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Estudo experimental sobre a possibilidade de prevenção da malária pós-transfusional, através do uso da violeta de genciana

Experimental assay of the possible use of gentian violet in the prevention of post-transfusion malaria

Resumos

Levando em conta a comprovada ação preventiva da violeta de genciana quanto à transmissão da doença de Chagas, por transfusão de sangue e, também, possível idêntica eficácia a respeito da toxoplasmose, foi empreendida investigação para verificar se esse corante tem, da mesma forma, a capacidade de evitar a malária decorrente de hemoterapia. Foi investigada a infecção de camundongos pelo Plasmodium berghei. Usando parasitemia, mortalidade e alterações histopatológicas como parâmetros, verificou-se que a violenta de genciana, adicionada ao sangue, nas concentrações de 1/1.000 e 1/4.000, opõe-se efetivamente à ação infectante do protozoário, após permanência em geladeira (4°C) durante 24 horas. Conclui-se que se abre nova perspectiva quanto à profilaxia da malária induzida, em serviços de hemoterapia.

Malária; Violeta de genciana; Plasmodium berghei; Camundongos; Transfusão de sangue


Considering that gentian violet is effective in the prevention of transfusion-acquired Chagas' disease and possibly toxoplasmosis, it is decided to carry out an experimental assay on the acitvity of this dye in the prevention of post-transfusion malaria. Mice infected with Plasmodium berghei were studied with regard to parasitemia, mortality and histopathologic changes. Gentian violet added to blood in 1/1.000 and 1/4.000 concentrations turned out to be effective in abolishing infectivity after storage for 24 hours at 4°C. Thus is opened up a new prospect in the prophylaxis of post-transfusion malaria.

Malaria; Gentian violet; Plasmodium berghei; Mice; Blood transfusion


ARTIGO ORIGINAL

Estudo experimental sobre a possibilidade de prevenção da malária pós-transfusional, através do uso da violeta de genciana

Experimental assay of the possible use of gentian violet in the prevention of post-transfusion malaria

Vicente Amato NetoI; Eunice José de Sant'AnaI; Pedro Luiz Silva PintoI; Antônio Augusto Baillot MoreiraI; Maria Irma Seixas DuarteII; Rubens CamposII

ILaboratório de Investigação Médica-Parasitologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo — Av. Dr. Arnaldo, 455 — 01246 — São Paulo, SP — Brasil

IIDepartamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo — Av. Dr. Arnaldo, 455 — 01246 — São Paulo, SP — Brasil

RESUMO

Levando em conta a comprovada ação preventiva da violeta de genciana quanto à transmissão da doença de Chagas, por transfusão de sangue e, também, possível idêntica eficácia a respeito da toxoplasmose, foi empreendida investigação para verificar se esse corante tem, da mesma forma, a capacidade de evitar a malária decorrente de hemoterapia. Foi investigada a infecção de camundongos pelo Plasmodium berghei. Usando parasitemia, mortalidade e alterações histopatológicas como parâmetros, verificou-se que a violenta de genciana, adicionada ao sangue, nas concentrações de 1/1.000 e 1/4.000, opõe-se efetivamente à ação infectante do protozoário, após permanência em geladeira (4°C) durante 24 horas. Conclui-se que se abre nova perspectiva quanto à profilaxia da malária induzida, em serviços de hemoterapia.

Unitermos: Malária, prevenção e controle. Violeta de genciana, farmacodinâmica. Plasmodium berghei, efeitos de drogas. Camundongos, parasitologia. Transfusão de sangue, efeitos adversos.

ABSTRACT

Considering that gentian violet is effective in the prevention of transfusion-acquired Chagas' disease and possibly toxoplasmosis, it is decided to carry out an experimental assay on the acitvity of this dye in the prevention of post-transfusion malaria. Mice infected with Plasmodium berghei were studied with regard to parasitemia, mortality and histopathologic changes. Gentian violet added to blood in 1/1.000 and 1/4.000 concentrations turned out to be effective in abolishing infectivity after storage for 24 hours at 4°C. Thus is opened up a new prospect in the prophylaxis of post-transfusion malaria.

Uniterms: Malaria, prevention and control. Gentian violet, pharmacodynamics. Plasmodium berghei, drug effects. Mice, parasitology. Blood transfusion, adverse effects.

INTRODUÇÃO

Várias infecções são transmissíveis por meio da transfusão de sangue. Entre elas, algumas, mais comumente, têm merecido considerações e preocupações, como a doença de Chagas, as hepatites por vírus B e não A-não B, a malária, a sífilis e a Síndrome da Imunodeficiên-cia Adquirida (AIDS).

Diante dessa realidade, torna-se imperioso adotar medidas preventivas, a fim de permitir conveniente proteção dos receptores benefiáveis da hemoterapia.

Para evitar a infecção transfusional, diferentes condutas são recomendadas e incluem providências que variam com o atendimento de pessoas em regiões onde há endemicidade ou não. Elas levam em conta informações sobre malária anterior ou exposição à parasitose, execução de prova sorológica de imunofluorescência indireta e, até mesmo, tratamento específico de doador e receptor. Ê lógico, entretanto, cogitar de aproveitamento do sangue, sempre que necessário e possível, respeitando o valor que ele encerra.

A violeta de genciana, conforme está categoricamente demonstrado, evita a veiculacão transfusional da infecção causada pelo Trypa-nosoma cruzi, sem determinar inconvenientes distúrbios nos enfermos tratados através de sangue ao qual ela foi adicionada1,2,3,4,6. Convém ainda aduzir que esse corante, experimentalmente, em camundongos, revelou-se apto a coibir a aquisição da toxoplasmose por hemoterapia5. Diante dessa dupla capacidade, sentimo-nos estimulados a verificar se o agente profilático em tela pode opor-se à idêntica propagação da malária, também importante no contexto dos percalços atribuíveis ao uso de sangue e derivados como recursos úteis na prática médica cotidiana. É evidente que múltipla atividade de uma mesma providência condiciona desejáveis benefícios operacionais, materiais e assistenciais.

MATERIAL E MÉTODOS

O procedimento estipulado baseou-se na infecção de camundongos (Balb-C) pelo Plas-modium berghei. Empregamos animais fêmeas, pesando entre 25 a 30 g e procedentes do Biotério da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Inoculamos, pela via intraperitoneal, sangue de camundongos, com anticoagulante ("Liquemine, Roche") e contendo o hematozoário; completamos com solução fisiológica estéril o volume de 0,5 ml injetado. Compusemos os sete grupos adiante especificados, por vezes tendo havido adição da violeta de genciana, sempre observando as recomendações estabelecidas para Serviços de Hemoterapia e as metodologias adotadas nas investigações experimentais anteriormente publicadas, atinentes à profilaxia da doença de Chagas e da toxo-plasmose1,2,3,4,5,6.

Grupo I: 13 animais; inoculação de sangue com aproximadamente 5x105 plasmódios e violeta de genciana a 1/1.000; conservação em geladeira, à temperatura de 4°C, durante 24 h.

Grupo II: 13 animais; inoculação de sangue com aproximadamente 5x105 plasmódios e violeta de genciana a 1/4.000; conservação em geladeira, à temperatura de 4°C, durante 24 h.

Grupo III: dez animais; inoculação de sangue com aproximadamente 5x105 plasmódios; conservação em geladeira, à temperatura de 4°C, durante 24 h.

Grupo IV: nove animais; inoculação de sangue com aproximadamente 5x105 plasmódios; sem violeta de genciana e conservação em geladeira.

Grupo V: cinco animais; inoculação de sangue sem plasmódios e com violeta de genciana a 1/1.000; conservação em geladeira, à temperatura de 4°C, durante 24 h.

Grupo VI: quatro animais; inoculação de sangue sem plasmódios e com violeta de genciana a 1/4.000; conservação em geladeira, à temperatura de 4°C, durante 24 h.

Grupo VII: cinco animais; inoculação de sangue sem plasmódios e violeta de genciana; conservação em geladeira, à temperatura de 4°C, durante 24 h.

A cepa de P. berghei da qual valemo-nos no estudo é a mantida no Laboratório de Investigação Médica-Parasitologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

A violeta de genciana foi-nos fornecida pela Divisão de Farmácia do Hospital das Clínicas (procedência alemã; adquirida da firma "Labormax"; violeta de genciana, 0,5 g — solução de glicose a 5%, em água destilada q.s.p. 100 ml).

Decorridos 45 dias, matamos os camundongos remanescentes, dos diversos grupos. Os III e IV ficaram subdivididos em dois lotes, com cinco e quatro animais, respectivamente, para permitir sacrifício dos componentes com parasitemia de mais ou menos 10% ou observação até a morte e feitura da avaliação histo-patológica.

Para avaliar o desempenho do corante estabelecemos os seguintes parâmetros: determinação da parasitemia sangüínea, em dias alternados, após coloração pelo método de Giemsa; registro da mortalidade; exame histopatológico de fragmentos de cérebro, fígado e pulmão, depois de processamento pela técnica da hematoxilina-eosina.

RESULTADOS

As parasitemias afiguraram-se crescentes nos animais que formavam os Grupos III e IV e chegaram a mais ou menos 10% oito dias depois da inoculação, quando sacrificamos os já mencionados; nos demais, comprovamos aumentos progressivos até a morte. Em clara contraposição, não existiram naqueles dos Grupos I e II.

Nas Tabelas 1 e 2 estão apresentadas nossas verificações fundamentais acerca da mortalidade e das alterações histopatológicas.

O que se passou quanto aos Grupos III e IV, ou seja, morte de todos os camundongos entre o 15.° e o 28.° dias posteriores à infecção, deixa patente diferentes comportamentos, em confronto com os outros.

Também quando apreciadas as alterações histopatológicas, percebemos importantes diversidades, em termos de intensidade e freqüência, estando novamente implicados os roedores dos Grupos III e IV.

É imperioso esclarecer que nas condições, não totalmente adequadas em que trabalhamos, é esperado o óbito de animais, sem nexo com a experimentação, com a ocorrência de certos erros nas análises praticadas. Deixamos de examinar poucos camundongos que morreram, por não estarem eles em condição apropriada.

Anormalidades como Hiperplasia retículo-endotelial, infiltrado mononuclear portal ou intralobular, esteatose em hepatócitos e até outras, existentes moderadamente no fígado, podem ter decorrido de elementos inoculados, tais como sangue e parasitas. Até o encontro de pequena quantidade de pigmento malárico, é explicável dessa forma, acreditamos.

DISCUSSÃO

As parasitemias deixaram patente a eficácia da violeta de genciana, pois nos animais dos Grupos I e II mantiveram-se sistematicamente ausentes, em evidente contraste com o verificado nos dos Grupos III e IV, que a tinham até a morte. O número de hematozoários aumentou progressivamente no sangue dos camundongos dos Grupos III e IV e, no oitavo dia pós-inoculação, atingiu cerca de 10%; aí, sacrificamos cinco e, nos demais, a parasitemia foi aumentando, com subseqüente óbito espontâneo.

Quando consideramos a mortalidade percebemos como fato mais marcante a ocorrência desse evento, sem que tenha havido sacrifício intencional, em 100% dos animais, na fase que se situou entre 15 e 28 dias após a contaminação com o protozoário. O que houve nos Grupos V, VI e VII, sem a participação do P. berghei, patenteia as ações protetoras da violeta de genciana e infectante do hematozoário, apuradas nos Grupos I, II, III e IV. Valorizados os três parâmetros básicos que escolhemos, constituídos por parasitemia, mortalidade e deduções histopatológicas, assim como a estrutura global da pesquisa que convencionamos, surge como dedução viável a comprovação de que a violeta de genciana adicionada ao sangue, nas concentrações de 1/1.000 e 1/4.000, após permanência em geladeira (4°C) durante 24 h, opõe-se à infecção experimental de camundongos pelo P. berghei. Interpretando o que houve nos grupos organizados, apuramos que esse posicionamento é judicioso, abrindo perspectivas com sentido prático, referente à proposição de novos estudos, tendentes a procurar saber se o corante, de fato, pode ser útil em Serviços de Hemoterapia, prevenindo a malária humana pós-transfusional.

Recebido para publicação em: 15/4/1987

Reapresentado em: 16/9/1987

Aprovado para publicação em: 17/9/1987

  • 1. NUSSENZWEIG, V.; AMATO NETO, V.; MELLONE, O. Novos dados sobre o emprego da violeta de genciana na profilaxia da transmissão da doença de Chagas por transfusão de sangue. Hospital, Rio de Janeiro, 55:183-7, 1959.
  • 2. NUSSENZWEIG, V.; BIANCALANA, A.; AMATO NETO, V.; SONNTAG, R.; FREITAS, J. L. P.; KLOETZEL, J. Ação da violeta de genciana sobre o T. cruzi "in vitro": sua importância na esterilização do sangue destinado à transfusão. [Nota prévia]. Rev. paul. Med., 42:57-8, 1953.
  • 3. NUSSENZWEIG, V.; NUSSENZWEIG, R. S.; FREITAS, J. L. P.; AMATO NETO, V.; BIANCALANA, A.; KLOETZEL, J. Ação de agentes físicos e químicos sobre o Trypanosoma cruzi "in vitro". Hospital, Rio de Janeiro, 45:589-99, 1954.
  • 4. NUSSENZWEIG, V.; SONNTAG, R.; BIANCALANA, A.; FREITAS, J. L. P.; AMATO NETO, V.; KLOETZEL, J. Ação de corantes tri-fenil-metânicos sobre o Trypanosoma cruzi "in vitro". Emprego da violeta de genciana na profilaxia da transmissão da moléstia de Chagas por transfusão de sangue. Hospital, Rio de Janeiro, 44:731-44, 1953.
  • 5. PINTO, P. L. S.; AMATO NETO, V.; DUARTE, M. I. S.; COTRIM, J. X.; MOREIRA, A. A. B.; SANTANA, E. J.; CAMPOS, R. Estudo experimental sobre possível atividade da violeta de genciana na profilaxia da transmissão da toxoplasmose por transfusão de sangue. Rev. Inst. Med. trop. S. Paulo, 27: 89-94, 1985.
  • 6. SOUZA, H. M. Estudo do metabolismo e viabilidade do sangue fresco e preservado tratado pela violeta de genciana. São Paulo, 1985. [Tese de Doutoramento Escola Paulista de Medicina].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1987

Histórico

  • Revisado
    16 Set 1987
  • Recebido
    15 Abr 1987
  • Aceito
    17 Set 1987
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