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Comunismo ou comunalismo? A política e o "Ensaio sobre o dom"

Resumos

Este artigo aborda o contraste entre uma modalidade de troca explicitamente qualificada por Mauss, na década de 1930, como "comunista" e as modalidades "agonística" e "mercantil". Mauss nunca foi comunista, mas sim um socialista engajado. Como tal, lançou à Revolução Russa seu olhar de etnógrafo, sem deixar de considerar sua importância como "experimento". Vê como inspiração do Ensaio sobre o dom o impacto que lhe causaram tanto uma visita à Rússia comunista no início da década de 1920 como a Nova Política Econômica de Lênin, que reconhecia a impossibilidade de abolição do mercado. Questão implícita do Ensaio é a possibilidade de uma nova sociedade, na qual o Estado englobaria o mercado, ambos entendidos como transformações lógicas e históricas de formas particulares da dádiva, o tributo no caso do Estado.

Marcel Mauss; Comunismo; Estado


This article analyses the contrast between an exchange modality characterized by Mauss in the 1930's as "communist" and two others: agonistic and mercantile. Mauss was never a communist, but rather was a socialist. As such, he experienced the Russian Revolution as an ethnographer would, at the same time he considered it "an experiment". An important inspiration of the Essai sur le don was the impact he had visiting Russia and Lenin's "New Economic Policy", which recognized the impossibility of an abolition of the market. The Essai has as its implicit matter the possibility of a new society in which the State would encompass the market, both understood as logical and historical transformations of forms of the gift, tributes in the case of State.

Marcel Mauss; Communism; State


ARTIGOS

Comunismo ou comunalismo? A política e o "Ensaio sobre o dom"1 1 Este artigo é uma tentativa de trabalho colaborativo à luz dos escritos e do exem-plo de Marcel Mauss. Inspirados por influências acadêmicas e políticas semelhantes –, ainda que não sem divergências –, os autores buscaram em seus trabalhos individuais (Graeber, 2001; Lanna, 1995) construir um diálogo entre Mauss e Marx, que aflora aqui. A idéia inicial deste artigo foi apresentar aspectos que consideramos importantes do trabalho de Mauss que vêm sendo pouco privilegiados por seus inúmeros comentadores.

David Graeber; Marcos Lanna

Department of Anthropology – Yale University Professor do Departamento de Ciências Sociais – UFScar

RESUMO

Este artigo aborda o contraste entre uma modalidade de troca explicitamente qualificada por Mauss, na década de 1930, como "comunista" e as modalidades "agonística" e "mercantil". Mauss nunca foi comunista, mas sim um socialista engajado. Como tal, lançou à Revolução Russa seu olhar de etnógrafo, sem deixar de considerar sua importância como "experimento". Vê como inspiração do Ensaio sobre o dom o impacto que lhe causaram tanto uma visita à Rússia comunista no início da década de 1920 como a Nova Política Econômica de Lênin, que reconhecia a impossibilidade de abolição do mercado. Questão implícita do Ensaio é a possibilidade de uma nova sociedade, na qual o Estado englobaria o mercado, ambos entendidos como transformações lógicas e históricas de formas particulares da dádiva, o tributo no caso do Estado.

Palavras-chave: Marcel Mauss, Comunismo, Estado.

ABSTRACT

This article analyses the contrast between an exchange modality characterized by Mauss in the 1930's as "communist" and two others: agonistic and mercantile. Mauss was never a communist, but rather was a socialist. As such, he experienced the Russian Revolution as an ethnographer would, at the same time he considered it "an experiment". An important inspiration of the Essai sur le don was the impact he had visiting Russia and Lenin's "New Economic Policy", which recognized the impossibility of an abolition of the market. The Essai has as its implicit matter the possibility of a new society in which the State would encompass the market, both understood as logical and historical transformations of forms of the gift, tributes in the case of State.

Key-words: Marcel Mauss, Communism, State.

Para Terence S. Turner, nosso professor.

No século XIX, vários autores, como Saint-Simon e Herbert Spencer, propunham que a coerção estatal não seria eterna, tomando a história humana como a transformação das sociedades em direção à competição econômica e aos contratos livremente assumidos entre indivíduos. A sociologia de Emile Durkheim é em boa medida uma resposta a Spencer, indicando que o crescimento dos contratos privados, longe de implicar o desaparecimento do Estado, levava-o a intervir como nunca na vida dos cidadãos. Durkheim também responde à ênfase nos acordos e contratos individuais presente desde Hobbes e Locke, passando por Adam Smith, até Spencer. A questão do que hoje chamamos socialidade ou sociabilidade surge em torno desse debate sobre o Estado e o contrato. A antropologia de Mauss tinha algo a dizer sobre ela, retomando e reformulando posturas de Durkheim contrárias ao que, seguindo Dumont (1977), poderíamos chamar de variante inglesa da ideologia moderna – variante esta que, aliás, não deixou de se desenvolver durante o século XX e ainda se faz presente neste XXI.

Mauss se contrapôs de modo radical – e até hoje não devidamente avaliado – aos liberais da época, criticando um paradigma que reduz a vida social a interesses, competições econômicas e/ou manipulações políticas. Sua idéia de relações sociais substitui a de contrato. Essa idéia não remeteria a acordos com nossos instintos (e os dos outros) ou com sentimentos e vontades supostamente anteriores aos sociais, mas sim a "obrigações", simultaneamente coercitivas (para usar o termo de Durkheim) e voluntárias. Ao mesmo tempo, se a vida social não se reduz a ganhos, estes não deixam de estar presentes, para Mauss, na forma de interesses individuais e coletivos.

Mauss viu na dádiva – ou nas prestações não mercantis, como ele preferia e veremos a seguir – a fonte da vida social simultaneamente objetiva e subjetiva. Ao analisar a noção maori de hau, tomou-a como exemplo de um tema constante que também se apresenta no kula, no potlatch e na Roma antiga: os "mecanismos" de retribuição obrigatória embutidos nos próprios dons. Seja nos cobres da Costa Noroeste, seja na lei romana, "a pessoa é possuída pela coisa". Isso tem levado a antropologia a renovar o estudo das relações entre pessoas e coisas, dando a ambos os termos um sentido mais amplo. O fato de a lei moderna fazer rígidas distinções entre pessoas e coisas, por sua vez, deve ser relacionado a certas teorias modernas – como as dos autores mencionados no parágrafo inicial – definirem as pessoas psicologicamente com base em motivações e "interesses próprios", como o desejo de acumular coisas. Ao desafiar o conhecimento moderno, Mauss mostrou que este opunha radicalmente não apenas "pessoas" e "coisas", mas também egoísmo e altruísmo. Segue-se daí, como veremos, que o ideal moderno-cristão da dádiva pura e desinteressada é uma noção que não se encontra em qualquer outra sociedade.

Mas o Ensaio sobre o dom também foi concebido como contribuição à teoria socialista. Entre outras questões, Mauss também buscava entender o apelo popular do socialismo. Como é sabido, os trabalhos desse, além de revelarem amplos interesses, foram em boa medida esboços preliminares ou projetos incompletos: a tese sobre a prece, o livro sobre as origens do dinheiro e outro sobre o socialismo e nacionalismo. Só publicava quando solicitado ou se sentia alguma razão urgente; no caso do Ensaio, essa razão também seria política. Socialista engajado, Mauss considerava seus principais mentores tanto Durkheim como Jean Jaurès, líder da Seção Francesa da Internacional Socialista (SFIO). Depois da Primeira Grande Guerra, continuou a trabalhar com o partido e no corpo editorial de jornais socialistas, tendo sido um dos principais criadores do L'Humanité. Era ativo no movimento francês cooperativo, tendo fundado e administrado com um amigo uma cooperativa de consumidores em Paris, tendo assumido muitos cargos e feito viagens a várias partes da Europa, baseado nas quais publica reportagens sobre o movimento cooperativo na Alemanha, Inglaterra, Hungria e Rússia (Fournier, 1994).

O início dos anos 1920, quando escrevia o Ensaio, foi também um período de intensa participação política. Eram os anos imediatamente seguintes à Revolução Russa, que causou a cisão na Internacional Francesa em partidos comunista e socialista. Mauss nunca foi comunista, mas, adepto de um socialismo criado de baixo para cima, por meio de cooperativas e sindicatos, não deixou de contemplar a abolição do sistema salarial. Isso é fundamental, pois, como veremos, pensava na continuidade lógica e histórica entre os sistemas de dádiva e o de assalariamento – o que significa que a superação da compra e venda do trabalho só poderia ser em direção a um "retorno" a um sistema de dádivas, dado inclusive que este comportaria algum tipo de universal sociológico. A palavra "retorno" vai entre aspas por refletir o evolucionismo que ainda rondava o pensamento de Mauss2 2 Hoje poderíamos refrasear isso. Com Karl Polanyi, outro socialista crítico ao comunismo, poderíamos até argumentar que, nos casos soviético e chinês, o socialismo criado "por cima" pode ser entendido como sistema redistributivo, isto é, a transformação de sistemas não mercantis (ou de dádivas, entendidas no sentido mais amplo de prestações) em um caso baseado na figura do czar e em outro na figura imperial. .

Mauss criticava tanto comunistas como social-democratas por "fetichizarem a política" e a função do Estado, que para ele deveria se limitar ao provimento de um quadro legal (ou, no falar atual, regulatório) dentro do qual os trabalhadores poderiam levar a lei de volta à coerência com a moralidade popular. Os eventos na Rússia nele repercutiram de modo ambivalente. Inicialmente, era um entusiasta da revolução, tinha muitas suspeitas em relação aos bolcheviques. Godelier (1996) o descreve como um social-democrata antibolchevique, mas isso antes da republicação dos escritos políticos de Mauss em 1997. Esses escritos aproximam Mauss tanto de anarquistas como Proudhon como de Jaurés. Para Mauss (1923), o projeto de impor o socialismo pela força era uma contradição em termos, além de taticamente desastroso. Dizia ele: "nunca foi a força tão mal usada como pelos bolcheviques. O que antes de tudo caracteriza seu terror é sua estupidez, sua loucura".

Mauss sentia repulsa pela noção de uma linha do partido e, apesar de reconhecer a situação difícil do regime soviético no pós-guerra, condenou o desprezo do partido pelas instituições democráticas e pela regra da lei. Mas, se havia um tema comum em suas objeções, era seu desgosto em relação ao utilitarismo dos bolcheviques: "sua noção cínica de que 'os fins justificam os meios'", escreveu posteriormente, "os fazem medíocres mesmo como políticos". Apesar dessas denúncias, reconhecia a revolução como um magnífico experimento3 3 Dizia: "Desde Marx os socialistas evitaram cautelosamente construir utopias e desenhar planos para sociedades futuras. Ao contrário, sempre advogando a tese apocalíptica geral do 'tomar a administração das coisas', deixaram vagos, porque imprevisíveis, os procedimentos coletivos dessa administração. Como poderia essa revolução suprimir 'a administração dos homens pelos homens'? O que poderia emergir de toda essa efervescência moral, desse caos político e econômico? .

O interesse de Mauss se concentra nos procedimentos bolcheviques de administração das coisas e dos homens, publicando vários artigos sobre a significância da Nova Política Econômica de Lênin, anunciada em 1921. Nesse momento os bolcheviques abandonam tentativas de coletivização, legalizam um certo comércio e abrem parcialmente o país ao investimento estrangeiro. Mauss se opõe à abertura do país ao capital estrangeiro – a "venda da Rússia", como a denominou em artigo em La Vie Socialiste –, que para ele provavelmente marcaria o começo do fim da revolução (Mauss, 1922). Assim, em 1921, Mauss ora previa o colapso da revolução como iminente, ora se permitia reservado otimismo, sugerindo até que o regime soviético poderia finalmente se envolver na direção de um socialismo mais genuíno.

Não é por mera coincidência que Mauss publica no mesmo ano o Ensaio sobre o dom e "Socialisme et Bolchévisme", duas vias de um mesmo projeto intelectual. Dada a primeira grande tentativa de se criar uma alternativa moderna ao capitalismo, o autor faz frutificar os resultados da etnografia comparativa – crus e pouco desenvolvidos como ele os sabia ser – para esboçar, ao menos, os contornos de uma alternativa política mais viável e razoável. Preocupava-se particularmente com o significado lógico e histórico do mercado, especialmente depois de o experimento russo provar que não seria possível simplesmente abolir a compra e venda de cima para baixo, mesmo em uma das sociedades menos monetarizadas da Europa. No futuro próximo, conclui Mauss, estaremos de algum modo presos ao mercado (1992 [1925a], p. 188-90). Ainda assim, deveria haver uma diferença entre "o mercado" como mera técnica para a alocação de alguns tipos de bens e o mercado como o existente no Ocidente industrial, auto-regulável, no sentido dado ao termo por Polanyi (1978), o de um princípio social básico, determinante do valor que se expressava de modo tão evidente no pensamento anglo-saxão. Discordando da naturalização do mercado feita pelos liberais, Mauss se perguntava o que levaria a lógica do mercado a violentar o senso de justiça e humanidade das pessoas comuns. Tentava simultaneamente entender o apelo popular dos partidos socialistas e os programas de bem-estar social, por um lado, e, de outro, examinar a etnografia disponível para revelar o que poderiam ser padrões de justiça que relegavam o mercado a sua função técnica para agrupar decisões descentralizadas, e em que medida este poderia conviver com institutições de tipo totalmente diferente, centradas na "alegria de doar em público; [n]o prazer do dispêndio artístico generoso, [n]o da hospitalidade e da festa privada e pública" (2003 [1925b], p. 299).

O nexo entre a ambição socialista de Mauss e o Ensaio se evidencia no fato de que este demonstra que em sociedades não modernas, como a Roma e a Índia antigas, o mercado estava presente, mas, para usar a noção de Dumont, englobado pela dádiva. O caso moderno apresentaria uma inversão, em que o mercado adquire precedência ou autonomia (Polanyi, 1978; Dumont, 1977). Já a NEP de Lênin, inspiração implícita do Ensaio e preocupação dos escritos políticos, pode ser entendida como um retorno ou uma reprodução de períodos históricos em que o mercado não é esfera autônoma, mas é reduzido à sua instrumentalidade. Ainda que recuperado por Lênin, tal ocorre em um contexto em que o mercado soviético é englobado por uma centralização que Polanyi (1978) denominaria redistributiva.

Esse aspecto do Ensaio tem sido obscurecido pela própria discussão das formas mais competitivas e as mais aristocráticas da troca de dádivas. Isso nos deixa a questão de como relacionar e compatibilizar o socialismo de Mauss e sua ênfase em formas diferentes de aristocracia, especialmente as maori, kwakiutl e romana. Relembrando o plano geral do Ensaio, Mauss começa com o que chama "prestação total", que caracterizaria, por exemplo, trocas entre metades em muitas sociedades australianas e americanas, nas quais dois lados de uma aldeia dependem um do outro quanto a comida, serviços militares e rituais, parceiros sexuais, danças, festas, gestos de respeito e reconhecimento etc. Mauss posteriormente alargou a noção de "prestação total" de modo menos especulativo e mais empírico. Em aulas no Institut d'Ethnologie em Paris, entre 1935 e 1938, fala em "prestações totais" ou "reciprocidade total" como direitos que na maioria das sociedades existiam principalmente entre famílias e indivíduos particulares:

Inicialmente havia um sistema que denominarei de prestações totais. Quando um Kurnai australiano se encontra no mesmo acampamento que os pais de sua esposa, ele não tem o direito de comer qualquer pedaço de caça que traz – seus afins tomam tudo, o direito deles é absoluto. A reciprocidade é total, é o que chamamos "comunismo", mas praticado entre indivíduos. Em sua origem, commercium vinha com connubium, casamento segue a comércio e comércio a casamento. [...] O erro fundamental consiste em opor comunismo e individualismo. (Mauss, 1947, p. 104-5)

Chamou a atenção de Mauss, e de tantos antropólogos depois dele, a natureza das obrigações que freqüentemente acompanham o casamento. Um melanésio que precisasse de uma canoa nova poderia contar com o marido de sua irmã e o povo deste: como aquele lhes havia dado uma mulher, estaria em crédito, e seus devedores o retribuiriam, seja de acordo com um princípio de repagamento, seja simplesmente em resposta às suas necessidades. Mas é notável que é em relação a essas obrigações que Mauss faz uso do termo comunismo, como se este fosse uma modalidade – ou em termos evolucionistas, um estágio – pré-agonística das prestações. Argumentava que seria um grande erro assumir que o "comunismo primitivo" – ou de outro tipo – seria uma questão de propriedade coletiva. Em primeiro lugar, porque propriedades pessoais de algum tipo sempre existiram – Mauss acreditava que os revolucionários modernos caíam no absurdo quando imaginavam poder aboli-las (cf. Mauss, 1920, p. 264; 1924, p. 637). Em segundo, mesmo quando alguma propriedade é possuída por um grupo, ela raramente é administrada democraticamente. Mauss pensava assim em "um tipo de comunismo com uma base individual, social e familial" (1947, p. 104-5), mas não negava a importância de relacioná-lo a desigualdades sociais.

Esse argumento tem sido pouco considerado, ou mesmo obscurecido. Como Mauss, muitos tomam intuitivamente algum tipo de comunismo ou igualdade primitivos, talvez por certa tendência ideológica para romantizar a propriedade coletiva e/ou imaginar que as sociedades da dádiva têm algum tipo de administração mais perfeita. Essa seria a raiz de interpretações de antropólogos importantes, como Pierre Clastres (cf. Lanna, 2005). Mas, com os dados etnográficos disponíveis na época, Mauss não deixou de buscar o entendimento da prestação total em relação à existência de aristocracias locais e de títulos que circulavam junto com os princípios de acesso à terra e distribução de bens, mulheres, palavras, cerimônias, visitas etc. Esse mesmo ponto fica implícito na análise de Lévi-Strauss das sociedades a casas, cujos exemplos paradigmáticos, aliás, são exatamente aquelas sociedades nas quais o Ensaio se baseia (romana, kwakiutl, maori4 4 O caso trobriandês não está distante desses três, pois, como mostra Viveiros de Castro (1990; 1993), seu casamento patrilateral é uma abertura a uma possível transformação na direção do cognatismo. ). Assim, importa estudarmos os títulos e as formas de dons que Mauss não pode analisar no Ensaio.

Ao falar nos kurnai, Mauss tentava mostrar que seria possível um sistema comunista individualista, definido pelas prestações totais e não pelas "necessidades" – um termo muito mais caro ao funcionalismo do que a Mauss –, que não poderiam ser "preenchidas" sem retribuições. Esse comunismo é exemplificado por Mauss pelas relações entre marido e mulher kurnai, nos quais cada lado tem direitos sobre o outro. Necessitamos mais reflexões a respeito da igualdade e/ou desigualdade dos direitos criados nesse tipo de troca. A reciprocidade engloba mesmo o "roubo legalizado" de um objeto entre os Kurnai, pois estes supõem que uma mulher fora dada anteriormente ao roubo. Haveria assim roubos mais ou menos legítimos, estes últimos mais sujeitos a retaliações do que os primeiros. Dito de outro modo, o objeto "roubado" seria uma forma de retribuição.

Retornando ao Ensaio, este mostra como a reciprocidade também pode assumir uma forma mais competitiva. Aos sistemas de "troca agonística", Mauss propôs, de modo talvez inadequadamente generalizador, o rótulo de potlatch, nome de trocas competitivas particularmente dramáticas que tinham sido recentemente documentadas na costa noroeste da América do Norte. Essas difeririam da competição capitalista por se basearem em premissas opostas, não acumular, mas dar o máximo possível. Não podemos, entretanto, tomar esse fato como expressão do desprezo indígena por posses materiais, mas sim como prova de que o sentido da posse depende do contexto simbólico e sociológico. Talvez mesmo o fundamento de "dar um potlatch" ou "no potlatch" seja não tanto o estabelecimento de superioridade, mas incorporar uma pessoa de uma casa a outra (no caso kwakiutl, de um numayma a outro – cf. Lanna, 2001).

Essa forma de dádiva dominou ainda sociedades aristocráticas como os celtas antigos, os germânicos ou a Índia védica. Gradualmente, entretanto, ainda que de modo sempre diferente em cada caso, o dinheiro ou aquilo que o próprio Marx definira no primeiro capítulo de O Capital como troca mercantil (envolvendo a venda definitiva e, assim, a alienação de bens que não mais eram vistos como enredados no doador) levaram a troca agonística a ser eclipsada por um etos de acumulação pela acumulação. Desejos e tendências aquisitivas, a nosso ver, seriam desenvolvidos paralelamente ao incremento das próprias trocas. Esse incremento redundaria assim tanto em maior divisão do trabalho (como pressupunham autores como Adam Smith e Rousseau) como no desenvolvimento de sentimentos aquisitivos, o individualismo possessivo, enfim. A esse incremento quantitativo das trocas corresponderia ainda uma transformação qualitativa da forma agonística do dom em troca mercantil. A alienação de bens e pessoas aumenta à medida que o volume de trocas mercantis cresce. A maioria das sociedades do mundo antigo – ou mesmo o Brasil contemporâneo, com sua república muito peculiar (cf. Lanna, 1995) – articulava de algum modo essas modalidades de troca. Em alguns locais onde era possível mercadores acumularem fortunas, os ricos não deixavam de ser considerados "os tesoureiros de seus concidadãos" (Mauss, 2003 [1925b], p. 298), de quem se esperava – ou se exigia, nas liturgias gregas, por exemplo – a distribuição de sua riqueza em projetos civis.

Surge a questão: quais são as origens da concepção de interesse individual, e como ela contamina o tecido social? Diferentes autores como Sahlins (1988) e Alain Caillé (1994, p. 10-2), este um dos fundadores do Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales (MAUSS), apontam a resposta na direção do papel do cristianismo. Aristocratas e grandes homens romanos ainda mantiveram parte de um etos de generosidade magnificente: doavam prédios e jardins públicos, disputavam para serem padrinhos de jogos e competições etc. Mas o sentido dessa assistência poderia ter algo de enganador: um hábito aristocrático, por exemplo, era o de espargir moedas de ouro e jóias para uma multidão para se divertir com a correria que se seguia. Teorias cristãs da dádiva se desenvolveram em reação a práticas como essas. A verdadeira caridade na doutrina cristã não poderia se basear em estabelecimento de superioridade, nem na obtenção do favor de outrem, assim como a doutrina proíbe o desejo de ser superior e, em última análise, qualquer motivação egoísta.

Mas seria possível dizer que os cristãos são mais difíceis de se entender do que os romanos, inclusive para Mauss: deixaram de lado práticas redistributivas, mas não a ideologia da generosidade. Distribuem acima de tudo palavras. São ainda um pouco como os brâmanes, tal como caracterizados no Ensaio: doadores de serviços religiosos e recebedores de prestações materiais (pensamos aqui não apenas nas oferendas às várias igrejas cristãs, mas nos variados tipos de senhores cristãos, como os padrinhos – cf. Lanna, 1995). Os cristãos são assim herdeiros dos brâmanes no sentido de desenvolver uma retórica da caridade e da pureza relacionada a trocas desiguais. Por outro lado, as sociedades cristãs divergem das dos brâmanes, dos aristocratas romanos, dos Kurnai e de todas as outras exatamente por sua idéia de caridade absoluta, que não requereria qualquer retribuição quantitativa. A "pura caridade" cristã difere da "caridade pura" brâmane por este se assumir como qualitativamente superior. Não é à toa que a idéia da caridade absoluta, da dádiva material que não requer retribuição, é um fantasma que persegue antropólogos ocidentais. Já lembramos Pierre Clastres como um exemplo eloqüente: a sua "não troca" de palavras, mulheres e bens entre chefia e sociedade primitivas não deixa de ser dádivas supostamente unilaterais ou momentos de circulação mercantil. Mas ela se expressa perfeitamente também no free gift de Malinowski, assim como na interpretação das sociedades com "prestações totais" como mais perfeitas e talvez até mesmo como comunistas, como faz Mauss.

Seja lá como for, ao pressupor a possibilidade da caridade desinteressada, a retórica cristã parece negar uma lição fundamental de Mauss, a universalidade da reciprocidade5 5 Isso talvez merecesse ser relacionado à importante sugestão de Dumont (1977, p. 153), nisto seguindo Marx, de que "há uma afinidade profunda entre o Estado democrático moderno e a religião cristã [...]. Esse Estado não reconhece a religião, mas a pressupõe [...] ao nível da sociedade civil [...]. Isso é assim porque o Estado democrático, de um lado, e a religião cristã, de outro, são expressões diferentes da mesma coisa, a saber uma certa etapa do desenvolvimento do espírito humano", na qual, segundo Marx, Cristo seria o mediador entre os homens e a divindade, enquanto o Estado, o mediador entre os homens e sua não divindade. . No mínimo, fazer uma boa ação coloca alguém em melhor posição aos olhos de Deus e melhora suas chances de obter a salvação eterna. Poderíamos comparar isso às observações de Parry (1986) sobre a Índia, sugerindo que a emergência de religiões universalistas se liga ao ideal de dádivas impossíveis de serem retribuídas. Para o islã, ver Dresch (1998).

O ideal moderno da dádiva, assim, torna-se o negativo, o espelho do comportamento de mercado, mas seu reflexo é o de uma miragem, de uma impossibilidade: um ato de pura generosidade desembaraçado de qualquer interesse. Certamente não é essa a noção de Mauss da dádiva. Em outras palavras, a especificidade da idéia da "graça", no sentido altruísta, não nega a universalidade da proposta de Mauss. Mas, como os membros do MAUSS insistem, isso não significa que as pessoas deixam de praticar outras formas, mais ou menos cristãs, de dom: no capitalismo, as coisas estão constantemente mudando de mãos, sem retorno explícito ou imediato e sem acordo quanto à futura retribuição. Isso tanto pela circulação mercantil ou não. Na verdade, argumenta o MAUSS, a sociedade moderna não poderia funcionar (ou, preferiríamos dizer, existir) sem ela. A dádiva se tornou a "face oculta da modernidade" (Nicolas, 1991): oculta porque sempre se pode produzir alguma razão para se dizer que qualquer dádiva particular (dinheiro dado a crianças, presentes de casamento, doações de sangue ou a programas governamentais, jantares para colegas ou parceiros de negócios, conselhos a amigos ou as horas que passamos ouvindo os problemas de alguém) não é na verdade dádiva nenhuma. Mas isso também ocorre em outras cosmologias não modernas – nesse sentido, a dádiva é sempre oculta. Assim também ocorre na teoria social (pensamos, por exemplo, naquilo que os economistas chamam de "externalidades"). O resultado, como coloca Godbout, é uma ciência que "fala de laços sociais sem usar as palavras a eles associados na vida cotidiana: entrega, perdão, renúncia, amor, respeito, dignidade, redenção, salvação, compaixão, tudo que está no âmago das relações entre pessoas e que é alimentado pelo dom" (1998, p. 220-21).

No mundo anglófono, o MAUSS foi praticamente ignorado. Lá, os que gostam de pensar em si mesmos como engajados na teoria crítica de vanguarda vieram a ler Mauss por intermédio de Jacques Derrida, que em Donner le Temps examinou o Ensaio para descobrir – que surpresa! – que as dádivas, enquanto atos de generosidade pura e desinteressada, são logicamente impossíveis. Mauss não só demonstrara isso como já tinha criticado Malinowski por não percebê-lo. Mas o que é fundamental e infelizmente escapou ao MAUSS, ao menos até hoje, é que as relações mercantis, assim como os tributos que formam o esqueleto do Estado, eram para Mauss formas ou transformações da dádiva (cf. Lanna, 2000). Há quem pense que existe algo chamado "discurso ocidental" que é incapaz de se referir a nada além de si mesmo. Mas mesmo aqueles entre nós que acreditam que a antropologia é de fato possível, freqüentemente, não percebem que Mauss não lidava primariamente com discursos e sim com princípios morais que ele sentia serem em alguma medida incorporados tanto na prática como na alta teoria de todas as sociedades. A interpretação de Mauss do fato social de Durkheim implicava entendê-lo como – ou talvez mesmo transformá-lo em – princípio moral.

Assim, se nas sociedades examinadas por Mauss, já mencionadas, não faz sentido distinguir generosidade e interesse individual, é nossa própria perspectiva que assume que ambos devem estar em conflito. Essa era uma razão para Mauss evitar o termo "dádiva" ao falar de outras sociedades, preferindo "prestações". Porém, e aqui é crucial entender o contexto político, Mauss não estava apenas tentando descrever como a lógica do mercado, com suas distinções rígidas entre pessoas e coisas, interesse e altruísmo, liberdade e obrigação, tornou-se característica das sociedades modernas. Ele não analisa a simples presença do mercado (que sempre se manifesta diferentemente, seja na Índia antiga, seja na NEP de Lênin), mas de toda uma cosmologia, que poderíamos denominar moderna, que se define por meio dele. Mais ainda: além de analisar o que era novo na história humana, Mauss buscava uma perspectiva mais universal.

Ao olhar para o mercado, para o Ocidente, para a sua França enfim, Mauss conscientemente evitou exatamente aquilo que vem sendo relevado (e revelado) pelo programa do MAUSS: estudar a importância da dádiva na sociedade capitalista. Evidentemente, esse programa é atual e tem grande relevância. Entretanto, se Mauss poderia facilmente ter estudado fenômenos como o Natal ou o consumo conspícuo burguês, entre outras formas de dons de sua sociedade nativa, preferiu, de modo similar a Marx, privilegiar a especificidade da sociedade capitalista. O foco de sua reflexão é entender essa especificidade contra o pano de fundo da universalidade das prestações (totais-comunistas, agonísticas etc.), da circulação não mercantil. Poderíamos até dizer que ele buscava explicar por que tantas pessoas, particularmente tantos dos menos privilegiados membros da sociedade capitalista, condenavam ou repudiavam moralmente essa sociedade (ou não). Por que, por exemplo, instituições que insistiam na rígida separação entre "produtores" e seus produtos se contrapunham a intuições comuns a respeito da justiça? Em resumo, Mauss buscava desvendar o "fundamento moral", como ele dizia, da nossa e de qualquer outra sociedade. A conclusão do Ensaio fala em conflito entre uma moralidade universal e o desenvolvimento do comércio, da indústria e da lei, dado o desejo, suposto por Mauss, dos "produtores" seguirem a coisa que produziram. Tudo se passa como se os produtores inapelavelmente reconhecessem que deram/venderam seu trabalho sem compartilhar dos lucros. Estaria Mauss, baseado em um reconhecimento mais ou menos consciente das conquistas teóricas do próprio estudo sobre o dom, tirando conclusões apressadas, transferindo de modo substantivo a inalienabilidade da circulação de trabalho que constatou em outras sociedades ao caso capitalista? Caso afirmativo, isso só reforçaria a pertinência da conhecida crítica de Lévi-Strauss (1950): Mauss generalizaria inadequadamente a ideologia nativa (neste caso, uma série incrivelmente geral de ideologias que pensam toda a circulação com base em algum grau de inalienabilidade).

Seja lá como for, há aqui, sem dúvida, um eco de Marx. Trata-se de duas teorias da alienação, mas ambas fazem a mesma questão: como poderia, seja o "produtor" de Mauss, seja o trabalhador de Marx, deixar-se alienar, ter seu trabalho tão completamente apropriado pelo capitalista? Certamente Marx foi além de Mauss ao oferecer uma resposta do por que o reconhecimento da exploração capitalista efetivamente não se generaliza, apesar de a postura marxista ter-se revelado excessivamente otimista quanto à possibilidade de superação ideológica e prática da exploração capitalista. Ao mesmo tempo, argumentos maussianos poderiam ser lançados contra a conlusão do Ensaio, dado que as relações mercantis se particularizam exatamente por uma maior alienabilidade – como observado acima, com Marx, é discutível supor que os produtores capitalistas "desejem" ir com a mercadoria. E é a existência dessa alienação do trabalho que marca a circulação mercantil em relação à não mercantil.

A questão a se analisar aqui é a da existência de uma teoria da alienação em Mauss. Já indicamos que o Ensaio é muito mais uma reflexão sobre a inalienabilidade entre bens e pessoas. De todo modo, a teoria de Mauss deriva de uma tradição diferente da dialética hegeliana, a da história jurídica clássica, segundo a qual uma propriedade é alienada quando todos os direitos nela incorporados são desligados de um possuidor e incorporados a outro. Particularmente para as classes trabalhadoras francesas, que não haviam se afastado totalmente de uma condição anterior camponesa e artesã, na qual a terra circulava menos como mercadoria (cf. Polanyi, 1978), haveria algo profundamente errado nisso. Mauss tentava entender o que seria, assim como tentava entender por que a legislação da previdência social poderia parecer correta se "se inspira no seguinte princípio: o trabalhador deu sua vida e seu trabalho à coletividade, de um lado, a seus patrões, de outro" (2003 [1925b], p. 296), e desse modo merecia mais, "uma seguridade em vida contra o desemprego, a doença, a velhice e a morte", tanto por dar algo tão valioso como por dar algo que não beneficiara só o patrão, que aliás já colaborara em seu pecúnio, mas também toda a comunidade, representada aqui pelo Estado. Caracterizar-se-ia assim na previdência "um socialismo de Estado já realizado" (id.).

Em relação ao assalariamento, sua resposta, muito diferente da de Marx, foi a de que este é uma forma miserável e empobrecida de contrato6 6 A visão de Mauss difere da de Marx por este enfocar totalidades (a diferença entre trabalho abstrato e concreto, os custos sociais de reprodução em relação ao excedente produzido significando exploração etc.), ainda que o faça de um ponto de vista individualista (cf. a crítica de Dumont, 1977). Mauss se atém a instituições mais particulares, como os contratos (estes, como vimos, com ele ganham sentido menos amplo do que tinham para os filósofos contratualistas). Marx conclui que a relação salarial é uma forma de troca desigual que parecia justa do ponto de vista dos trabalhadores, que não poderiam captar a visão global – daí a eficácia ideológica do capitalismo. Mauss se interessava pela questão de os salários não necessariamente parecerem moralmente justos aos participantes dos contratos. Marx salienta como esse contrato particular, ou mesmo todos os contratos, derivou da lógica burguesa e toma os adeptos de Proudhon – que desejavam criar contratos livres, comunistas ou anárquicos – como indulgentes em relação à lógica pequeno-burguesa à qual ele tão consistentemente se opôs. . Isso porque, como vimos, a forma elementar do contrato social é, para Mauss, precisamente "comunista", a prestação total, do tipo kurnai7 7 Note-se que essa posição, expressa em suas aulas no Institut d'Ethnologie na segunda metade dos anos 1930, não significa necessariamente um passo à frente do Ensaio; ao contrário, para pelo menos um de nós, significaria uma volta à confusão, tipicamente durkheimiana (cf. Lévi-Strauss, 1944), entre forma lógica e historicamente elementar (como se os Kurnai fossem elementares em ambos os sentidos, mas sabemos hoje que eles não o seriam em nenhum dos dois). . Vimos também, entretanto, que ainda resta aos antropólogos reavaliar esse aspecto do pensamento de Mauss e indicar os limites (ou não) desse tipo de abertura da dádiva, assim como o grau de igualdade criado pela "reciprocidade total" entre os próprios Kurnai australianos. Em outras palavras, não sabemos ainda qual igualdade lá existe nem qual sua relevância sociológica. Sabemos, entretanto que, na relação salarial, o trabalhador dá parte dele mesmo, mas recebe em troca dinheiro, algo sem a mesma qualidade "total". Por isso nos permitimos voltar o olhar para a realidade capitalista. Vimos ainda que, dada a inalienabilidade da circulação mercantil, para Mauss haveria algo inerentemente sacrificial não apenas em cada dom (cf. Lanna, 2000) – algo que seus comentadores, e os antropólogos em geral, preferiram obscurecer –, mas também no assalariamento, na compra e venda de trabalho.

Alguns comentadores de Mauss chegaram a tomar a conclusão do Ensaio como inconsistente em relação ao resto do texto. Outros, como Douglas (1990), chegaram a descartá-la sem a terem compreendido realmente, ao menos não nos termos que colocamos aqui. É verdade que a conclusão soa tentativa, em parte porque Mauss aborda ali a política, mas não para a audiência proletária com a qual estava acostumado. A conclusão é dos poucos momentos em que Mauss se sente obrigado a combinar seu lado acadêmico e aquele engajado, algo que sempre evitara cuidadosamente. Realmente, há ali sugestões idiossincráticas, como o chamado de volta a um etos em que a única desculpa para acumular riquezas seria redistribuí-las, no qual os ricos seriam considerados novamente "tesoureiros da comunidade" – uma sugestão que interessantemente não aparece em seus escritos políticos.

Seria fácil descartar a conclusão do Ensaio como resposta inadequada e desajeitada a Marx. Algumas críticas marxistas ao Ensaio importam, como a falta de uma teoria do valor e o fato de não abordar a produção em sociedades pré-industriais, ainda que fosse para mostrar como esta é englobada pela troca. Ao mesmo tempo, o tema da inalienabilidade apresenta uma crítica fundamental à antropologia de cunho marxista. Se a alienação ocorre cada vez que um objeto muda de mãos, Mauss nos lembra de que a produção de objetos não acaba no chão da fábrica. Mais ainda, parece sugerir que algum grau de mistificação e exploração pode ser um aspecto de processos criativos que não são nem marginalmente tão perigosos como seu oposto, a redução das relações sociais a algum tipo de cálculo objetivo. Foram reducões desse tipo que levaram Mauss, em seus escritos políticos da mesma época em que escrevia o Ensaio, a criticar os marxistas soviéticos e até mesmo a vislumbrar o fim do regime em seu utilitarismo extremo, no qual percebeu corretamente a presença da lógica do mercado ligeiramente transposta e, sentimo-nos tentados a dizer, combinada de modo muito específico com redistribuições não mercantis centralizadoras. Nesse sentido, as semelhanças entre marxistas e liberais são impressionantes, algo que Dumont tentou desenvolver em Homo Aequalis. Seria possível argumentar que a Escola Sociológica Francesa é a mais importante alternativa a ambos.

Por outro lado, se Marx faz uma crítica brilhante ao capitalismo, seu trabalho se complementa pelo de Mauss exatamente por este apresentar um outro socialismo. Mauss não se debruçou diretamente sobre a dinâmica do capitalismo, mas era esse seu objetivo na medida em que pensava o mercado, o Estado e o trabalho assalariado como transformações lógicas e históricas do dom. Por outro lado, tentava decifrar a possibilidade de relações sociais que pudessem existir além do capitalismo. A posição socialista de Mauss era muito mais próxima da de Proudhon ou da de anarquistas que acreditavam que idéias e instituições capitalistas poderiam ser a base tanto de uma crítica moral do capitalismo como de relações sociais que pudessem vir depois dele, porque, argumentava, elas não se definem simplesmente por sua função na reprodução capitalista, mas haveria necessariamente nelas algo que já existia antes do capitalismo e que continuará existindo depois dele. Esse "algo" seria o dom ou, como posteriormente refinou Lévi-Strauss, a reciprocidade. Marx, por sua vez, via o proletariado como a verdadeira classe revolucionária por ser absolutamente negada pelo capitalismo e que assim só poderia se libertar negando a totalidade como um todo, criando algo radicalmente novo que não poderia ser imaginado ou descrito de dentro do sistema atual. Em uma palavra, Mauss não pretendeu entender o sistema capitalista como uma totalidade, mas sim alcançar suas formas elementares. Ironicamente, seria possível argumentar que foi Marx quem as encontrou em seu conceito de mercadoria e em seu entendimento do processo de acumulação de capital como mercantilização.

Se as conclusões do Ensaio são tentativas, por outro lado, Mauss sabia estar trabalhando com material inadequado, dado que a prática sistemática da etnografia apenas surgia. Entretanto, esse não é mais o caso. O problema hoje parece ser o oposto: a literatura sobre o Massim, a Nova Zelândia ou a costa noroeste da América tornou-se tão vasta que seria quase impossível para um não especialista retratá-la com justiça. Recentemente houve algumas tentativas de retorno a esses exemplos e a reavaliação das conclusões de Mauss, notavelmente por Annette Weiner (1992) e Maurice Godelier (1996), ambos compartilhando uma perspectiva teórica semelhante (para uma crítica brilhante da primeira – cf. Valeri, 1994). Weiner e Godelier são especialistas em Melanésia, e seus resultados foram menos bem-sucedidos na medida em que se afastavam dessa área. Como já deve estar claro, dizer apenas que o dom incorpora parte do doador deixa muitas questões sem resposta. Resta-nos retornar mais uma vez às análises teóricas e etnográficas de Mauss sobre as relações entre interesse e generosidade, liberdade e obrigação, pessoas e coisas.

Notas

Não importa quão irreligioso meu socialismo e quão pouco respeito me inspiram os primeiros atos dos bolcheviques – a dissolução da Assembléia Constituinte, o Tratado de Brest-Litovsk –, eu não posso me dissociar deles. Moscou parecia a muitos de nós o que ela permanece sendo para muitas pessoas, mesmo aqui, um santuário incubador do próprio destino de nossas idéias" (Mauss, 1992 [1925a], p. 173).

Bibliografia

Aceito em novembro de 2005.

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  • 1
    Este artigo é uma tentativa de trabalho colaborativo à luz dos escritos e do exem-plo de Marcel Mauss. Inspirados por influências acadêmicas e políticas semelhantes –, ainda que não sem divergências –, os autores buscaram em seus trabalhos individuais (Graeber, 2001; Lanna, 1995) construir um diálogo entre Mauss e Marx, que aflora aqui. A idéia inicial deste artigo foi apresentar aspectos que consideramos importantes do trabalho de Mauss que vêm sendo pouco privilegiados por seus inúmeros comentadores.
  • 2
    Hoje poderíamos refrasear isso. Com Karl Polanyi, outro socialista crítico ao comunismo, poderíamos até argumentar que, nos casos soviético e chinês, o socialismo criado "por cima" pode ser entendido como sistema redistributivo, isto é, a transformação de sistemas não mercantis (ou de dádivas, entendidas no sentido mais amplo de prestações) em um caso baseado na figura do czar e em outro na figura imperial.
  • 3
    Dizia: "Desde Marx os socialistas evitaram cautelosamente construir utopias e desenhar planos para sociedades futuras. Ao contrário, sempre advogando a tese apocalíptica geral do 'tomar a administração das coisas', deixaram vagos, porque imprevisíveis, os procedimentos coletivos dessa administração. Como poderia essa revolução suprimir 'a administração dos homens pelos homens'? O que poderia emergir de toda essa efervescência moral, desse caos político e econômico?
  • 4
    O caso trobriandês não está distante desses três, pois, como mostra Viveiros de Castro (1990; 1993), seu casamento patrilateral é uma abertura a uma possível transformação na direção do cognatismo.
  • 5
    Isso talvez merecesse ser relacionado à importante sugestão de Dumont (1977, p. 153), nisto seguindo Marx, de que "há uma afinidade profunda entre o Estado democrático moderno e a religião cristã [...]. Esse Estado não reconhece a religião, mas a pressupõe [...] ao nível da sociedade civil [...]. Isso é assim porque o Estado democrático, de um lado, e a religião cristã, de outro, são expressões diferentes da mesma coisa, a saber uma certa etapa do desenvolvimento do espírito humano", na qual, segundo Marx, Cristo seria o mediador entre os homens e a divindade, enquanto o Estado, o mediador entre os homens e sua não divindade.
  • 6
    A visão de Mauss difere da de Marx por este enfocar totalidades (a diferença entre trabalho abstrato e concreto, os custos sociais de reprodução em relação ao excedente produzido significando exploração etc.), ainda que o faça de um ponto de vista individualista (cf. a crítica de Dumont, 1977). Mauss se atém a instituições mais particulares, como os contratos (estes, como vimos, com ele ganham sentido menos amplo do que tinham para os filósofos contratualistas). Marx conclui que a relação salarial é uma forma de troca desigual que
    parecia justa do ponto de vista dos trabalhadores, que não poderiam captar a visão global – daí a eficácia ideológica do capitalismo. Mauss se interessava pela questão de os salários não necessariamente parecerem moralmente justos aos participantes dos contratos. Marx salienta como esse contrato particular, ou mesmo todos os contratos, derivou da lógica burguesa e toma os adeptos de Proudhon – que desejavam criar contratos livres, comunistas ou anárquicos – como indulgentes em relação à lógica pequeno-burguesa à qual ele tão consistentemente se opôs.
  • 7
    Note-se que essa posição, expressa em suas aulas no Institut d'Ethnologie na segunda metade dos anos 1930, não significa necessariamente um passo à frente do
    Ensaio; ao contrário, para pelo menos um de nós, significaria uma volta à confusão, tipicamente durkheimiana (cf. Lévi-Strauss, 1944), entre forma lógica e historicamente elementar (como se os Kurnai fossem elementares em ambos os sentidos, mas sabemos hoje que eles não o seriam em nenhum dos dois).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Dez 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Aceito
      Nov 2005
    • Recebido
      Nov 2005
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