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Conhecimento da História e construção Teórica na Lingüística Moderna

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Noam CHOMSKY

As questões que me foram sugeridas são bastante interessantes11. Elas referem-se ao lugar do estudo da linguagem dentro das Ciências Humanas em geral, tanto na atualidade como no decorrer da história. É uma longa história que remete à Grécia e à Índia clássicas e, na minha opinião, é uma história importante, mas entendida muito superficialmente, mesmo nos dias de hoje. Pediram para que eu falasse dessas questões de um ponto de vista mais pessoal: como eu passei a me interessar por esses tópicos? Na verdade, tudo aconteceu quando eu e alguns outros amigos e colegas da mesma época éramos alunos de pós-graduação, a maioria de nós em Cambridge, Massachussets. No meu caso, 50 anos atrás.

É possível abordar essas questões de várias formas. Uma delas seria descrever os fatos reais, o que realmente aconteceu. Como a história do avanço intelectual, tão longa e rica, veio a ter tamanha importância no trabalho contemporâneo? Uma segunda maneira mais interessante para abordar a questão seria indagar como as coisas deveriam ter ocorrido num mundo mais racional do que este em que vivemos. A primeira, ou seja, a seqüência real dos acontecimentos, não é por si só muito interessante, na minha opinião; ela é uma história que nunca foi contada corretamente e, como normalmente acontece no mundo real, trata de eventos casuais e acidentes pessoais, acidentes de histórias pessoais. A segunda questão, ou seja, como deveria ter acontecido, é muito mais interessante e importante e, certamente, nunca foi investigada apropriadamente. Além disso, uma outra colocação interessante é a diferença entre o que aconteceu de fato e o que deveria ter ocorrido num mundo mais lógico. Tal diferença nos conta algo sobre o clima intelectual nos Estados Unidos e no restante do mundo em meados do século XX, e nos leva a algumas explorações das origens sociais e políticas desse clima. Este também é um tema interessante, uma história que quase nunca é relatada e, de fato, não é examinada, apesar de ser uma parte muito interessante da história contemporânea, conforme vem se desenvolvendo desde a Segunda Guerra Mundial. E eu a considero muito instrutiva. Eu gostaria de mencionar algumas coisas sobre esses temas mesclando o real e o ideal; em outras palavras, o que realmente ocorreu e o que deveria ter acontecido.

Na História da Lingüística como um todo, existem bons trabalhos acadêmicos sobre aspectos particulares mas, na minha visão, eles freqüentemente interpretam erroneamente o que aconteceu. Desde que o termo ‘Lingüística Cartesiana’ apareceu, devo dizer que há duas versões para ‘Lingüística Cartesiana’: uma é o livro que escrevi; a outra é uma mitologia criada a respeito do tema. A mitologia foi a única versão até hoje discutida, a não ser em trabalhos acadêmicos sérios. A mitologia baseia-se no título. Há muitos artigos denominados ‘a não existência da Lingüística Cartesiana’ e assim por diante, e eu concordo com todos (cf. Koener & Tajima, 1986:24-26). E se os leitores tivessem chegado até a página 2 do meu livro, eles entenderiam o porquê. O título é ‘Lingüística Cartesiana’, mas lá pela página 2 eu explico que Descartes (1596-1650) quase não discutia lingüística. Havia algumas idéias, que foram desenvolvidas de várias maneiras, inclusive por pessoas que eram notadamente anti-cartesianas e que não se enquadravam nessa tradição. Eu estou interessado nas idéias. Não me importa como foi o café da manhã da pessoa que expressou as idéias, ou o que ela leu ontem e assim por diante, mas sim como as idéias se desenvolveram nas mais diversas tradições. Se você observar as idéias, encontrará uma continuidade relevante. No meu ponto de vista, um dos problemas da história intelectual, embora seja chamada de História das Idéias, é que ela quase não se atem às idéias. Tal história se preocupa com outros fatos, como ‘as influências’, e ‘quem falou com quem’ etc. Isso oferece uma versão enganosa de como as idéias se desenvolveram. Você pode observar tal fato no seu próprio trabalho atual. Ou seja, se as pessoas tentarem desenvolver a história do trabalho que eu conheço muito bem, já que ele me pertence, baseando-se nos livros de biblioteca e com quem eu falei, etc., poderão ter uma visão distorcida. Há certas idéias que surgem, são mudadas, modificadas e, a não ser que você as observe, não entenderá realmente a História das Idéias. Contudo, muitas vezes não é assim que o tema é abordado. Como eu sempre digo, no momento em que usei a frase ‘Lingüística Cartesiana’, não estava querendo dizer a ‘Lingüística de Descartes’, que não existe, mas sim o estudo da linguagem, da psicologia e de temas afins que foram desenvolvidos num arcabouço mais ou menos cartesiano. Rousseau (1712-1778), por exemplo, não é considerado um cartesiano. É claro que não. Ele é uma das figuras mais importantes do Romantismo. Mas se você realmente analisar o que ele escreveu, perceberá que algumas coisas basearam-se em princípios cartesianos rígidos, que haviam conseguido penetrar na tradição intelectual francesa e que ele usou, provavelmente inconscientemente, para desenvolver teorias sociais e políticas. Essa é a História das Idéias, mas na maior parte das vezes, não é a forma como a História Intelectual é feita. Digamos que há algumas diferenças de abordagem.

Eu gostaria de fazer algumas colocações sobre esses temas - não de forma sistemática; estarei mesclando a história real e a história ideal, o que deveria ter ocorrido - fornecendo alguns exemplos particulares como ilustração. Deixe-me iniciar com um exemplo bastante atual.

Através dos anos, houve muitas ocasiões nas quais as idéias e os pensamentos antigos, há muito esquecidos, foram recuperados ou revividos, redescobertos ou reestruturados de várias formas. Um caso bastante recente aconteceu há alguns meses, quando a editora do MIT publicou um trabalho muito interessante sobre a semântica do léxico. Esse livro, chamado The Generative Lexicon, foi escrito por um lingüista e especialista em ciência da computação chamado James Pustejovsky. Ele desenvolveu idéias sobre o significado das palavras propostas pelo filósofo e acadêmico clássico Julius Moravcsik, meu amigo pessoal. Nós estudamos juntos na Pós-Graduação, e Moravcsik trouxe tais idéias diretamente da teoria aristotélica de aitia, que em inglês é normalmente traduzida como "causes" (causas), as "causas aristotélicas". "Fatores gerativos", "fatores que geram coisas", seriam traduções mais razoáveis para aitia. Moravcsik reafirmou essas idéias aristotélicas - as quais são metafísicas, possuem relação com a estrutura do mundo - em termos cognitivos, como ‘Aitiational Semantics’ (Moravcsik, 1975), a Semântica baseada na teoria aristotélica de aitia. Foi uma boa alternativa que se encaixa muito bem nos desenvolvimentos absolutamente independentes, contudo muito importantes, do estudo da linguagem e da mente que aconteceram na Filosofia Racionalista inspirada por Descartes nos séculos XVII e XVIII, e também na Tradição Empírica Britânica, desde Thomas Hobbes (1588-1679) até David Hume (1711-1776).

Aqui, mais uma vez, a historiografia padrão é mal direcionada na minha opinião. A principal figura do empirismo britânico é John Locke (1632-1704), mas a sua visão de linguagem - que mudou o foco do estudo da linguagem na Inglaterra, da relação entre as palavras e as coisas para a relação entre as palavras e as idéias, uma conjectura mentalista que foi de importância crucial - foi muito influenciada pela Gramática de Port-Royal (que possui, dentre outras origens, uma forte influência cartesiana; Antoine Arnauld (1612-1694), uma das figuras principais, foi um importante cartesiano e também pelo Neoplatonismo britânico - particularmente, por Ralph Cudworth (1617-1688), presente no meio - além de derivar-se também das fontes racionalistas. Quando você observa do ponto de vista dos seus conteúdos, as tradições racionalistas e empiricistas estão muito mais interligadas do que os cursos de história comuns ou os livros de história o levariam a acreditar.

Nos séculos XVII e XVIII, esse complexo intrincado da Psicologia e Filosofia racionalistas, e da Psicologia e Filosofia empiricistas britânicas desenvolveu, dentre outras coisas, idéias importantes sobre a Semântica Lexical. Há uma relação intrigante com o tipo de Semântica que Moravcsik sugeriu, através da adaptação da teoria metafísica tradicional de aitia em Aristóteles, e agora com o recente livro de Pustejovsky. O livro é bastante conhecido e influente numa área com uma boa parcela de trabalho construtivo e muita controvérsia, mas as origens não são muito conhecidas, apesar de, nesse caso, serem conhecidas pelo menos por algumas pessoas, incluindo as que mencionei. É um dos raros casos em que a redescoberta foi consciente. Ou seja, foi uma conscientização das idéias tradicionais que foram remodeladas dentro de uma abordagem da Semântica Lexical, a qual, na minha visão, é muito produtiva e é, provavelmente, a abordagem correta.

Esse trabalho sobre o Léxico Gerativo faz parte de uma área maior denominada Gramática Gerativa, cuja intenção é abranger o estudo da linguagem de modo bem genérico: o estudo da forma e do significado, o estudo da estrutura da linguagem, todas as áreas da fonologia, morfologia, sintaxe, semântica, pragmática etc. Esse estudo tomou forma a partir do final da década de 40, e ocorreu ignorando completamente a história. Eu mesmo posso atestar tal fato. Não havia nenhum conhecimento da história, nem de minha parte nem da parte de nenhum membro da área naquela época. Se eles a conheciam, ela estava tão aprofundada nas suas mentes que nunca a trouxeram à tona. E isso é, de fato, interessante.

Na verdade, a Gramática Gerativa inicial do fim da década de 40 reviveu e remodelou as idéias que provavelmente tinham recebido sua mais rica expressão na Índia, 2500 anos antes, na tradição de Panini, o famoso gramático hindu. Em parte, a Gramática Gerativa reviveu e remodelou idéias que se desenvolveram na revolução científica do século XVII, com muitas ramificações no estudo da linguagem e da mente, no pensamento e também na ação sociais e políticos. Idéias que se alimentaram da Revolução Francesa e da Revolução Americana e de outros desenvolvimentos, incluindo as revoluções nacionalistas, as revoluções anti-colonialistas na América do Sul. Agora, algumas dessas ligações são familiares. Pelo menos, alguns trabalhos estão em andamento. Naquele tempo tudo isso era desconhecido. Alguns trabalhos acadêmicos importantes sobre a gramática hindu clássica têm sido elaborados, influenciados por perspectivas bem contemporâneas. Há também algumas investigações sobre a tradição dos séculos XVII e XVIII, muitas delas extremamente enganosas no meu ponto de vista, por razões que já mencionei; mas há outras bastante sérias. Pelo menos, agora os textos estão disponíveis. Trinta ou quarenta anos atrás, eu precisei ir ao Museu Britânico para encontrar textos comuns que não existiam nos Estados Unidos. Agora eles estão disponíveis e há alguns bons estudos acadêmicos, apesar de que, para mim, os temas ainda não são bem conhecidos e entendidos.

Contudo, voltando à década de 40, a ignorância era total e, na verdade, digna de chamar a atenção. Eu vou mudar por um momento para uma perspectiva pessoal. Iniciei os meus trabalhos a respeito desses temas no final dos anos 40, quando eu tinha 17 ou 18 anos e era aluno de Graduação na Universidade da Pensilvânia. Felizmente, eu tinha muito pouca base em Lingüística ou em qualquer outra coisa. Então, principiei meus estudos sem nenhum preconceito, apenas fazendo aquilo que parecia lógico. E o que parecia lógico era a Gramática Gerativa. O principal trabalho que fiz, basicamente sozinho, na Graduação, foi sobre a Gramática Gerativa de uma língua que eu conhecia, o hebraico moderno. Ao invés de usar as formas da Lingüística Estrutural como nos ensinaram, e que não faziam muito sentido para mim, trabalhei de um modo que me pareceu mais natural, e escrevi uma Gramática Gerativa detalhada do Hebraico Moderno (Chomsky, 1951), concentrando-me mais na morfologia e fonologia. O resultado final é muito semelhante aos tipos de trabalhos gramaticais que Panini havia feito sobre sânscrito 2500 anos antes. O corpo docente da Universidade onde eu estava era muito renomado, com alguns dos principais lingüistas do país e do mundo. Um deles era um semitista bastante famoso, além de ser um dos principais teóricos em Lingüística Estrutural Americana moderna22. O outro era um lingüista histórico proeminente e também um acadêmico da tradição hindu33 . Nenhum deles apontou-me as relações, e eu não acredito que eles estivessem cientes da existência das mesmas, apesar de que elas deveriam estar em algum canto das suas mentes.

Naquela época, a figura principal na Lingüística Americana, o grande mestre, era Leonard Bloomfield (1887-1949). Bloomfield era uma pessoa muito interessante, o fundador da Lingüística Americana moderna, a Lingüística Estrutural. Os membros do corpo docente na minha Universidade eram todos seus alunos e amigos. Mas Bloomfield aparentemente sofria de esquizofrenia. Ele era um lingüista americano com profundas raízes no positivismo lógico, no behaviorismo, em todas as idéias que estavam na moda na época, e que eram vistas como ciência exata. Mas em algum outro lugar em sua mente ele era um acadêmico tradicional e, coincidentemente, muito versado em estudos hindus. Ele certamente conhecia a tradição Paniniana. Em 1939, na verdade, Bloomfield escreveu uma gramática gerativa da língua indígena americana Menomini, bem ao estilo de Panini. Aquele trabalho, apesar dele ser o principal lingüista americano, não era conhecido nos Estados Unidos, a não ser pelos seus alunos mais próximos. Na verdade, quando Bloomfield morreu, alguns anos depois, um dos seus principais alunos realizou um amplo estudo do seu trabalho sobre as línguas algonquianas, e tal trabalho foi omitido44 . Não foi sequer listado. Na verdade, ele publicou esse artigo em Travaux du Cercle Linguistique de Prague, na Checoslováquia (Bloomfield, 1939).

Eu não conheci Bloomfield pessoalmente. Mas fazendo um retrospecto, o que eu gostaria de ter perguntado é se ele publicou aquele estudo em Praga porque não era o tipo de trabalho que os lingüistas menos abertos a outras perspectivas faziam nos Estados Unidos. Se você observar as suas idéias, verá que sua esquizofrenia era bastante profunda. No seu principal livro, Language (Bloomfield, 1933), o texto mais importante da Lingüística americana moderna, ele é bem crítico no que diz respeito ao conceito das estruturas ocultas, regras ordenadas e esse tipo de coisa: "isso é mentalismo à moda antiga, nós queremos nos livrar dessa louca bagagem ideológica". Por outro lado, se você olhar para a sua gramática do Menomini, sua gramática gerativa na tradição Paniniana, encontrará muitas estruturas ocultas e regras ordenadas. Isso é precisamente o que ele rejeita como sem sentido no seu trabalho teórico, publicado exatamente no mesmo período.

O que é mais estranho é que ninguém apontou para mim, um jovem aluno de Graduação que estava elaborando um trabalho, que alguns anos antes, a principal figura da Lingüística americana já havia feito algo semelhante numa outra língua. Eu fui descobrir isso quase vinte anos depois, quando me interessei pela História da Lingüística. Isso faz parte do terceiro tema que mencionei, a diferença entre o que realmente aconteceu e o que deveria ter acontecido. Ou seja, a origem Paniniana da Gramática Gerativa, que é muito significativa e que agora é entendida (cf.,e.g., Kiparsky, 1979), apesar de não ter tido nenhuma influência naquela época.

Uma outra fonte importante, a Lingüística do século XVII e os seus desenvolvimentos posteriores, que denominei ‘Lingüistica Cartesiana’, mas no sentido especial que eu mencionei, levou à tradição da chamada ‘Gramática Universal’, às vezes denominada ‘Gramática Racional e Filosófica’. Sua concepção básica era a de que há uma "noção de estrutura" na mente da pessoa. Eu e você temos algum tipo de noção de estrutura em nossas mentes e gostaríamos de saber qual é a natureza dessa noção de estrutura, qual a sua origem, como ela chegou lá, e o que é. Essa noção de estrutura nos permite criar "expressões livres". Nós podemos dizer coisas novas, diferentes de quaisquer outras da nossa história ou mesmo da história da nossa língua. Essas expressões novas não são determinadas, não são causadas, não são determinadas mecanicamente como acontence com as máquinas. Elas não são determinadas pelo nosso estado interior nem pelo nosso ambiente externo. Elas são, sem dúvida, influenciadas pelo nosso estado interior e pelo meio externo, mas não são forçadas por eles. De alguma maneira nós fazemos uma escolha dentro daquele espectro, mas selecionamos tipicamente de uma forma que não é causada pelas situações, mas apropriada às situações. Essas propriedades de não serem causadas mas apropriadas, ilimitadas mas não randomizadas, evocando pensamentos comparáveis nas outras pessoas - essas são as propriedades das expressões livres. Para Descartes, essa é a diferença fundamental entre o homem e a máquina, entre o homem e o animal. Isso remete diretamente a Rousseau e ao Romantismo por um bom período, de maneiras ainda não muito bem entendidas. Uma das razões disso, por exemplo, no caso de Descartes e Rousseau, pode ser porque Rousseau é considerado a principal figura do Romantismo, e o Romantismo é considerado como uma crítica ao Racionalismo. Portanto, são estudados sob pontos de vista diferentes. E está certo, eles são diferentes. Contudo, você passa desapercebido pelo fato de que algumas idéias cruciais nas quais Rousseau baseou suas teorias sociais do livre-arbítrio envolvem uma distinção entre homem e máquina que remetem a Descartes.

De qualquer forma, a Gramática Racional e Filosófica preocupava-se com as seguintes idéias: a noção da estrutura da mente, sua origem, sua natureza, a forma como é usada para construir expressões livres. A questão implicava tanto a chamada Gramática Universal, que é comum a todas as línguas, como a Gramática Específica, cujas propriedades são específicas de uma ou outra língua.

Isso que eu estou citando na verdade vem do último representante dessa tradição, Otto Jespersen (1860-1943), um renomado lingüista dinamarquês do começo deste século. A tradição durou entre os séculos XVII e XVIII, enfraqueceu-se e, no início do século XX, quase desapareceu. Jespersen talvez tenha sido a última figura principal. O livro ao qual estou me referindo é de 1924 - que veio a ser o ano da fundação da Sociedade de Lingüística da América, que enveredou por um caminho totalmente diferente, Lingüística Estruturalista e Antropológica. Leonard Bloomfield, a figura principal, estava ciente de tudo isso, ele na verdade resenhou Jespersen (Bloomfield, 1922) e o elogiou, mas todo esse conhecimento desapareceu. Mesmo o trabalho de Edward Sapir (1884-1939), que foi a outra figura de destaque na Lingüística Americana moderna, basicamente desapareceu. O seu trabalho também envolvia estruturas mentais subjacentes, regras ordenadas, padrões sonoros abstratos etc., mas na época em que eu era aluno, no fim dos anos 40, isso já era ignorado e descartado, embora todos que estudaram com Sapir - ele era muito admirado - tivessem lido o que ele escreveu.

Descobri Jespersen por conta própria, como aluno. Pesquisando numa biblioteca, eu achei seus livros, que pareciam intrigantes e, então, resolvi levá-los para ler. Eu acho que nunca disse isso para ninguém. Parecia algo tão longe daquilo que estava acontecendo que resolvi estudá-lo por curiosidade pessoal minha. O extenso estudo lingüístico de Jespersen foi retomado na Gramática Gerativa no MIT graças à visita de um acadêmico israelense que, por acaso, era um especialista em línguas Hamíticas e Semíticas55 . Ele tinha uma formação acadêmica clássica européia, conhecia o trabalho de Jespersen e nos fez um relato. Nós nos interessamos pelo assunto e as pessoas começaram a estudar os trabalhos detalhados sobre a gramática de Jespersen. Foi assim que as coisas aconteceram, não como deveriam ter acontecido.

Quando eu e Morris Halle escrevemos Sound Patterns of English, mais ou menos em 1966, conscientemente tomamos como modelo Panini e Sapir, e desde o início dos anos 60, temos trabalhado sobre o desenvolvimento das idéias cartesianas iniciais sobre linguagem, o que chamei de ‘Lingüística Cartesiana’, incluindo as formas que elas tomaram no Empirismo Britânico no período Romântico, Wilhelm von Humboldt (1767-1835) e outros. Parte desse trabalho é revisto em Cartesian Linguistics. Portanto, até então, a integração da área era consciente, mas isso foi depois que a maior parte do trabalho já havia sido concluída. As origens foram descobertas após terem sido redescobertas, e não é assim que as coisas deveriam ter acontecido. Deveria ter sido bem diferente.

Particularmente, uma idéia central para a tradição do século XVII foi a da coleção de propriedades das expressões livres citadas anteriormente. Isso foi vital para o pensamento cartesiano e para os desenvolvimentos provenientes dele até o Romantismo. A frase usada por Wilhelm von Humboldt no início do século XIX para essa idéia era que a linguagem envolvia "usos infinitos de meios finitos". E isso é verdade. Você tem meios finitos porque o seu cérebro é finito, mas você o utiliza infinitamente, de forma criativa. E isso parece um paradoxo. Como poderia ser possível? Uma das razões pelas quais tal trabalho não prosseguiu foi a ausência de uma maneira para expressar tal conceito e tornar o seu significado claro. Bem, em meados do século XX, uma parte do problema havia sido resolvida. Nas ciências formais, como a Matemática e a Teoria da Computação, alguns aspectos da idéia do uso infinito de meios finitos foram bem esclarecidos. Na verdade, na época em que eu era aluno, isso era um hábito e descobriu-se que era exatamente a idéia necessária para que se retornasse aos interesses tradicionais da Gramática Gerativa e da Gramática Universal, abordando-as de uma forma mais construtiva. Era possível tornar explícitas as noções vagas e obscuras que já tinham sido notadas na fase anterior, mas de uma maneira onde pouco poderia ser feito. Houve muitas conversas interessantes e comentários sugestivos, mas só alguns avanços construtivos limitados.

Podemos passar ao que deveria ter sido, ou seja, a história ideal. Nela, a Gramática Gerativa dos anos 40 e 50 deveria ter sido uma espécie de agrupamento, uma confluência das visões tradicionais, as quais eram bastante vagas e obscuras, com um instrumental de conceitos que havia sido desenvolvido pelas ciências formais, e que passaram a permitir que essas idéias tradicionais fossem captadas e estudadas, pelo menos em parte. Essa é a forma como o assunto deveria ter sido desenvolvido, junto com o reconhecimento das raízes Paninianas na Índia clássica, onde parte do tema foi trabalhado num estilo muito preciso, mas sem alcançar o uso infinito dos meios finitos. A ignorância do passado no caso da Lingüística é notável, mas foi parte de algo muito mais geral - novamente retorno para a minha história pessoal.

Quando eu era aluno de pós-graduação na Universidade de Harvard, estava na verdade estudando principalmente filosofia, com figuras que eram líderes na área, Willard V.O. Quine (1908- ) e outros. Eu estava em Cambridge, Massachussetts, considerado um dos principais centros da Filosofia Contemporânea. Eles tinham os melhores alunos, que agora lecionam no mundo todo. Nós não líamos muito, nunca nos foi pedido para lermos alguma coisa na tradição. Nós líamos aquilo que os nossos professores interessavam-se em discutir. Lemos os últimos trabalhos de Rudolf Carnap (1891-1970), porque Quine criticava-o; estávamos familiarizados com o Positivismo Lógico porque estava sob discussão pelos filósofos lidos na época. Estávamos familiarizados com os últimos trabalhos de Ludwig Wittgenstein (1889-1951), o seu trabalho estava começando a ser conhecido; e também com os filósofos de Oxford, Inglaterra, que era um centro importante. As pessoas circulavam entre Cambridge, Massachusetts, Cambridge, Inglaterra, Oxford e, assim, acontecia um amplo intercâmbio. Todo aquele trabalho em andamento era conhecido. Liam-se os primeiros trabalhos de Bertrand Russel (1872-1970) - aliás, não os primeiros trabalhos de Russell, e sim os últimos - Gottlob Frege (1848-1925), a lógica moderna, suas raízes e não muito mais do que isso. Nós sabíamos que existia alguém chamado Hume, Locke, os pré-socráticos, esse tipo de coisa. Mas não conhecíamos ou entendíamos bem tais vertentes e, aliás, elas ainda não são estudadas profundamente, mesmo em muitos dos melhores programas. A ignorância do passado não se restringia à lingüística. Também era uma verdade para a Filosofia em geral e, de fato, reflete algo bem geral sobre o meio cultural que já mencionei. Quaisquer que sejam as razões para esse isolamento intelectual - esse é um outro tema interessante sobre o qual eu poderei falar mais tarde, se vocês quiserem - ele é um fato e um problema que hoje está resolvido apenas em parte.

Apenas para ilustrar como esse isolamento foi profundo, novamente com um exemplo pessoal, no início dos anos 60, provavelmente em 62 ou 63, um filósofo clássico muito conhecido de Princeton, Gregory Vlastos, veio para Boston para dar uma palestra. A sua palestra era sobre o diálogo Meno de Platão, o famoso diálogo em que Platão descreve como um menino escravo conhecia a Geometria, mesmo sem nenhuma experiência. Ele demonstrou isso simplesmente perguntando ao garoto uma série de questões, não dando nenhuma informação e conseguindo obter do menino escravo, que não era escolarizado, um conhecimento sobre Geometria, o que significa que isso sempre esteve lá, escondido em algum lugar. Eu, Julius Moravscik e alguns outros amigos fomos assistir à palestra e houve um confronto estranho. Vlastos fez um relato acadêmico do diálogo, mas apresentou-o como se fosse algo absurdo e ridículo, como se quisesse se desculpar por nos importunar com aquele tipo de coisa. Nós éramos jovens e tínhamos recém terminado o curso de pós-graduação. Nós nos colocamos contrários a sua visão. Levantamos questões e dissemos ‘não, é um assunto muito sério’ e, de fato, está correto, é o jeito como as coisas realmente funcionam. Platão estava essencialmente correto. Vlastos surpreendeu-se, na verdade ele também acreditava naquilo, mas sabia que no meio cultural da época, ninguém dizia coisas como aquela. Afinal, essa é a era das ciências exatas, o comportamento pode ser investigado mas não idéias místicas e estranhas. Ele ficou surpreso ao ver jovens vindos do centro da vida acadêmica tomando aquilo a sério e dizendo que aquela era a forma como as coisas funcionavam. Mais tarde nós saímos e tomamos uma cerveja juntos, falamos sobre o assunto e começamos a travar um relacionamento de amizade. Mas ele ficou espantado por ter descoberto que jovens estavam interessados de verdade no tema e que concordavam com ele, com suas visões secretas de que aquilo estava verdadeiramente correto, e realmente está. (cf. Vlastos, 1973)

Aquela foi parte da base para a Revolução Cognitiva, que reconstruiu tais idéias de várias maneiras. Agora nós não falamos mais em reminiscências de uma vida passada, que era a explicação de Platão. Ao invés disso, falamos em herança genética. Mas se você quer saber mesmo, isso é tão misterioso como as reminiscências de Platão. Nos dias de hoje soa científico, mas ninguém tem idéia do que seja. Então, ela é a contrapartida contemporânea das reminiscências de Platão, com a esperança de que alguém de algum jeito achará a base na Bioquímica. Mais uma vez, isso demonstra o isolamento dominante naquela época. Isso nos remete à chamada Revolução Cognitiva da década de 50, da qual a Gramática Gerativa foi uma parte. Ela contribuiu para a Gramática Gerativa e aproveitou-se dela. As pessoas realmente a chamam de Revolução Cognitiva; eu nunca a chamei assim, pessoalmente eu não a denomino assim porque eu não acho que tenha sido uma revolução. Foi uma redescoberta e, de fato, parece-me que se você observá-la apropriadamente, talvez tenha sido uma segunda Revolução Cognitiva, muito semelhante em várias formas ao que estava acontecendo durante a primeira Revolução Científica do século XVII, que mudou radicalmente a visão de mundo. Descartes e outros estudaram praticamente os mesmos temas que se tornaram o centro das atenções nos anos 50, principalmente a visão e a linguagem, que eram os dois temas principais de estudo, tanto na época como atualmente, por caminhos que não foram diferentes da maneira como eles começaram a ser estudados na segunda Revolução Cognitiva dos anos 50.

Essa mudança, não importa se a chamemos ou não de revolução, realmente mudou a perspectiva. Na época, o tema de estudo eram coisas que você podia mais ou menos ver. Então, o Estruturalismo estudou os padrões que podiam ser observados; era fenomenalista; para alguns, como Jakobson, conscientemente fenomenalista. Você deveria perceber as características e você via suas estruturas, então era mais ou menos como estudar a forma de um floco de neve. Você vê a estrutura, olha as partes, mas não os princípios que determinam essas formas curiosas. O Estruturalismo é assim. A outra principal tendência era behaviorista. Você olha o comportamento, as ações observáveis. A área genérica dos estudos sociais, História e Ciência Política, Linguagem e Antropologia, eram chamadas de Ciências Behavioristas, porque estudavam o comportamento. Estudava-se o comportamento, ou os padrões e as estruturas. A Lingüística investigava um corpus de textos reais que eram analisados por partes e suas distribuições, concentrando-se em coisas observáveis. Isso era, supostamente, bastante lógico e científico, o que é muito curioso, já que as ciências não fazem nada disso, e na verdade, talvez não façam isso desde a Astronomia Babilônica. O que as ciências estudam são os mecanismos interiores, as estruturas ocultas, que explicam alguns dos fenômenos observados. Mas os fenômenos observados em si não têm interesse. A razão pela qual as pessoas fazem experimentos, e há fenômenos observáveis suficientes no mundo para que pudéssemos descrevê-los eternamente, é porque os fenômenos observáveis são na sua maioria inúteis, não dizem nada. Se você quiser obter respostas específicas para questões teóricas específicas, isso implica em que você deve inventar os fenômenos que tentará explicar. Por muitos milhares de anos, as ciências não procuraram o caminho que foi considerado como científico e tomado como modelo pelas Ciências Behavioristas e pelo Estruturalismo, o que é, novamente, uma anomalia curiosa.

A Revolução Cognitiva mudou a perspectiva do estudo do comportamento das estruturas, dos padrões, do texto para o estudo dos mecanismos interiores da mente que respondem por esses fenômenos e, muito mais, mecanismos que estão na sua maioria ocultos. Então, foi o tema da investigação que mudou. O que antes era o tema agora são apenas os dados, talvez dados bons, talvez dados ruins, mas são apenas como as coisas que você observa quando está caminhando pela sala; não são um tema. Desse ponto de vista, as Ciências Behavioristas são uma área muito estranha. É como se você chamasse a Física de ‘ciência da leitura de medidores’, porque em Física as pessoas lêem medidores. Mas a Física não é uma ciência da leitura de medidores. Você lê medidores porque eles lhe dizem algo. A Física é o estudo daquilo que eles estão dizendo para você. A ciência behaviorista era apenas o estudo dos ‘medidores’, e o Estruturalismo era o estudo da forma dos flocos de neve, porém não dos princípios que fazem as coisas serem flocos de neve.

Isso foi uma mudança importante e, com tal mudança, foi possível reviver as idéias tradicionais que retomam a Gramática Universal e o século XVII. O Estruturalismo Saussuriano foi certamente importante, mas principalmente fora da Lingüística. Ele teve a sua importância na antropologia, história e literatura, mas na Lingüística teve um impacto por pouco tempo, com exceção do estudo dos sistemas sonoros. Nesse caso houve um progresso, pois existiam padrões interessantes. Porém, se você olhar para a Lingüística Saussuriana, ela nem tinha um lugar para o conceito de sentença. Pode-se dizer que o conceito de Sentença tem uma existência um pouco desconfortável entre langue e parole. Não se encaixa realmente em nenhum desses conceitos. Mas você não pode ter um estudo da língua que não inclua o conceito de sentença, ou pelo menos de frase. E isso não está lá. Está excluído da abordagem bastante estreita, rígida e realmente superficial da linguagem que foi adotada no Estruturalismo Saussuriano, que desapareceu quase sem impacto no estudo da linguagem, a não ser pelos sistemas sonoros, onde surgiram descobertas interessantes sobre padrões, e algumas outras áreas. Eu não quero exagerar.

A segunda Revolução Cognitiva redescobriu independentemente, na ignorância, muitas idéias e insights da Revolução Científica dos séculos XVII e XVIII, relacionados principalmente à visão e à linguagem, conforme eu mencionei anteriormente. Na realidade, o estudo da visão reconstruiu muitas idéias cartesianas sobre sistemas computacionais de visão, sobre a utilização dos recursos internos da mente para a construção de padrões e modelos, a partir dos quais a experiência é interpretada. Mais tarde, essas idéias entraram para a filosofia moderna, principalmente através de Kant, mas elas são, na verdade, idéias cartesianas, muito bem desenvolvidas durante o Neoplatonismo do século XVII. Conforme sugerido por (Arthur Oncker) Lovejoy (1873-1962), é possível que Kant tenha tirado essas idéias daí, dando a elas uma forma diferente. Isso foi redescoberto de maneira isolada na teoria da visão do século XX, mas não terei tempo de entrar em detalhes sobre o modo como isso aconteceu. No estudo da linguagem, as idéias de expressões livres, do aspecto criativo da linguagem, novamente tornaram-se centrais. No século XVII, os filósofos cartesianos - o mais importante provavelmente foi Géraud de Cordemoy (1626-1684) - desenvolveram testes para determinar se outras criaturas possuíam mente. Nós temos uma teoria do mundo segundo a qual existe mente e corpo, e queremos saber, queremos um teste que decida se algo tem mente. É como se você fosse um químico e tivesse ácidos e bases, e quisesse saber se uma substância é um ácido ou uma base. Coloca-se um pedaço de papel tornassol na substância, e se ele ficar vermelho a substância é um ácido, se ficar azul é uma base. Queremos um teste de tornassol para mente e corpo, e Cordemoy e outros cartesianos propuseram testes para verificar se outras criaturas possuíam mentes, tipicamente testes de linguagem. Eles investigaram o aspecto criativo do uso da linguagem. E chegaram à conclusão razoável de que, se a criatura passasse nos testes mais difíceis que você pudesse inventar para verificar a presença das propriedades estranhas do uso da linguagem, então seria perfeitamente razoável presumir que ela possuía uma mente como a nossa. Isso é ciência padrão, comum, como a química. É o jeito de decidir se uma determinada substância possui uma certa propriedade.

Havia, também, uma boa razão para presumir que o mundo era dividido em mente e corpo. Essa razão era o que na época foi chamado de ‘filosofia mecânica’. Lembre-se que, na época, ‘filosofia’ significava "ciência"; portanto, ciência mecânica. Ciência mecânica era a idéia de que o mundo era uma grande máquina, grande e complicada, como um relógio, mas muito mais complexa, que poderia, em princípio, ser construída por um mestre artesão. Na verdade, a máquina foi construída por um super mestre artesão, de acordo com as idéias da época. Mas, em princípio, você poderia construí-la. De Galileu a Descartes e Christiaan Huygens (1629-1693), e outros cientistas do século XVII - basicamente, de Galileu a Newton - essa foi a concepção de mundo. Essa é a origem da ciência moderna: o mundo é uma máquina. Mas era óbvio que essas propriedades da mente, como o aspecto criativo do uso da linguagem, não poderiam ser realizadas em uma máquina; isso está certo, não podem mesmo. Assim, os cartesianos postularam um outro princípio além das máquinas: as propriedades da mente. Tudo isso é ciência lógica. Foi provado que estava errada, mas isso ocorre com quase tudo na ciência; então, já era de se esperar. Mas era ciência perfeitamente lógica e, naquele contexto, queriam um teste, um teste de tornassol. Há uma certa semelhança com o que hoje chamamos de Teste Turing para inteligência artificial, assim chamado em homenagem a Alan Mathison Turing (1912-1954), famoso matemático britânico, um dos fundadores da ciência da computação, entre outras coisas. O Teste Turing é, supostamente, uma maneira de tentar verificar se uma máquina está exibindo comportamento inteligente. Porém, há uma diferença significativa entre o Teste Turing e os testes do século XVII. Os testes do século XVII eram ciência perfeitamente lógica; o Teste Turing é algo bem diferente. Além disso, Turing tinha consciência desse fato. Turing era um homem esperto. Ele escreveu um artigo muito importante em 1950, que é a base da inteligência artificial moderna, das máquinas que jogam xadrez, esse tipo de coisa (Turing, 1950). Grande parte da discussão sobre se as máquinas têm inteligência ou não seria evitada se as pessoas lessem o artigo de Turing, ao invés de olhar apenas para o teste inventado por ele. Turing chamou atenção para o fato de que investigar se as máquinas pensam é uma questão "inexpressiva demais para merecer discussão". Portanto, ele não estava interessado em saber se as máquinas pensam, pois é uma questão sem sentido. É como perguntar se os submarinos nadam. Se você quiser chamar isso de "nadar", tudo bem, é nadar; se não quiser, não é nadar, mas essa não é uma questão factual. É como perguntar se o ônibus espacial voa. Se você quiser usar a palavra "voar" para isso, tudo bem, se não quiser, tudo bem também. Para Turing, essa questão não tinha sentido, e ele estava certo, não tem sentido mesmo. Isso se deve ao fato de que a palavra "pensar" é usada para pessoas, assim como a palavra "nadar" é usada para peixes, não para submarinos. Hoje, não tem sentido querer saber se as máquinas pensam mas, infelizmente, há muita discussão sobre essa não-questão; na verdade, é um dos temas mais importantes na Filosofia contemporânea e na Ciência Cognitiva. Mas não faz sentido algum, como Turing reconheceu. Já as discussões do século XVII faziam total sentido, pois naquela época, era uma questão científica. Eles presumiam que havia duas substâncias - mente e corpo -, e fazia total sentido verificar se uma coisa possuía uma propriedade ou a outra. Portanto, nesse caso, não houve um redescobrimento, mas uma regressão. Estamos abaixo do nível de compreensão que havia sido atingido no século XVII, embora, como eu disse, Turing tenha sido claro a respeito do assunto.

Voltando ao século XVII, a razão pela qual isso deixou de ser uma questão foi a grande descoberta de Newton de que a Filosofia Mecânica estava errada. O mundo não é uma máquina. Newton não demonstrou que havia algo errado com a mente. Isso estava correto. O que ele demonstrou é que não há máquinas no mundo. O mundo é governado por o que ele chamou de uma propriedade oculta, uma propriedade mística chamada ‘atração à distância’. Newton considerou isso um completo absurdo, e seus contemporâneos também, mas infelizmente, era verdade. O mundo está baseado simplesmente numa força mística. Você não pode construir um mundo porque ele está baseado numa propriedade mística, a ‘atração à distância’. Alguns anos depois, por volta de 1700, as pessoas estavam descobrindo outras forças místicas, como a atração e a repulsão elétricas, coisas também totalmente místicas, não máquinas. Depois disso, a ciência simplesmente continuou em seu próprio caminho, construindo um conceito místico depois do outro, abandonando qualquer esperança de compreensão humana, no sentido que havia sido procurado, porque tudo havia desaparecido. Não temos uma compreensão intuitiva da ciência desde Newton. Nós apenas descobrimos coisas que parecem explicar o mundo, não importa o quão absurdas elas soem.

Nesse estágio, não resta corpo, não restam máquinas. Não dá para postular uma segunda substância baseando-se no argumento de que a mente não é corpo, porque nada é corpo. Então, o problema mente/corpo desapareceu, e com ele os testes cartesianos, pois não existe nenhum corpo. Não há nada físico, no sentido antigo; há apenas o mundo em todos os seus aspectos, incluindo os aspectos mentais, elétricos, químicos e assim por diante. Desde aquela época, os testes cartesianos para verificar a existência de outras mentes não fazem mais sentido, mas as idéias estavam corretas: o aspecto criativo do uso da linguagem parece ser um fato, uma das propriedades estranhas do mundo, como a atração à distância, ou a repulsão elétrica, ou outras propriedades ainda mais estranhas que foram descobertas desde então.

Por volta daquele época, um pouco antes de Newton, antes dessa descoberta terrível, chocante ser feita - e foi um grande choque - a Gramática de Port-Royal apareceu. A Gramática de Port-Royal e a Lógica, surgiram por volta de 1660, em parte sob a influência cartesiana, em parte sob a influência da gramática renascentista (aliás, como foi apontado em Cartesian Linguistics). Sob essas influências, idéias interessantes foram desenvolvidas, incluindo o conceito de sentido e referência, fundamental para a lógica e a matemática modernas, redescoberto por Frege. A teoria das relações foi desenvolvida de maneira um tanto quanto rudimentar. No tocante à linguagem, foi a primeira exposição real do que mais tarde passaria a ser chamado de Gramática da Estrutura da Frase e Regras Transformacionais. De alguma forma, e de forma bastante interessante, isso já estava presente na Gramática de Port-Royal.

Devo dizer que a Gramática de Port-Royal (Arnauld & Lancelot, 1660) é freqüentemente mal-interpretada, mesmo em trabalhos acadêmicos contemporâneos, assim como o conjunto da tradição da Gramática Universal e da Gramática Racional e Filosófica. Muitas pessoas acham que os gramáticos de Port-Royal estavam tentando encontrar um tipo perfeito de linguagem, uma linguagem racional, não essas coisas erradas que as pessoas falam. Mas isso simplesmente não é verdade; é um mal-entendido com relação ao que "filosófica" e "racional" significavam. Naquela época, "filosófica" significava o que hoje chamaríamos de "científica". Racional significava em parte o que significa hoje, embora agora possamos dizer "formal" ou "explícita". A gramática racional não diz apenas "isto acontece", "aquilo acontece"; ela tenta fazer isso de maneira precisa e procura dar os motivos. A Gramática Universal é uma gramática precisa, científica. Não estava preocupada com línguas perfeitas, mas com o vernáculo, com as línguas faladas. Isso ficou bem claro.

Por acaso, esse trabalho foi escrito em francês, o que, para a época, foi importante. Até pouco tempo atrás, escrevia-se em latim, mas agora era em francês, como fez Descartes. Foi uma grande mudança, assim como fazer experimentos foi uma grande mudança. Quando Descartes foi a um açougue, comprou um carneiro e retirou seus olhos, isso foi considerado muito impróprio. Cavalheiros não faziam coisas desse tipo, eles liam textos antigos, ou algo assim. Mas esse engajamento com o mundo, seja cortando os olhos de carneiros, ou analisando o francês oral, era algo novo.

Um dos temas principais na Gramática de Port-Royal foi algo denominado ‘regra de Vaugelas’. Não vou entrar em detalhes, mas em 1647, Claude Favre de Vaugelas (1585-1650) escreveu uma gramática descritiva do francês. Essa foi uma das primeiras gramáticas descritivas de uma língua oral. Era uma gramática descritiva simples, sem grandes pretensões. Vaugelas não tentou explicar muito as coisas, mas ele realmente descobriu algumas coisas muito interessantes sobre o francês oral, que eram verdadeiros enigmas: questões relacionadas a quando se pode usar uma oração relativa, quando não se pode, com exemplos interessantes. Ele elaborou uma regra descritiva, conhecida como regra de Vaugelas. Esse foi um dos temas mais importantes dentro da Gramática Universal durante cerca de 150 anos. As pessoas tentaram entender, tentaram dar uma explicação para a regra de Vaugelas. A Gramática de Port-Royal explica a regra em termos das noções de Frege de sentido e referência. Portanto, é uma gramática explicativa, que tenta descrever e explicar fenômenos da língua oral, é isso que a Gramática Universal realmente é.

Vaugelas não foi o primeiro a construir uma gramática descritiva de uma língua oral verdadeira. A primeira, até onde eu sei - estou me apoiando em Carlos Otero (Otero, 1995) - foi a de Leon Battista Alberti (1404-1472), "um esboço gramatical brilhante" florentino. Um exemplo mais conhecido é a primeira Gramática do Espanhol, publicada na Espanha no "ano fatídico" de 1492. O autor espanhol foi Antonio de Lebrixa (1444?-1522), também conhecido como Nebrija. A gramática de Vaugelas foi a primeira gramática descritiva do francês, em 1647. A Gramática de Port-Royal tentou explicar a regra alguns anos mais tarde, em termos mais ou menos modernos, e é assim que as coisas se movimentam. 1647 foi um ano interessante. 1647 poderia ser considerado como a origem da Lingüística Moderna, o ano da primeira gramática descritiva extensa de uma língua vernácula, propondo enigmas interessantes, que precisam ser explicados por princípios. É lingüística moderna. O ano seguinte, 1648, é, às vezes, considerado como o ano em que a química moderna teve o seu início. A história padrão da química de Brock (1992) se inicia com um "experimento impressionante e sua conclusão", realizado por um químico chamado Johann(es) Baptista van Helmont (1579-1644), publicado em 1648. Van Helmont obteve um resultado muito surpreendente, e muito convincente, que "capta a essência do problema da transformação química", observa Brock. Ele demonstrou experimentalmente que a água pura poderia se transformar numa árvore, sem a adição de nenhuma substância, o que é muito misterioso. A água era considerada a substância pura naquela época. Não possuía componentes, era apenas uma substância elementar e indivisível, e o experimento pareceu mostrar que ela poderia se transformar em algo bastante complexo: uma árvore. A química então se desenvolveu como o estudo da maneira como estruturas complexas vêm de coisas simples, assim como na lingüística. O paralelo é impressionante.

A conclusão tirada do experimento de van Helmont é, obviamente, falsa, mas era muito convincente. E, na verdade, permaneceu convincente por muito tempo. Não foi realmente explicada até que Antoine Laurent de Lavoisier (1740-1796), cerca de 150 anos depois, em 1789, finalmente demonstrou que a água não é uma substância simples; outras coisas estavam acontecendo. Mas as verdadeiras descobertas sobre a fotossíntese e assim por diante não foram feitas até mais recentemente. Na época, o experimento de van Helmont foi muito convincente, mas obteve o resultado errado. Era compatível com a crença de Newton e de outros cientistas de que o mundo consistia de minúsculas partículas sólidas que eles chamaram de ‘corpúsculos’, os quais poderiam ser combinados de maneiras diferentes. Assim como tijolos podem ser usados para construir prédios diferentes, os mesmos corpúsculos poderiam formar água ou construir uma árvore, e você poderia desmontá-los e construir outra coisa. É por isso que Newton estava interessado em Alquimia, a transmutação de uma coisa em outra. Atualmente, isso é considerado loucura, mas era perfeitamente lógico. É ciência perfeitamente lógica, clara, comprovadamente errada, como quase tudo.

As origens da química moderna e as origens da lingüística moderna são mais ou menos paralelas; têm caráter semelhante. A química é o estudo de como as formas complexas são construídas a partir de partes simples, e isso assemelha-se ao que ocorre na linguagem. Você estuda como as estruturas complexas são feitas a partir de componentes simples, por exemplo, os traços fonológicos, os traços semânticos elementares ou causas aristotélicas etc. Daí em diante, a química desenvolveu-se por si mesma. Não estava ligada à física, e nem poderia estar, pois a física foi incapaz de incorporar a química até a década de 30. Apenas recentemente é que a química e a física se unificaram, após a revolução do quantum na física. Enquanto isso, a lingüística e a lógica seguiram seu próprio rumo. Tornaram-se o estudo da mente, sem relação com as ciências naturais, nem mesmo com as ciências do cérebro, embora agora estejam começando a aparecer os tipos de ligações que talvez levem à unificação, como aconteceu recentemente na química.

Se tivéssemos uma história verdadeira do tema, essas são algumas das coisas que estaríamos discutindo, na minha opinião. Estaríamos discutindo as origens paninianas, a grande Revolução Científica, as formas que ela tomou no estudo de objetos complexos como línguas e moléculas e substâncias químicas, as maneiras como idéias semelhantes se desenvolveram no período Romântico, tanto na Gramática Universal - e na teoria de como as experiências são construídas pela mente - como na filosofia social e política - conforme foi desenvolvida por Rousseau e, mais tarde, por Humboldt e pelo liberalismo clássico, com muitas outras ramificações. Todos esses temas vêm mais ou menos da mesma rede de idéias. Tudo isso foi esquecido, e parcialmente retomado, em meados do século XX, na chamada ‘Revolução Cognitiva’. Acho que há muito o que aprender sobre isso. Todas essas questões são fascinantes, e têm muitas implicações contemporâneas, muito além de seu interesse intelectual. Há muito o que fazer para tentar descobrir e entender seus vários fragmentos, para perguntar por que eles floresceram, por que murcharam, e por que houve lacunas tão surpreendentes quando seria de se esperar continuidade e revisão, ao invés de redescobrimento sem conscientização. A história segue caminhos muito estranhos. Sabe-se muito pouco sobre isso, e o que se sabe é pouco compreendido.

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Traduzido por Carolina Siqueira & Maria Cecília Lopes.

Eu gostaria de agradecer ao Departamento de Lingüística da Universidade de São Paulo e particularmente ao

Projeto Historiografia da Lingüística, pelo convite e pelas questões desafiadoras que foram colocadas para discussão. Noam Chomsky.

Zellig Harris (1909-1992).

Henry Hoenigswald (1915 - )

O aluno era Charles Hockett (1916 - ). O artigo é "Implications of Bloomfield’s Algonquian Studies".

Language 24:117-131 (1948). O trabalho "Menomini Morphophonemics", de Bloomfield, não foi citado. Hockett percebeu a omissão quando re-publicou esse artigo numa antologia dedicada a Leonard Bloomfield, publicada pela Indiana University Press (Bloomington, 1970:495).

O acadêmico israelense era Hans (Hayim) Jacob Polotsky (1905-1991).

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Dez 2001
    • Data do Fascículo
      1997
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