruzamento de vozes e dos responsáveis por elas. A narrativa em terceira pessoa seria ilógica, por recorrer a procedimentos que, segundo ela, só ocorriam na narrativa ficcional, como a exposição de processos internos de personagens por uma voz exterior a elas, ou porque o tempo verbal não corresponderia ao tempo fenomenológico. Ela não teria um enunciador que se localizaria no tempo nem em um espaço de enunciação. Enquanto isso, a narrativa em primeira pessoa seria lógica e se enquadraria nas categorias de Benveniste. Seria fingimento com intenção de enganar, mas não ficção. Essa ingenuidade tem muito a ver com o modo como o conceito de ficção era entendido pelo senso comum nos séculos de constituição do gênero romanesco.

Hamburger parece enxergar uma fase de formação do gênero e ter se fixado nela. A narrativa de ficção produzida no século XVIII vivia, efetivamente, uma recepção ingênua por parte do público, que reconhecia a voz onisciente da terceira pessoa como ficcional, mas que não recebia as obras ficcionais em primeira pessoa como tais. Catherine Gallagher (2009GALLAGHER, Catherine. Ficção. In: MORETTI, Franco. O romance 1: a cultura do romance. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 640-658. ) dedica sua atenção a esse momento da formação do gênero, mostrando que a ficção era uma possibilidade nova de o leitor receber um texto como fantasia. Para isso, era preciso que essas narrativas fossem escancaradamente inverossímeis ou desvinculadas da realidade natural. “Num determinado sentido (mas só em um), essa distinção provavelmente sempre tenha existido: as obras de fantasia só podiam ser diferenciadas da mentira quando eram explicitamente inverossímeis” ( GALLAGHER, 2009GALLAGHER, Catherine. Ficção. In: MORETTI, Franco. O romance 1: a cultura do romance. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 640-658. , p. 49), entendendo-se por “inverossimilhança” a incoerência com a realidade natural, algo diferente da visão aristotélica, para quem a verossimilhança era a coerência dentro da peripécia. A inverossimilhança de Gallagher faz com que o amadurecimento do romance como epopeia burguesa torne-se um problema para esse conceito rasteiro de ficção como fantasia. Para Hamburger, o fato de o narrador em terceira pessoa não possuir uma localização espacial já evidenciava a narrativa como ficção; para Gallagher, o fato de haver uma voz narrando de lugar nenhum não evidenciava a natureza da fantasia, pois era preciso que a coisa narrada evidenciasse sua impossibilidade como evento crível.

É nesse momento da evolução do gênero que a epopeia burguesa vai abandonando sua temática mais próxima do entretenimento e ganhando em elaboração estética complexa. O romance torna-se grande arte conforme faz da voz que enuncia a narrativa um artifício. Ela passa a ser uma voz fingida, a transformação do que Gallagher chama de “ romance” no que viria ser “ novel”. Se o romance traz a marca da ascendência na tradição oral, o novel é um gênero para o público letrado.

Bakhtin observou o processo pelo qual o romance assimila os gêneros não-literários, corriqueiros, que circulam pelo universo da realidade natural, possível. A atenção de Bakhtin recai sobre esse momento de formação do gênero como se ele já contivesse a apropriação de gêneros e seus respectivos discursos como algo inerente à sua natureza:

Em princípio, qualquer gênero pode ser incluído na construção do romance, e de fato é muito difícil encontrar um gênero que não tenha sido introduzido algum dia e por alguém no romance. Os gêneros introduzidos no romance costumam conservar nele a elasticidade de sua construção, sua autonomia e sua originalidade linguística e estilística. ( BAKHTIN, 2015BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015., p. 108).

Em Bakhtin, romance é aquilo que Gallagher chamava de “ novel”, pelo modo como as estratégias de construção da narrativa romanesca fazem uso de gêneros orais e escritos. O romance não teria um discurso próprio, nem mesmo quando se pensa naquela imediatidade com que o leitor visto por Gallagher reconhecia a ficção. Bakhtin intensifica a ideia de que o romance se aproximava, cada vez mais, dos gêneros corriqueiros, o que fazia com que ele já fosse a origem de subgêneros complexos:

Além disso, existe um grupo essencial de gêneros que desempenham no romance o mais importante papel construtivo e às vezes determinam por si sós e de forma direta a construção do todo romanesco, criando variedades peculiares de gênero de romance. São eles: a confissão, o diário, a descrição de viagens, a biografia, a carta e alguns outros gêneros. Todos esses gêneros podem não só integrar o romance como sua construção essencial, mas também definir a forma do romance como um todo (romance-confissão, romance-diário, romance em cartas, etc.). ( BAKHTIN, 2015BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015., p. 108-109).

Chama a atenção o modo como o teórico enumera subgêneros que são narrados em primeira pessoa e que, para isso, mimetizam aqueles gêneros de escritas-de-si como o diário, a carta, a confissão, o relato de viagem. Bakhtin passa da assimilação parcial de gêneros e seus discursos para uma assimilação que é fingimento, que precisa elencar uma série de estratégias para a construção do efeito de verossimilhança. Já não se trata mais da inverossimilhança como marca distintiva da ficção.

A semelhança com o real precisa elaborar estratégias para que a linguagem romanesca convença o leitor dessa natureza mimética. A mimesis ocorre no plano da representação, assim como no da realidade representada. Bakhtin observa o modo como o romance assume a falta de domínio do narrador sobre o narrado. Aquele que escreve diário ou cartas não sabe o que vai ser narrado até o desfecho da narrativa. Da mesma forma, a aproximação entre os tempos da narração e da narrativa, para usar aqui a terminologia de Gérard GenetteGENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Tradução de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega Universidade, s/d. (s/d.), faz com que o tempo presente predomine sobre o passado. Narra-se o que ocorreu há pouco. A trajetória do romance, do século XVIII à narrativa realista do século XIX, atenta para a complexificação dos modos de enunciação. A mimetização da primeira pessoa, efetivamente, enganava o leitor em princípio. Hamburger tem razão ao dizer que o leitor a entendia como sendo os gêneros que mimetizava. No entanto, é preciso que se entenda que, tomando-se o critério da intencionalidade como denominador, a primeira pessoa não tinha a intenção de enganar o leitor. Há uma distância grande entre o desejo de obtenção de efeitos estéticos e o de fazer um texto ficcional passar por enunciado de fato real. O linguista John R. Searle foi preciso ao tratar do assunto:

Ora, fingir é um verbo intencional: ou seja, é um daqueles verbos que integram em si o conceito de intenção. Não se pode realmente dizer que se fingiu fazer algo a menos que houvesse a intenção de fingir fazê-lo. Portanto, a nossa primeira conclusão leva-nos imediatamente à segunda conclusão: o critério identificador a respeito de um texto ser ou não uma obra de ficção tem necessariamente de residir nas intenções ilocutórias do autor. Não há propriedade textual, sintáctica ou semântica, que identifique um texto como obra de ficção. O que o faz ser uma obra de ficção é, por assim dizer, a postura ilocutória que o autor assume relativamente ao texto, e essa postura depende das intenções ilocutórias complexas que o autor tem quando escreve ou de algum modo compõe o texto. ( SEARLE, 2002aSEARLE, John R. Intencionalidade. Tradução de Júlio Fischer e Tomás Rosa Bueno. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002a. , p. 96, grifo do autor).

A precisão de Searle se contrapõe à visão de Hamburger: aquilo que constitui a obra ficcional não depende da configuração linguística do texto para que o seja. Para Searle, a intenção ilocutória é que cria a obra como narrativa de ficção e não como enunciado assertivo. O mesmo enunciado poderia ser oferecido ao leitor como ficção ou como asserção, mas o autor o fará a partir de uma intenção reconhecível, que constitui o pacto de leitura. A posição de Searle cancela a de Hamburger e evidencia a inabilidade do leitor das primeiras experiências do romance. O estranhamento da narrativa literária, sobretudo a romanesca, ainda não era visto como desencadeador de experimentações que instigassem o leitor. O interesse da narrativa pela experimentação com a voz que a enuncia chegaria, na metade do século XIX, à superação da terceira pessoa onisciente através do desenvolvimento do ponto de vista narrativo. Mesmo a voz de quem fala sobre um outro pode ser relativa à visão ou à consciência da personagem. Trata-se, também, de um esforço no sentido da aproximação com os modos de apreensão do real.

A busca pelo efeito de real, ou pela representação da realidade, constitui um conjunto de tendências que podem ser vistas tanto a partir da elaboração do aparelho através do qual o narrador enuncia quanto pela fidelidade do narrado ao que se percebe como real. A constituição do gênero romanesco abarcou, na modernidade, as técnicas em que a voz do narrador podia ser encenada. Já não era necessário, naquelas técnicas que Robert Humphrey (1976HUMPHREY, Robert. O fluxo da consciência: um estudo sobre James Joyce, Virginia Woolf, Dorothy Richardson, William Faulkner e outros. Tradução de Gert Meyer. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976.) analisa em O fluxo da consciência, o atrelamento da voz que fala de si a gêneros textuais em primeira pessoa. A voz do narrador passa a ser ouvida, conforme produzida na consciência ou até mesmo na fala em voz alta, sem que o texto literário precisasse fingir ser a resultante de uma transcrição para a escrita feita por aquele que fala. O autor desaparece como sendo aquele que escreve e o fingimento da narrativa do século XVIII, capaz de enganar o leitor, deixa de fazer sentido. Fingir se acentua como sendo o brincar de que Searle trata: um ato intencional, percebido através de convenções. A lógica de haver um suporte, consolidado como gênero, para a voz que fala de um “eu” não se aplica a essas técnicas da consciência e da voz. Ela evidencia que as convenções verticais de Searle se aplicam à narrativa em primeira pessoa e que essa voz é ficcional.

Essas convenções verticais que Searle estabelece como critério para o pacto de leitura que corresponde a uma intencionalidade que pretende fixar o texto como asserção são também os critérios que Lejeune, ao estabelecer o conceito de antificção, tomava para si. As convenções verticais de Searle enfatizam a possibilidade de comprovação da realidade do texto assertivo:

1 A regra essencial: o autor de uma asserção compromete-se com a verdade da proposição expressa.

2 As regras preparatórias: quem fala tem de estar em condições de apresentar indícios ou razões a favor da verdade da proposição expressa.

3 A proposição expressa não pode ser obviamente verdadeira tanto para quem fala como para o ouvinte no contexto da locução.

4 A regra da sinceridade: quem fala compromete-se com a crença na verdade da proposição expressa. ( SEARLE, 2002bSEARLE, John R. O estatuto lógico do discurso ficcional. In: SEARLE, John R. Expressão e significado: estudos da teoria dos atos de fala. Tradução de Ana Cecília G. A. de Camargo e Ana Luíza Marcondes Garcia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002b. p. 95-120., p. 101).

Essa realidade comprovável pode ser percebida nas palavras de Lejeune. Afinal, ele está interessado na possibilidade de um relato não ser contaminado pela suspeita da invenção ficcional para que ele seja considerado antificcional:

“Antifiction”, ce petit mot - pas très joli, je l’admets - me semble dire quelque chose d’autre que le classique “non-fiction” des Anglo-Saxons. Il est plus combatif, moins mou. Il est aussi plus précis, il ne s’applique pas à l’ensemble des textes qui ne pratiquent pas la fiction (définition négative), mais à une catégorie particulière de textes, ceux qui la rejettent violemment (définition positive). Au contact de la fiction, le journal s’étiole, s’évanouit, ou fait une crise d’urticaire. Les autobiographies, les biographies, les livres d’histoire sont contaminés, ils ont la fiction dans le sang. Je me rends bien compte que j’exagère, que je simplifie. Il y a des transitions, des nuances, c’est parfois moins simple. Mais “antifiction” est comme une loupe: ce qu’il grossit est réel. ( LEJEUNE, 2007LEJEUNE, Philippe. Le journal comme “antifiction”. Dans Poétique, n. 149, p. 3-14, 2007. Disponível em: Disponível em: https://www.cairn.info/revue-poetique-2007-1-page-3.htm . Acesso em: 21 jul. 2021.
https://www.cairn.info/revue-poetique-20...
, p. 6). 1 1 Tradução nossa: “Antificção”, esta palavrinha - não muito bonita, admito - parece-me dizer algo diferente da clássica "não-ficção" anglo-saxônica. Ela é mais combativa, menos suave. Também é mais precisa, não se aplica a todos os textos que não praticam ficção (definição negativa), mas para uma categoria particular de textos, aqueles que a rejeitam violentamente (definição positiva). Em contato com ficção, o jornal murcha, desmaia ou tem um ataque de urticária. Autobiografias, biografias, livros de história estão contaminados, têm ficção no sangue. Percebo que estou exagerando, que estou simplificando. Existem transições, nuances, às vezes é menos simples. Mas "antificção” é como uma lupa: o que amplia é real.

A visão de Lejeune ainda carrega a dicotomia trazida em O pacto autobiográfico, em que ao pacto de leitura que estabelece a autobiografia como relato de fato real contrapõe-se o pacto romanesco, aquele que não assume o compromisso de comprovar a realidade do narrado. O pacto romanesco, no autor francês, ainda conserva um certo ranço daquela visão oitocentista, que opunha ficção à verdade. É recorrente, em seu comentário sobre aqueles subgêneros em que o romance imita as escritas-de-si, o uso de termos como “embuste” e “falsidade”, sobretudo para falar do romance-autobiográfico. As duas primeiras regras que Searle estabeleceu como parte das quatro convenções verticais podem ser avistadas naquilo que Lejeune chama de “pacto referencial”, que pode ser assim resumido:

Em oposição a todas as formas de ficção, a biografia e a autobiografia são textos referenciais: exatamente como o discurso científico ou o histórico, eles se propõem a oferecer informações a respeito de uma “realidade” externa ao texto e a se submeter portanto a uma prova de verificação. Seu objetivo não é a simples verossimilhança, mas a semelhança com o verdadeiro. (...) A fórmula deixaria de ser “eu abaixo-assinado” e passaria a ser “juro dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade”. ( LEJEUNE, 2014LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Organização de Jovita Maria Gerheim Noronha. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. 2. ed., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014., p. 43, grifo do autor).

O compromisso de narrar o real, como verdade, é confirmado pela disposição daquilo que pode servir como prova de verificação. Dispor de provas é parte da convenção que estabelece a antificção como algo que repudia o ficcional. Ela seria combativa, repudiaria o ficcional naquele sentido oitocentista de mentira, de não coincidência com o real. Essa oposição entre o verdadeiro e o ficcional aparenta ser um distanciamento mais sério nos gêneros em que existe o que ele chama de “autor”, ou seja, o texto é feito para a publicação e não apenas para ser conservado como um registro pessoal, como ocorre com o diário íntimo. Essa natureza pessoal do diário o afastaria daquelas convenções que caracterizam o pacto referencial como sendo as mesmas que Searle enxergava em suas convenções verticais. A diferença essencial entre os dois autores e o modo como o texto assertivo ou não-ficcional assume um conjunto de convenções que são reconhecidas como pacto de leitura pode ser localizada no modo como Searle não aceita a dicotomia que separa a natureza dos textos como algo intrínseco. Ser ou não ficção é algo que, em Searle, não reside na natureza do texto, mas apenas nas convenções firmadas como pacto de leitura. O mesmo texto, para ele, pode ser lido como ficção ou asserção. O que permite a mudança de natureza do texto é a existência de um outro tipo de convenção, ou seja:

Ora, o que torna possível a ficção, segundo sugiro, é um conjunto de convenções extralinguísticas, não semânticas, que rompem a ligação entre as palavras e o mundo estabelecida pelas regras atrás mencionadas. Pensemos nas convenções do discurso ficcional como um conjunto de convenções horizontais que rompem as ligações estabelecidas pelas regras verticais. Suspendem as exigências normais estabelecidas por estas regras. Tais convenções horizontais não são regras de significado; não fazem parte da competência semântica do falante. Consequentemente, não alteram ou modificam os significados das palavras ou outros elementos da língua. O que fazem é antes permitir ao falante usar as palavras com os seus significados literais sem assumir os compromissos que esses significados normalmente exigem. ( SEARLE, 2002bSEARLE, John R. O estatuto lógico do discurso ficcional. In: SEARLE, John R. Expressão e significado: estudos da teoria dos atos de fala. Tradução de Ana Cecília G. A. de Camargo e Ana Luíza Marcondes Garcia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002b. p. 95-120., p. 104).

As convenções horizontais estabelecem uma diferença significativa: não fazer parte da competência semântica do falante é elemento essencial para que a condição daquele que escreve como sendo “autor” ou para que o espaço íntimo não interfira na natureza assertiva ou ficcional do que se escreve. Mas é preciso que se entenda que um pacto de leitura pressupõe um leitor. Seria ingenuidade pensar-se numa intencionalidade que não pressupusesse a apreensão do texto por um outro, um si-mesmo em época posterior. “É, em primeiro lugar, para si que se escreve um diário; somos nossos próprios destinatários no futuro” ( LEJEUNE, 2014LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Organização de Jovita Maria Gerheim Noronha. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. 2. ed., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014., p. 302), entendendo-se que o que se persegue, de fato, é aquela identidade narrativa, que torna esse eu reconhecível para si, mesmo que o diário jamais seja relido. “Garrafa lançada ao mar. (...) É como um seguro de vida que se alimenta tostão por tostão, dia após dia, com depoimentos regulares. (...) O papel é um amigo. Tomando-o como confidente, livramo-nos de emoções sem constranger os outros” ( LEJEUNE, 2014LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Organização de Jovita Maria Gerheim Noronha. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. 2. ed., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014., p. 303), condição que, em certos aspectos, pode ser opção, mas, em outros, ser a única possibilidade de fixação da voz. Tanto Lejeune quanto autores como Manuel Alberca, que pesquisa o diário como forma de compreensão de verdades pessoais que a sociedade oculta, como ocorre com a escrita feminina do século XIX, enxergam o gênero como expressão daquela mesma verdade que se oporia à ficcionalidade. “En fin, el diario no necesita la imaginación para nada, pues es el reino de lo factual. Según la tesis de Lejeune el diarista no puede inventar, pues está pegado al momento y lo registra sin posibilidad de reconstruirlo” ( ALBERCA, 2012ALBERCA, Manuel. Umbral o la ambigüedad autobiográfica. Círculo de Lingüística Aplicada a la Comunicación, v. 50, p. 3-24, 2012. Disponível em Disponível em: : http://www.ucm.es/info/circulo/no50/alberca.pdf . Acesso em: 12 jul. 2021.
: http://www.ucm.es/info/circulo/no50/al...
, p. 117) 2 2 Tradução nossa: “Enfim, o diário não precisa da imaginação para nada, pois é o reino do fatual. Segundo a tese de Lejeune, o diarista não pode inventar, pois está ligado ao momento e o registra sem a possibilidade de construí-lo”. , ou seja, o atrelamento da ficção à imaginação aparece aqui, no teórico espanhol, como confirmação das palavras do francês. O mesmo Alberca, ao falar da autoficção como gênero que demanda um pacto de leitura ambíguo, estabelece a ficcionalidade desses relatos autobiográficos como algo que só pode repousar sobre uma recepção indefinida pelo leitor:

Doubrovsky la define como novela o ‘ficción de acontecimientos y de hechos estrictamente reales’. Esta definición y el neologismo introducían, talvez a su pesar, una evidente contradicción en los términos. ¿Por qué ‘ficción’ si se trata de un ‘relato de hechos estrictamente reales’? ( ALBERCA, 2012ALBERCA, Manuel. Umbral o la ambigüedad autobiográfica. Círculo de Lingüística Aplicada a la Comunicación, v. 50, p. 3-24, 2012. Disponível em Disponível em: : http://www.ucm.es/info/circulo/no50/alberca.pdf . Acesso em: 12 jul. 2021.
: http://www.ucm.es/info/circulo/no50/al...
, p. 14).

Ou seja, a ambiguidade do termo caracteriza essa modalidade de leitura e perpassa a obra autoficcional ao longo de sua extensão e não como um pacto anterior à leitura. Para o teórico espanhol, a autoficção é uma etapa para se chegar à antificção. O mesmo modo através do qual Lejeune observa o diário como gênero que marca a demanda pela antificção na França é o que Alberca usa para analisar a autobiografia na Espanha. O que os diferencia é que, no espanhol, a ficção é vista como parte da autoficção de modo indissolúvel e existe, de fato, um pacto de leitura que não repousa sobre uma oposição em que os termos se excluem. Já é possível enxergar-se aqui, nesse pacto ambíguo, um consentimento para que aqueles subgêneros que fazem usos das escritas-de-si para mimetizá-las, no romance, não sejam engodo ou falsidade. A abertura para possibilidades estéticas que essa ambiguidade proporciona é a base para que se possa reconhecer que, mesmo na antificção, existem sim modos de gêneros atrelados à ficção como parte das convenções horizontais serem a base para a configuração estética e para o pacto de leitura. Os gêneros que foram historicamente atrelados à ficção no sentido de narrativa de evento não real assumem não apenas a narrativa do real como a configuração dos gêneros das escritas-de-si e de outros que são comprometidos com o pacto referencial, de um modo que exacerba a assimilação já apontada por Bakhtin como formadora do romance, sendo este um gênero literário constituído por discursos parasitários. O exacerbamento refere-se, evidentemente, ao fato de não somente a forma mimetizar esses gêneros referenciais, mas de que aquilo que se narra poder ser reconhecido como evento ocorrido.

Trata-se, novamente, de um jogo, no sentido com que Wolfgang Iser (1996ISER, Wolfgang. O ato de leitura: uma teoria do efeito estético. Vol. 1. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996.) define a ficção. Um jogo em que a mímica não está mais no “como se” do jogo onde a criança imita ações, mas nas convenções que fazem da execução dessas ações, ainda que reais, um jogo. É uma expressão paradoxal, como já era o pacto ambíguo da autoficção. A possibilidade de uma antificção romanesca é aceitável porque o romance, em épocas passadas, assimilou as configurações dos gêneros referenciais. É o que permite que autobiografias possam ser recebidas como autoficções, ou que diários sejam lidos como antificções; em ambos os casos, o leitor tem em mãos uma obra que finge, que joga a partir das convenções horizontais seguidas pelo romance. A publicação de um evento autobiográfico para ser lida como obra romanesca constituía a ambiguidade da autoficção, como uma intromissão no pacto referencial; a publicação de um diário pessoal como romance, sobretudo depois da morte do autor, exacerba essa ambiguidade, agora numa direção contrária. Condição confusa de pacto de leitura, é um “como se” iseriano em que a criança pode se queimar de fato e aos amigos com os quais joga, para poder ter em seu favor ou como certeza da impunidade o fato de dizer que tudo não passava de mímica ficcional.

A publicação de obras como Voyage avec deux enfants, de Hervé Guibert, em 1982GUIBERT, Hervé. Voyage avec deux enfants. Paris: Les Éditions de Minuit, 1982. , e da série de diários de Ricardo Lísias, começada por Diário da cadeia, em 2017LÍSIAS, Ricardo. Diário da cadeia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2017., e seguida pelos volumes do Diário da catástrofe brasileira, cujo primeiro foi lançado em 2018, exemplifica essa condição do que no presente está sendo considerado como antificção romanesca. Se o autor francês concebe um diário como relato, com prevalência da ação sobre o comentário, o brasileiro cria uma espécie de crônica, em que os fatos, que são de conhecimento coletivo, são comentados. Entre um extremo e outro, pode-se tomar Diário de um ano ruim, de J. M. Coetzee, de 2008COETZEE, J. M. Diário de um ano ruim. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. , como uma experiência em que esses extremos aparecem juntos em cada página, mas separados por uma linha que os delimita. Essa linha que separa o ensaio da ficção, a certa altura do romance, ganha mais uma, a partir da qual se narra uma narrativa ficcional. Os dois textos estrangeiros foram publicados como romances; os volumes do brasileiro ainda sofrem com discussões acerca da sua natureza como gênero.

A antificção romanesca pode ser observada, nesses casos, como uma estética que suplanta a autoficção, por assumir a configuração de gêneros referenciais não narrativos, como o artigo de opinião, e mesmo assim serem identificados, por seus autores, como romances.

O diário como possibilidade de configuração para o romance antificcional

As teorias sobre a pós-modernidade na literatura enfatizaram o que chamavam de “retorno do real” como sendo essa uma demanda por estéticas que se aproximavam da ideia de mimesis como cópia do real. A atenção foi dada, em princípio, ao que se chamou de “metaficção historiográfica”, e o romance-histórico apareceu como um exemplo de uma narrativa literária próxima daquelas possibilidades de verificação, como aparecem nas primeiras convenções verticais de Searle. A representação do real aparecia através de técnicas já experimentadas. Falou-se muito no esgotamento das possibilidades de experimentação.

A adoção do conceito de “metaficção” como sendo um procedimento característico das estéticas pós-modernas significou, na verdade, uma atenção para procedimentos de experimentação com a linguagem que mostrava vitalidade da narrativa em vez de esgotamento. A narrativa pós-moderna, tal como a moderna, faz perceber aquilo que Luiz Costa Lima (1980LIMA, Luiz C. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980.) chamou de “mimesis da produção”, algo que, na modernidade, significava um rompimento com a representação do real. Essa mimesis da produção aparece como metaficção através de técnicas que se tornam, elas próprias, exposição da mimetização de gêneros e das vozes que enunciam dentro da narrativa. Ser real, na pós-modernidade, significava mostrar os modos pelos quais as vozes chegavam ao leitor através de configurações complexas. Uma das estratégias da metaficção ficou sendo a mimetização das escritas-de-si, assim como exibir o próprio ato de pesquisa para construção do romance-histórico. A autoficção pode ser considerada uma estratégia metaficcional bem anterior à elaboração do conceito. Ela está na produção de autores que experimentavam com o eu, que faziam da memória a base para a configuração das narrativas. O desenvolvimento do conceito de autoficção coincidiu com as pesquisas que terminaram na elaboração do conceito de “guinada subjetiva”, por Beatriz Sarlo, em obra de 2005. A pesquisadora argentina recolheu relatos memorialísticos de vítimas da Ditadura-Militar em seu país. A “guinada subjetiva” ( SARLO, 2007SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.) encontra eco nos trabalhos finais de Michel Foucault, sobretudo A hermenêutica do sujeito e A coragem da verdadeFOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros. II: curso no Collège de France (1983-1984). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: WWF Martins Fontes, 2011. . Após o ofuscamento do conceito de subjetividade, Foucault insiste na possibilidade de um conhecimento-de-si no primeiro; depois, ele fala das escritas-de-si como possibilidade de desnudamento da verdade sobre o próprio eu, que fala de si e que se compromete com a veracidade do que escreve. A parresía das escritas-de-si, como coragem e compromisso com a verdade, faz delas um modo de expressão do real. Mostrar-se como sujeito que fala a verdade de si é uma convenção dessas escritas. É preciso que o leitor creia nelas e em seu autor.

A autoria, negada em décadas anteriores, desponta juntamente com esse sujeito. As falas sobre o eu, sejam como escritas-de-si ou como ficção, tornam-se uma marca dessa pós-modernidade que se afirma a partir das últimas décadas do século XX. É através delas que se pode falar em retorno do autor. Karl Erik Schollhammer também assume o retorno do autor como um conjunto de vertentes da estética literária contemporânea:

Na crítica contemporânea, fala-se muito de um “retorno do autor”, e há claramente, na literatura e na própria crítica contemporânea, uma acentuada tendência em revalorizar a experiência pessoal e sensível como filtro de compreensão do real. No mesmo movimento, são revalorizadas as estratégias autobiográficas, talvez como recursos de acesso mais autêntico ao real em meio a uma realidade em que as explicações e representações estão sob forte suspeita. Nessa renovada aposta na tática da autobiografia, dilui-se a dicotomia tradicional entre ficção e não ficção, e a ficcionalização do material vivido torna-se um recurso de extração de uma certa verdade que o documentarismo não consegue lograr e que não reside numa nova objetividade do fato contingente, mas na maneira como o real é rendido pela escrita. ( SCHOLLHAMMER, 2009SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009., p. 166-167).

O retorno do autor como uma possibilidade de elaborações que tratam do real sem o documentarismo e a objetividade das estéticas realistas é algo que passa por inúmeras manifestações do que pode ser chamado de antificção. O autor ainda é bastante preciso ao demonstrar que essa possibilidade de compreensão do real aparece, entre outros fenômenos, como possibilidade de configuração de gêneros:

Todavia, no momento em que se aceita e se assume a ficcionalização da experiência autobiográfica, abre-se mão de um compromisso implícito do gênero, a sinceridade confessional, e logo a autobiografia se converte em autobiografia fictícia, em romance autobiográfico, ou simplesmente em autoficção, na qual a matéria autobiográfica fica de certo modo preservada sob a camada do fazer ficcional e, simultaneamente, se atreve a uma intervenção na organização do ficcional, em um apagamento consciente dessa fronteira. ( SCHOLLHAMMER, 2009SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009., p. 167).

O trecho acima fala de autobiografia e se concentra em um modelo de autoficção que é aquele canônico. A autobiografia aparece como gênero que se mescla àqueles que são ficcionais, sobretudo o romance. A abordagem de Schollhammer ainda está voltada para narrativas longas, memorialísticas, que olham para o passado como uma perspectiva de que o fato real, colocado sob a ambiguidade do pacto ficcional, é uma garantia de que a narrativa se aproxima do real de modo mais exacerbado que o das estéticas documentárias. A subjetividade substituiu a antiga objetividade; o fato de um eu, como sujeito, falar de si, aproxima as narrativas do retorno do autor da coragem da verdade parresiástica. O eu memorialístico traz sintomas de que as convenções verticais não foram perdidas inteiramente de vista; elas estão apenas sob o controle de algum gênero que se define como ficcional, sobretudo o romance.

A função que o diário tem assumido na produção antificcional, entre elas a brasileira, é a de já ser elaborado a partir dessa configuração, não como um diário íntimo, mas como uma escrita que nasce como gênero ficcional.

Um caso notório de utilização do diário pessoal como depositário da memória é o do escritor francês Hervé Guibert. Trata-se de um dos autores que Lejeune toma como modelo para o conceito de antificção. O romancista francês possui uma obra extensa, também devido ao interesse póstumo pela publicação de suas escritas-de-si. A morte prematura, em uma época em que a Aids representava ter um tempo curto para a elaboração de uma obra, juntamente com toda uma mitologia que existia nas décadas de 1980 e 1990 acerca da homossexualidade que se exibia como causa da doença, fizeram do autor um fenômeno de interesse público. E o autor, evidentemente, é citado como modelar no sentido da coragem de exposição da subjetividade através da narrativa da vida privada. Guibert é considerado um autor de romances autoficcionais. Seu memorialismo fazia do diário pessoal uma espécie de fonte para a elaboração de seus romances. A diferença era bastante pequena: os diários do autor eram publicados como romances com poucas alterações. A prática, assim que assimilada pelo leitor-ideal do autor, que lia seus romances como autoficção, torna-se ainda mais provocativa quando o autor elabora um romance-diário já com um distanciamento maior do real, mas o texto é recebido como autoficção. Os casos extremos, em Guibert, seriam Voyage avec deux enfants, em 1982, e Fou de Vincent, em 1989. Se o primeiro é praticamente uma cópia precisa de seu diário pessoal utilizado como fonte, mas teve uma recepção imediata como romance, ao qual o pacto autoficcional foi sendo acrescentado, o segundo é um romance-diário, que foi recebido como mais um conjunto de anotações de um diário pessoal, mesmo que agora o autor apenas fingisse esse efeito.

Esses modos de recepção certamente repousam sobre a configuração da primeira dessas obras. O formato tradicional do diário íntimo, que tem na data um modo de identificação e, em seguida, um uso da primeira pessoa, seja narrando ou comentando, percorre Voyage avec deux enfants, o que faz dele, estruturalmente, um romance-diário. Outro recurso que chama a atenção é o uso de letras para ocultar os nomes de personagens, frequente não só em diários publicados como tais como em romances-diários que mimetizam os formatos daquele. Ou seja, um conjunto de recursos que aproxima o texto do diário íntimo mais canônico. Um dos registros, ainda nas páginas iniciais, mostra essa configuração, assim como o tom confessional, o interdito, característicos das escritas do eu:

Dimanche 14 mars. B. m'a prêté le journal d'un homme qui aime les enfants. Je le lis un peu, tout en sachant que je me comporterai différemment, comme un manuel d'instruction en vue de ce voyage. Il est l'atlas du véritable pays vers lequel je m'engage: l'amour et la compagnie des enfants. Cet homme, de quarante ans déjà, vit chez ses parents et ne sait pas nager. Il doit prendre tous les soirs des quantités faramineuses de somnifères, comme pour achever son désir qui n'a jamais de cesse, aucun point de résorption (s'il caresse les cheveux d'un enfant, il remarque douloureusement que sa tête «ne répond pas»). Amoureux d'un géant de quinze ans, il conduit sa voiture à tombeau ouvert, collectionne les slips sales d'enfants dans des flacons, et s'émeut en lisant dans le journal le fait divers d'un enfant berger, d'un petit Berbère lapidé pour avoir massacré en le sodomisant un pélican mâle. ( GUIBERT, 1982GUIBERT, Hervé. Voyage avec deux enfants. Paris: Les Éditions de Minuit, 1982. , p. 16-17). 3 3 Tradução nossa: Domingo 14 de março. B. me emprestou o diário de um homem que adora crianças. Li um pouco, sabendo que me comportarei de maneira diferente, como um manual de instruções para esta viagem. É o atlas do verdadeiro país com o qual me comprometo: o amor e a companhia das crianças. Este homem, já com quarenta anos, vive com os pais e não sabe nadar. Ele tem que tomar grandes quantidades de pílulas para dormir todas as noites, como se para completar seu desejo sem fim, sem ponto de reabsorção (se ele acaricia o cabelo de uma criança, ele percebe dolorosamente que sua cabeça "não está respondendo não"). Apaixonado por um gigante de quinze anos, ele dirige seu carro em alta velocidade, recolhe em garrafas cuecas sujas de crianças e se emociona ao ler no jornal a notícia de um pastor infantil, um pequeno berbere apedrejado por ter massacrado um pelicano macho sodomizando-o.

Fica difícil para o leitor que não conhece a obra de Guibert reconhecer o gênero do texto, o que produz a ambiguidade do pacto. O autor transformou essa ambiguidade em uma estratégia para a construção de sua produção literária. No entanto, esse marco inicial, se mantém as configurações mais reconhecíveis do diário íntimo, não faz com que o autor imite essa forma em obras posteriores. O diário íntimo, em Fou de Vincent, já não mantém esse formato. Trata-se de um romance-diário que se intitula como diário, mesmo já não se ancorando na data nem fazendo das entradas trechos portadores da unidade também canonizada em obras famosas do gênero. A fragmentação faz com que as entradas sejam curtas e já não se possa saber, pela datação, a sequência exata dos momentos da narração. O texto não tem medo de parecer romanesco. A sua recepção, por um certo público, como diário, corresponde, certamente, ao resultado da ambiguidade do pacto de leitura, naquele leitor que ingenuamente categoriza obras autoficcionais sem atentar para aquela. O trecho abaixo evidencia essa mescla de características:

J’avais connu Vincent en 1982, alors qu’il était um enfant. Il l’était resté dans mes rêveries, je devais me résoudre à ce qu’il soit devenu un homme, je continuais à l’aimer pour ce qu’il n’était plus. Depuis six ans il envahissait mon journal. Quelques mois après sa mort, je décidai de le retrouver dans ces notes, à l’envers. Qu’est-ce que c’était? Une passion? Un amour? Une obsession érotique? Ou une de mes inventions? ( GUIBERT, 1989GUIBERT, Hervé. Fou de Vincent. Paris: Les Éditions de Minuit, 1989. , p. 8). 4 4 Tradução nossa: Conheci Vincent em 1982, quando ele era criança. Ele permaneceu assim em meus devaneios, eu tive que decidir que ele havia se tornado um homem, eu continuei a amá-lo pelo que ele não era mais. Por seis anos invadiu meu diário. Alguns meses depois de sua morte, decidi encontrá-lo nestas notas, de cabeça para baixo. O que é que foi isso? Uma paixão? Um amor? Uma obsessão erótica? Ou uma das minhas invenções?

Os espaços entre os parágrafos sugerem que se trata de entradas diferentes. A datação dessas entradas não aparece ao longo do todo. Aquilo que sobra é ainda suficiente para que o leitor possa ler esse romance como diário íntimo? O tom confessional e a temática homoerótica parecem ser suficientes para que o leitor de Voyage avec deux enfants leia Fou de Vicent como diário. Seria, assim, um modo de se justificar o modo como Lejeune enxerga a antificção.

No entanto, é preciso que se entenda, contra Lejeune, que essas mesmas obras passaram a ser categorizadas como romances, e o autor, como romancista.

Nesse sentido, o percurso criativo de Ricardo Lísias no Brasil parece valer-se da mesma ambiguidade, mas perfazendo um caminho oposto. É a produção autoficcional do autor, a extensa exposição do autor nas mídias como sendo a personagem de que trata seus romances, assim como a comprovação da realidade, mesmo que ficcionalizada, dos fatos, que faz com que o autor se dedique cada vez à produção de textos de natureza diarística. E, embora Lísias tenha surgido como um autor de autoficção, a adoção do formato de diário e a inclusão de eventos da vida nacional, de notório conhecimento, acabam por fazer com que esses textos sejam recebidos como não-ficcionais. Se o Diário da cadeia usava o formato mais canônico do diário para tratar de eventos imaginados, ainda que diretamente atrelados à vida do país e fazendo referências a fatos da história recente e noticiados, a atribuição da autoria do texto ao ex-deputado Eduardo Cunha fez com que, a princípio, o romance fosse de fato lido como um diário deste. Após as querelas na justiça, foi preciso que se expusesse a condição de pseudônimo na capa do livro. Continuou sendo uma estratégia de pacto de leitura: a obra é romanesca, embora trate de episódios da vida recente do país. E, ao contrário daqueles recursos frequentes no romance-diário, para que ele pareça ter passado pelo crivo de um editor que não quer nomes de pessoas reais em edições suas, Diário da cadeia nomeia as pessoas conhecidas do público-leitor, quase sempre políticos. Um ato que aproxima o texto da realidade, mas que também faz dele uma invenção ficcional, de modo mais contundente do que ocorria nas obras autoficcionais. Aqui, não ocorre um eu marcado pela identidade com o autor. Seu narrador-protagonista é um eu com nome de outro. A presença de nomes reais de pessoas da vida política do Brasil é essencial à proposta estética do romance. Uma ficção que precisa de nomes verdadeiros é um caso curioso de pacto de leitura. O trecho abaixo serve como exemplo:

19 de outubro (quarta feira) Jesus também passou pelo que estou passando e depois deu a volta por cima para cuidar do ser humano. O que está sendo posto em cheque agora, nessa nação abençoada por Deus, é o meu equilíbrio. Mas é ingênuo colocar em cheque o que eu sempre tive de melhor. Conselho 1: A gente sempre tem que confiar no que tem de melhor. Algumas coisas eu preciso colocar em ordem. “Deus meu, em ti confio, não me deixeis confundido, nem que os meus inimigos triunfem sobre mim.” (Salmos 25:2) Vou organizar meu livro. Também preciso olhar todos os jornais para entender o que fazer. Meus arquivos vão me salvar. As denúncias contra mim são absurdas e requentadas. Vou contestá-las na justiça. Estão todos com medo. Deus ensina que o justo não tem do que temer. Minha família tem sido constantemente atacada. A Globo me pede declaração apenas alguns instantes antes do Jornal Nacional começar. Jornalistas desafetos insistem em notícias plantadas. Mas todos terão que provar tudo em juízo. Quem com ferro fere com ferro será ferido. Se estão querendo me isolar, não vão conseguir. Nesses anos todos de política, fiz muitos amigos, me aproximei de muita gente. Na batalha contra os do PT, estive com o que existe de melhor nesse país. Continuarei dialogando. Receberei visitas com a mesma disposição de antes e não vou deixar de lado todo o trabalho que conduzi até aqui. Meus advogados se comprometeram a me ajudar com a comunicação, agora que já não conto com uma assessoria especializada. Eles levarão e trarão minha correspondência. Prezado Kim Kataguiri e amigos do Movimento Brasil Livre Mais uma vez eu os cumprimento pela grande obra que foi ter tirado o PT do poder e evitado que o Brasil virasse uma grande Venezuela. Foi um prazer termos trabalhado juntos, eu recebi vocês com muita alegria durante o processo de impeachment. A alegria e a juventude de vocês me inspiraram, me deram energia e força. Agradeço a confiança mútua. Escrevo para comunicar minha mudança temporária de endereço. No entanto estou com as portas abertas para, como sempre, receber vocês. Tenho certeza que, como durante o processo de impeachment, nosso diálogo será rico e intenso. Vocês estão desde já convidados para vir até Curitiba para continuarmos nossas articulações. Por favor marquem com o meu advogado. Com a amizade do Eduardo Cunha. ( LÍSIAS, 2017LÍSIAS, Ricardo. Diário da cadeia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2017., p. 9-10, destaques do autor).

A configuração do texto citado acima evidencia a complexidade de uma escrita que é polifônica, em um nível que não é o do diário íntimo. A presença de uma carta copiada na íntegra soa estranha ao diário. O texto assume uma dimensão menos íntima e mais de um texto produzido para um leitor. O narrador-protagonista, Eduardo Cunha, já havia comentado as vantagens de ir produzindo um diário que viria a público conforme ele fosse escrevendo. Ter leitores é uma estratégia do narrador-protagonista, um recurso de veridicção que contribuiu, certamente, para a ingenuidade de certas recepções. A presença de citações bíblicas e de um comando com valor de aforismo, destacados com negrito, acentua essa natureza de texto elaborado para o outro. Trata-se de um fingimento evidentemente romanesco, pois não se espera do diário íntimo essa diversidade de fontes. São estratégias que marcam o texto como ficcional, no sentido de pertencer a um gênero reconhecido como tal. Ou seja, uma veridicção que na verdade é fingimento.

Depois de um falso diário polêmico, mas com marcas evidentes de ficcionalidade, Lísias passou a investir por anos seguidos nos volumes do Diário da catástrofe brasileira. Esses diários possuem subtítulos, como “Ano I: o inimaginável foi eleito” e “Ano II: um genocídio escancarado: 2”, referências imediatas à eleição e aos anos de governo do presidente Jair Bolsonaro. O romance Diário de um ano ruim, de Coetzee, parece um embrião da obra mais ensaística de Lísias. Afinal, os volumes de Diário da catástrofe brasileira falam de modo ensaístico da realidade brasileira dos últimos. Constituem verdadeiros pareceres críticos do escritor em relação à história brasileira, conforme ela vai acontecendo. A pontualidade de cada volume, ao escolher os fatos que servem como denominadores comuns a cada ano, serve como a proximidade que o diário persegue com um passado imediato, que ainda é presente. Lísias fala como comentador. Essa voz que parte de uma subjetividade para falar da memória coletiva é outra estratégia que embaralha a recepção do texto: a voz não é de um narrador-personagem, mas de um narrador-comentador, que é personagem perdido dentro da coletividade sobre a qual narra. Lísias é percebido como ensaísta por leituras mais ingênuas, que não apreendem a possibilidade de um diário real poder ser, se o autor assim o define, um romance.

O trecho seguinte exemplifica essa natureza problemática. Primeiramente, ser ou não uma narrativa em vez de ensaio; em seguida, ser um gênero ficcional mesmo abordando fatos notoriamente reais:

29 de dezembro Outro assunto que vai ocupar muitas entradas é a negação da gravidade do que estamos vivendo. Com exceção de seus apoiadores assumidos, não haverá quem negue a inépcia do governo federal na crise causada pela pandemia. Será muito menor a proporção daqueles que aceitarão algo evidente: o governo age de caso pensado e toda essa mortandade está em seu projeto político. As razões são muitas e diferentes para cada grupo de negação. Bastante gente na verdade apoia veladamente o governo. Outros, como cientistas e intelectuais, giram em torno do que para eles tornou-se estranhamente uma verdade: trata-se de incompetência. Por que esses grupos, com exceção de vozes muito isoladas, não aceitam que há um projeto por trás de cada ato aparentemente insano do mito, não sei explicar. A classe média no geral apoiou a eleição da Morte para presidente. Talvez esteja aí uma parte da explicação. Dá para dizer o mesmo da imprensa, que, como veremos, continua a apoiá-lo, muito por conta do poder financeiro. Tentarei examinar cada um desses grupos. Agora, posso ser enfático: se esses meios empregassem um terço da força que empregaram para afastar Dilma Rousseff da presidência da República e prender Lula, o presidente brasileiro seria outro hoje. O destino de muitas das 353.137 pessoas que perderão a vida até o fechamento desse livro mudaria. A ocasião me parece boa para avaliar a circulação do Ano I do Diário da catástrofe brasileira. No que diz respeito a essa mesma imprensa, o livro foi ignorado. Tendo sido compreendido como um trabalho endereçado à editoria de política e não à de arte e cultura, e ao mesmo tendo criticando enfaticamente essa mesma editoria, o livro não foi resenhado por nenhum jornal, embora eu saiba que inúmeros jornalistas dessa área o tenham lido. A única resenha, aliás brilhante, saiu na revista Quatro cinco um, que não separa sua pauta por temas. Para este Ano II, não fiz nenhum jogo de boa vizinhança, como o leitor irá logo notar. Acho que um breve exame de um editorial recente do jornal O Estado de S. Paulo pode mostrar bem a situação do jornalismo político no Brasil. Amanhã. ( LÍSIAS, 2021LÍSIAS, Ricardo. Diário da catástrofe brasileira: Ano II: um genocídio escancarado 2. Rio de Janeiro: Editora Record, 2021., p. 7-8).

O trecho poderia parecer uma introdução. Ou uma crônica de jornal. Trata-se de uma entrada de Diário da catástrofe brasileira. Ano II: um genocídio escancarado, em que as referências ao presente devidamente datado também falam do dia seguinte, como se o leitor estivesse acompanhando diariamente a publicação de cada data. No caso da obra impressa, se isso é apenas um truque, o mesmo não pode ser dito das efetivas publicações diárias na internet. O texto é, assim, diário. Não é íntimo. Trata-se de um caso notório de performance. No caso do romance-diário, essa aproximação do narrado do tempo da narração é uma marca identitária. A indeterminação em relação ao tempo futuro, presente no texto como previsão, mas já acontecido quando o leitor do livro o lê, também é. Lísias fala de si e o comentário sobre o volume anterior do diário serve como uma confirmação: a voz de quem enuncia é a do verdadeiro autor. Essa condição, evidentemente, já não é a do pacto ambíguo da autoficção. Nem o narrador-personagem narra cronologicamente os fatos de sua biografia. A prevalência do comentário sobre a narrativa faz com que o texto seja problemático como autoficção, mas evidente como antificção. Uma antificção que o autor define como romanesca, o que leva a elogiar a resenha da revista Quatro Cinco Um. Esse elogio tornou-se recorrente quando Lísias criticou a inclusão de seu romance em uma categoria de não-ficção quando da concessão de um prêmio importante. Considerar ingênuas ou falhas as leituras que apreendem seu texto como um autêntico ensaio em vez de um romance tornou-se uma forma de o autor explicitar, de modo performático, através de diversas mídias, a natureza do pacto de leitura que procurou estabelecer: um romance que trata de fatos reais, escrito progressivamente como um diário.

O estranhamento que a obra provoca é que não se trata de uma narrativa romanesca que finge ser um diário, mas de um diário que é dado ao leitor como se estivesse configurado como narrativa romanesca. Esse caso estranho de antificção romanesca só pode ser explicado se partirmos do conceito de Lejeune e do modo como ele enxerga a possibilidade de um texto migrar de gênero, como ocorre com os romances de Hervé Guibert. Essa mesma migração gera uma duplicidade no modo de recepção. Mais que ambiguidade, o que está em Guibert e Lísias é uma possibilidade de se fazer uma leitura unilateral, que os dois autores veriam como ingênua. Guibert também fazia anotações em forma de diário, já pensando na publicação delas como romances. Assim, seu modo de escrita diarística como base para a romanesca é aparentada à de Lísias. A diferença é que o último publica, de modo performático, na internet, os textos do diário que formarão um romance. Guibert não contava, em sua época, com essa possibilidade. Sua escrita está mais próxima dos romances da fase mais autoficcional de Lísias.

São casos que ilustram possíveis relações do diário com a antificção, passando ou não pela autoficção. Mostram também que a natureza desses diários que se tornam antificções romanescas não é, por definição, a do diário íntimo. A visão de Lejeune da antificção como sendo uma demanda por diários íntimos autênticos parece redutora, mesmo diante do caso que ele toma como paradigma. Seu conceito vale, sobretudo, por evidenciar que a antificção é uma estética. Um conjunto de procedimentos estéticos que parte da narrativa de fatos reais, de um modo mais exacerbado que o da autoficção. Esta, sem dúvida, também tem servido ao antificcional. Se, em Guibert, isso é evidente, em Lísias ainda é uma estética problemática, pois uma apreensão não romanesca de sua não-ficção afeta diretamente a intencionalidade que motivou a elaboração da obra.

Considerações finais

Antificção é um conceito que deve ser ampliado para que de fato possa explicar os fenômenos que abarca. Não se trata de entender o conceito como um modismo que se refere ao diário ou à autobiografia. Pode-se entender antificção como um conjunto de gêneros que costumam ser classificados como não-ficcionais, como queria Lejeune. Mas a ideia que se quer fixar aqui é a de que é possível estender o conceito a práticas ficcionais ambíguas, que têm as escritas-de-si como ponto de partida. Entende-se aqui por ficção aquilo que Searle havia estabelecido através da ideia de intencionalidade: não é a natureza do fato narrado que define o que é ficção, mas o pacto de leitura estabelecido com o leitor.

Esse pacto permite que obras que narram o real possam ser apreendidas como pertencentes a gêneros convencionados como ficcionais, sobretudo o romance. Se por um lado a autoficção mimetiza gêneros de escritas-de-si como estratégia de veridicção pois esses criam efeitos de passionalidade próximos ao do compromisso da verdade da parresía, os gêneros de escritas-de-si autênticos, com ênfase no diário, podem migrar para gêneros como o romance sem alterarem o teor nem a forma de sua escrita. Essa possibilidade faz com que diários autênticos possam ser publicados e lidos como romances. É possível focalizar aqui não apenas o diário narrativo, memorialístico, mas o diário que assume a natureza de ensaio sobre o tempo presente. Se no primeiro caso é a confissão do interdito que intensifica a necessidade de se falar do fato real, no segundo é a necessidade de falar da realidade contemporânea naquilo que ela tem de traumático para a coletividade. Existe, assim, atenção tanto para a subjetividade como para a coletividade. Hervé Guibert é um exemplo da antificção como imposição da subjetividade; Ricardo Lísias exemplifica as preocupações de uma coletividade. Tanto um como o outro usam a configuração do diário para a elaboração de romances. Guibert está ainda próximo do modelo canônico da autoficção. Lísias supera esse modelo, em direção a modalidades narrativas ainda inclassificáveis como subgênero dentro do gênero romanesco.

REFERÊNCIAS

  • ALBERCA, Manuel. Umbral o la ambigüedad autobiográfica. Círculo de Lingüística Aplicada a la Comunicación, v. 50, p. 3-24, 2012. Disponível em Disponível em: : http://www.ucm.es/info/circulo/no50/alberca.pdf Acesso em: 12 jul. 2021.
    » : http://www.ucm.es/info/circulo/no50/alberca.pdf
  • BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.
  • BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I Tradução de Eduardo Guimarães et al Campinas: Editora Pontes, 1993.
  • COETZEE, J. M. Diário de um ano ruim Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros. II: curso no Collège de France (1983-1984). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: WWF Martins Fontes, 2011.
  • GALLAGHER, Catherine. Ficção. In: MORETTI, Franco. O romance 1: a cultura do romance. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 640-658.
  • GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa Tradução de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega Universidade, s/d.
  • GUIBERT, Hervé. Voyage avec deux enfants Paris: Les Éditions de Minuit, 1982.
  • GUIBERT, Hervé. Fou de Vincent Paris: Les Éditions de Minuit, 1989.
  • HAMBURGER, Käte. A lógica da criação literária Tradução de Margot P. Malnic. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986.
  • HUMPHREY, Robert. O fluxo da consciência: um estudo sobre James Joyce, Virginia Woolf, Dorothy Richardson, William Faulkner e outros. Tradução de Gert Meyer. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976.
  • ISER, Wolfgang. O ato de leitura: uma teoria do efeito estético. Vol. 1. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996.
  • LEJEUNE, Philippe. Le journal comme “antifiction”. Dans Poétique, n. 149, p. 3-14, 2007. Disponível em: Disponível em: https://www.cairn.info/revue-poetique-2007-1-page-3.htm Acesso em: 21 jul. 2021.
    » https://www.cairn.info/revue-poetique-2007-1-page-3.htm
  • LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Organização de Jovita Maria Gerheim Noronha. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. 2. ed., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
  • LIMA, Luiz C. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980.
  • LÍSIAS, Ricardo. Diário da cadeia Rio de Janeiro: Editora Record, 2017.
  • LÍSIAS, Ricardo. Diário da catástrofe brasileira: Ano II: um genocídio escancarado 2. Rio de Janeiro: Editora Record, 2021.
  • SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
  • SEARLE, John R. Intencionalidade Tradução de Júlio Fischer e Tomás Rosa Bueno. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002a.
  • SEARLE, John R. O estatuto lógico do discurso ficcional. In: SEARLE, John R. Expressão e significado: estudos da teoria dos atos de fala. Tradução de Ana Cecília G. A. de Camargo e Ana Luíza Marcondes Garcia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002b. p. 95-120.
  • SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
  • 1
    Tradução nossa: “Antificção”, esta palavrinha - não muito bonita, admito - parece-me dizer algo diferente da clássica "não-ficção" anglo-saxônica. Ela é mais combativa, menos suave. Também é mais precisa, não se aplica a todos os textos que não praticam ficção (definição negativa), mas para uma categoria particular de textos, aqueles que a rejeitam violentamente (definição positiva). Em contato com ficção, o jornal murcha, desmaia ou tem um ataque de urticária. Autobiografias, biografias, livros de história estão contaminados, têm ficção no sangue. Percebo que estou exagerando, que estou simplificando. Existem transições, nuances, às vezes é menos simples. Mas "antificção” é como uma lupa: o que amplia é real.
  • 2
    Tradução nossa: “Enfim, o diário não precisa da imaginação para nada, pois é o reino do fatual. Segundo a tese de Lejeune, o diarista não pode inventar, pois está ligado ao momento e o registra sem a possibilidade de construí-lo”.
  • 3
    Tradução nossa: Domingo 14 de março. B. me emprestou o diário de um homem que adora crianças. Li um pouco, sabendo que me comportarei de maneira diferente, como um manual de instruções para esta viagem. É o atlas do verdadeiro país com o qual me comprometo: o amor e a companhia das crianças. Este homem, já com quarenta anos, vive com os pais e não sabe nadar. Ele tem que tomar grandes quantidades de pílulas para dormir todas as noites, como se para completar seu desejo sem fim, sem ponto de reabsorção (se ele acaricia o cabelo de uma criança, ele percebe dolorosamente que sua cabeça "não está respondendo não"). Apaixonado por um gigante de quinze anos, ele dirige seu carro em alta velocidade, recolhe em garrafas cuecas sujas de crianças e se emociona ao ler no jornal a notícia de um pastor infantil, um pequeno berbere apedrejado por ter massacrado um pelicano macho sodomizando-o.
  • 4
    Tradução nossa: Conheci Vincent em 1982, quando ele era criança. Ele permaneceu assim em meus devaneios, eu tive que decidir que ele havia se tornado um homem, eu continuei a amá-lo pelo que ele não era mais. Por seis anos invadiu meu diário. Alguns meses depois de sua morte, decidi encontrá-lo nestas notas, de cabeça para baixo. O que é que foi isso? Uma paixão? Um amor? Uma obsessão erótica? Ou uma das minhas invenções?

Editado por

editor-chefe: Rachel Esteves Lima
editor executivo: Cássia Lopes Jorge Hernán Yerro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2022
  • Aceito
    08 Nov 2022
Associação Brasileira de Literatura Comparada Rua Barão de Jeremoabo, 147, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, BA, Brasil, CEP: 40170-115, Telefones: (+55 71) 3283-6207; (+55 71) 3283-6256, E-mail: abralic.revista@abralic.org.br - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: abralic.revista@abralic.org.br