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Psiquiatria no século 21: integrando conceitos

EDITORIAL

Psiquiatria no século 21: integrando conceitos

Recentemente tivemos a oportunidade de realizar e participar da VII Jornada Gaúcha de Psiquiatria em Porto Alegre, entre 13 e 16 de julho de 2005, cujo tema instigante foi "Psiquiatria no século 21: integrando conceitos". Os frutíferos e acalorados debates sobre a necessidade de se definir, separar e integrar conceitos em defesa de uma psiquiatria contemporânea mais eficaz para nossos pacientes fez com que dedicássemos este editorial a esse tema tão atual e desafiante com o qual a revista se identifica.

A relação mente-cérebro tem sido objeto de contínua discussão e controvérsias por parte dos cientistas e pensadores ao longo dos séculos. O uso dos termos "mente" e "cérebro" em psiquiatria foi associado à polarização de conceitos, como se fossem entidades separadas. Os conceitos que se referem ao ambiente, ao psicossocial e às psicoterapias possuem a tendência de serem relacionados à "mente", enquanto que a genética, a biologia e a medicação são freqüentemente associadas ao "cérebro". Os termos "biomédico" e "psicossocial" definem dois paradigmas, divisão que tem produzido um efeito paralisante sobre o desenvolvimento da ciência que se dedica à saúde mental. Essa dicotomia e polarização é uma visão ultrapassada e empobrecedora, pois os psiquiatras da era pós-cartesiana tendem a pensar na mente como uma atividade do cérebro, os quais, na prática encontram-se inextricavelmente interligados. A persistência da discussão a respeito dos termos "mente" e "cérebro" na psiquiatria contemporânea reflete o fato de que eles representam, hoje, diferentes formas de pensar sobre os pacientes e seus tratamentos.

Durante a primeira metade do século 20, a psicanálise revolucionou nossa compreensão da vida mental, agregando novos conhecimentos sobre os processos inconscientes. Já na segunda metade, esses progressos foram menos impactantes. A psiquiatria passou por um período de reducionismo psicanalítico nas décadas de 60 e 70, desconsiderando a complexidade da etiopatogenia neuroquímica. Depois, sofreu o perigo do reducionismo biológico, que deixava de lado a experiência emocional, os significados e os processos interpessoais, ao enfocar a genética molecular e os neurotransmissores. A década de 90 pode ser considerada como a "década das neurociências", pois esses avanços trouxeram importantes contribuições. Em conseqüência, o início do século 21 parece estar reservado a uma imprescindível integração de conceitos e conhecimentos.

Se não houver a busca da integração dos conceitos, a psiquiatria corre o risco de polarizar-se como uma ciência da "mente" e do "cérebro". Obviamente, a mente e o cérebro são inseparáveis na prática clínica, sendo apenas separados para fins de discussão. Fenômenos mentais surgem do cérebro, mas a experiência emocional também afeta o cérebro, assim como o fazem as influências ambientais. É possível reconhecer que nem o cérebro nem a expressão gênica de um indivíduo são estáticos. Ambos são constantemente influenciados pelo ambiente e vice-versa.

Parte da polarização entre mente e cérebro está relacionada a uma visão antiga, ou seja, de que a psicoterapia é um tratamento para transtornos "psicológicos", enquanto que transtornos "biológicos" devem ser tratados com medicação. A integração do psicossocial com o biológico é a essência da psiquiatria: a psicoterapia pode ser eficaz mudando o funcionamento do cérebro, assim como os psicofármacos podem ser eficazes na redução de sintomas, com melhor aproveitamento da psicoterapia. Essa integração de conceitos é um permanente desafio. As medicações, tão importantes e necessárias em diversas psicopatologias, podem atingir os sintomas-alvo, mas não produzem a compreensão emocional necessária ao bem-estar do indivíduo. As psicoterapias, tão fundamentais na compreensão da mente humana, têm suas limitações no alívio de sintomas graves. Na prática, a integração de conceitos e a combinação de tratamentos podem ser complementarmente benéficas em várias apresentações da psicopatologia.

O despreparo e a pluralidade de alguns profissionais contribuem para uma dissociação entre mente e cérebro. Um dos nossos desafios é fortalecer a psiquiatria, levando em conta a especificidade e a eficácia de cada uma de suas disciplinas componentes. A psiquiatria deve buscar maior integração e diálogo com as diversas áreas do conhecimento, mantendo-se atenta às reais necessidades de cada paciente. Esse é o ponto de inserção e de responsabilidade das publicações científicas.

As pesquisas que utilizam métodos empíricos e/ou qualitativos, geralmente mais adequados à investigação nas psicoterapias e na psicanálise, devem ser tão estimuladas e publicadas quanto aquelas que usam os métodos quantitativos em neurociências, psiquiatria clínica e outras áreas. É a integração de conceitos e conhecimentos, assim como o respeito pelas diferenças e especificidades, que podem avaliar e validar os resultados, a eficácia, as mudanças e as limitações técnicas de cada modalidade terapêutica.

O psiquiatra da era global se depara com novos transtornos: pacientes traumatizados, doenças do "vazio", transtornos da conduta alimentar e muitas outras formas de apresentação. Temos também pacientes com pouco tempo para pensar e refletir e que buscam gratificações imediatas, mediadas pelo consumo excessivo e pelas culturas narcísicas. Será esse um produto das exigências dos novos tempos?

Concluindo, o psiquiatra do século 21 terá que evitar a dicotomia mente-cérebro e, inexoravelmente, reconhecer as novas tendências da psiquiatria contemporânea, em que: o ambiente influencia a genética, o psicossocial produz mudanças biológicas no cérebro, a medicação e a psicoterapia trabalham sinergicamente nas mudanças cerebrais. Além disso, terá que reconhecer que a linguagem do "cérebro" e da "mente" são necessárias em diversas modalidades terapêuticas, como nas depressões maiores, nos pacientes traumatizados, nos transtornos de personalidade borderline e outros transtornos. Essa integração é um grande desafio para o psiquiatra neste novo século.

Essas são algumas das razões que levam a Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul a destacar, neste editorial, um de seus principais objetivos: a divulgação responsável e cuidadosa do conhecimento científico, indispensável ao psiquiatra contemporâneo, com visão pluralista e integradora, como vem procurando fazer a cada edição.

Desejamos uma boa leitura.

Flávio Shansis e Jacó Zaslavsky

Editores

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2006
  • Data do Fascículo
    Ago 2005
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