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Conversas com lingüistas

RESENHA REVIEW

Resenhado por/by: Adail Ubirajara Sobral

LAEL/PUC-SP – Doutorando adails@terra.com.br

Palavras-chave: Lingüistas brasileiros; Abordagens.

Key-words: Brazilian linguista; Approaches.

XAVIER, Antonio Carlos; CORTEZ, Suzana, Orgs. (2003). Conversas com lingüistas. São Paulo: Parábola Editorial. ISBN: 85-88456-07-9. 200p.

As virtudes e controvérsias da lingüística, subtítulo de Conversas com lingüistas, saíram finalmente dos muros acadêmicos. O livro apresenta entrevistas feitas pelos organizadores com alguns dos principais estudiosos da linguagem do país, todos com mais de 20 anos de experiência acadêmica. Essa primeira amostra traz de estudiosos da semântica formal a analistas de discurso, de profissionais que se ocupam dos aspectos cognitivos a teóricos do texto, de semioticistas greimasianos a chomskyanos, de lingüistas da paz a estudiosos bakhtinianos, de estudiosos da fonética a pesquisadores da área da pragmática, de estudiosos dos usos do português a praticantes da análise da conversação, entre outros. A primeira contribuição do livro reside em mostrar, como o pretendiam os autores, a diversidade e a maturidade da reflexão e da prática dos estudos da linguagem no Brasil. Não faltam às respostas questionamentos acerca da própria adequação das designações "lingüista" e "lingüística", bem como a idéia, louvável em todos os aspectos, de que definir esse campo de estudos depende do ponto de vista que se assume para fazê-lo. Devem-se mencionar ainda as excelentes discussões acerca do que é "servir para alguma coisa" quando se trata de ciência, e as interessantes reações sobre as relações da lingüística com a pós-modernidade, essa expressão-valise tão em voga em nossos dias. Precede cada depoimento um mini-currículo de cada entrevistado.

Os 18 entrevistados, que trabalham em diversos estados brasileiros (com grande concentração em São Paulo), são apresentados em ordem alfabética de sobrenomes. São eles: Maria Bernadete M. Abaurre; Eleonora C. Albano; José Borges Neto; Ataliba de Castilho; Carlos Alberto Faraco; José Luiz Fiorin; João Wanderley Geraldi; Francisco C. Gomes de Matos; Rodolfo llari; Mary Kato; Ingedore G. Villaça Koch; Luiz Antonio Marcuschi; Maria Cecília Mollica; Diana Luz P. de Barros; Sírio Possenti; Kanavilill Rajagopalan; Margarida Salomão e Carlos Vogt, este último igualmente autor do Prefácio. As perguntas feitas abarcam um largo espectro de questões relevantes para a compreensão dos do estudos lingüísticos. São elas: "Que é língua? Qual a relação entre língua, linguagem e sociedade? Há vínculos necessários entre língua, pensamento e cultura? linguagem tem sujeito? Que é lingüística? lingüística é ciência? Para que serve a lingüística? lingüística teria algum compromisso necessário com a educação? Como a lingüística se insere na pós-modernidade? Quais os desafios para a lingüística no século XXI?" As respostas oferecem um quadro amplo e profundo que vai por certo servir para balizar os estudos lingüísticos e dar início a um amplo diálogo intradisciplinar e interdisciplinar que vários entrevistados apontaram como desafio para a lingüística no século XXI.

A pergunta sobre o que é língua fez grande parte dos entrevistados remeter à distinção entre língua e linguagem, em alguns casos mantida e em outros contestada, havendo ainda alusões à distinção saussuriana entre língua e fala, o que traz relevantes informações acerca das concepções que circulam no meio acadêmico especializado. A língua é definida das mais diversas maneiras. São arroladas aqui, resumidamente, essas várias definições, que se acham detalhadas no livro, porque a leitura do livro revela que elas nortearam a reflexão acerca dos outros temas propostos: língua é atividade, trabalho; gesto que é parte integrante de muitas outras atividades humanas; abreviação para designar os idioletos, que, esses sim, seriam objetos empíricos; um fenômeno multisistêmico gerido por um dispositivo sóciocognitivo; complexidade estruturada, estruturante e estruturável; condensação de um homem historicamente situado; instrumento e produto do trabalho; sistema de comunicação intra/interpessoal e intra/intercultural; um tipo de competência que nós temos; um fenômeno a um só tempo biológico e produzido num contexto; simultaneamente um sistema e uma prática social; domínio público de construção simbólica e interativa do mundo; sistema organizado de relações entre processamento verbal e significado necessariamente presente em ações sócio-interacionais; um fenômeno desdobrado nos domínios língua e fala, entendidos como integrados em vez de dicotômicos; ao mesmo tempo sistema formal e objeto de inscrição social e subjetiva; algo que a gente cria e molda à medida que se vai falando, um abstrato a posteriori; produção da capacidade da linguagem, uma produção histórica socialmente demarcada que envolve herança histórica, herança biológica e história pessoal, não só como condição, mas como demarcação da expressão; um fenômeno social por excelência que envolve um aspecto estrutural e as condições político-sociais e econômicas da constituição de um fenômeno de comunicação como língua.

O que une essas várias definições, em meio à aparente diversidade, é o reconhecimento da complexidade do objeto da lingüística. Nenhuma das definições deixa de levar em conta, ainda que os desenvolvimentos variem, aspectos formais e não formais, domínios da repetibilidade e da irrepetibilidade, elementos sociais e pessoais, cognitivos e interacionais, biológicos e políticos, etc. Vê-se que a lingüística é, como disse um dos entrevistados, essencialmente pós-moderna, se por isso se entender que o campo se desenvolve num ambiente de indefinição e fluidez com relação ao seu próprio objeto. Ainda que alguns tenham defendido a lingüística como ciência de uma maneira que a aproxima da concepção clássica e mesmo positivista de ciência, outros como ciência num sentido não clássico e outros ainda como uma reflexão que não tem porque impor a si um estatuto de cientificidade do tipo que por muito tempo foi dominante na epistemologia tradicional, todos reconhecem ter ela hoje objetos delimitados, mesmo que não definidos no sentido formal tradicional; metodologias reconhecíveis e reproduzíveis e outras características que fazem dela uma espécie de estudo a um só tempo experimental e hermenêutico, descritivo e interpretativo, sem pretensões de explicar os fenômenos no sentido estrito de "explicar".

Se há questionamentos acerca do próprio estatuto de cientificidade das ciências paradigmáticas, como a física, sente-se a falta de uma descrição que a diferencie das ciências não-humanas naquilo que ela compartilha com as outras ciências humanas: o fato de não envolver sujeitos que estudam e objetos de estudo, mas sujeitos que estudam e sujeitos estudados. Falta também um questionamento mais aprofundado dos pilares da epistemologia tradicional, o sujeito desprendido cartesiano, o sujeito idealmente pronto, ser livre e racional, bem como a idéia, decorrente dessa concepção de sujeito, da sociedade como agregado de sujeitos atomizados em vez de constituída pelas interações entre esses sujeitos, que ao mesmo tempo nela encontram as bases de sua subjetivação/socialização, sendo portanto mediadores de sua constituição simbólica. Não que esses aspectos não tenham sido abordados direta ou indiretamente por vários entrevistados quando de suas respostas, por exemplo, à questão da existência de um sujeito da linguagem (ou da língua, como sugeriram alguns), nem que não tenha havido reflexões que envolveram a questão da epistemologia; a falta em questão é da aplicação mais sistemática desses elementos ao problema da cientificidade dos estudos da linguagem, o que parece indicar que, embora os lingüistas comecem a questionar o modelo epistemológico vindo das ciências ditas exatas, ainda não atingiram esse campo as intensas discussões travadas em outros campos do conhecimento quanto à validade de uma concepção de cientificidade positivista que concebe o pesquisador como alguém capaz de transcender sua própria condição e vê-la a partir de um ciberespaço científico, de uma virtualidade a-histórica e a-social.

No tocante ao sujeito, verifica-se haver certa oscilação nas respostas entre o sujeito da língua/da linguagem tomadas em seu aspecto formal e o sujeito da língua/da linguagem tomadas em seu aspecto de atividade. Isso não se deve às diferenças de pressupostos dos entrevistados, mas ao reconhecimento da própria complexidade do objeto da lingüística, um sistema ciberneticamente aberto, ou seja, sujeito a influências de outros sistemas e que igualmente influencia esses sistemas com que interage. É contudo motivo de satisfação ver que as reflexões desses profissionais caminham na direção de um monismo conceitual e prático na linha de Espinoza e de Vygotsky, dado que reconhecem, tomadas em conjunto, a imbricação entre os aspectos psico-fisiológicos e sócio-históricos do fenômeno da linguagem verbal. Outro importante aspecto é a refutação do utilitarismo mercadológico como critério de determinação da validade e da importância dos estudos linguisticos; vê-se aí uma grande maturidade, pois essa recusa em momento algum envolve uma separação entre estudos puros e estudos aplicados, mas a defesa do empreendimento lingüístico como valioso por contribuir para a compreensão dos seres humanos, a par da plena aceitação de que estudos voltados para fins mais práticos têm o mesmo valor que os estudos que não estão especificamente voltados para isso. Por outro lado, há a defesa da ética da pesquisa como valor fundamental; os entrevistados revelam plena consciência de sua responsabilidade social como antes de tudo cidadãos, recusando a imagem do cientista alienado que nada conhece além de experimentos, axiomas, postulados e coisas do gênero.

O tema dos desafios da lingüística traz um espectro tão grande de possibilidades e necessidades que constitui por si só uma proposta de mudança de paradigma. Porque envolve desde o aprofundamento do conhecimento do aspecto cognitivo da linguagem como a proposta de uma lingüística voltada para a promoção da paz, passando pelo desenvolvimento de propostas voltadas para as mais diversas áreas, teóricas e práticas. Há a ênfase na necessidade de um estudo mais aprofundado da "produção" da linguagem, sem desprezo do "produto" lingüístico, o apelo para que se levem em conta as descontinuidades ligadas à linguagem verbal, para que se reconheça que o próprio ser da linguagem, é antes da ordem do fluido do que do organizado.

Os autores e a editora prometem lançar dentro em breve um novo volume, Conversas com (mais) lingüistas, que trará as idéias de alguns outros estudiosos brasileiros da linguagem. É de esperar que esse novo livro contemple estudiosos das várias novas áreas da chamada lingüística aplicada, como as que se dedicam à questão da linguagem do trabalho, sobre o trabalho e no trabalho, às especificidades do letramento, da relação entre linguagem e pensamento de linha vygotskyana e aos estudos transdisciplinares baseados nas propostas do círculo de Bakhtin, bem como alguns importantes praticantes da lingüística sistêmico-funcional. A reflexão a que nos levam e o conhecimento que nos trazem as contribuições de Conversas com lingüistas não somente revelam o amadurecimento cada vez maior das concepções, dos estudos, das aplicações da ciência da linguagem no Brasil, bem como de seus praticantes, como permitem ao leitor, seja leigo ou especializado, ter uma excelente visão de conjunto da lingüística, da língua, da linguagem e de temas conexos. Um livro indispensável!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2004
  • Data do Fascículo
    2003
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