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Bioprótese cardíaca de dura-máter

Editorial

Bioprótese Cardíaca de Dura-Máter

Luiz Boro Puig

São Paulo, SP

Em 1970, desenvolvemos no Instituto do Coração (INCOR) do Hospital das Clínicas - FMUSP, um substituto das valvas cardíacas feito com dura-máter homóloga. Trabalho original com objetivo de preparar um substituto valvar de baixa trombogenicidade, numa época em que eram disponíveis apenas as próteses mecânicas de bola tipo Starr-Edwards, que determinavam altos índices de fenômenos tromboembólicos, ao redor de 30%-40%, no período pós-operatório tardio, especialmente, em posição mitral.

O desenvolvimento da bioprótese de dura-máter (BDM) contou com o apoio e colaboração de vários indivíduos dos mais variados setores da instituição, especialmente os Profs Geraldo Verginelli e Euryclides de Jesus Zerbini e implantada pela 1ª vez em 21/1/71, adquirindo projeção nacional e internacional. Estavam praticamente eliminados os altos índices de fenômenos tromboembólicos, mesmo sem o uso de anticoagulantes.

Com os bons resultados alcançados foram publicados vários trabalhos e capítulos de livros em nosso País1 e no exterior 2, 3, 4, 5 . A preparação das biopróteses foi acompanhada por vários anos também com a avaliação eletromicroscópica, feita sob a orientação dos Professores E. J. Zerbini e L. J. A. DiDio, em associação com o Medical College of Ohio 6, 7. Estas comunicações estimularam a maioria dos Serviços de Cirurgia Cardíaca a empregar a BDM com resultados iniciais semelhantes.

No entanto, por volta de 1980, foi interrompido o seu uso. Se por um lado diminuiu a incidência da mais grave complicação, que é o tromboembolismo, a rotura começou a surgir a partir do 4º ano de evolução, levando os pacientes à reoperação.

Nesta época a indústria iniciava a produção em grande escala das biopróteses de materiais porcino e bovino, fixadas em glutaraldeído. Estas biopróteses tinham boa estética e função adequada, o que fazia prever bons resultados. Porém o tempo foi mostrando que também degeneram, um período muitas vezes inferior ao da dura-máter e os benefícios destes substitutos valvares foram sendo avaliados.

Vários cirurgiões cardiovasculares brasileiros têm ou tiveram pacientes portadores de BDM com mais de 15 anos de evolução e, freqüentemente, há solicitação para a revisão da nossa casuística. Temos quatro pacientes com BDM há 25 anos e em bom funcionamento e inúmeros outros atingiram 20 anos de evolução. Em alguns deles, por decisão própria do pacientes ou do seu cardiologista, temos implantado o mesmo tipo de bioprótese nas reoperações.

Dos 3.000 pacientes, operados no Serviço do Prof. Zerbini, selecionamos um grupo de 69 que receberam a BDM em posição atrioventricular de janeiro/71 a agosto/72: 67 mitrais e 2 tricúspides. Na literatura, o trabalho que mais se aproxima do nosso é o de Jamieson e col 8 sobre a evolução da bioprótese porcina (BP) tipo Carpentier-Edwards, 17 anos após o início da experiência (operados de 1975 a 1986). A revisão foi feita de acordo com a Guidelines for Reporting Morbidity and Mortality After Cardiac Valvular Operations 9 e observamos que, até 10 anos de evolução, o comportamento das BDM e BP tipo Carpentier-Edwards foram semelhantes, com a curva atuarial de pacientes livres de reoperação em torno de 60% e, aos 17 anos, no final do trabalho sobre as BP, a análise atuarial mostra: 1) sobrevida, BDM - 37% e BP 24,4%; 2) sobrevida sem complicações, BDM - 30% e BP 4,2%; 3) sobrevida sem reoperações, BDM - 28% e BP 10%; 4) sobrevida sem tromboembolismo, BDM - 98% e BP 86%. Aos 25 anos, os portadores de BDM apresentam sobrevida de 7,3±3,5%, sem reoperações de 15,9±6,9%, sem calcificação de 48,3±14,0%, sem rotura de 22,4±9,3% e sem tromboembolismo - 98±1,9%. Estes resultados comparativos sugerem a superioridade da BDM, embora tenhamos cotejado apenas dois trabalhos em que a casuística, tempo de evolução e populações são diferentes. Entretanto, merecem destaque os baixos índices de tromboembolismo da BDM.

O fator da BDM foi, sem dúvida o alto índice de rotura entre o 4º e 8º anos de evolução. Do ponto de vista de prognóstico, a experiência clínica mostra que os pacientes com disfunção de bioprótese por rotura são reoperados em melhores condições do que os paciente com bioprótese estenótica por calcificação. A insuficiência mitral por rotura é aguda, o paciente procura o médico nos primeiros dias da ocorrência e, em geral, sem repercussão hemodinâmica. A estenose mitral por calcificação é crônica e o paciente vai ao médico ou aceita a reoperação, apenas quando as manifestações adquirem grande importância clínica, decorrente da acentuada repercussão hemodinâmica. Os dois tipos de complicações requerem reoperação, porém, nos casos de rotura, os resultados pós-operatórios são melhores. Esta seria uma vantagem da prótese de dura-máter em relação à BP nas quais predominam os processos degenerativos por calcificação.

Acreditamos que muitas equipes cirúrgicas tiveram insucesso com BDM pela escassez do material frente à demanda, com as conhecidas dificuldades em se obter peças de cadáveres. Na nossa casuística, estes fatores não ocorreram graças ao banco de dura-máter organizado pelo Prof Nelson Pigossi no Hospital das Clínicas que nos fornecia o material, permitindo uma boa seleção e escolha das peças com taxa de descarte em torno de 30%, hoje maior devido ao aperfeiçoamento na preparação e ao melhor conhecimento da evolução dos pacientes.

Outro fator favorável que deve ser considerado, atualmente é a nova legislação sobre doação de órgãos, que permite melhor conhecimento das condições dos órgãos dos doadores, favorecendo a obtenção de peças bem selecionadas e mais adequadamente preparadas. Enquanto muito se comenta sobre a doação de coração, fígado, rins e córneas, temos também, a oportunidade de obter peças de dura-máter em número suficiente para uma boa seleção e um bom preparo de substituto das valvas cardíacas.

Referências

1. Puig LB, Verginelli G, Kawabe L, Zerbini EJ - Valva cardíaca de dura-máter homóloga. Método de preparação da valva. Rev Hosp Clin Fac Med Univ S Paulo 1974; 29: 85-9.

2. Puig LB, Verginelli G, Iryia K et al - Homologous dura mater cardiac valves. Study of 533 operated cases. J Thorac Cardiovasc Surg 1975; 69: 722-8.

3. Zerbini EJ, Puig LB - The dura mater allograft valve. In: Ionescu MI - Tissue Heart Valves. London: Butterworth, 1979; 7: 253-301.

4. Zerbini EJ, Puig LB - Experience with dura-mater allograft. In: Sebening F - Bioprosthetic Cardiac Valves. Munchen: Deutsches Herzzentrum, 1979; 3: 179-90.

5. Zerbini EJ, Puig LB, Verginelli G - Dura-mater valve. In: Yangkai We, Peters RM, ed - International Practice in Cardiac Surgery. Beijing: Science Press Book, 1985; nº 4965-64; 83: 966-77.

6. Highison GJ, Allen DJ, DiDio LJA, Zerbini EJ, Puig LB - A study of structural and chemical composition of surgically recovered defective dura mater cardiac valves using SEM, TEM and X-ray analysis. Scan Elect Microsc, 1979; III: 873-80.

7. Allen DJ, Highison GJ, DiDio LJA, Zerbini EJ, Puig LB - Evidence of remodeling in dura mater cardiac valves. J Thorac Cardiovasc Surg 1982; 84: 267-81.

8. Jamieson WRE, Munro AI, Miyagishima RT, Allen P, Burr LH, Tyers FO - Carpentier-Edwards standart porcine bioprosthesis: Clinical performance to seventeen years. Ann Thorac Surg 1995; 60: 999-1007.

9. Edmunds Jr LH, Clark RE, Cohn LH, Miller DC, Weisel RD - Guidelines for reporting morbidity and mortality after cardiac valvular operations. Ann Thorac Surg 1988; 46: 257-9.

Instituto do Coração da FMUSP

Correspondência: Luiz Boro Puig - Av. Dr. Êneas de Carvalho Aguiar, nº 44 - Tel.: 3068-5234 - Divisão Cirurgica - Sala 13 - Cep 05403-000

Recebido para publicação em 3/6/97

Aceito em 16/7/97

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2001
  • Data do Fascículo
    Set 1997
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