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Conversão, com versões: a respeito de modelos de conversão religiosa

Resumos

Preferindo entender que não cabe ao antropólogo desautorizar os discursos nativos, quaisquer que sejam suas proposições, este trabalho pretende considerar afirmativas díspares a respeito de processos de conversão religiosa. Diferentes fenômenos de conversão são mobilizados não para serem explicados pelos modelos apresentados, mas para evidenciar quais os pressupostos e a aplicabilidade destes últimos. Deste modo, e calcando-se em exemplos etnográficos, almeja-se reposicionar certas perguntas a respeito daquilo que seria propriamente uma conversão e de como ela aconteceria. Por fim, analisa-se de que modo os movimentos de conversão contemplados implicam um desafio à consideração das noções de aculturação ou mudança social.

conversão religiosa; modelos de conversão; aculturação; mudança social


By maintaining that it is not up to the anthropologist to disempower native discourses, whatever their propositions may be, this work aims to take into account differing statements about processes of religious conversion. Distinct conversion phenomena are not mobilized to be explained by the templates presented, but to evince what are the pressupositions and the applicability of these templates. In this way, and by supporting itself with ethnographic examples, it aims to reposition certain questions about what would be properly called a conversion and how it might take place. Lastly, it analyses how the movements of conversion contemplated implicate a challenge to the notions of acculturation or social change.

Religious conversion; templates of conversion; acculturation; social change


Conversão, com versões: a respeito de modelos de conversão religiosa

Gabriel Banaggia

RESUMO

Preferindo entender que não cabe ao antropólogo desautorizar os discursos nativos, quaisquer que sejam suas proposições, este trabalho pretende considerar afirmativas díspares a respeito de processos de conversão religiosa. Diferentes fenômenos de conversão são mobilizados não para serem explicados pelos modelos apresentados, mas para evidenciar quais os pressupostos e a aplicabilidade destes últimos. Deste modo, e calcando-se em exemplos etnográficos, almeja-se reposicionar certas perguntas a respeito daquilo que seria propriamente uma conversão e de como ela aconteceria. Por fim, analisa-se de que modo os movimentos de conversão contemplados implicam um desafio à consideração das noções de aculturação ou mudança social.

Palavras-chave: conversão religiosa, modelos de conversão, aculturação, mudança social.

ABSTRACT

By maintaining that it is not up to the anthropologist to disempower native discourses, whatever their propositions may be, this work aims to take into account differing statements about processes of religious conversion. Distinct conversion phenomena are not mobilized to be explained by the templates presented, but to evince what are the pressupositions and the applicability of these templates. In this way, and by supporting itself with ethnographic examples, it aims to reposition certain questions about what would be properly called a conversion and how it might take place. Lastly, it analyses how the movements of conversion contemplated implicate a challenge to the notions of acculturation or social change.

Keywords: Religious conversion, templates of conversion, acculturation, social change.

Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos e fecha-lhe os olhos,

para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos

e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo.

– Isaías 6:10

Conversion can, of course, mean other things.

– Peter Wood (1993:319)1 1 Todas as indicações bibliográficas no corpo do texto baseiam-se no ano de publicação da edição original da obra em questão. A data da versão efetivamente consultada, quando diferente, encontra-se, entre colchetes, nas referências ao final do texto.

Ao lidar com discursos e práticas a respeito de conversão religiosa, não é incomum deparar-se com controvérsias a respeito de sua legitimidade, de seus modos de operação ou mesmo das próprias concepções a respeito daquilo que significa converter-se. A coexistência de informações díspares sobre o tema é o que põe em movimento este texto, que pretende problematizar diferentes modos de se conceber a ideia de conversão religiosa. Inicialmente, são considerados modelos que sugerem pensar a conversão por meio da chave da mudança cultural. Em seguida, trata-se de elencar situações em que haveria controvérsias relacionadas ao acontecimento de conversões, tentando não ignorar nenhum dos envolvidos nas interpretações do fenômeno. Por fim, busca-se apresentar uma disposição para a complexa questão da conversão, por meio da explicitação e da reelaboração de alguns pressupostos encontrados a partir dos exemplos apresentados. Desse modo, pretende-se aqui reposicionar certas perguntas a respeito do que seria propriamente uma conversão e de como ela aconteceria2 2 O autor gostaria de agradecer a Aparecida Vilaça, Bruno Marques e Marcio Goldman pelos comentários oferecidos a uma versão inicial do que se tornaria o presente artigo. .

No discurso antropológico, de modo geral e num primeiro momento, a interpretação do tema ‘religião’ optou por circunscrevê-la dentro de um sistema cultural, movimento que fez com que a própria cultura adquirisse características tidas antes como típicas do conceito de religião (Viveiros de Castro 2002:191). Ou seja: uma ‘cultura’ veio a ser entendida ou como um conjunto de crenças em que os indivíduos depositariam sua fé, ou como um agregado de representações compartilhadas. Similar contaminação produtiva pode ser notada na opção de inserir discursos que tematizam a conversão religiosa nos quadros da ideia de mudança cultural. É o caso de um trabalho de Joel Robbins (2004), abalizado na antropologia de Marshall Sahlins (1985), no qual são oferecidos possíveis modelos de conversão. Na reelaboração que empreende, Robbins (2004:10-11) apresenta três diferentes maneiras de se pensar um encontro entre duas culturas, em função das modificações que cada uma sofre ou deixa de sofrer ao longo do contato. Segundo o autor, um processo de mudança cultural pode ser visto como de: 1) assimilação, quando certos grupos, ao lidar com circunstâncias novas, adequam-nas às categorias da cultura anterior; 2) reprodução transformativa, que atestaria um esforço para relacionar categorias antigas ao mundo contemporâneo, tendo por consequência uma transformação das relações entre as categorias tradicionais; 3) adoção, que admite ser possível adotar uma nova cultura por inteiro, abrindo mão de esforços conscientes que desejariam adequá-la a categorias tradicionais. Robbins enfatizará o primeiro e o terceiro modelos para falar sobre a conversão dos urapmin da Papua Nova Guiné ao cristianismo.

Como exercício, o que se pretende aqui é examinar de que modo diferentes teorias a respeito de conversão se aproximam de cada um dos modelos de mudança cultural apontados, assim como constatar suas possibilidades de reinterpretação, tendo como ponto de apoio diferentes relatos etnográficos versando sobre conversão religiosa, sobretudo de populações indígenas3 3 De modo a contemplar as especificidades apresentadas por esses processos quando do encontro de missionários com essas populações (cf. Wright & Kapfhammer 2004:14-17), ao redor do mundo. . Não é o caso, em princípio, de explicar situações diversas a partir dos modelos e teorias expostos, e sim de tentar entender qual é sua aplicabilidade, quais seus pressupostos e de que modo eles podem ser constantemente repensados ao serem postos em contato com situações etnográficas distintas. Os casos apresentados não pretendem ser de modo algum exaustivos, não tendo sido escolhidos senão em função da temática comum da conversão.

Modelos de conversão

De acordo com o modelo de assimilação, o resultado de um processo de mudança social dependeria sobretudo da substância original a ser convertida, do solo nativo a receber uma influência exterior. A teoria de Robin Horton (1975) é representativa desse modelo. Para Horton (1975:221), os grupos humanos não podem ser considerados como uma tabula rasa, recebendo influências culturais externas de modo irrefletido. Haveria, segundo o autor, uma configuração precedente específica que definiria de antemão os termos em que a recepção teria lugar. Nas palavras de Horton (1975:221):

Considerando o mesmo estímulo muçulmano ou cristão, algumas pessoas permanecem inertes enquanto outras reagem [...] Fica então escancarado que as variáveis cruciais não são as influências externas (Islã, Cristianismo), mas os padrões de pensamento e valores pré-existentes, a matriz sócio-econômica pré-existente.

Horton constrói sua teoria a partir de reações africanas às chamadas "religiões mundiais". Para o autor, importa pouco qual vem a ser a influência externa a modificar um solo específico, pois o resultado da ‘interação’ – se é que há – já está dado: quase que independentemente das perguntas, as respostas já seriam sabidas, já "estariam no ar" de todo modo (Horton 1975:234). Raciocínio similar pode ser encontrado em outros casos. No estudo que Frédéric Laugrand faz sobre os inuit, o autor afirma que a aceitação da novidade depende sempre de uma estrutura que, longe de ser colocada em xeque, incorpora a novidade segundo seus próprios termos, eliminando aspectos que lhe sejam incompatíveis (Laugrand 1999:105). Ideia análoga pode ser vista em texto de Paul Schultz e George Tinker (1996:62-63), que afirmam que a interpretação de histórias bíblicas oferecida por índios norte-americanos se dá antes de tudo de acordo com as concepções nativas a respeito da importância concedida a toda e qualquer narrativa. Para pensar ainda em outro caso africano: Birgit Meyer (1999:76) mostra que, apesar da insistência dos missionários pietistas em enfatizar acima de tudo a crença, os ewe de Gana entendiam os procedimentos que lhes eram apresentados segundo um modo tradicional de pensar, priorizando a ação ritual com o objetivo de servir e influenciar os deuses. De acordo com essa leitura do modelo de assimilação, para resumir, antiguidade é posto4 4 Em dois registros similares, ainda que também com divergências em relação aos anteriores, é possível ler textos de Birman (1996:94 nota 9, 98-99) e Capiberibe (2004:61, 68-69, 84, 95-97) nessa mesma chave. .

A teoria de Horton foi bastante criticada, como afirma o próprio Robbins (2004:85-86). De acordo com este último, as explicações para dar conta da conversão em geral seriam ou significacionais, ou, como no caso do africanista, utilitaristas. A abordagem de Horton parte do princípio de que, em função das mudanças ocorridas no mundo, a conversão se faria necessária para que fosse possível viver nesse novo meio. Sugere-se aqui então que, em vez de indivíduos movidos pelo cálculo do racionalismo econômico, ter-se-ia, no caso, povos calculistas a escolher qual seria a melhor alternativa para ajustar sua cosmologia a uma nova situação sociocultural – ela sim, responsável pela necessidade da conversão superficial que efetivariam5 5 Robbins (2004:339 nota 2) também apresenta outra crítica contundente: se, também de acordo com a teoria de Horton, só são aceitos no processo de conversão os traços adequados à cosmologia tradicional, ela própria já não responderia satisfatoriamente às questões colocadas pelo novo quadro sociocultural? Não haveria, desse modo, motivo algum para a conversão. .

Além disso, como o trecho reproduzido acima deixa claro, a exacerbação de um dos pólos – o dos quadros tradicionais – faz com que seja necessário reunir no outro religiões bastante distintas. Se o que é de fato determinante é somente a matriz nativa, para essa teoria faz pouca diferença um povo se converter ao islamismo ou ao cristianismo – desde que ambos possam ser agrupados no rótulo de "religião mundial". Imagina-se aqui, contudo, que dizer que ‘pouco importa’ a religião específica à qual as pessoas se convertem tem por resultado uma perda de inteligibilidade, não um ganho. ‘Explicar’, no caso da teoria de Horton, parece ser extrair da equação fatores não adequados ao modelo, em lugar de levar em conta o que efetivamente apresentam os envolvidos. Aí estão implicados tanto convertidos como missionários – diversas pessoas dedicando suas existências a uma religião determinada.

Não somente: a ideia de assimilação também não permite levar em conta a possibilidade da ocorrência de efeitos recíprocos decorridos do processo de conversão. Se as culturas autóctones terminam por se converter – ainda que de um modo muito peculiar e de acordo com seus próprios termos –, a cultura exógena é tomada como um bloco imodificável pelo contato. Se há algo, porém, que pode ser percebido pelos estudos de conversão, é que dificilmente uma mesma religião é capaz de se disseminar sem desenvolver técnicas precisas que variam de acordo com aqueles que pretende converter (Birman 1996:90, 92; Viveiros de Castro 2002:192), o que por sua vez coloca questões específicas ao cânone da própria religião missionária.

Os estudos que se pode identificar com o modelo de assimilação, então, quando se desejam antropológicos, correm o risco de desautorizar os próprios nativos em suas enunciações acerca da religião, seja realizando seleções interessadas, seja contestando-os diretamente. Para dar conta de situações nas quais, por exemplo, povos convertidos afirmam que Deus foi um agente decisivo em sua tomada de posição religiosa, alguns autores precisam refutá-los, postulando que isso seria impossível, já que não há como um elemento que, na visão dos teóricos, só passaria a existir depois da conversão, ser a própria causa desta6 6 O discurso de alguns índios norte-americanos cristãos, por exemplo, é o de que eles teriam sempre conhecido a Deus, mesmo antes de se converterem ao cristianismo (Schultz e Tinker 1996:57-58). Segundo eles, a novidade introduzida pelos missionários teria sido não a figura de Deus, mas a de Jesus. . Como a ênfase no modelo de assimilação recai sobre o pólo prévio, imagina-se que os nativos não seriam capazes de se converterem mobilizados por categorias que ainda não compreenderiam perfeitamente, permanecendo constrangidos pela cosmologia tradicional.

Nativos inuit, por exemplo, afirmam contemporaneamente já terem realizado, por tradição, um ritual de "eucaristia", convertendo-se ao cristianismo antes mesmo de qualquer contato com missionários (Laugrand 1997:109, 113). Como bem resume o autor:

Quando os missionários chegam e introduzem o cristianismo, este já está lá, já foi recebido. Os missionários não ensinam portanto literalmente nada de novo aos inuit, que afirmam, ao contrário, já conhecer o Criador, os dois primeiros ancestrais, a figura de Satanás e mesmo certos preceitos. (Laugrand 1999:104)

Além disso, os inuit cristãos de hoje afirmam categoricamente que, ao praticarem sua religião tradicional, o que faziam, sem saber, era adorar a Satanás (Laugrand 1999:103). O modelo de assimilação se contentaria em caracterizar esse discurso como mera reinterpretação da experiência tradicional. Seria possível, de todo modo, pensar os testemunhos inuit não simplesmente como uma nova interpretação simbólica de um fato antigo? Imaginar tal experiência como uma espécie de "re-experienciação performativa" (Crapanzano 2000:123; Segal 2003:241), por exemplo, permite que a concepção seja outra: os inuit passam a figurar como autores que reflexivamente reelaboram a si mesmos e a seu passado.

Aliada à primeira posição, que não permitiria que a ênfase recaísse sobre a criatividade nativa, está uma certa identificação histórica entre antropólogos e missionários (Stocking 1983:74), em geral recusada por ambos (Van der Geest 1990:589). Uns e outros pensariam saber, afinal de contas, o que seria a essência verdadeira da religião em questão e de que modo uma cultura se distanciaria ou se aproximaria desse ideal. Que catequizadores, enquanto tais, externem tais posições, não é senão tautológico. Já pesquisadores, ao assumirem uma mesma postura, engendram consequências teóricas e práticas para suas pesquisas, deixando de pressupor desconhecimento ao menos inicial em relação àquilo que interessa aos nativos – condição de possibilidade da antropologia. Peter Gow (2006:211-212) precisa-o:

As questões que eu levanto aqui – por que os Piro se converteram ao cristianismo evangélico e depois o deixaram, e por que eles me afirmaram que sempre foram cristãos – claramente não são as questões dos Piro. São tipos de questões que os antropólogos formulam, e elas contêm um perigo oculto. A maioria dos antropólogos provém historicamente de sociedades nas quais o cristianismo tem sido a religião dominante, e a antropologia como disciplina foi constituída dentro de tradições intelectuais fortemente marcadas pelo pensamento cristão. Por conta disso, há mais probabilidade de que os antropólogos formulem questões que são mais próximas daquelas formuladas pelos missionários cristãos do que daquelas formuladas pelo povo que os primeiros estudam e os últimos procuram converter. Certamente, o tipo de questões acerca do cristianismo que interessam a missionários e antropólogos são muito similares, ou ao menos são muito mais próximas entre si do que são para o que os Piro acham interessante no cristianismo.

O distanciamento entre povos indígenas e antropólogos no que concerne aos ideais de conversão deve ser visto, então, mais como uma advertência para que se dê a importância devida àquilo que os nativos afirmam. O próprio Robbins, em seu estudo sobre os urapmin, ainda que na maior parte do tempo defenda o modelo de adoção para pensar o caso que pesquisou, precisa dividir o processo de conversão em duas etapas distintas. Na primeira, a conversão ocorreria por motivos sociocosmológicos tradicionais, enquanto na segunda seria possível acreditar que os nativos se converteriam por motivos religiosos pertencentes propriamente à religião que viriam a abraçar (Robbins 2004:87). Só que essa é uma inferência do autor, já que não é exatamente isso que afirmam mesmo os primeiros convertidos urapmin, cujos nomes são conhecidos. Presentemente, eles insistem em relatar que foi Deus que os levou a se converterem desde o início (Robbins 2004:112-115), algo que o autor não toma como dado, e sim como afirmação a ser desconstruída. Se Robbins advoga para o caso urapmin o modelo de adoção, é somente como etapa posterior a um contato entendido por meio do modelo de assimilação, que se explica em função do enfraquecimento da posição urapmin na divisão do trabalho ritual tradicional. Não é aqui o caso de descartar a interpretação de Robbins: trata-se apenas de apontar que ela talvez não seja suficiente para dar conta daquilo que os urapmin professam. Esse ponto será retomado adiante.

Se, no modelo de assimilação, a ênfase algo determinista a respeito dos resultados da conversão recaía toda sobre o pólo da cultura indígena, no de adoção o que importa de fato são as peculiaridades da cultura adventícia. Pesquisas que se orientam pelo modelo de adoção desejam constatar em especial continuidades, após situações de conversão, encontradas entre a religião efetiva que uma população passa a praticar e aquela trazida pelos missionários. A ideia de adoção permite considerar que algo de essencial possa ser transmitido, sem ser necessariamente modificado no processo. Como diz Peter Wood (1993:321): "Se o cristianismo tem algum significado singular nessa mistura de contextos culturais, ele está na promessa de uma verdade que transcende a todos aqueles contextos".

Em geral, quando agentes da cultura missionária falam em uma conversão religiosa bem-sucedida, desejam referir-se ao resultado de um processo completo de adoção; ou ainda, mais propriamente, em certos casos, de substituição. Por vezes, a construção do discurso pode colocar a religião oferecida como novidade absoluta, quando pressupõe que os povos que os missionários alcançam não possuiriam anteriormente uma religião. É o caso, por exemplo, da catequese jesuítica na América do Sul colonial: o cristianismo era um bem oferecido aos índios, que deveriam adotá-lo de forma não-traumática, já que eles mesmos não estariam familiarizados com nada equivalente a uma religião (Viveiros de Castro 2002:192 nota 12). Por mais improvável que essa construção possa parecer hoje em dia, ela não pode ser ignorada, já que definia aquilo que os missionários do período entendiam como conversão: um procedimento que em si mesmo não poderia ser pensado como violento, já que não entrava em conflito com valores tradicionais de mesma monta.

De modo quase oposto, certos grupos missionários, em geral católicos, atualmente almejariam respeitar os modos de vida tradicionais, considerados eles mesmos como expressão de valores religiosos com os quais concordam, ainda que expressos de forma não-adequada. É o caso, por exemplo, do Centro Indigenista Missionário (cf. Vilaça 2002:68). Talvez fosse possível, então, diferenciar um modelo de adoção de um outro, aqui apontado, de substituição, cada um com suas características próprias. Robbins (2004:10-11) deixa transparecer essa possibilidade, apesar de parecer que o autor não estaria muito convencido de que poderia haver substituição cultural plena – ao menos, definitivamente não no caso dos urapmin.

O modelo de substituição pressuporia frequentemente uma transformação radical da pessoa, mais especificamente de sua subjetividade, que poderia ser, via de regra, constatada nos relatos de renascimento que acompanham conversões ao cristianismo protestante (cf. Burch 1994:84). Seria difícil, nestes casos, pensar mesmo em adoção, já que ela carregaria consigo a noção de que haveria duas religiões convivendo paralelamente – algo que não faria sentido segundo o cânone das religiões exclusivistas. O que não quer dizer que não se dê adoção em certos casos, que tampouco devem ser ignorados. Como mostra Steve Charleston (1996:78), o fato de índios choctaw norte-americanos, por exemplo, defenderem a existência de um Antigo Testamento nativo paralelo a um Antigo Testamento judaico pode ser problemático frente a outrem, mas isso não os impede de considerar ambos como parte de sua religião, e esta, por sua vez, como legitimamente cristã. Para o modelo de substituição, que considera que o cristianismo possui um sentido único, independente das realidades culturais que deve necessariamente transcender (West 1996:33), isso seria, no entanto, impossível.

Possíveis repercussões da mistura dos programas antropológico e missionário foram anteriormente mencionadas. De todo modo, para o ponto de vista aqui adotado, descartar de antemão a própria religião sob a metanarrativa englobante da ciência acarreta efeitos igualmente circunspectos. Argumentos que reduzem qualquer conversão a um jogo de interesses – seja ele o de um utilitarismo banal, ou o do resultado de concessões irrelevantes em troca de bens preciosos – tiram do jogo a religião que os nativos já professam, impedindo que se considere a existência de qualquer processo de conversão, seja de adoção, seja de substituição. É bem possível que se dê mesmo o contrário: "[A] cultura estrangeira foi muitas vezes visada em seu todo como um valor a ser apropriado e domesticado, como um signo a ser assumido e praticado enquanto tal" (Viveiros de Castro 2002:223).

O modelo de adoção, em si mesmo, não parece tão problemático como se mostra o de assimilação, mas a reboque pode trazer concepções que impediriam assumi-lo legitimamente, ao menos em sua totalidade. Para exemplificar: ainda que Robbins (2004) admita que os urapmin tenham adotado in toto o cristianismo, não considera que possam fazê-lo prontamente, já que pressupõe um desentendimento originário fundamental, consideração que o leva a dividir o evento de conversão em duas etapas distintas, conforme mencionado7 7 Os próprios urapmin, é verdade, também chegam a falar em duas conversões diferentes, mas não nos termos de Robbins. Enquanto para o antropólogo o que marcaria a segunda conversão seria o entendimento da religião adotada em termos que seriam próprios a ela, para os nativos a nova conversão se daria após uma experiência extática profunda, fruto de um fenômeno de renascimento religioso (Robbins 2004:87, 131). De todo modo, de acordo com os urapmin, ambas as conversões podem, e devem, ser entendidas através dos termos do próprio cristianismo. .

Sendo assim, o modelo de adoção, segundo o qual duas culturas distintas conviveriam enquanto totalidades, pode vir a exigir uma noção de síntese para que se torne inteligível, ainda que essa redução não se imagine como ocorrendo entre culturas tidas como necessariamente estanques, imutáveis. Eis aí, como nota o próprio Robbins (2004:332), uma diferença em relação à ideia de "integração" cultural ou social: ela traz consigo um ideal de previsibilidade e de simplificação de controvérsias, conquanto estas sejam intrínsecas ao discurso nativo. Para o autor, o tormento moral dos urapmin – de que são vítimas inegáveis, frise-se – se dá em função da coexistência de dois valores culturais, a saber: o "relacionalismo" tradicional e o individualismo cristão, essencialmente díspares, e que lutam entre si por predominância. Os urapmin, contudo, reconhecem que não há o menor problema em possuírem duas lógicas distintas e contraditórias, ou seja, em serem ao mesmo tempo urapmin e cristãos (cf. Robbins 2004:175-177). Não somente, é justamente por meio do cristianismo que eles podem superar as maiores dificuldades (intimamente relacionadas) que encontram para uma vida livre de tormentos: o fato de serem negros e pobres (cf. Robbins 2004:xxvi-xxvii, 171-172). Sua existência é moralmente conflituosa não em função de um embate entre valores culturais em si, mas pelo fato de não terem os meios para satisfazer as exigências que a situação em que vivem lhes coloca. Ainda que o ‘diagnóstico’ seja o mesmo, a atribuição de diferentes motivos para seus tormentos indicaria formas distintas de lidar com a questão: afinal, a opção no primeiro caso seria ignorar os preceitos do cristianismo, o que significaria, para os urapmin, nada menos que a danação eterna.

O modelo de reprodução transformativa, por fim, pretende ser um compromisso entre os dois extremos. Segundo ele, uma cultura original seria alterada de acordo tanto com seus próprios preceitos como levando em conta as especificidades daquela que nela se imiscuiria. Pessoas de diferentes culturas convertendo-se a religiões distintas chegariam a combinações singulares, dependendo tanto da configuração inicial como da religião que passam a seguir (Wood 1993:305, 320). Como lembra Robert Hefner (1993:4), a conversão a uma religião exclusivista não exige sempre apostasia, sendo possível uma combinatória mais pacífica, ainda que em geral repreendendo a religião tradicional. No limite, o modelo transformativo pode ser encontrado também no estudo de Meyer (1999:110-111), no processo de diabolização da religião tradicional ewe. Não obstante o uso de categorias ligadas à tradição para transmitir a noção de que elas não deixaram de estar presentes, a relação dos ewe com as mesmas seria inegavelmente alterada em função da conversão. Na utilização do vocabulário ewe pelos missionários, por exemplo, palavras usuais tiveram de ser ressignificadas, ainda que não fosse possível abrir mão nem destas, nem de algumas de suas acepções para que a mensagem cristã fosse transmitida.

Os quatro modelos de conversão ou mudança cultural propostos, de todo modo, possuem algo em comum. Supõem, sem exceção, a existência de um substrato original que seria alvo de influências de uma cultura estrangeira. Em última instância, a escolha de qual modelo utilizar, de toda forma, parece recair sempre na forma pela qual a cultura nativa é imaginada: de um lado, culturas que só aceitam conjugar-se com outras em seus próprios termos; do outro, culturas que desejam adotar uma alteridade conservando-a da melhor forma possível, em alguma medida apagando-se a si mesmas; entre os extremos, as concessões mútuas em processos aparentemente mais tolerantes. Excetuando-se o modelo de substituição aqui proposto, que de todo modo não parece encontrar exemplos etnográficos que o respaldem, para todos os outros a cultura nativa nunca se extinguiria em meio a essa transição. A questão passa a ser o grau de interpenetração entre elas, assim como o tipo de convivência que se mostra possível, com conflitos ou não.

De um modo ou de outro, nenhum dos modelos propõe considerar que o processo de conversão possa ter, de fato, efeitos recíprocos: tanto para a religião dos convertidos, como para a religião de quem os converteu. Talvez não se veja problema em se falar, algo timidamente, de como o cristianismo em ewe ou em urapmin pode ser informativo a respeito dos ewe ou dos urapmin. Todavia, é possível ampliar a questão levando a sério aquilo que o cristianismo ewe ou o cristianismo urapmin tem a dizer para o cristianismo de modo geral (cf. D’Angelis 2004:212; ver, por exemplo Capiberibe 2004:81, 96). Mesmo uma religião dita mundial, desse modo, pode deixar de ser vista como bloco monolítico e incólume a conformar identicamente as pessoas por onde quer que seja levada, passando a ser afetada das maneiras mais diversas por seus novos coletivos de fiéis (cf. Calavia Sáez 1999:49-50 nota 10).

Conversões controversas?

Quais os motivos que nativos apresentam para explicar suas conversões religiosas? Como já visto, muitas vezes as razões oferecidas para essa transição não são reconhecidas como legítimas pelos missionários. Contudo, o antropólogo que as considerar sem qualquer pretensão de julgar de saída sua validade pode aprender muito com essas informações. Não raro, por exemplo, constata-se que acontecem conversões em função de benefícios materiais fornecidos em decorrência da filiação religiosa (Calavia Sáez 1999:43; Capiberibe 2004:75; Hefner 1993:5; Meyer 1999:11; Wood 1993:312). Todavia, como já apontado anteriormente, reduzir a conversão à lógica de um racionalismo econômico simplista pode fazer com que se perca de vista a importância da própria religião, parte fundamental do processo. Seria válido dizer, por exemplo, no caso dos achuar estudados por Taylor (1981:657), cuja conversão se dá para obter acesso a contas de origem divina, que se trata de mera ação de indivíduos calculistas? Além disso, é mister notar que os próprios missionários em geral trazem consigo todo um aparato de apoio ‘laico’, facultando o acesso a escolas, hospitais e produtos industrializados como um todo (Burch 1994:84; Capiberibe 2004:59; Hefner 1993:38 nota 14; Meyer 1999:22; Sahlins 1985:38; Wood 1993:320). Dizer que tal parafernália não faz parte da religião, em situações nas quais os indígenas consideram justamente o contrário, significa agir do mesmo modo como fazem os missionários, julgando possuir o monopólio do conhecimento acerca daquilo que de fato viria a ser a religião.

De certo modo, esse processo poderia ser visto como uma forma de conversão não a uma religião, mas à ideia de comunidade (Gow 2006:213; Pollock 1993:66; Wood 1993:308; Viveiros de Castro 2002:190). Esse ponto de vista, entretanto, parece mais presente quando se examina a concepção que os próprios missionários têm daqueles que seriam os motivos que levariam os nativos à conversão (Vilaça 2002:69; Viveiros de Castro 2002:192). Dizer que as pessoas não abraçam uma religião, e sim o que ela representa, pode fazer com que o antropólogo se atenha somente à percepção missionária da conversão adequada. Como adverte Sjaak Van der Geest (1990:591):

Poder-se-ia dizer que na maioria dos casos o antropólogo destitui a religião de seu significado original e a redefine como algo que é relevante e interessante para o discurso antropológico. A religião torna-se então ‘ritual’, ‘controle social’, ‘uma estratégia de sobrevivência’, ‘uma etiologia’, ‘uma filosofia’. [...] Em outras palavras, se torna algo que faz sentido para o antropólogo.

Outra razão para a conversão pode ser vista, ao menos em casos ameríndios, na "inconstância da alma selvagem", segundo formulação de Eduardo Viveiros de Castro. O autor nota que o desejo indígena de devir constantemente outro abre espaço para uma possível convergência com os planos catequéticos de tornar o outro idêntico a si, possivelmente resultando na conversão – e, igualmente, na ‘desconversão’8 8 O que não significa, necessariamente, um ‘voltar a ser o que se era’ ou ‘o que sempre se foi’, ainda que estas sejam possibilidades. – dos nativos (Viveiros de Castro 2002:193). Sem dúvida, tanto missionários como indígenas ameríndios concordariam com a colocação de que estes últimos desejariam "ser cristãos como eles". Se, entretanto, no caso dos brancos, a ênfase supostamente jazia na ideia de que os nativos queriam "ser cristãos", para os ameríndios tratava-se mais de ser "como eles"9 9 Para os ameríndios, então, a diferença deveria ser valorizada por si mesma. Não seria o caso de falar meramente em "identidade contrastiva", da necessidade de um outro para que a construção do eu fosse possível. Mais que isso: esse tipo de relacionalismo implica a existência mútua e concomitante de um eu-outro. Assim, surge como fundamental na cosmologia ameríndia não a identidade, mas a alteridade, e mesmo uma alteridade específica do devir-branco. . Como aponta Viveiros de Castro (2002:224): "À moda inconstante da casa, bem entendido; o ‘virar branco e cristão’ dos Tupinambá não correspondia em nada ao que queriam os missionários, como veio a demonstrar o recurso à terapia de choque do compelle intrare".

Aproveitando a Amazônia como ponto de partida, cabe considerar que, se o antropólogo compartilhar somente do ponto de vista ocidental daquilo que é conversão – vista como fenômeno interiorizado e psicologizado –, dificilmente constatará nas populações nativas a ocorrência de qualquer tipo de orientação a uma nova religião (Vilaça 2002:58). Assim, o próprio entendimento daquilo que se considera ser a religião a que alguém se devota é fundamental para compreender o que se imagina por conversão; e é de todo possível, como foi visto, que agentes missionários e indígenas tenham ideias bastante distintas a respeito desse processo. Como exemplifica Donald Pollock (1993:192 nota 1, 172), no século XV bastava, segundo a maior parte dos europeus colonizadores, que fossem realizados os rituais sacramentais do catolicismo para que alguém fosse considerado convertido.

A mensagem cristã de salvação individual, por exemplo, pode sofrer alterações para abarcar necessidades comunais (Hefner 1993:5), sendo o caso de se converterem por vezes tribos inteiras. Esse acontecimento, muitas vezes percebido (Capiberibe 2004:87-88; Gow 2006:219, 13; Laugrand 1997:109; Remie & Oosten 2002:113; Sahlins 1985:37; Schultz & Tinker 1996:66; Shapiro 1981:143; Vilaça 2002:64), pode acontecer em função tanto de demandas nativas como de estratégias tipicamente empreendidas pelos incentivadores da conversão, tendo diferentes efeitos em relação ao tipo de mudança que venha a ser considerada. Via de regra, quando a ênfase na conversão se aproxima do paradigma ocidental indicado acima, os missionários se recusam a constatar sua ocorrência em massa, realizando um trabalho milimétrico para a conquista de almas. Ainda assim, é possível que os nativos se julguem convertidos em grupo, evento que, se ignorado pelo antropólogo, pode interromper a investigação de modo prematuro.

Horton (1975:395) teria encontrado entre povos da África Ocidental uma agitação semelhante, uma oscilação constante entre, por um lado, religiões mundiais como o cristianismo e o islamismo, e, por outro, religiões tradicionais africanas. Para o autor, entretanto, não seria correto falar em "conversão" nesse caso – daí sua opção por aspear o termo constantemente –, já que, como compartilhariam um mesmo quadro cosmológico geral10 10 Condição de possibilidade, de acordo com a teoria de Horton, para a alternação religiosa, como dito anteriormente. , tanto pagãos como muçulmanos acreditariam basicamente nas mesmas coisas (Horton 1975:219, 394). Imagina-se aqui que os muçulmanos, para dizer o mínimo, tenderiam a discordar do autor.

Pensar que toda conversão poderia ser limitada a um evento específico, um momento singular temporalmente demarcado, também seria outra forma de ignorar as situações em que os nativos afirmam ter se convertido. Como mostra o caráter difuso e contínuo da experiência narrada por um dos informantes de Vincent Crapanzano (2000:104), querer definir uma ocasião exata para o acontecimento da conversão é o mesmo que tentar controlar uma experiência que, por definição, não pode ser controlada. O instante em si não importaria tanto quanto o resultado do processo, que é um renascimento para uma nova vida.

Do mesmo modo, quando missionários afirmam que determinados grupos não foram convertidos, ou que o processo não se deu de modo correto, esse é mais um dado para o trabalho antropológico, não um de seus axiomas. Ignorar as interpretações altamente engenhosas que os nativos convertidos produzem, por exemplo, a partir de textos bíblicos (de modo semelhante àquelas feitas pelos mais ortodoxos fundamentalistas cristãos), pode empobrecer a pesquisa antropológica. Os ewe, por exemplo, centram-se na indefinição da figura do diabo (Meyer 1999:41) nas escrituras para tematizar a própria indiscernibilidade em suas vidas, constantemente ameaçados que são pela chegada do juízo final. Os wari’ enfatizam as regras de conduta e a erradicação da afinidade (Vilaça 2002:65) propostas pelo cristianismo, se comprazendo na ideia de que são todos irmãos. Os muscogee lembram que, como disse Cristo, as próprias pedras podem chorar (Maxey 1996:45), o que ecoa profundamente sua cosmofísica, ao não negarem agência a objetos tidos por outrem como inanimados. Essas explicações não poderiam ser consideradas como legitimamente ewe, wari’, muscogee? Sem dúvida. O que não deve impedir outra pergunta: tais leituras não poderiam, numa espécie de exercício de simetrização, ser vistas também como legitimamente cristãs? Posto de outro modo: essas interpretações podem muito bem estar prefiguradas de algum modo na cultura nativa (Viveiros de Castro 2002:194); ao mesmo tempo, contudo, reduzi-las totalmente a reflexos de uma essência anterior é ignorar a originalidade das próprias construções indígenas em sua constante tematização do outro enquanto tal (Viveiros de Castro 2002:223).

Colocando de lado, por ora, os modelos de transformação cultural revisados acima, questiona-se então quais seriam as formas possíveis de entender a conversão etnograficamente, isto é, considerando sempre os modos como ela aparece no discurso nativo. Antes de tudo, prefere-se aqui não limitar de saída a ideia de conversão a uma derivação de sua interpretação tipicamente protestante, ou seja, à noção de que seria preciso uma reorientação profunda da subjetividade para que o processo efetivamente ocorresse (Hefner 1993:35 nota 2). A caracterização que Susan Harding (1991:380) propõe para o que chama de evento representacional pode ser um bom ponto de partida. Segundo a autora, seria o caso de pensar esse acontecimento como um processo discursivo complexo, polivalente, aberto, disposto em múltiplos planos, no qual os envolvidos – incluindo aí os autoproclamados observadores – criariam e contestariam representações de si mesmos, dos outros e do evento em si.

Desse modo, aquilo que se considera inicialmente como um mesmo fato, a conversão, pode ser visto de modos distintos. O caso da catequização dos povos nativos da América do Sul elucida tal ponto: se os europeus buscavam pensar os indígenas segundo uma cosmologia tipicamente ocidental, os índios, por sua vez, desejavam a incorporação plena dessa alteridade (Viveiros de Castro 2002:206). De todo modo, em função da apresentação da possibilidade de conversão, fez-se necessário transformar a forma pela qual o próprio cristianismo se pensava, precisando se mobilizar para responder à questão da existência ou não das almas dos nativos. A cosmologia ameríndia, por sua vez, não podia deixar de ser vista, ao mesmo tempo, como indigenamente perspectivista, desejosa que era de trocar pontos de vista. Onde então, exatamente, começam e terminam a assimilação, a transformação, a adoção, a substituição? As respostas não são oferecidas de imediato.

Não se acredita aqui, de todo modo, que essa dissolução de fronteiras deveria servir para apagar as idiossincrasias dos processos de conversão. Se, por um lado, para certos coletivos converter-se equacionava um tipo de conjugação, encontro, compromisso, interpenetração; resultando, no limite, em uma espécie de con-fusão (nas múltiplas acepções da palavra)11 11 Pode-se ver em Meyer (1999:54) uma aproximação entre conversão e conversação. Cf. também o que diz Clifford Geertz (1973:13, 24) a respeito da importância não só de falar e ouvir, mas de conversar. , por outro, as pulsões missionárias, características das religiões mundiais, estiveram mais interessadas no aspecto de verter, espalhar-se, espraiar-se, aumentar seu contingente de modo a alargar seus próprios limites, eles mesmos se mantendo imodificados – em seu cálice não se misturavam outros néctares. Seguindo Meyer (1999:134), opta-se aqui não por privilegiar uma das acepções em detrimento da outra, mas sim por obstaculizar ativamente a redução do processo de conversão a quaisquer dessas correntes, vislumbrando o fenômeno do modo como se apresenta: multifacetado, complexo.

Perspectivas

Esforços de missionários entre povos ameríndios indicam que, tanto para uns como para outros, a noção de perspectiva é importante para a compreensão dos processos de conversão. Entre os achuar e os wari’ da Amazônia, para indicar alguns exemplos, constata-se uma ligação íntima entre o ato de ver – e o modo como se vê – e o corpo que se possui. Habitar um determinado corpo faz com que se participe de um mundo específico, distinto de muitas formas do mundo em que se encontram seres de corpos diferentes. O ingresso em diferentes mundos, de acordo com a cosmologia ameríndia, só se dá ao trocar perspectivas12 12 Opta-se aqui por utilizar a construção ‘trocar perspectivas’, em conjugação transitiva direta, em oposição a uma ‘mudança de pontos de vista’, com preposição, a partir da distinção que é possível depreender de Marilyn Strathern (1992:90, passim). Ver adiante a ideia de comutação. , o que é possível ao se trocar corpos propriamente ditos (como no caso dos xamãs). Como seria possível, então, entender a ideia de um deus onisciente, como o do cristianismo, em uma cosmologia perspectivista? Ela só faz sentido quando correlacionada à própria concepção da imaterialidade divina. O fato de não ter um corpo passa a ser encarado como a obviação de um constrangimento que limitaria a capacidade de acesso aos diferentes mundos (Taylor 2002:464). Mais ainda: ele abre espaço para que o próprio multinaturalismo indígena se transforme, ao menos em um nível, em um mononaturalismo, concebendo a existência de um mundo único, sob a vigilância constante de Deus. Desse modo, ocorre uma espécie de achatamento da perspectiva (Vilaça 2003). O cristianismo, então, apresenta uma maneira de ver o mundo estranha à cosmologia ameríndia, mas que ainda assim pode encontrar um sentido em seus termos; é um ponto de vista propriamente "ex-ótico", para seguir uma formulação de Ordep Serra (1995:179), um olhar que se pretende ubíquo.

De modo semelhante, é possível pensar o fenômeno que determinados missionários católicos chamam de "encarnação". Certos missionários acreditam que antes de conquistar as almas nativas para sua religião é preciso que eles próprios abracem os costumes tradicionais; só então haveria possibilidade de um diálogo em princípio algo ecumênico (Shapiro 1981:141). A vocação missionária, desenvolvida nesse caso pela imitação da vida de Cristo, sugere que os estrangeiros deveriam quase que literalmente adotar um corpo adequado à transmissão da mensagem cristã no meio em que se encontram: "O missionário precisa sentir na ‘carne’ a experiência dos Índios com quem ele vive; ele sente que dessa forma a mensagem que ele traz será a resposta às suas próprias questões". (Shapiro 1981:141). A ideia de que a metamorfose corporal é a contraparte ameríndia do tema europeu de conversão espiritual (Viveiros de Castro 2004:476) parece ser de conhecimento dos missionários. Se, nesse caso, não é insólito considerar que um missionário pode se propor adotar uma maneira de pensar propriamente perspectivista, cabe perguntar em que medida pode um branco possuir um corpo semelhante ao de um índio, resposta que também não é evidente. De todo modo, na tentativa de encarnação, o missionário não abandona seu mundo por inteiro: sua lógica não é a de trocar perspectivas com outrem, mas a de somar a seu leque de possibilidades outros pontos de vista pelos quais poderia passear de acordo com a necessidade da causa: ele troca de ponto de vista. Não é de se espantar que tal proposta nem sempre encontre eco duradouro entre ameríndios, já que, de acordo com sua cosmologia, perspectivas não são adicionáveis, mas somente comutáveis: para obter outra é preciso perder a própria, ainda que momentaneamente.

Por um lado, segundo Judith Shapiro (1981:146), a busca por "se tornar índio" pode ser apenas uma tentativa do missionário de encontrar na cultura indígena problemas que lhe são familiares13 13 O que só é questionável para o programa antropológico aqui adotado, como indicado anteriormente, não para o missionário. . Em última instância, um missionário, qua agente de recrutamento, precisa necessariamente converter alguém a alguma coisa, nem que seja converter-se a si mesmo (Shapiro 1987:136). Por outro lado, como aponta de passagem Pollock (1993:176), com a noção de diversão14 14 "Diversion", no original, que também poderia ser traduzido como "desvio",ou "divergência", desde que não se atrele a isso a ideia de que haveria um rumo correto a ser seguido. O autor emprega diversion em oposição a aversion, formando o conjunto "conversão", "aversão", "diversão". religiosa, tampouco podem ser ignorados os processos de "indigenização" empreendidos, por exemplo, por caboclos à cosmologia indígena, ou por membros de populações urbanas a etnias africanas, via religiões como o candomblé (cf. tb. Serra 1995:104). Deve-se precaver, finalmente, contra a tendência de hierarquizar a significância desse tipo de conversão, que poderia ser vista como mais ou menos verdadeira por ter se dado desde o princípio a partir de um movimento nativo, sem a presença de missionários.

Não se deseja aqui, com o recurso à cosmologia ameríndia, dizer que os processos de conversão evidenciam um caráter perspectivista em toda e qualquer mudança cultural. O que se propõe é que os exemplos etnográficos escolhidos e a teoria perspectivista deles depreendida possam funcionar como casos privilegiados a oferecer meios de inteligibilidade a situações em princípio bastante díspares. É a partir dessa sensibilidade específica que as palavras de Crapanzano (2000:97), que se referia à experiência de fundamentalistas protestantes norte-americanos, não passam despercebidas: "[I]t is not so much a change in the way the world is experienced subjectively, but in the world itself, as it comes to be known, as it presents itself objectively." Evidencia-se assim o modo pelo qual a pressuposição da existência de um mundo único, natural, indiscutível, liga-se, como indica Bruno Latour (2005:116-117), à noção de que fatos seriam incontestáveis e independentes da relação que se tem com eles. Ainda segundo o mesmo autor, pensar, por outro lado, que fatos devam ser encarados a partir de seus processos de construção, permite conceber uma pluralidade de mundos incomensuráveis (como é o caso no multinaturalismo). Desse modo, torna-se verossímil também a existência de múltiplas verdades, não necessariamente excludentes entre si. Diversas afirmações aparentemente contraditórias, exemplificadas ao longo deste trabalho, versando a respeito de situações de conversão, podem adquirir novo sentido se pensadas a partir da possibilidade de se trocar perspectivas. Para colocar ainda de outra forma: não há problema algum em um urapmin afirmar que desde o princípio sua conversão se deu por motivos propriamente cristãos, desde que o antropólogo considere a possibilidade de tratar a afirmação nativa como mais que uma percepção retrospectiva, tomando-a como uma enunciação feita a partir de uma outra perspectiva, baseada em outra ontologia – da mesma forma em que deve ser lido o mote de outro livro de Latour (1991), em que o autor afirma que "jamais fomos modernos". Ou seja, o que os urapmin dizem, de algum modo, é que, a partir de determinado momento histórico, eles passam a ‘sempre terem sido’ cristãos, o que vai ao encontro justamente da ideia de conversão como re-experienciação, renascimento.

Ao mesmo tempo, não há como ignorar a interpretação missionária usual, que em geral exige daqueles que se convertem fidelidade exclusiva aos seus preceitos religiosos monoteístas. Se o construtivismo generalizado a que se aludiu pode servir sobremaneira quando se fala a respeito de deuses em religiões como o candomblé – como mostra o próprio Latour (1984) –, cujos praticantes insistem na condição de ‘feitura’ de seus deuses, não se pode dizer necessariamente o mesmo sobre o cristianismo. Para exemplificar, provavelmente não seria comum que um cristão concordasse com uma língua franca construtivista segundo a qual ‘o seu deus’ seria tão construído quanto qualquer outro. Ao contrário, ele lembraria que Deus (com maiúscula) é um ser uno, perfeito, independente da relação que os homens têm com ele. Seria o caso de reler, sob outra luz, as perguntas que Latour (2002:45) se coloca alhures: "O apego quase fanático ao caráter não-construído da unidade de Deus não poderia ser em grande medida uma resposta ao papel unificador da natureza, o qual as negociações concordaram em limitar? Se o último torna-se negociável, por que não aconteceria o mesmo com o primeiro?". Se a colocação do autor é pertinente para o modo como os cientistas ocidentais modernos concebem a natureza, para os próprios cristãos faria mais sentido dizer que é a natureza que é inegociável em função de ser criação divina, e não o contrário. O que pode levar ao questionamento, no limite, da utilidade das noções de causa e consequência unívocas, ao menos no que diz respeito ao tema em revista15 15 Cf. argumento similar em Martin Holbraad (2006). .

De toda forma, como Latour (1984) indica, é possível contornar o imbróglio, evitando ter de escolher necessariamente entre duas interpretações, já que a rigor não haveria apenas duas, e sim uma multiplicidade de vertentes distintas. Explicita-se também, desse modo, uma questão fundamental: a existência de relações de poder implicadas na atividade de restringir as diversas elaborações cosmológicas que são continuamente reconfiguradas pelos nativos. Extrapolando a partir de uma formulação latouriana, talvez fosse o caso de uma ontologia de geometria invariável se fazer acompanhar frequentemente por processos violentos de constrangimento ontológico durante a conversão. Radicalmente, faria sentido duvidar mesmo do caráter de ‘conversão’ a ser lido em uma situação desse tipo, já que, após a obliteração de perspectivas, só restaria uma única ontologia que teria subsumido todas as outras, não uma troca de qualquer espécie. Seria possível pensar, a partir da percepção oferecida por James West (1996:35), que se a missão cristã contemporânea tem plena consciência de que existe em um mundo pluralista, não pode aceitar de modo algum a existência de uma pluralidade de mundos. A multiplicidade ontológica, por sua vez, se relacionaria não com a proposição de uma verdade única, extensiva, mas de verdades existenciais, intensivas, de acordo com cada situação e experiência, no dizer de Godfrey Lienhardt (1961:250).

Em suma, os movimentos constantes de conversão implicam um desafio à consideração das noções de aculturação ou mudança social (Viveiros de Castro 2002:191). Os próprios antropólogos podem – e por vezes mesmo devem – ser vistos como participantes do processo, seja, por exemplo, como alvo de ações nativas (Crapanzano 2000:164-165), seja como vetor para transformações (Van der Geest 1990:588-589; Wagner 1975: 7 nota 1). Não se sugere aqui que os modelos de conversão apresentados não possuam qualquer valor explicativo por si só, e tampouco se defende uma espécie de fusão entre eles – que não faria mais que deixar intactas suas premissas e consequências. Como já se disse, resultam restrições do fato de que nenhum dos padrões em questão parece levar em conta a possibilidade de a cultura dita exterior sofrer ela mesma alterações em função do contato. Em outras palavras, por mais que os efeitos sejam recebidos de modos diversos de acordo com cada modelo, nenhum deles permite ver, simetricamente, que a cultura colonizadora poderia ser – ou talvez seja necessariamente – transformada, e que isso pode ocorrer justamente devido aos desafios propostos pelas inadequações decorrentes dessa aproximação.

De acordo com os modelos anteriormente expostos, ambas as culturas em questão, tanto a nativa quanto a adventícia, poderiam ser imaginadas por meio do paradigma de cultura original versus cultura de diáspora, proposto por Manuela Carneiro da Cunha (1987:99). Segundo essa visão, uma cultura só poderia ser pensada como uma espécie de totalidade em si, ocupando um tamanho determinado. Quando do contato, elementos poderiam ser até oferecidos a outras culturas, mas haveria um processo inegável de perda, tanto em uma como em outra. Além disso, de modo semelhante ao que acontece com o conceito de sociedade (Barth 1992:18), tomar culturas como unidades fechadas permite uma separação simplista de processos em endógenos e exógenos, além de insinuar sutilmente modelos pertencentes ao Estado-nação como organizadores de todo pensamento humano. Concorda-se aqui com Strathern (1992:77), que define que a visão modernista e igualmente pluralista, de um mundo cheio de unidades distintivas e totais, dissolveu-se na de um mundo pós-plural, para o qual outras estéticas discursivas se fazem necessárias. Analisando um processo de conversão, então, pode-se "falar em uma experiência histórica comum em que se deram a incorporação e a reelaboração de um novo repertório cultural [...]." (Serra 1995:101).

Não é necessariamente o caso, ressalte-se, de negar nenhuma das interpretações expostas durante o acompanhamento dos modelos descritos, mas de algum modo relacioná-los, fazê-los se chocar uns contra os outros, convertê-los: assim seria possível encontrar um modo de não ignorar nenhuma das asserções nativas, entendendo-se aqui por nativos todos os que se engajam na construção das práticas relacionadas à conversão. Partindo-se do príncipio de que não cabe ao antropólogo desautorizar os indígenas, quaisquer que sejam suas proposições, deve-se perguntar como é possível considerar com seriedade afirmativas frequentemente tão díspares a respeito da conversão. Os antropólogos costumam ignorar esses fenômenos religiosos, enquanto os missionários têm por hábito exagerá-los (Pollock 1993:190-191; Vilaça 2002:57), mas isso não se constitui regra geral. Afinal de contas, como vimos, há casos em que alguns nativos se afirmam convertidos, renascidos, e outros em que dizem que jamais passaram por conversão alguma, tendo sempre conhecido e feito parte da religião em questão. Há outras situações, ainda, em que se postula, a respeito dos indígenas que se converteram facilmente (algo que talvez eles mesmos negassem), ou que suas conversões não foram legítimas (o que os nativos poderiam igualmente contestar). Os discursos em si podem ser absolutamente contraditórios se vistos em conjunto, mas isso não impede que o antropólogo os considere simultaneamente: incomensurabilidade não significa irrelacionalidade. Fazer jus à heterogeneidade percebida na pesquisa envolve não reduzir determinados discursos aos termos propostos por um outro (ou ao próprio discurso antropológico). Não há problema, assim, em se afirmar que dois argumentos aparentemente autoexcludentes podem ser ambos verdadeiros. Desse modo, é possível para um antropólogo dizer simultaneamente que sim, houve conversão, e que não, não houve conversão, desde que se paute pelas afirmações dos nativos: afinal, eles mesmos podem, em determinadas circunstâncias, dizer as duas coisas. E, como sugere Meyer (1999:xix-xx), um estudo antropológico sobre conversão precisa dar conta de todos os envolvidos no processo.

Evita-se pensar em ‘mudança cultural’, por essa noção exigir supor unidades discretas, completas em si, entrando em comunicação para que se alterem de algum modo, ainda que de formas as mais diversas. Obviar à ideia de mudança cultural torna possível compreender uma cultura como algo em permanente transformação, continuamente construído, conferindo à conversão enquanto evento específico um sentido profícuo. É só com a suposição de que haveria algo fixo, duro, cristalizado, que se pode pensar em momentos de flexibilização, de transformação, de mudança:

"Conversão" em seu sentido mais comum parece presumir que as crenças e práticas religiosas formam um todo internamente coerente e abrangente que é apropriadamente assimilado (talvez sempre assimilado) em bloco pelos convertidos. Além disso, nessa visão, as religiões são preferencialmente exclusivas; [...] religiões "sincréticas" são interessantes precisamente porque elas parecem violar essas premissas básicas. (Pollock 1993:170)

Abandonando o requisito missionário de ‘substancialização’ de unidades, deixa de fazer sentido falar em continuidade (ou, o que seria pior, em ‘sobrevivência’) em oposição à noção de mudança. Se o antropólogo parte, em vez disso, da ideia de que sua matéria de trabalho consiste em multiplicidades complexas, parcialmente conectáveis, outro quadro se apresenta – um cenário que não impede que se pense em conversão, desde que esse termo possa significar algo diferente – ou ter mesmo uma multiplicidade de sentidos – como evidencia, por exemplo, o trabalho de Calavia Sáez (1999:47). Conversão passaria a designar, talvez, uma espécie de transformação ou translação, uma relação entre versões, elas mesmas em efervescência contínua.

Notas

Recebido em julho de 2007

Aprovado em dezembro de 2008

Gabriel Banaggia (gbanaggia@gmail.com)

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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  • 1
    Todas as indicações bibliográficas no corpo do texto baseiam-se no ano de publicação da edição original da obra em questão. A data da versão efetivamente consultada, quando diferente, encontra-se, entre colchetes, nas referências ao final do texto.
  • 2
    O autor gostaria de agradecer a Aparecida Vilaça, Bruno Marques e Marcio Goldman pelos comentários oferecidos a uma versão inicial do que se tornaria o presente artigo.
  • 3
    De modo a contemplar as especificidades apresentadas por esses processos quando do encontro de missionários com essas populações (cf. Wright & Kapfhammer 2004:14-17), ao redor do mundo.
  • 4
    Em dois registros similares, ainda que também com divergências em relação aos anteriores, é possível ler textos de Birman (1996:94 nota 9, 98-99) e Capiberibe (2004:61, 68-69, 84, 95-97) nessa mesma chave.
  • 5
    Robbins (2004:339 nota 2) também apresenta outra crítica contundente: se, também de acordo com a teoria de Horton, só são aceitos no processo de conversão os traços adequados à cosmologia tradicional, ela própria já não responderia satisfatoriamente às questões colocadas pelo novo quadro sociocultural? Não haveria, desse modo, motivo algum para a conversão.
  • 6
    O discurso de alguns índios norte-americanos cristãos, por exemplo, é o de que eles teriam sempre conhecido a Deus, mesmo antes de se converterem ao cristianismo (Schultz e Tinker 1996:57-58). Segundo eles, a novidade introduzida pelos missionários teria sido não a figura de Deus, mas a de Jesus.
  • 7
    Os próprios urapmin, é verdade, também chegam a falar em duas conversões diferentes, mas não nos termos de Robbins. Enquanto para o antropólogo o que marcaria a segunda conversão seria o entendimento da religião adotada em termos que seriam próprios a ela, para os nativos a nova conversão se daria após uma experiência extática profunda, fruto de um fenômeno de renascimento religioso (Robbins 2004:87, 131). De todo modo, de acordo com os urapmin, ambas as conversões podem, e devem, ser entendidas através dos termos do próprio cristianismo.
  • 8
    O que não significa, necessariamente, um ‘voltar a ser o que se era’ ou ‘o que sempre se foi’, ainda que estas sejam possibilidades.
  • 9
    Para os ameríndios, então, a diferença deveria ser valorizada por si mesma. Não seria o caso de falar meramente em "identidade contrastiva", da necessidade de um outro para que a construção do eu fosse possível. Mais que isso: esse tipo de relacionalismo implica a existência mútua e concomitante de um eu-outro. Assim, surge como fundamental na cosmologia ameríndia não a identidade, mas a alteridade, e mesmo uma alteridade específica do devir-branco.
  • 10
    Condição de possibilidade, de acordo com a teoria de Horton, para a alternação religiosa, como dito anteriormente.
  • 11
    Pode-se ver em Meyer (1999:54) uma aproximação entre conversão e conversação. Cf. também o que diz Clifford Geertz (1973:13, 24) a respeito da importância não só de falar e ouvir, mas de conversar.
  • 12
    Opta-se aqui por utilizar a construção ‘trocar perspectivas’, em conjugação transitiva direta, em oposição a uma ‘mudança de pontos de vista’, com preposição, a partir da distinção que é possível depreender de Marilyn Strathern (1992:90, passim). Ver adiante a ideia de comutação.
  • 13
    O que só é questionável para o programa antropológico aqui adotado, como indicado anteriormente, não para o missionário.
  • 14
    "Diversion", no original, que também poderia ser traduzido como "desvio",ou "divergência", desde que não se atrele a isso a ideia de que haveria um rumo correto a ser seguido. O autor emprega diversion em oposição a aversion, formando o conjunto "conversão", "aversão", "diversão".
  • 15
    Cf. argumento similar em Martin Holbraad (2006).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Aceito
      Dez 2008
    • Recebido
      Jul 2007
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