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A questão de Deus nos seminários de Jacques Lacan

The question of God In Jacques Lacan Seminars

Resumo

O artigo tem como objetivo traçar uma visão panorâmica sobre como Lacan trabalha a questão de Deus em seus seminários. Tendo em vista a importância da questão de Deus para Lacan, nosso artigo se mostra como uma tentativa de mapear tal problema nos seminários e evidenciar que o tema sobre Deus perpassa toda a obra de Jacques Lacan, que vai alterando as suas formulações sobre Deus à medida que seu ensino avança.

Palavras-chave:
Deus; Lacan; Inconsciente; Ateísmo

Abstract

The article aims to provide a panoramic view of how Lacan works on the question of God in his seminars. In view of the importance of the question of God for Lacan, our article is shown as an attempt to map this problem in seminaries and to show that the theme about God permeates the entire work of Jacques Lacan, who changes his formulations about God as his teaching advances.

Keywords:
God; Lacan; Unconscious; Atheism

Introdução

Lacan é sem dúvida um dos psicanalistas mais influentes da história da psicanálise e sua contribuição para o entendimento da obra freudiana, bem como de diversos aspectos da nossa contemporaneidade é inegável. Ao longo de seus mais de vinte e três anos de seminários realizados na França, Lacan trouxe uma contribuição inestimável e que é objeto de inúmeros estudos na psicanálise, teorias do sujeito, teologia e em diversos outros ramos do conhecimento.

Para qualquer pessoa que já se aventurou a percorrer o texto lacaniano, algo que se mostra muito nitidamente é a gama de assuntos que o psicanalista francês trata em seus seminários e, ao mesmo tempo, o discurso várias vezes hermético em que tais assuntos são tratados. É bastante claro para nós que seria impossível abordar todo o sistema lacaniano e suas diversas implicações no decorrer deste trabalho, bem como seria impossível compreender como Lacan articula seus diversos conceitos em torno da construção de sua psicanálise. Nossa proposta aqui é muito mais modesta do que proporcionar uma visão ampla do ensino de Lacan, mas apenas realizar um pequeno recorte e tentar entender como Lacan pensa apenas a questão de Deus. Temos plena consciência de que até mesmo essa investigação sobre a questão de Deus torna-se extremamente ampla e temos ciência que até mesmo o conceito de Deus sofre diversas alterações no decorrer do ensino de Lacan.

Desenvolvimento

Lacan desde muito cedo se dedicou a pensar a questão de Deus em seu ensino. Uma das primeiras formulações pode ser encontrada no seminário 2, em que Lacan, a partir do texto de Dostoiévski faz uma inversão interessante da fala de Ivan “Se Deus não existir, então tudo é permitido”1 1 Embora a declaração “Se Deus não existir, então tudo é permitido” seja comumente atribuída à Os irmãos Karamázov, Dostoiévski nunca a proferiu. O primeiro a atribuir esta frase a ele foi Sartre em o Ser e o nada. O que podemos chegar são em pequenas aproximações no livro de Dostoiévski como a afirmação de Dimitri em sua discussão com Rakitin (como relata Dimitri para Alíocha) ““Mas então que será dos homens”, perguntei-lhe, “sem Deus e a vida imortal? Então todas as coisas são permitidas, que podem fazer o que quiserem?” Ver DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamázov. Editora 34. p. 672. 2012. Esta citação também aparece no seminário 9 de Lacan na lição do dia 09/05/1962 e ali Lacan a trabalhará de forma diferente, tentando evidenciar a relação entre o desejo e a lei.

Como vocês sabem, [...] Ivan o conduz [seu pai, Karamázov] pelas avenidas audaciosas por onde envereda o pensamento de um homem culto, e em particular, ele diz, se Deus não existir... - Se Deus não existir, diz o pai, então tudo é permitido. Noção evidentemente ingênua, pois, nós, analistas, sabemos muito bem que se Deus não existir então absolutamente mais nada é permitido. Os neuróticos demonstram isto todos os dias (LACAN, 1954-1955/1985 p. 165).

O que Lacan aponta aqui é uma atestação de que o Deus que organizava o mundo já não mais existe para o ser humano moderno, no entanto as proibições que antes estavam ancoradas nesse Deus onipresente se tornaram inconscientes a partir do momento em que se percebe que Deus está morto. Se Deus é inconsciente a questão não é mais a relação do sujeito com uma entidade externa a si que cobra dele um agir correto, mas a relação agora é entre o sujeito e seu inconsciente como lugar das proibições. “Se Deus não existir tudo é proibido” significa que quanto mais o sujeito se percebe como ateu, mais seu inconsciente é dominado por proibições que sabotam seu gozo, ou seja, o que é proibido são as próprias proibições. É esta a inversão que Lacan propõe ao dizer que Se Deus não existir, então tudo é proibido. O sujeito contemporâneo dedica-se à busca de prazeres, mas como não há nenhuma autoridade externa que lhes garanta o espaço para essa busca, eles acabam entrando em uma densa rede de regras autoimpostas e politicamente corretas, como se um supereu muito mais severo que o da moral tradicional os controlasse. Esses sujeitos se tornam obcecados com a ideia de que, ao buscar seus prazeres, eles podem humilhar ou violar o espaço dos outros, por isso regulam seu comportamento em regras detalhadas de como evitar assediar os outros, além de regras relacionadas ao cuidado de si como ginástica, alimentação saudável, relaxamento espiritual, etc. Segundo Z “Nada é mais opressor e regulado que um simples hedonista” (ŽIŽEK, 2015ŽIŽEK, S.; GUNJEVIĆ, B. O sofrimento de Deus. Inversões do Apocalipse. Tradução de Rogério Bettoni. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 38). No seminário 3, As psicoses, Lacan se deterá à análise do Deus de Schreber2 2 Schreber foi um caso analisado por Freud em 1913. Freud analisa o caso de Daniel Paul Schreber a partir do livro de memórias escrito pelo próprio Schreber em 1903. Este atribuiu seus dois primeiros internamentos psiquiátricos à excessiva tensão mental, decorrente do fardo muito pesado de trabalho que carregava (na época havia assumido o cargo de Presidente de uma Divisão da Corte de Apelação (Senatspräsident) da Saxônia (Dresden)). Primeiramente, foi diagnosticado como sofrendo de hipocondria, mas seu quadro logo se agravou, tornando-se mais próximo da maneira como ficou por mais tempo (delírios engenhosos envolvendo religião e questões sexuais). Schreber se vê nestes delírios como um homem perseguido por Deus, que lhe infringe toda espécie de mal e, em momento posterior, como alguém que será a mulher de Deus com quem terá um filho para salvar a humanidade. Schreber encara seu problema como a luta entre ele e Deus. Ao mesmo tempo em que luta com Deus, Schreber lhe demonstrava reverência, evidenciando uma relação bastante ambivalente. Esse ambiente de luta demonstra para Freud um quadro paranoico que poderia ser elucidado pela psicanálise. Cf. FREUD, S. “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de paranóia”, 1911 (ESB vol XII). e evidenciará como a questão de Deus se daria na psicose em que Deus deixa de ocupar o lugar da verdade, ou seja, ao deixar de ocupar esse lugar de outro garantidor dos significantes, Deus se torna um insensato capaz de exigir qualquer coisa do sujeito. Segundo Lacan, "Schreber partiu da noção de Deus" (1955-1956/2008, p. 84), isso aponta para Lacan que em Schreber há uma espécie de divergência entre Deus que seria o Deus garantidor da ordem das coisas como o pressuposto da ciência moderna, uma vez que desde Descartes, Deus seria aquele que garantiria a verdade da razão pelo fato de não nos enganar, e o Deus da experiência crua com o qual ele se relaciona enquanto organismo vivo, ou o "Deus vivo".3 3 Lacan já havia comentado sobre essa noção do Deus de Descartes, do Deus enganador no seminário 2 (1954-1955/1985 p. 16) e retomará essa função de Deus em Descartes no seminário 9, na lição de 22/11/1961. O dilema de Schreber neste sentido não é um problema de lógica, mas um problema da experiência vivida pelo sujeito, por um lado o Deus da ciência garantidor da ordem das coisas, por outro lado o Deus com quem Schreber mantém uma relação erótica da qual ele dá testemunho.

Segundo Lacan,

O que Schreber exprime nos mostra a unidade que ele sente vivamente naquele que sustenta esse discurso permanente diante do qual ele se sente como alienado e, ao mesmo tempo, uma pluralidade nos modos e nos agentes secundários aos quais ele atribui as suas diversas partes. Mas a unidade é bem fundamental, ela domina, e ele a chama de Deus. [...] Não é a experiência que é a garantia de Deus, é Deus que é a garantia da minha experiência" (LACAN, 1955-1956/2008, p. 148,149).

Schreber como filho da Aufklarung está dessa forma dentro do espírito da ciência que desde Descartes colocaria Deus como garantidor da experiência de mundo do sujeito, Schreber, portanto, está muito bem "informado" do status do conhecimento. Mas esse Deus se apresenta para ele não como o Deus da necessidade lógica, e sim como um Deus que fala, como uma presença, mas uma presença que fala o tempo todo não dizendo nada. O Deus de Schreber só conhece as coisas superficialmente, não compreendendo nada do interior do sujeito.

Se, na neurose, Deus se coloca como aquele da lei que garante o funcionamento dos significantes, na psicose a lei dos significantes é foracluída. Dessa forma, Deus, no seminário 3, aparece como delírio, um deus sem lei, defeituoso e louco que não entende nada do mundo do sujeito, e só funciona assim porque a lei dos significantes é foracluída na psicose. A partir da noção de Deus que no final do seminário 3, Lacan chega ao conceito de Nome-do-pai como sinônimo da lei dos significantes.

Em seguida, no seu seminário 4, Lacan afirma que

Os crentes imaginam poder amar Deus porque Deus é considerado detentor de uma plenitude total, uma totalidade de ser. Mas se este reconhecimento dirigido a um deus que seria tudo é apenas pensável é porque, no fundo de toda crença, existe ainda assim esse algo que permanece ali - este ser que se considera ser pensado como um todo, falta a ele, sem dúvida alguma, o principal no ser, isto é, a existência. No fundo de toda crença em deus como perfeita e totalmente munificente, existe a noção de uma coisa qualquer que lhe falta sempre, e que faz com que se possa, ainda assim, sempre supor que ele não exista. Não há outra razão para se amar a Deus senão que talvez ele não exista (LACAN, 1956-1957/1995 p. 143).

Nessa passagem Lacan deixa claro que a relação entre a crença em Deus e a existência de Deus é uma passagem que não deve ser feita de maneira direta. Em toda crença em Deus haveria uma falta que não pode ser preenchida pelo significante Deus, e o amor a Deus se coloca a partir dessa dúvida quanto à sua existência, é aquele que Lacan chama de pai imaginário. Haveria ainda o pai simbólico e o pai Real. O pai simbólico é o nome do pai. Este é o elemento mediador essencial do mundo simbólico e de sua estruturação. O nome do pai é essencial a toda articulação de linguagem humana. Aqui fica bem evidente a noção de que Deus em Lacan, no seminário 4, se articula à lei da própria linguagem. Segundo Lacan,

é a razão pela qual o Eclesiastes diz: O insensato disse em seu coração: não existe Deus. Por que ele o diz em seu coração? Porque não pode dizê-lo com sua boca. Por outro lado, falando propriamente, é insensato dizer com seu coração que não há Deus, simplesmente porque é insensato dizer uma coisa contraditória à articulação mesma da linguagem (LACAN, 1956-1957/1995 p. 374).

Em seguida, no seminário 7, A ética da psicanálise, Lacan considerará a consagrada tese nietzscheana sobre a morte de Deus. A partir de uma análise das diversas formas pelas quais Deus teria sido representado, desde os dez mandamentos no Sinai, passando pela tradição aristotélica moderna, culminando na tese de Nietzsche da morte de Deus e as ideias de Freud sobre Deus, Lacan procurará evidenciar que o que se pensa sobre Deus na sua época só poderia ser entendido a partir da compreensão da morte de Deus. Segundo Lacan,

É claro que Deus está morto. É o que Freud expressa de ponta a ponta em seu mito - já que Deus sai do fato de que o Pai está morto, isso certamente quer dizer que nos demos conta de que Deus está morto, e é por isso que Freud cogita tão firmemente sobre isso. Porém, igualmente, já que é o Pai morto a quem Deus originalmente serve, ele também estava morto desde sempre. A questão do Criador em Freud é, portanto, saber a que deve ser apenso, em nossos dias, aquilo que dessa ordem continua se exercendo (LACAN, 1959-1960/2008 p. 154).

Algo que Lacan vai evidenciar a partir da constatação da morte de Deus é que é pelo fato de Deus estar morto que existe lei, ou seja, é no Deus morto que se reconhece o jogo do significante envolvido no monoteísmo. É neste sentido que Lacan concorda com Freud para dizer que o cristianismo teria sido a única religião que passou do grande homem ao grande homem morto. Segundo Lacan, "o mito do assassinato do pai é justamente o mito de um tempo para o qual Deus está morto" (LACAN, 1959-1960/2008 p. 213).

Para Lacan, no seminário 7, o assassinato do pai seria um dos nomes da coisa, que dá origem à noção de pecado. É dessa forma que, para Lacan, a religião cristã é sempre a religião do pai morto. Segundo Lacan

sabemos que Freud não negligencia o pai real. Para ele é desejável que no decurso de toda aventura do sujeito haja, se não o Pai como um Deus, pelo menos como um bom pai. [...] Mas esse efeito só se produz de modo favorável na medida em que tudo está em ordem do lado do Nome-do-Pai, isto é, do lado do Deus que não existe. Resulta para esse pai uma posição singularmente difícil - até certo ponto é um personagem manco (LACAN, 1959-1960/2008 p. 218).

O pai manco é a única possibilidade para esse Deus que não existe funcionar de maneira apenas provisória, sem a pretensão de organizar a totalidade do mundo, dessa forma, o próprio Deus na contemporaneidade se torna um Deus manco, não mais capaz de organizar o mundo.

No seminário 8, Lacan lança mão da sua tese, talvez uma das mais conhecidas sobre a questão dos deuses, de que os deuses são da ordem do Real. Segundo Lacan, " Os deuses, isso é bem certo, pertencem ao real. Os deuses são um modo de revelação do real" (LACAN, 1960-1961/1992 p. 52). E ainda, no seminário 9, "O amor é uma realidade. É por isso, aliás, que lhes digo, os deuses são reais" (LACAN 1961-1962/2003 p. 158). É por isso que para Lacan toda a filosofia e também toda a religião cristã teria como meta a eliminação de Deus por meio da transformação de Deus em logos, isto é, uma articulação significante. Neste mesmo seminário, Lacan já antecipa algo que será tomado como parte do seu discurso posterior que é a noção de que o santo só pode amar a Deus como um nome do seu gozo, que é em última instância sempre monstruoso.

A tese central do seminário 8 sobre a noção de Deus é que se eles pertencem à ordem do real, toda tentativa da articulação significante sobre ele acaba evidenciando a sua morte, ou seja, a hiância entre Deus e o discurso. No entanto, pensar os deuses no registro do real não invalida, nesse momento, a teoria da diferença dos deuses na estrutura. Na neurose, tal significante continua funcionando como a lei dos significantes, isto é, o Real ex-siste ao simbólico e Deus se apresenta de acordo com essa lei. Na psicose o real não ex-siste e, consequentemente, Deus também não, por isso se apresenta como simbólico insensato.

Em seu livro O triunfo da religião, precedido de Discurso aos católicos (2005), Lacan retira uma consequência paradoxal da experiência contemporânea de que “Deus está morto”. Segundo Lacan

O pai só proíbe o desejo com eficácia porque está morto, e, eu acrescentaria, porque nem ele próprio sabe disso - ou seja, que está morto. Tal é o mito que Freud propõe ao homem moderno, considerando que o homem moderno é aquele para quem Deus está morto - isto é, que julga sabê-lo. Por que Freud envereda por esse paradoxo? Para explicar que o desejo, com isso, será apenas mais ameaçador, e, logo, a interdição mais necessária e mais dura. Deus está morto, nada mais é permitido. (LACAN, 2005LACAN, J. O triunfo da religião, precedido de Discurso aos católicos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 30).

É sabido que toda a crítica da Religião de Freud se coloca sobre a questão do pai de forma que Deus não passaria de uma ilusão e um desejo de que o pai continue vivo para que o sujeito se sinta amparado diante do mundo, no entanto é exatamente esse o ponto que Lacan ressalta nesta passagem, ou seja, o Deus morto coloca para o ser humano um futuro muito mais ameaçador e interdições muito mais duras.

Para entender esta proposição de Lacan é preciso que leiamos tal declaração com outra declaração sobre Deus que se encontra no seminário 11 em que Lacan propõe uma “fórmula para o ateísmo”. Segundo Lacan,

Pois a verdadeira fórmula do ateísmo não é que Deus está morto - mesmo fundando a origem da função do pai em seu assassínio, Freud protege o pai - a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente (LACAN, 1964/1985 p. 60).

Como bem pontua Mattos (2009MATTOS, S. E. C. de. Ateísmo e psicanálise, necessidade ou contingência? Rev. Estud. Lacan. v. 2, n. 3, p.1-26, 2009.),

A partir do momento que Deus é entendido como inconsciente, o que se pode deduzir é aquilo que Freud já nos leva a reconhecer é que a dimensão do inconsciente naquilo que ele tem de irredutível, enquanto ela marca todo discurso, incluindo aí o discurso religioso, está no coração mesmo da religião. Em outras palavras, Freud nos faz perceber que qualquer discurso sobre Deus, diz o que ele é, e, contudo, não o diz. Há algo aí que sempre escapa em qualquer discurso. Enfatiza-se assim o valor fundamental atribuído à negatividade e ao fracasso do discurso quando se trata de falar sobre Deus. Fato que, ou o desacreditaria - pelos limites impostos pela estrutura a qualquer discurso que se pretendesse tomar-se pela verdade -, ou o faria deslizar para o interior deste buraco irredutível, levando-o a ser concebido como idêntico a esta falha mesma. Constrói-se assim um análogon de Deus nascido da psicanálise, ou seja, um termo produzido pela analogia entre a noção Deus e esta falha estrutural da linguagem.

É neste sentido que Lacan é capaz de afirmar que a verdadeira fórmula do ateísmo seria “Deus é inconsciente”, pois o que está em jogo é que esse Deus de alguma forma permeia a estrutura do sujeito enquanto Sinthome. Como bem colocar Slavoj Žižek (2015ŽIŽEK, S.; GUNJEVIĆ, B. O sofrimento de Deus. Inversões do Apocalipse. Tradução de Rogério Bettoni. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 24) “O ateu moderno pensa que sabe que Deus está morto; o que ele não sabe é que inconscientemente, ele continua acreditando em Deus.” O inconsciente do sujeito moderno é o lugar de proibições. O que está reprimido não são desejos ou prazeres ilícitos, mas as próprias proibições. “Se Deus não existir, então tudo é permitido” significa que quanto mais você se percebe como ateu, mais seu inconsciente é dominado por proibições que sabotam seu gozo e, neste sentido, que a proposta lacaniana de Deus como inconsciente ganha novos contornos na contemporaneidade.

Em seu seminário 12 ao tratar do tema da identificação, Lacan irá afirmar que

Ora, é bem em torno disso que gira um momento essencial do pensamento de Freud, pois indo muito mais longe que todo pensamento ateu que o tenha precedido, não é que ele nos designe apenas o ponto do impasse divino, ele o substitui. A temática paterna, se ele nos diz que é aí que está o suporte de uma crença num Deus "miraginário" [miraginaire]m, é para lhe dar, certamente, uma estrutura completamente outra. E a ideia do pai não é a herança, nem o substituto do pai dos Pais da Igreja. Mas então esse pai, esse pai original, esse pai do qual, no fim das contas, na análise, não se fala jamais porque não se sabe o que fazer dele, esse pai, como e qual é o estatuto que precisamos lhe dar no que se trata de nossa experiência? Eis em que, e eis onde se situa a perspectiva que vem agora, de nossa interrogação sobre a identificação na experiência analítica (LACAN, 2006LACAN, J. O seminário. Livro 12: Problemas cruciais para a psicanálise. 1964-1965. Recife: Centro de Estudos freudianos do Recife, 2006., p. 181, lição do dia 03/03/1965).

É bastante clara a ideia de que o que está em jogo para Lacan é em que medida a noção de Pai se torna o suporte para a crença em Deus, mas em hora nenhuma fazendo a relação direta, como se fosse um substituto apenas para o pai, mas apontando para uma dinâmica um pouco mais profunda, como já sugerimos se tratar no seminário 11, na associação entre Deus e falta sem homologia direta. Lacan aponta que as saídas ateístas, até o seu momento, conservariam basicamente as mesmas conclusões teístas, poderiam até ser consideradas como soluções teístas, pois manteriam, através do discurso científico, uma espécie de “organização do mundo”, um “sujeito do suposto saber” que de alguma forma faria a mesma função de Deus. É neste sentido que Lacan coloca a questão se poderia haver uma ciência que fosse de fato ateia, e não apenas uma que substitui Deus por outra coisa organizadora do mundo. Aqui aparecerá a ideia de que o cristianismo seria o único que substituiria Deus pelo vazio, e neste sentido, seria condição necessária para pensar de fato uma ciência materialista4 4 Este ponto será abordado extensamente por Žižek na sua leitura do cristianismo. .

O seminário XX se torna, provavelmente, a última grande reflexão lacaniana sobre o tema de Deus, de forma que aqui está de maneira bem enfática o problema enfrentado por Lacan sobre esta questão tão cara à Psicanálise desde Freud. Deus se torna aqui o nome do Outro. Segundo Lacan,

O Outro, o Outro como lugar da verdade, e o único lugar, embora irredutível, que podemos dar ao termo ser divino, Deus, para chamá-lo daquele nome, para chamá-lo por seu nome. Deus é propriamente o lugar onde, se vocês me permitem o jogo, se produz o deus-ser - O deus - O deuzer - o dizer. Por um nada, o dizer faz Deus ser: e enquanto se disser alguma coisa, a hipótese Deus estará aí. É isto que faz com que, em suma, não possam existir verdadeiros ateus senão teólogos; quer dizer, aqueles que, de Deus, eles falam (Lacan, Seminário XX, 1972-1973 (1985), p. 62).

Fica bem claro que Deus assume aqui para Lacan uma espécie de “dizer”, ou “deuzer” - esse neologismo criado por Lacan para dar a Deus o caráter de algo que é dito, ou criado pelo ser falante à sua imagem e semelhança. O que lembra bastante a proposta feuerbachiana de Deus como projeção, embora Lacan não concorde com o humanismo de Feuerbach, mas defenda arduamente que o materialismo sempre se coloca em guarda contra esse Deus que teria dominado a filosofia até então.

No seminário XX, Lacan se propõe a pensar o “no quê” Deus ainda existiria em seu discurso, de forma que Deus se colocaria como uma espécie de “terceiro” na relação humana. Neste momento, Lacan está pensando uma espécie de ontologia pensado como sistema, em que o pensamento seria gozo, isto é, o sujeito é lançado no gozo. “[O] pensamento é gozo. O que traz o discurso analítico é isto, que já estava começado na filosofia do ser - há gozo do ser” (LACAN, seminário XX, 1985LACAN, J. O Seminário. Livro 20: Mais, ainda. 1972-1973. Versão brasileira de M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985., p. 96). Este gozo do ser para Lacan seria aquilo que Aristóteles chamaria de Felicidade na sua Ética a Nicômaco, e que São Tomás teria vinculado à ideia de que o amor que temos por nós mesmos agradaria a Deus em última instância, seria um gozo de Deus, de forma que amando a Deus, estaríamos amando a nós mesmos. No cristianismo seria Deus quem goza.

Para corroborar este ponto, Lacan associa o gozo feminino ao gozo místico a partir da mística Hadewijch d'Anvers, uma beata Beguina, mas também citando o caso de homens, como São João da Cruz. O gozo místico aqui é entendido como um “gozo mais além”, um gozo do qual nada se pode dizer, o gozo da mulher, que Lacan afirma ser a forma como ele acredita em Deus. Como afirma Lacan, “Esse gozo que se experimenta e do qual não se sabe nada, não é ele o que nos coloca na via da ex-sistência? E por que não interpretar uma face do Outro, a face Deus, como suportada pelo gozo feminino?” (LACAN, 1972-1973 (1985), p. 103).

A ideia de Deus como gozo, ou como aquele que goza será bastante profícua para Lacan, mas já no seu seminário XXI ((The Non-Dupes Err [1973-1974]), Lacan levanta a questão de saber se Deus acredita em si mesmo, e já responde de maneira enfática “Deus não acredita em Deus” (LACAN, 1973-1974. Sessão de 21/05)5 5 Jacques Lacan, Le Séminaire de Jacques Lacan, Livre XXI: Les non-dupes errent, 1973-1974 [Texto não publicado], Sessão de 21 de maio, 1974). . O que isso quer dizer é que, para Lacan, o inconsciente não pode ser pensado como uma instância autorreflexiva. O que está em acordo com a ideia de que “Deus é inconsciente” proposta no seminário XI, ou seja, Deus não acreditar em Deus significa que Deus não pode ser simplesmente confundido com o inconsciente, pois Deus não é o inconsciente, e nem o inconsciente seria um substituto laico para Deus.

Deus aqui é entendido vinculado à noção do sujeito-do-suposto-saber, ou seja, assim como não há sujeito do suposto saber, uma ordem que representa as coisas e a ordena, assim também o inconsciente não é uma instância que possui uma espécie de “todo” a ser desvendado por meio da análise. Este ponto é importante para que não se associe diretamente a ideia de Deus como sendo um substituto para o inconsciente em Lacan.

No seminário XXII, (O sinthoma), Lacan afirmará

A hipótese do inconsciente, sublinha Freud, só pode se manter na suposição do Nome-do-Pai. É certo que supor o Nome-do-Pai é Deus. Por isso a psicanálise, ao ser bem-sucedida, prova que podemos prescindir do Nome-do-Pai. Podemos sobretudo prescindir com a condição de nos servirmos dele (LACAN, 1975-1975 (2007), p. 131-132).

Dessa forma, Lacan propõe aqui que uma análise bem-sucedida consiste em uma espécie de abandono da noção de Deus, mas nos servindo Dele de alguma forma. Como se daria esse “se servindo dele”? Aqui é importante pensar que Lacan, como dito acima, está associando a noção de Deus com a noção do sujeito do suposto saber, ou seja, como algo, ou alguém que garantiria alguma espécie de ordem para o sujeito. Desta forma, a estrutura teísta é pressuposta na análise lacaniana aqui. Se a noção de Deus é entendida desta forma, ele não precisa aparecer como ser transcendente, mas pode aparecer como qualquer figura que se coloque como esse sujeito do suposto saber, ou seja, as figuras de pai, analista, líder, natureza, sociedade, etc. E aqui que fica claro em que medida podemos prescindir de Deus, mas ainda assim fazer uso dele.

Como bem coloca Johnston,

In Télévision, Lacan, speaking of matters Oedipal, remarks, “Even if the memories of familial suppression weren’t true, they would have to be invented, and that is certainly done.” Paraphrasing this remark, one might say that, by Lacan’s lights, if God is dead, then, at least for libidinal reasons, he would have to be resurrected-and that has certainly been done (JOHNSTON, 2021 p. 58).6 6 Adrian Johnston. Divine Ignorance: Jacques Lacan and Christian Atheism 2021. Texto não publicado. Disponível em https://www.academia.edu/40959959/Divine_Ignorance_Lacan_and_Christian_Atheism acessado em 25/05/2021.

Conclusão

Dessa forma percebemos que a hipótese de Deus, Deus como deuzer, Deus que não acredita em Deus, Deus como Sinthome, Deus como gozo feminino, são, em Lacan, formas de pensar a questão de Deus durante o seu ensino desde os primeiros seminários até o seu ensino mais tardio. O que isso aponta é que a questão de Deus aparece como uma espécie de resto que sobra pela entrada do sujeito no mundo da linguagem, um furo inesgotável, ao mesmo tempo, a noção de Deus também remete ao sujeito do suposto saber, que inexiste em sua instância última, deixando novamente um furo, um vazio. Aqui podemos compreender porque Lacan pode afirmar que a verdadeira forma do ateísmo seja que “Deus é inconsciente”, uma construção, mas não no sentido de Feuerbach, ou um ateísmo humanista, mas uma construção que coloca o homem diante do vazio que é a sua própria instância inconsciente.

Mesmo se tratando de um tema extremamente importante e caro a Lacan, não há nenhuma pesquisa, no Brasil, que foque exclusivamente nesta questão de Deus nos seminários de Lacan, de forma que acredito que este projeto possa abrir portas de uma pesquisa extremamente profícua com bons frutos para pensarmos o debate entre a Teologia e a Psicanálise lacaniana.

Referências

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  • LACAN, J. (1962-3). O seminário livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
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  • LACAN, J. O seminário. Livro 12: Problemas cruciais para a psicanálise. 1964-1965. Recife: Centro de Estudos freudianos do Recife, 2006.
  • LACAN, J. O Seminário. Livro 20: Mais, ainda. 1972-1973. Versão brasileira de M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
  • LACAN, J. Le Séminaire de Jacques Lacan. Livre XXI: Les non-dupes errent, 1973-1974 [Texto não publicado], Sessão de 21 de maio, 1974).
  • LACAN, J. O triunfo da religião, precedido de Discurso aos católicos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.
  • MATTOS, S. E. C. de. Ateísmo e psicanálise, necessidade ou contingência? Rev. Estud. Lacan. v. 2, n. 3, p.1-26, 2009.
  • ŽIŽEK, S.; GUNJEVIĆ, B. O sofrimento de Deus. Inversões do Apocalipse. Tradução de Rogério Bettoni. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
  • 1 Embora a declaração “Se Deus não existir, então tudo é permitido” seja comumente atribuída à Os irmãos Karamázov, Dostoiévski nunca a proferiu. O primeiro a atribuir esta frase a ele foi Sartre em o Ser e o nada. O que podemos chegar são em pequenas aproximações no livro de Dostoiévski como a afirmação de Dimitri em sua discussão com Rakitin (como relata Dimitri para Alíocha) ““Mas então que será dos homens”, perguntei-lhe, “sem Deus e a vida imortal? Então todas as coisas são permitidas, que podem fazer o que quiserem?” Ver DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamázov. Editora 34. p. 672. 2012. Esta citação também aparece no seminário 9 de Lacan na lição do dia 09/05/1962 e ali Lacan a trabalhará de forma diferente, tentando evidenciar a relação entre o desejo e a lei.
  • 2 Schreber foi um caso analisado por Freud em 1913. Freud analisa o caso de Daniel Paul Schreber a partir do livro de memórias escrito pelo próprio Schreber em 1903. Este atribuiu seus dois primeiros internamentos psiquiátricos à excessiva tensão mental, decorrente do fardo muito pesado de trabalho que carregava (na época havia assumido o cargo de Presidente de uma Divisão da Corte de Apelação (Senatspräsident) da Saxônia (Dresden)). Primeiramente, foi diagnosticado como sofrendo de hipocondria, mas seu quadro logo se agravou, tornando-se mais próximo da maneira como ficou por mais tempo (delírios engenhosos envolvendo religião e questões sexuais). Schreber se vê nestes delírios como um homem perseguido por Deus, que lhe infringe toda espécie de mal e, em momento posterior, como alguém que será a mulher de Deus com quem terá um filho para salvar a humanidade. Schreber encara seu problema como a luta entre ele e Deus. Ao mesmo tempo em que luta com Deus, Schreber lhe demonstrava reverência, evidenciando uma relação bastante ambivalente. Esse ambiente de luta demonstra para Freud um quadro paranoico que poderia ser elucidado pela psicanálise. Cf. FREUD, S. “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de paranóia”, 1911 (ESB vol XII).
  • 3 Lacan já havia comentado sobre essa noção do Deus de Descartes, do Deus enganador no seminário 2 (1954-1955/1985 p. 16) e retomará essa função de Deus em Descartes no seminário 9, na lição de 22/11/1961.
  • 4 Este ponto será abordado extensamente por Žižek na sua leitura do cristianismo.
  • 5 Jacques Lacan, Le Séminaire de Jacques Lacan, Livre XXI: Les non-dupes errent, 1973-1974 [Texto não publicado], Sessão de 21 de maio, 1974).
  • 6 Adrian Johnston. Divine Ignorance: Jacques Lacan and Christian Atheism 2021. Texto não publicado. Disponível em https://www.academia.edu/40959959/Divine_Ignorance_Lacan_and_Christian_Atheism acessado em 25/05/2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2022
  • Aceito
    16 Abr 2023
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