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Caso nº 6/98 - Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia - São Paulo

Correlação Anatomoclínica

Correlação Anatomoclínica

(Caso nº 6/98 - Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia - São Paulo)

Homem de 66 anos, pardo, carpinteiro, casado, procedente de São Paulo, há quase dois meses notou o aparecimento espontâneo de lesões cutâneas violáceas, localizadas, inicialmente, em maléolos e calcâneo direitos, posteriormente, com envolvimento da outra extremidade inferior; essas lesões eram associadas a dor intensa e dificuldade para a deambulação. Ocorreu agravamento do quadro álgico, há uma semana, com surgimento de novas lesões em membros inferiores e no abdome inferior, com livedo reticularis. Notou também cianose no 5º pododáctilo de ambos os pés. Não havia parestesia, paresia ou febre, e nem antecedente de claudicação. Era tabagista e hipertenso, desde 1988, em uso de captopril. Encaminhado a este Instituto com aortografia abdominal translombar, realizada há 20 dias, na qual havia irregularidades em toda a aorta abdominal e nas ilíacas comuns.

Ao exame físico de entrada encontrava-se orientado, lúcido, corado, hidratado, eupneico e afebril. A superfície cutânea mostrava múltiplas lesões equimóticas de coloração violácea, localizadas em ambos os membros inferiores e abdome inferior, dolorosas à palpação. Várias dessas lesões eram parcialmente ulceradas e crostosas, outras mumificadas e algumas bolhosas de conteúdo róseo. Havia dor à palpação de panturrilhas, mas com todos os pulsos periféricos palpáveis. Pressão arterial: 190 x 100mmHg, freqüência cardíaca: 105bpm. A ausculta pulmonar apresentava crepitações discretas em bases. A ausculta cardíaca era normal, o abdome simétrico, indolor e sem visceromegalias.

O paciente foi internado, evoluindo com piora progressiva das lesões cutâneas e comprometimento da função renal, porém, com diurese e estado geral mantidos. Foi realizada nova aortografia que mostrou aorta torácica descendente e aorta abdominal com irregularidades de contorno, fluxo irregular e lento em todo o seu trajeto (fig. 1), além de artéria renal direita com suboclusão no seu terço inicial. Na investigação de provável fonte de êmbolos foram realizadas: ultra-sonografia abdominal que não mostrou alterações e ecocardiografia que não detectou trombos cavitários, revelando apenas comprometimento difuso e leve da função sistólica.


No 14º dia de internação, iniciou heparinização que resultou em melhora discreta do quadro álgico, mas apenas nos dois primeiros dias, voltando a sentir muita dor. Foi feita biópsia músculo-cutânea: necrose isquêmica epidérmica, trombos ocasionais de fibrina em microcirculação dérmica com hemorragia e inflamação perivasculares discretas, insuficientes para a caracterização de um quadro de vasculite; necrose isquêmica de músculo com trombose em organização de vasos intersticiais. Passou a apresentar lesões petequiais em membros superiores, porém sem necrose. Evoluiu sem resposta ao tratamento, com perda acentuada de peso, queda do estado geral, confusão mental e dor abdominal em cólica, indo a óbito no 25º dia de internação.

Discussão

Aspectos clínicos - As hipóteses diagnósticas consideradas no presente caso foram: microateroembolismo, vasculite e distúrbio da coagulação. A hipótese de distúrbio da coagulação foi facilmente descartada pelos exames laboratoriais hematológicos colhidos já na internação. As vasculites englobam diferentes tipos de inflamação dos vasos sangüíneos, que podem ter apresentação generalizada ou localizada, com acometimento vascular focal ou difuso. As vasculites mais freqüentes associam-se a síndromes reumáticas ou outras doenças do colágeno; vasculites necrotizantes do grupo da poliarterite nodosa que podem ter lesões cutâneas e renais, mas acometem preferencialmente mulheres em idade inferior à deste paciente, possuindo um curso insidioso. Mesmo assim, estas últimas foram consideradas no diagnóstico diferencial deste caso, porém a ausência de inflamação vascular na biópsia músculo-cutânea foi decisiva para reforçar a hipótese de microateroembolia, baseada na forma de apresentação e no curso clínico da doença, sendo reforçada pelos exames complementares. Lesões necrotizantes e ulcerativas nas extremidades inferiores de instalação aguda, sem sinais prévios de insuficiência vascular, caracterizam a forma de apresentação habitual do microateroembolismo; este foi o quadro clínico apresentado pelo paciente em estudo. O aparecimento de livedo reticularis no abdome, região glútea, coxa e membros inferiores bilateralmente, além do detrimento da função renal, chamavam a atenção para a gravidade do quadro clínico deste caso. Dentro de um quadro de microateroembolia, esta topografia indica que a fonte de êmbolos é próxima à bifurcação ilíaca ou, possivelmente, à origem das artérias renais. Também a evolução da microateroembolia sistêmica se superpõe à deste doente: progressão das lesões cutâneas dolorosas é consistente com novos episódios embólicos, bem como o aparecimento de disfunções orgânicas diversas (nosso paciente evoluiu com comprometimento da função renal).

O microateroembolismo, com mais freqüência, é assintomático ou localizado, principalmente, em membros inferiores. Casos graves, como o nosso, são mais raros, com acometimento de múltiplos órgãos 1; são descritas graves complicações pelo acometimento das porções proximais, como embolização para artérias do cérebro e mesmo do coração.

A arteriografia representa o exame de escolha para a detecção da fonte de êmbolos e deve ser de preferência digital, evitando-se o excesso de contraste. A aortografia tóraco- abdominal realizada neste paciente demonstrou a presença de placas calcificadas e irregulares em toda a artéria aorta com comprometimento das artérias ilíacas e viscerais. Este quadro arterial, associado à doença hipertensiva de longa data, pode ter levado ao comprometimento da função renal (creatinina de entrada 2,2mg/dl). O agravamento da disfunção renal (creatinina de até 3,8mg/dl) pode ter duas causas: ateroembolismo e mioglobinúria (CPK de 5.076 UI), a primeira reduzindo ainda mais o fluxo sangüíneo e a última lesando diretamente o sistema excretor renal.

O tratamento deve se concentrar na erradicação da fonte de êmbolos. No caso de aneurisma, esse deve ser tratado pela técnica convencional, com enxertia de todo segmento afetado. Na presença de lesões obstrutivas hemodinamicamente importantes, a reconstrução arterial pode ser necessária através de endarterctomia ou enxerto segmentar. O enxerto axilo-bifemoral, quando associado à ligadura das artérias ilíacas, pode representar alternativa cirúrgica em casos graves. Em nosso paciente, o comprometimento aórtico extenso somado ao quadro clínico grave, levaram à impossibilidade do tratamento cirúrgico. Analgesia e cuidados locais representam aspectos importantes no tratamento do microateroembolismo. A simpatectomia pode auxiliar no alívio da dor em alguns casos. Entretanto, o controle clínico da doença é limitado. A alternativa ao tratamento cirúrgico seria o uso de drogas, como ácido acetilsalicílico, dipiridamol, warfarina e esteróides, na tentativa de evitar a progressão das lesões instaladas e obter analgesia. Frente às impossibilidades terapêuticas apresentadas pelo nosso paciente, optou-se pela introdução de heparinização sistêmica, objetivando evitar a progressão de trombose arterial em vasos da média e pequena circulação e a extensão da isquemia tecidual 2. Além da melhora relatada inicialmente no quadro álgico, este tratamento não parece ter tido outros, além deste fugaz benefício. Nosso resultado coincide com a literatura, onde esta tentativa terapêutica tem demonstrado pouca resposta. Por outro lado, a anticoagulação é contra-indicada por alguns autores, porque parece facilitar a liberação de trombos antigos aderidos às placas calcificadas. Embora a biópsia muscular seja indicada para a confirmação histológica, o diagnóstico desses pacientes, na maioria das vezes, só é feito na ocorrência de catástrofes abdominais ou durante o estudo post-mortem.

(Dr. Fábio Henrique Rossi)

(Dr. Antonio Willon Evelin Soares Fº)

Necropsia

A autópsia mostrou ateromasia severa da aorta (fig. 2) que cursou com quadro ateroembólico abdominal e infra-abdominal. Este quadro foi caracterizado por trombos constituídos de fibrina, debris celulares e cristais de colesterol acometendo artérias de médio a pequeno calibres. Em decorrência da ateroembolia, houve isquemia em membros inferiores, gangrena do 5º pododáctilo e necrose isquêmica muscular e cutânea (fig. 3). O acometimento visceral resultou em infartos esplênicos (fig. 4) e renais, além de necrose em intestino delgado e cólon. Esta última se apresentou como focos múltiplos e dispersos, mais compatíveis com "chuva" de microêmbolos do que com obstrução de um grande ramo mais central. Este paciente também desenvolveu quadro séptico no qual os pulmões, o coração, o cérebro e supra-renais foram os órgãos-alvo. No coração foi identificado abscesso anular mitral (fig. 5) e nos pulmões, broncopneumonia, ambos os processos com colônias bacterianas de cocos Gram positivos; no encéfalo e supra-renais foram também identificados microabscessos, sem evidências de microorganismos. Em decorrência deste quadro séptico, instalou-se coagulação intravascular disseminada, como demonstram os microtrombos de fibrina vistos em pulmões, fígado, coração e rins. As conseqüências do quadro ateroembólico foram mais exuberantes em trato intestinal e tecido muscular esquelético. A necrose intestinal era multifocal e de magnitude variável, enquanto a necrose muscular era extensa. Ao contrário do baço que mostrava numerosos infartos, os rins tinham apenas algumas dessas lesões, apesar do vários êmbolos ateromatosos detectados. Nesses órgãos, o quadro morfológico predominante era de necrose tubular aguda com cilindros pigmentados, principalmente em túbulos coletores. Havia também isquemia crônica importante, traduzida por nefroesclerose benigna com atrofia moderada.





Diagnósticos anatomopatológicos - A) Ateroesclerose genelarizada intensa: microateroembolismo para território de aorta abdominal e MMII, infartos esplênicos e renais, necrose músculo - cutânea com mioglobinúria e NTA, gangrena de 5º pododáctilo esquerdo, nefroesclerose benigna; B) septicemia: broncopneumonia, abscesso anular mitral, coagulação intravascular disseminada, microabscessos em supra-renal e cérebro.

(Dra. Lilian Mary da Silva)

(Dra. Mabel de Moura Barros Zamorano)

Comentários

As biópsias no microateroembolismo são feitas, geralmente, em lesões cutâneas e devem incluir porções de tecido muscular esquelético, visando ao diagnóstico diferencial com vasculites necrotizantes de médios e pequenos vasos, como aquelas do grupo da panarterite nodosa (PAN) 3-5. A detecção de ateroêmbolo nos pequenos vasos sela o diagnóstico de microateroembolismo, porém a possibilidade desta demonstração é casual, resultando em variada sensibilidade deste método auxiliar. Com freqüência, encontra-se apenas o que foi observado neste caso, ou seja, necrose isquêmica músculo-cutânea sem qualquer especificidade. Mesmo assim, a ausência de vasculite na amostra constitui reforço para a hipótese clínica. Já o diagnóstico necroscópico não apresenta dificuldades, frente a lesões tão óbvias e características.

Com relação ao diagnóstico principal, alguns aspectos do caso merecem comentário adicional: 1) apenas 4,3% 6 dos pacientes apresentam a forma espontânea do microateroembolismo, isto é, com ateroesclerose aórtica isolada. Na grande maioria, estão associadas lesões inflamatórias (aortites) ou traumáticas (principalmente estudo angiográfico) ou, ainda, terapia anticoagulante 4. Analisando a cronologia da doença do nosso paciente, vemos que lesões isquêmicas surgiram, espontaneamente, dois meses antes de sua chegada ao nosso hospital, focais e limitadas aos membros inferiores, como costuma ocorrer na forma mais freqüente e limitada da doença. Porém, após investigação diagnóstica por aortografia, a enfermidade se agravou significativamente e de forma inexorável. Rigorosamente, não é possível definir ou descartar algum papel coadjuvante da terapêutica anticoagulante para o agravamento do quadro; 2) a perda da função orgânica no microateroembolismo visceral é fator significativo para o óbito. Em casos complexos como este, torna-se difícil o esclarecimento seguro das relações patogênicas, pois distintos fatores se juntam para estabelecer o quadro final: perda da função renal, hipertensão arterial, gangrena, necrose intestinal, perda muscular, emaciação, etc.

Finalmente, queremos enfatizar o papel fisiopatogênico do quadro séptico que pode ter tido como porta de entrada, tanto as lesões cutâneas quanto as intestinais. Embora com localização orgânica restrita - broncopneumonia em instalação e abscesso anular mitral - a infecção tinha repercussão sistêmica grave, a ponto de causar coagulação intravascular disseminada. Por seu lado, o abscesso anular mitral pequeno, isolado e sem comprometimento valvar, é um achado dos mais interessantes. Abscessos anulares costumam ser extensão de endocardite valvar e, em 80% dos casos, envolvem a valva aórtica 7. Em geral comprometem indivíduos gravemente doentes e 90% 7 destes evoluem para infecção generalizada. Aqui, parece que ocorreu o contrário: um abscesso anular se instalou sem infecção valvar, a partir de septicemia. Isto nos leva a especular que abscessos anulares, resquícios de infecção sistêmica, podem ser a fonte de endocardite e de abscessos ou aneurismas subanulares, que surgem sem lesão valvar prévia.

(Dra. Lilian Mary da Silva)

(Dra. Mabel de Moura Barros Zamorano)

Editor da Seção: Alfredo José Mansur

Editores Associados: Desidério Favarato

Vera Demarchi Aiello

Editora Convidada: Mabel Moura Barros Zamorano

Correspondência: Alfredo José Mansur – Incor – Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 – 05403-000 – São Paulo, SP

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2002
  • Data do Fascículo
    Dez 1998
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