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Anorexia nervosa e retardo mental

Anorexia nervosa and mental retardation

Resumos

OBJETIVO: Revisar a literatura pertinente, observando a prevalência, etiopatogenia, aspectos nutricionais, diagnóstico e tratamento da anorexia nervosa (AN) em pacientes com retardo mental (RM). MÉTODO: Revisão bibliográfica realizada nos sistemas Medline, SciELO e PubMed usando os descritores "transtornos alimentares", "anorexia nervosa" e "retardo mental". RESULTADOS: A AN pode se manifestar de formas atípicas em indivíduos com RM, exigindo critérios diagnósticos específicos. O mais utilizado atualmente é o Diagnostic Criteria for Psychiatric Disorders for Use with Adults with Learning Disabilities/Mental Retardation, conhecido por DC-LC. A prevalência é incerta e o tratamento ainda não está estabelecido, apesar de exigir treinamento específico da equipe. A alimentação costuma ser "pobre" e alimentos que engordam normalmente são evitados. Na maioria das vezes, é difícil acessar a complexa psicopatologia da AN nesses pacientes, em virtude das dificuldades de obter o relato de insatisfação e/ou distorção da imagem corporal, baixa autoestima e crenças alimentares. CONCLUSÃO: Muitos fatores indicam a necessidade de maiores estudos de AN no RM, entre eles a falta de critérios diagnósticos próprios validados e diretrizes para tratamento. Paralelamente, o debate da forma de acesso à conceitualização e ao tratamento dos distúrbios da imagem corporal nessa população deve ser intensificado.

Retardo mental; anorexia nervosa; adultos


OBJECTIVE: To review prevalence, ethiopathogenesis, nutritional aspects, diagnostic and treatment in patients with MR and anorexia nervosa (AN). METHOD: A literature review was carried out in Medline, SciELO and PubMed using the key words "eating disorders", "anorexia nervosa" and "mental retardation". RESULTS: Anorexia nervosa may have an atypical presentation in patients with MR, and therefore requires specific diagnostic criteria. It is currently used the Diagnostic Criteria for Psychiatric Disorders for Use with Adults with Learning Disabilities/Mental Retardation (DC-LC). There are no recommendations on treatment either but the care team requires specific training. Eating is usually "poor" and fattening foods are often avoided. It is most often difficult to access the complex psychopathology of AN in these patients due to difficulty obtaining an account of dissatisfaction and/or distorted body image, low self-esteem, and food beliefs. CONCLUSION: There is a need for further studies investigating AN in patients with RM, especially because there are no validated diagnostic criteria and guidelines for treatment. In addition, the discussion on how to approach these patients as well as on the conceptualization and treatment of body image disorders in this population should be stimulated.

Mental retardation; anorexia nervosa; adults


REVISÃO DA LITERATURA

Anorexia nervosa e retardo mental

Anorexia nervosa and mental retardation

Adriana Trejger KachaniI; Táki Athanássios CordásII

IUniversidade de São Paulo, Faculdade de Medicina, Hospital das Clínicas, Instituto de Psiquiatria, Programa de Atenção à Mulher Dependente Química (PROMUD-IPq-HC/FMUSP)

IIIPq-HC/FMUSP, Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Adriana Trejger Kachani Rua Bahia, 945, ap. 71 01244-001 - São Paulo, SP Telefax: (11) 3511-3888/Celular: (11) 8276-9299 E-mail: drikachani@uol.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Revisar a literatura pertinente, observando a prevalência, etiopatogenia, aspectos nutricionais, diagnóstico e tratamento da anorexia nervosa (AN) em pacientes com retardo mental (RM).

MÉTODO: Revisão bibliográfica realizada nos sistemas Medline, SciELO e PubMed usando os descritores "transtornos alimentares", "anorexia nervosa" e "retardo mental".

RESULTADOS: A AN pode se manifestar de formas atípicas em indivíduos com RM, exigindo critérios diagnósticos específicos. O mais utilizado atualmente é o Diagnostic Criteria for Psychiatric Disorders for Use with Adults with Learning Disabilities/Mental Retardation, conhecido por DC-LC. A prevalência é incerta e o tratamento ainda não está estabelecido, apesar de exigir treinamento específico da equipe. A alimentação costuma ser "pobre" e alimentos que engordam normalmente são evitados. Na maioria das vezes, é difícil acessar a complexa psicopatologia da AN nesses pacientes, em virtude das dificuldades de obter o relato de insatisfação e/ou distorção da imagem corporal, baixa autoestima e crenças alimentares.

CONCLUSÃO: Muitos fatores indicam a necessidade de maiores estudos de AN no RM, entre eles a falta de critérios diagnósticos próprios validados e diretrizes para tratamento. Paralelamente, o debate da forma de acesso à conceitualização e ao tratamento dos distúrbios da imagem corporal nessa população deve ser intensificado.

Palavras-chave: Retardo mental, anorexia nervosa, adultos.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To review prevalence, ethiopathogenesis, nutritional aspects, diagnostic and treatment in patients with MR and anorexia nervosa (AN).

METHOD: A literature review was carried out in Medline, SciELO and PubMed using the key words "eating disorders", "anorexia nervosa" and "mental retardation".

RESULTS: Anorexia nervosa may have an atypical presentation in patients with MR, and therefore requires specific diagnostic criteria. It is currently used the Diagnostic Criteria for Psychiatric Disorders for Use with Adults with Learning Disabilities/Mental Retardation (DC-LC). There are no recommendations on treatment either but the care team requires specific training. Eating is usually "poor" and fattening foods are often avoided. It is most often difficult to access the complex psychopathology of AN in these patients due to difficulty obtaining an account of dissatisfaction and/or distorted body image, low self-esteem, and food beliefs.

CONCLUSION: There is a need for further studies investigating AN in patients with RM, especially because there are no validated diagnostic criteria and guidelines for treatment. In addition, the discussion on how to approach these patients as well as on the conceptualization and treatment of body image disorders in this population should be stimulated.

Keywords: Mental retardation, anorexia nervosa, adults.

INTRODUÇÃO

A característica essencial do retardo mental (RM) consiste em um funcionamento intelectual significativamente inferior à média, acompanhado de limitações no funcionamento adaptativo em pelo menos duas das seguintes áreas de habilidades: comunicação, autocuidado, vida doméstica, habilidades sociais/interpessoais, uso de recursos comunitários, autossuficiência, habilidades acadêmicas, trabalho, lazer, saúde e segurança. O RM divide-se em quatro níveis de gravidade, variando entre o RM leve e o RM profundo. A adaptação à sociedade e a possibilidade de adquirir habilidades sociais e profissionais adequadas para um custeio mínimo das próprias despesas dependem do nível de gravidade do indivíduo, embora graus variados de supervisão, orientação e assistência sejam em geral necessários1.

A prevalência do retardo mental tem sido estimada em 1% da população geral e é 1,5 vez mais comum entre homens do que entre mulheres2-4. Dessa forma, estima-se que 650 milhões de indivíduos tenham RM, a maioria deles residindo em países desenvolvidos, com idade pediátrica3. De acordo com um censo realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 5% da população brasileira apresentam algum tipo de RM5, uma alta taxa de prevalência se comparada com a de outros países em desenvolvimento como o México, cuja prevalência encontrada recentemente foi de 4,2/10.000 recém-nascidos com RM4.

Apesar dos autores clássicos não acreditarem na possibilidade de indivíduos com RM apresentarem transtornos do humor, sabe-se hoje que o RM é fator de risco para transtornos psiquiátricos, em especial a depressão6,7. Em adolescentes, a prevalência de transtornos do humor é significativamente alta, mormente em mulheres8. No entanto, poucos trabalhos têm aprofundado o estudo da associação de deficiência mental e transtornos alimentares (TA), sejam clínicos ou epidemiológicos, dificultando o reconhecimento e a assistência a esse tipo de paciente.

Os TA são síndromes comportamentais cujos critérios diagnósticos têm sido amplamente estudados nos últimos 30 anos. Os principais transtornos alimentares - anorexia nervosa, bulimia nervosa e transtorno alimentar não especificado - compartilham aspectos psicopatológicos comuns, entre eles a preocupação com o peso e a forma do corpo, bem como o medo de engordar9. Essa ideia leva os pacientes a se engajarem em dietas restritivas e a utilizarem métodos inapropriados para alcançarem um corpo idealizado. Consequentemente, os pacientes têm um controle considerado patológico do peso corporal, associado a distúrbios da percepção do formato de seus corpos, levando a um comportamento alimentar gravemente perturbado9. A dificuldade em expressar com clareza os complexos sinais e sintomas próprios dos TA ocasiona apresentações clínicas quase sempre atípicas, complicando a confirmação do diagnóstico10.

Considerando que os TA são doenças graves que podem piorar a qualidade de vida e aumentar a mortalidade nessa população11, o objetivo deste trabalho é revisar a literatura pertinente, observando a prevalência, etiopatogenia, diagnóstico, aspectos nutricionais e tratamento da AN em pacientes com RM.

METODOLOGIA

A revisão bibliográfica foi realizada nos sistemas Medline (Index Medicus), SciELO e PubMed utilizando os descritores "retardo mental", "transtornos da alimentação" e "anorexia nervosa", em língua portuguesa e inglesa. Em virtude do escasso número de trabalhos, não foi estabelecida nenhuma restrição quanto ao período de publicação do artigo para ser incluído nesta revisão. Foi realizada também pesquisa manual em revistas especializadas e livros de referência na área de psiquiatria e transtornos alimentares.

RESULTADOS

Foram encontrados 34 trabalhos que tratam de RM e AN, todos em língua inglesa. Apenas 12 desses artigos estavam disponíveis para leitura nos bancos de dados brasileiros; dentre eles, oito eram estudos de caso. Nenhum livro de referência abordou diretamente o assunto, eles foram utilizados neste artigo somente para esclarecer conceitos pertinentes ao tema.

O primeiro relato de caso de AN em um paciente com RM data de 1979: adolescente de 15 anos, com RM, vivia no subúrbio de Boston (Estados Unidos), onde frequentava a escola pública regular. A menarca aos 10 anos foi uma experiência traumática. O atraso no desenvolvimento fez com que perdesse os amigos aos poucos. Nessa época iniciou tratamento psicoterápico, que não prosseguiu. Aos 12 anos ficou amenorreica. Aos 13 anos teve sua primeira internação, seguida de outra aos 15 anos, quando foi transferida para uma instituição para indivíduos especiais. Nesse momento, começou a recusar comida e a perder peso, sempre alegando que estava muito gorda. Muito deprimida e ansiosa, foi internada na enfermaria da instituição, com a intenção de recuperar o peso. Após 50 dias de tratamento medicamentoso e programa de modificação de hábitos alimentares, recuperou 5 kg e teve alta da enfermaria. Seis meses depois já ha-via recuperado 10 kg, e a menstruação bem como o humor foram normalizados. O caso discute também a relação entre uma inteligência abaixo da média populacional e a apresentação de sintomas de anorexia nervosa12.

Outros casos de AN em pacientes com RM têm sido relatados desde então, incluindo indivíduos com síndrome de Down13-17 e fenilcetonúria18. A maioria dos casos é comórbida com depressão; um deles é associado ao transtorno obsessivo-compulsivo17 e outro ao transtorno de personalidade borderline10 (Figura 1).


Prevalência

Trabalhos epidemiológicos a respeito da associação entre transtornos alimentares e retardo mental têm sido realizados desde 1978, e na maioria das vezes conduzidos em populações institucionalizadas e pacientes com idades variadas. Além da seleção da amostra, outro problema frequente são os critérios diagnósticos utilizados, que muitas vezes incluem sintomas como pica e comportamentos decorrentes da própria síndrome como a de Prader-Willi entre os TA19. Em metanálise realizada no ano de 2000, foi encontrada uma prevalência flexível como 3% a 42% em adultos institucionalizados e de 1% a 19% em pacientes que viviam na comunidade11. Talvez a elasticidade na prevalência seja decorrente da diferença nas populações estudadas e dos múltiplos critérios adotados para o diagnóstico de TA em pacientes com RM - critérios esses que serão detalhados ainda nesta revisão.

Somente dois trabalhos avaliaram especificamente a prevalência de AN. No primeiro, foram encontrados problemas alimentares crônicos em 42% da população com RM (p. ex.: pica, hiperfagia, ruminação e outros); entre eles, 7% com AN20. Mais recentemente, com critérios diagnósticos mais rígidos e preconizados pelo Diagnostic Criteria for Psychiatric Disorders for Use with Adults with Learning Disabilities/Mental Retardation (LC-DC)21, numa pesquisa que envolveu uma população de 412 indivíduos com RM que viviam na costa oeste da Noruega, foi encontrada uma prevalência de 27% de TAs. A prevalência de AN nessa amostra foi de 1,6%, o que se relacionou diretamente com a gravidade do RM: indivíduos com retardo mental mais grave estavam mais propensos a desenvolver AN, principalmente entre a população mais jovem, entre 18 e 39 anos. Nesse trabalho, diferenças de gênero na prevalência de AN não foram encontradas. O autor apontou ainda prevalência de 19% de transtorno de compulsão alimentar periódica, 1,3% de bulimia nervosa e recusa alimentar (conceito esse de difícil interpretação, não esclarecido no artigo) e 0,3% de vômito psicogênico19.

Diagnóstico

Em 1982, foi proposta uma classificação bidimensional para diagnosticar indivíduos com RM e TA22. Essa classificação se baseava na suposta etiologia do problema alimentar, classificando-a em comportamental, oral, neuromotora, biológica e da própria doença - que atualmente se acredita serem categorias de difícil individualização - e nos tipos de comportamentos inadequados relacionados à alimentação, por exemplo, roubo de comida, alimentação desordenada, pica, ruminação e regurgitação11. Anos mais tarde, foi sugerida uma classificação tridimensional, em que se observavam novamente as hipotéticas causas dos problemas alimentares (ambiental, comportamental, desordens neuromotoras), as áreas alimentares afetadas (autoalimentação, deglutição) e os comportamentos alimentares inadequados23.

A CID-1024 apresenta critérios diagnósticos para AN típica (F 50.0) e atípica (F 50.1) e bulimia nervosa (F 50.2). O manual menciona ainda, sem apresentar critérios diagnósticos definidos, superalimentação psicogênica (F 50.4) e vômito psicogênico (F 50.5). Em sua versão para o retardo mental, a CID-10 MR25 apresenta critérios diagnósticos semelhantes para a AN (Figura 1) e ainda permite que se usem as classificações dos transtornos da alimentação da primeira infância como ruminação (F 98.2), recusa alimentar (F 98.2) e pica (F 98.3) da CID10 em indivíduos com RM. Nesse caso, são classificados como transtornos alimentares não especificados (F 50.8). Porém, diagnosticar TA em pacientes com RM usando a CID-10 MR tem sido muito questionado, uma vez que muitos pacientes têm comunicação limitada e dificuldade em abstrair certos conceitos importantes, como já referido. A classificação também não utiliza a metodologia de classificação hierárquica, tão importante quando se trata desse tipo de paciente11.

Tabela 1

Assim, o profissional de saúde mental tem um grande desafio clínico à sua frente: quando um comportamento alimentar inadequado é considerado um transtorno geralmente diagnosticado pela primeira vez na infância ou adolescência relacionado ao quadro de RM e quando ele pode ser considerado um TA. O conceito de TA implica que a sintomatologia alimentar afeta adversamente a saúde física (incluindo o peso), mental ou funcionamento social do indivíduo1. Se for considerado o risco múltiplo de problemas desse tipo que acometem o indivíduo com RM, existe o risco de sobreposição dos dois diagnósticos, principalmente porque alterações cognitivas no âmbito alimentar e cuidados pessoais, ou seja, a expressão da deficiência mental no domínio alimentar, poderiam simular um TA primário26.

Elaborado em 2001 pelo Royal College of Psychiatrists, o DC-LC21 pretende ser mais explícito no diagnóstico diferencial hierárquico entre TAs e transtornos da alimentação nessa população, pois exige o relato de informantes antes que seja realizado o diagnóstico, além de esse ser realizado transversalmente26. Segundo o Royal College of Psychiatrists21, os critérios diagnósticos são:

1. Índice de massa corpórea (IMC): menor do que 17 kg/m2.

2. Peso: em declínio ou manutenção do baixo peso.

3. Ingestão alimentar: pobre e evitação de alimentos gordurosos.

4. Compulsões alimentares: menos do que duas ocasiões.

5. Vômitos: podem ou não acontecer.

6. Outros: jejuns, exercícios físicos compulsivos, purgações, distorção de imagem corporal, disfunção de hormônios sexuais.

Em relação ao diagnóstico diferencial, o DC-LC21 sugere como diagnóstico diferencial para AN os seguintes quadros clínicos e psiquiátricos:

1. Doenças clínicas: perda de peso crônica relacionada a dietas específicas, câncer, doença de Crohn, doenças mal-absortivas, síndromes metabólicas e síndrome da artéria superior mesentérica (que ocasiona vômitos pós-prandiais e obstrução gástrica).

2. Doenças psiquiátricas: autismo, personalidade psicótica, transtornos afetivos, do humor, somatoformes, obsessivo-compulsivos e de personalidade.

Fatores precipitantes

A AN em adultos com RM parece estar relacionada com experiências anteriores referentes a alimentação, dinâmica familiar, forma de lidar com luto e temas sexuais, regressão psiquiátrica e física11. Apesar da AN em pacientes com RM não ter sua etiologia muito bem elucidada, estudos de caso têm demonstrado que em pacientes portadores de síndrome de Down os sintomas da doença podem aparecer na época da menarca ou tardiamente, quando o indivíduo consegue se deparar com os questionamentos típicos dessa fase da vida13 - ao contrário de indivíduos sem RM, nesses pacientes deve-se considerar a idade de desenvolvimento, e não a idade cronológica como é de costume. É o que se observa no primeiro caso do gênero relatado12, cuja menarca ocorreu precocemente aos 10 anos, exigindo um desenvolvimento psicossocial diferente dos amigos, separando-os. Num outro relato de caso, novos incentivos sexuais concomitantes à perda de parentes próximos foram fatores decisivos para o desenvolvimento de TA13.

Até onde é do nosso conhecimento, o único caso até hoje relatado em uma paciente com fenilcetonúria, seus sintomas de anorexia nervosa começaram a aparecer 12 meses após a menarca, no momento em que seu pai, que não ela via há três anos, reapareceu com uma namorada apenas 10 anos mais velha do que a paciente, o que pode tê-la levado a questionar sobre seu corpo e forma física18.

À semelhança de pacientes com TA sem RM, alguns pacientes desenvolvem a doença após serem ridicularizados pelos amigos por causa de seu peso e forma física10,14. O sentimento de contrariedade e perda de controle da vida, fato inevitável quando o indivíduo possui RM de qualquer nível, também é relatado na literatura como desencadeador de TA nessa população17.

Aspectos alimentares

Muitas vezes, os recursos usados pelo paciente com RM na busca da perda de peso intencional carecem de sofisticação na sua dissimulação, comportamento frequente entre pacientes com TA, levando o clínico atento ao reconhecimento rápido e evidente de sua motivação10. Paralelamente, poucos pacientes conseguem estabelecer linearidade entre purgações e/ou atividade física com a perda de peso12. Num dos casos encontrados, a paciente cuspia na bandeja ou jogava a comida no chão. Quando questionada sobre o que havia feito, recusava-se a responder12. Outra paciente afirmava que não podia engolir. No momento em que foi comprovado que não havia nenhum problema orgânico que a impedisse de engolir, a paciente começou a ficar seletiva13. Num outro relato de caso, a paciente dizia que ia vomitar, pois sua boneca (imaginária) "Chuckie" achava que ela estava muito gorda10.s

A inadequação social que algumas vezes atinge o paciente com RM, aliada a pensamentos obsessivos relacionados à comida, pode levar o paciente com AN a problemas legais, como acontecia com uma paciente que, em momentos de compulsão alimentar, entrava em restaurantes com serviço de buffet à beira da estrada de ferro e se satisfazia sem pagar. Numa ocasião, foi presa ao roubar um pedaço de bolo. Nesse caso específico, a paciente, portadora de fenilcetonúria, tinha as compulsões alimentares exacerbadas pelo descontrole das concentrações séricas de fenilalanina18.

Tratamento

A escassez de estudos também se reflete na ausência de protocolos de tratamento para pacientes com AN e RM. Na maioria dos casos, os profissionais obtiveram bons resultados fazendo uso de abordagem comportamental, medicação psicoativa e realimentação em casos isolados ou em número restrito.

A exemplo do que ocorre com pacientes com RM e distúrbios do comportamento27, na maioria dos casos apresentados foram utilizados antipsicóticos como tioridozina, haloperidol e risperidona10,12. Antidepressivos inibidores seletivos da recaptação serotoninérgica (ISRS) como paroxetina e citalopram10,17 e antidepressivos tricíclicos como amitriptilina e nortriptilina também já foram utilizados14,16. Porém, a indicação psicopatológica do uso de antipsicóticos e antidepressivos nesses pacientes não é descrita adequadamente.

Em relação ao tratamento nutricional, os objetivos são os mesmos que no tratamento convencional para a AN: avaliar o consumo alimentar e as possíveis deficiências nutricionais; elaborar um plano alimentar visando ao restabelecimento do peso corporal adequado; corrigir sequelas fisiológicas da desnutrição; normalizar o padrão alimentar; normalizar a percepção de fome e saciedade; melhorar a relação do paciente com o alimento e o corpo; promover hábitos alimentares saudáveis28-30. Porém, a forma de tratar e o modo de lidar com o problema devem ser diferentes, tendo em mente desenvolver ao máximo o potencial do paciente, sem se esquecer de considerar especificidades de cada síndrome. Dessa forma, enfoques comportamentais são importantes e a participação familiar é fundamental. Os responsáveis devem acompanhar a alimentação do paciente e não ter vergonha de dar ordens de ação, tais como: "coma mais", "não corte o alimento em pedaços tão pequenos", entre outras. Em casos de pacientes com maior autonomia, deve-se sugerir novas formas de preparo dos alimentos, com apresentações diferenciadas e melhor aproveitamento de nutrientes5.

Uma vez que a AN pode ser uma defesa contra conflitos relacionados à sexualidade e aos novos desafios da adolescência, a psicoterapia é indicada como alternativa da forma de expressão dessas vivências31,32. Considerando que pacientes com RM possuem a expressão verbal prejudicada, esses pacientes têm dificuldade em revelar sentimentos tais como angústia e culpa, entre outros33. Por outro lado, os pacientes com RM têm uma estrutura cognitiva lógica que depende de referências concretas, o que sugere que a terapia cognitivo-comportamental (TCC) - em que não existe a preocupação em entender por que certos fatos acontecem, mas sim focar o aprendizado de novos comportamentos relacionados à raiva, adaptação social e sexualidade - seja a mais indicada33,34. Paralelamente, deve-se considerar que os tratamentos para TA mais modernos adotam a TCC33,34, o que reforça essa orientação psicoterápica como primeira escolha para casos de RM e AN.

Um dos casos relatados na literatura é especialmente interessante, na medida em que exclui o tratamento medicamentoso e incluiu somente programa de realimentação, mudanças no comportamento alimentar, terapia individual e parental - apesar de o artigo não esclarecer que linha psicoterápica foi seguida. As sessões de psicoterapia individual focaram o despertar da sexualidade, novas mudanças na dinâmica familiar e a questão da morte, muito presente na vida da paciente em questão. Já as sessões com os pais trataram da aceitação do crescimento e desenvolvimento da sexualidade da filha, da culpa por terem gerado uma filha especial e das expectativas futuras em relação a ela13.

De qualquer forma, sabe-se que o melhor resultado está na combinação do trabalho em equipe interdisciplinar com profissionais da área de psiquiatria, nutrição, psicologia, acompanhante terapêutico, terapeuta ocupacional, entre outros34.

DISCUSSÃO

Todos os estudos de caso encontrados focaram as dificuldades diagnósticas derivadas da difícil comunicação, conceitualização, acesso à imagem corporal e possibilidade de diagnóstico diferencial encontrados nos pacientes com RM. A discussão é pertinente, visto o impacto do diagnóstico dos TA no peso, saúde física e mental e o impacto funcional de pacientes, visto que seus critérios ainda não estão estabelecidos11.

Uma diferença entre os critérios diagnósticos do LC-DC21, CID-1025 e DSM-IV1 é o fato de que o primeiro insere todos os tipos de TA dentro da mesma categoria, enquanto os dois últimos separam-nos em TA e transtornos geralmente diagnosticados pela primeira vez na infância ou adolescência. Mas talvez a maior diferença seja que problemas relacionados à imagem corporal não são critérios diagnósticos para AN no LC-DC, e excluir esse critério talvez seja responsável por falsos-positivos nessa população19.

Dessa forma, é necessária atenção ao realizar o diagnóstico. O conceito de TA implica uma psicopatologia que afeta a funcionalidade do indivíduo. Visto que pacientes com RM muitas vezes não são funcionais, ser ou não "funcional" não é critério diagnóstico de AN nessa população19,26.

O fato de muitos psiquiatras clínicos possuírem pouca experiência com RM faz com que acreditem que esses indivíduos não tenham sentimentos particulares, uma vez que têm dificuldade em exprimir-se e comunicar-se. Especialmente nos casos leves e moderados, os transtornos psiquiátricos e a AN em particular demonstram que os sentimentos existem e que muitas vezes os problemas são subdiagnosticados e não tratados, por esses indivíduos não conseguirem se expressar e demonstrar que algo está errado em suas vidas12. Em alguns casos em que a linguagem é menos prejudicada, o paciente consegue expressar sentimentos de culpa, tristeza, insatisfação, entre outros, por meio de queixas somáticas e sensação de "estar doente"14.

As mudanças hormonais, comportamentais e psicológicas causadas pela adolescência devem ser observadas nesse tipo de paciente. Nessa fase, a opinião dos pares e a necessidade de busca da própria identidade podem assumir proporções não realistas também para pacientes com RM18.

CONCLUSÃO

A AN em pacientes com RN pode estar associada a consideráveis prejuízos clínicos, psiquiátricos, psicológicos, comportamentais e sociais. Sua etiologia multifacetada e desconhecida, assim como a falta de um protocolo de tratamento, prejudica a evolução desses pacientes. Tendo em vista a cronicidade e a gravidade do problema, profissionais devem ser formados e bem treinados a fim de oferecer assistência adequada. Considerando que o tratamento de TA, bem como o de RM, requer uma equipe multidisciplinar, acredita-se que essa seja a melhor formação também para o caso específico de pacientes com RM e AN.

Apesar da necessidade de programas de prevenção e tratamento, mais pesquisas sobre o assunto devem ser incentivadas, a fim que se conheça melhor a prevalência, causas, tratamento e evolução da AN em indivíduos com RM.

Recebido em 20/10/2010

Aprovado em 18/1/2011

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  • Endereço para correspondência:

    Adriana Trejger Kachani
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Aceito
      18 Jan 2011
    • Recebido
      20 Out 2010
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