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Boltzmann, física teórica e representação

Boltzmann, theoretical physics and representation

Resumos

O objetivo do presente artigo consiste em descrever a concepção de física teórica, desenvolvida pelo físico austríaco Ludwig Boltzmann (1844-1906). Não se trata de apresentar e explicar os seus importantes resultados científicos, mas, sim, de analisar qual era a sua visão acerca desse ramo da Física que se consolidou, institucional e metodologicamente, durante a sua carreira. Boltzmann ocupou algumas das primeiras cátedras de física teórica, criadas na Alemanha e na Áustria nas duas últimas décadas do século XIX, o que lhe permitiu contribuir para que esse domínio passasse a desfrutar de uma relevância raramente vista por uma especialidade.

Boltzmann; física teórica; representação; história da Ciência


This article describes the Boltzmann's conception of physical theory, which was mainly developed between the final years of the 19th century. It is not our purpose to describe and to explain his outstanding scientific results, but to analyze his view of this domain of the physical science, which was consolidated at that time. Boltzmann was elected for some of the first chairs in theoretical physics created in Austria and Germany. This fact permitted him to play a very important role in the process of institutionalization of theoretical physics.

Boltzmann; theoretical physics; representation; history of Science


SEÇÃO ESPECIAL: CENTENÁRIO DA MORTE DE LUDWIG BOLTZMANN (1844-1906)

Boltzmann, física teórica e representação

Boltzmann, theoretical physics and representation

Antonio Augusto P. Videira1 1 E-mail: guto@cbpf.br.

Departamento de Filosofia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

O objetivo do presente artigo consiste em descrever a concepção de física teórica, desenvolvida pelo físico austríaco Ludwig Boltzmann (1844-1906). Não se trata de apresentar e explicar os seus importantes resultados científicos, mas, sim, de analisar qual era a sua visão acerca desse ramo da Física que se consolidou, institucional e metodologicamente, durante a sua carreira. Boltzmann ocupou algumas das primeiras cátedras de física teórica, criadas na Alemanha e na Áustria nas duas últimas décadas do século XIX, o que lhe permitiu contribuir para que esse domínio passasse a desfrutar de uma relevância raramente vista por uma especialidade.

Palavras-chave: Boltzmann, física teórica, representação, história da Ciência.

ABSTRACT

This article describes the Boltzmann's conception of physical theory, which was mainly developed between the final years of the 19th century. It is not our purpose to describe and to explain his outstanding scientific results, but to analyze his view of this domain of the physical science, which was consolidated at that time. Boltzmann was elected for some of the first chairs in theoretical physics created in Austria and Germany. This fact permitted him to play a very important role in the process of institutionalization of theoretical physics.

Keywords: Boltzmann, theoretical physics, representation, history of Science.

1. A carreira acadêmica de Boltzmann

Ludwig Eduard Boltzmann nasceu no dia 20 de fevereiro de 1844 na cidade de Viena. Seu pai era um modesto funcionário do Império Austro-Húngaro e morreu quando Boltzmann ainda era jovem. Ainda assim, a profissão do pai de Boltzmann levou à sua família a se mudar para Wels e, depois, para Linz, onde Boltzmann começou os seus estudos formais. Em 1863, ele chegou à Universidade de Viena, decidido a estudar Ciências Naturais. Dois anos depois, ele ingressou no Instituto de Física daquela universidade. O diretor do instituto era Josef Stefan, o professor mais importante que Boltzmann teve em toda a sua permanência na universidade. Foi Stefan, por exemplo, que apresentou Boltzmann às idéias de Maxwell acerca do eletromagnetismo. Além de Stefan, Boltzmann estudou com Lang, Kunzek e Ettinghausen2 2 A descricão histórica, que apresento nesta secão, é inspirada na magistral obra de Christa Jungnickel e Russell McCormmach, publicada pela primeira vez em 1986 [1]. .

Naquela época, a linha de pesquisa do instituto, determinada primeiramente por Ettinghausen, concentrava-se na tentativa de explicar movimentos complicados, reduzindo-os a movimentos moleculares, aos quais seriam aplicadas as leis da mecânica. Desse modo, não deve causar estranheza a preocupação, que Boltzmann mostrou desde o início de sua carreira científica com a formulação de uma teoria mecânica do calor. No mesmo ano (1866) em que obteve o seu doutoramento em Física, Boltzmann publicou um artigo a esse respeito. A escolha desse tópico torna clara a preocupação, que o acompanhou ao longo de toda a sua carreira, com questões fundamentais da Física. Essa decisão foi reforçada, em 1868, ao ser nomeado docente privado nessa mesma universidade, como consta no programa das preleções que pretendia aíproferir e dedicadas aos ''princípios fundamentais da teoria do calor'', à ''óptica teórica'' e à ''teoria da eletricidade''.

No entanto, e também seguindo o espírito do diretor do Instituto, ele mesmo físico teórico, mas com produção no domínio da física experimental, Boltzmann dedicou-se à realização de experiências. Percebe-se, portanto, que Stefan privilegiava uma formação completa para os seus estudantes, que deveriam se sentir à vontade com a parte matemática das teorias físicas, bem como saber realizar e interpretar experiências.

Como já afirmado, Boltzmann foi testemunha no processo de consolidação da física teórica na segunda metade do século XIX. Seguindo uma prática já comum, Boltzmann doutorou-se quatro anos depois de ter entrado na universidade. Em seguida, passou a docente privado na mesma instituição. Aos 25 anos, Boltzmann passou a catedrático de física matemática, ou professor ordinário - outra denominação possível para esse posto, na Universidade de Graz. Pouco tempo depois de estar em Graz, Boltzmann visitou os laboratórios de Helmholtz em Berlim e de Kirchhoff em Heidelberg, onde investigou, com a ajuda de um electrômetro inventado por Thomson, diferentes fenômenos elétricos. Em 1873, Boltzmann deixou Graz, instalando-se em Viena, como catedrático de Matemática. As duas primeiras posições universitárias de Boltzmann não lhe satisfizeram, na medida em que ele não dispunha de instalações adequadas para dar prosseguimento às suas pesquisas experimentais, como ele mesmo afirma em correspondência trocada na época com Helmholtz. Três anos depois, em 1876, Boltzmann retornava a Graz.

Apesar de ter se dedicado bastante à física experimental no início da carreira, Boltzmann não descuidou da componente teórica, publicando, entre 1868 e 1877, uma série de artigos que contribuíram para estabelecer os fundamentos da mecânica estatística3 3 Uma descricão pedagógica das idéias de Boltzmann a esse respeito encontra-se em [2]. . A sua interpretação probabilística da segunda lei da teoria do calor, por exemplo, é deste período, tendo sido iniciada na sua primeira passagem por Graz. Essa teoria requeria dos seus interessados um profundo conhecimento de Matemática. As habilidades matemáticas de Boltzmann passaram a ser admiradas e conhecidas por seus colegas, dentro e fora da Áustria, uma vez que os seus trabalhos continham engenhosas soluções, obtidas com o auxílio da mecânica analítica e da teoria das probabilidades.

Em 1876, Boltzmann foi nomeado catedrático de física experimental na Universidade de Graz, ao mesmo tempo em que se tornava diretor do recém criado Instituto de Física. No início, Boltzmann era responsável pelas preleções em física experimental. Ocasionalmente, ele oferecia cursos sobre teoria do calor e teoria do gás. Já nesse período, ele começou a se preocupar com questões filosóficas; ainda que, à época, tal preocupação tenha se restringido à avaliação de dissertações escritas nesse domínio. Como ficará evidente em sua própria produção filosófica, Boltzmann, em suas avaliações, reclamava da ignorância científica dos candidatos e da adoção acrítica dos métodos especulativos dos filósofos.

Em 1887, morria em Berlim Kirchhoff. Para sucedê-lo, Boltzmann foi escolhido. A reação inicial de Boltzmann a esse convite foi entusiástica, uma vez que ele começava a ficar insatisfeito com as condições de ensino reinantes em Graz. O seu público ouvinte consistia principalmente de estudantes de farmácia e medicina, para os quais eram suficientes preleções em física elementar. Poucos estudantes interessavam-se pelas partes mais avançadas da Física e, mesmo esses, não possuíam, em geral, preparo adequado para seguir os cursos que Boltzmann gostaria de ministrar. Além disso, as suas obrigações como diretor começavam a pesar excessivamente. Construído para ser uma instituição modelo, o instituto em Graz era, segundo Boltzmann, muito grande. Deve-se, contudo, mencionar que já no período que passou em Graz, Boltzmann começou a apresentar os distúrbios psicológicos e físicos que o acompanhariam até o seu suicídio. Aliás, foram esses os aspectos que Boltzmann apresentou a Helmholtz para declinar da oferta de mudar-se para Berlim4 4 Contudo, Boltzmann também não gostou do clima da cidade de Berlim, excessivamente cerimonioso e formal, segundo ele. .

No entanto, a desistência de Berlim não significou que Boltzmann estivesse obrigado a permanecer em Graz. Pouco depois, a faculdade filosófica da Universidade de Munique entrou em contato com o físico austríaco, de modo a oferecer-lhe uma cátedra que seria criada para o domínio da física teórica. A justificação, que dois professores de Física e de Matemática, Lommel e Gustav Bauer, respectivamente, apresentaram, já chamava a atenção para a divisão de trabalhos entre a física experimental e a física teórica. Os métodos de ambas guardavam profundas diferenças e, o que era muito importante de ser sublinhado, elas só aumentariam com o tempo: while experimental physics in its inductive work requires the knowledge and practice of an experimental art that becomes more and more intricate, theoretical physics uses mathematics in its deductive process as its main tool and demands intimate familiarity with all means of this quickly advancing science [1, p. 150].

A declaração acima sugere que a Física já era complexa demais para ser dominada com maestria por um único indivíduo, sendo necessário estabelecer uma divisão de trabalho entre os seus profissionais. Ao menos no caso de Munique, a oficialização dessa divisão coube a Boltzmann, apesar de ele ter sido educado e formado num instituto em que a tônica era muito diferente. Os tempos, contudo, já eram outros. Em agosto de 1890, Boltzmann tomou posse da cátedra de física teórica em Munique, na qual foi sucedido por Arnold Sommerfeld. Além de catedrático, Boltzmann era ainda diretor do instituto e um dos diretores do seminário físico-matemático.

Foi também em Munique que Boltzmann intensificou o seu envolvimento com a Filosofia, mais especificamente com os aspectos metodológicos e epistemológicos da Física. Ele começou a publicar com alguma regularidade nessa área. Entre os seus tópicos filosóficos prediletos, encontrava-se precisamente a discussão dos objetivos e dos métodos da física teórica5 5 Conferir, por exemplo, a Ref. [3]. Mas especificamente, os capítulos dedicados aos métodos da física teórica. . As preleções de Boltzmann incluíram uma detalhada exposição da teoria eletromagnética de Maxwell, da qual ele foi um dos principais divulgadores no continente europeu, publicando sobre ela uma obra didática em dois volumes: Vorlesungen über Maxwells Theorie der Elekritzität und des Lichtes. Outra área de interesse foi a aplicação de modelos mecânicos à teoria do calor, seguindo uma linha proposta anos antes por Helmholtz.

Como aconteceria até a sua morte, Boltzmann permaneceu pouco tempo na capital bávara. Em 1893, morreu o seu antigo professor Stefan, deixando vaga a sua posição na Universidade de Viena. O governo austríaco mobilizou-se para trazer Boltzmann de volta para a sua pátria. As negociações, como já era costume de Boltzmann, demoraram alguns meses até serem concluídas. Finalmente, na primavera de 1894, ele voltava para a sua cidade natal. Os tempos em Munique, segundo o próprio Boltzmann, foram agradáveis e produtivos.

Em Viena, Boltzmann seria, além de sucessor de Stefan, o diretor do novo instituto de física teórica. No entanto, o retorno à Áustria não foi o que Boltzmann esperava. A situação científica do país já era claramente inferior à existente na Alemanha, o que desagradou a Boltzmann. Permaneciam antigos problemas como o pequeno número de estudantes decididos a se especializar em física teórica. Apesar de ser um público oponente do tipo de Física praticado por seu colega austríaco, mas interessado em elevar o nível da física teórica em Leipzig, Ostwald, logo que tomou conhecimento da insatisfação de Boltzmann, sondou-o a respeito de uma eventual mudança. A sua proposta incluía a nomeação para uma cátedra de física teórica, o que, ao menos em princípio, significaria a possibilidade de organizar os cursos, os seminários e as linhas de pesquisa de acordo com os interesses e as aspirações de seu ocupante, no caso Boltzmann. Não apenas Ostwald, mas outros de seus colegas, como Wiener, entusiasmaram-se com a possibilidade de contar com aquele que era considerado como um dos mais importantes físicos teóricos então em atuação. Para a comunidade dos físicos, já era evidente que a física teórica constituía uma área específica. Na carta que dirigiu à faculdade de Leipzig, escrita com o objetivo de justificar a escolha por Boltzmann, Wiener sublinhava que a física teórica, diferentemente da física matemática, atentava para o conteúdo físico das teorias e a sua estreita relação com a física experimental. A Matemática, ainda que cada vez mais usada na construção das teorias e dos modelos, não era um fim em si mesma. Seis anos depois de ir para Viena, Boltzmann consumava mais uma transferência. Não seria a última.

Em Leipzig, aonde chegou em 1900, Boltzmann permaneceu apenas dois anos. Ele ministrou o seu curso regular de Física, começando com uma de suas matérias favoritas: a mecânica analítica. Apesar de ter encontrado alunos com competência científica, Boltzmann não sentiu feliz na capital da Saxônia. No pedido que apresentou para se desligar da Universidade de Leipzig, alegou problemas de saúde. Para Ostwald, o principal responsável pela sua ida para aquela cidade, ele escreveu dizendo que tinha medo que a sua memória o traísse durante as suas aulas. Isso lhe parecia insuportável, dado o prazer que tinha em lecionar, o que era percebido por sua assistência. Boltzmann, além de brilhante cientista, era considerado um excelente professor.

Uma vez mais, Boltzmann voltou-se para Viena. A sua antiga cátedra permanecia vaga desde a sua partida. Em parte, por que não era fácil encontrar um substituto à sua altura. Tendo assumido o compromisso perante o governo austríaco de que, desta vez, a sua decisão por Viena seria definitiva, Boltzmann retomou em 1902 suas atividades na universidade. Pouco tempo depois, atendendo a um pedido expresso seu, ele passou a acumular a cátedra de física teórica juntamente com a cátedra de filosofia da natureza, vaga com a aposentadoria precoce de Mach por causa de um derrame que o impossibilitou de conduzir normalmente as suas atividades.

Todavia, a saúde física e mental de Boltzmann já estava comprometida. O retorno a Viena não o acalmou, como ele mesmo esperava. Desgostoso com o seu estado, Boltzmann se matou em Duino, localidade próxima a Trieste, no dia 5 de setembro de 1906.

2. Os objetivos e os métodos da física teórica segundo Boltzmann

Vimos, na seção anterior, que a trajetória científica de Boltzmann foi bastante movimentada e mesmo, sob certos aspectos, insatisfatória. Suas escolhas e decisões sempre foram determinadas por seu interesse em ocupar cátedras que lhe permitissem realizar o seu objetivo maior, a saber: contribuir para o progresso científico e para a consolidação institucional da física teórica. O fato de Boltzmann, no início de suas atividades profissionais, ter atuado como professor de Matemática e física experimental pode ser explicado pelo pequeno número de lugares disponíveis para aqueles que queriam se dedicar à física teórica e pelo fato de que ainda não existia uma comunidade de físicos teóricos suficientemente ampla para produzir. Se, a partir da sua fase madura enquanto cientista e professor, Boltzmann não sofreu maiores dificuldades em escolher as universidades em que queria trabalhar, isso se deve, não apenas à qualidade intrínseca dos resultados que obtinha, mas também pela percepção pública, sempre crescente e facilmente verificada nos relatórios das autoridades universitárias, compostos para justificar as suas escolhas, de que as universidades, caso desejassem atingir níveis de excelência na pesquisa científica, deveriam, necessariamente, contar com professores que fossem, ao mesmo tempo, cientistas originais. A percepção das autoridades universitárias traduziu-se em um aumento no número de cátedras, ordinárias e extraordinárias, de física teórica. Como sugerido anteriormente, essa percepção foi criada a partir das justificativas construídas pelos próprios físicos interessados em fortalecer as suas respectivas áreas de trabalho.

Contudo, não deve ser esquecido que a consolidação da carreira de físico teórico corresponde ao aumento da especialização. Já na segunda metade do século XIX, tornara-se praticamente impossível a um único indivíduo abarcar, enquanto cientista, a totalidade dos problemas e domínios que constituíam a física teórica. Para que se pudesse elaborar teorias, modelos e experimentos significativos, era necessário escolher uns poucos campos de atuação. Mas, se a especialização começava a ser a marca principal da prática científica, o mesmo não acontecia com a atividade de ensino. Nas suas preleções, destinadas aos estudantes recentemente ingressados na universidade, os professores, sobressaindo-se aqueles que ocupavam as cátedras, deveriam mostrar conhecimento e domínio em todas as áreas da Física. Desse modo, os professores ministravam um ciclo completo de física teórica que abrangia, basicamente, mecânica clássica, óptica, termodinâmica, eletricidade, magnetismo e mecânica dos fluidos.

No que concerne especificamente à prática dos físicos teóricos, a segunda metade do século XIX teve outro efeito importante. A partir do surgimento de uma série de novos experimentos e observações, começou-se a duvidar da possibilidade de serem formulados modelos e teorias, estritamente mecânicos, que os descrevessem e os explicassem adequadamente. Iniciou-se, assim, um movimento de revisão daquela concepção que afirmava ser a mecânica clássica, em sua formulação conceitual newtoniana, a base (ou fundamento) natural de toda e qualquer teoria física. Esse movimento de revisão produziu uma série de debates, inicialmente internos à Ciência, mas que, logo depois, atraíram a atenção e o interesse de filósofos. Tais debates, cuja intensidade cresceu na medida em que o final do século se aproximava, não se restringiram aos aspectos simplesmente científicos da perspectiva mecanicista, alcançando as suas contrapartidas epistemológicas, metodológicas e ontológicas6 6 Conferir, por exemplo, Videira [4]. . É na junção dessas duas vertentes, complementares entre si, que se deve compreender a reflexão de Boltzmann acerca da natureza e dos métodos da física teórica. Antes de prosseguir com a apresentação das suas idéias, eu penso ser relevante observar que esses debates prosseguiram por muito tempo, mesmo depois que se tornou consensual a posição de que a mecânica clássica não podia ser mais vista como a base da Física. Em outras palavras, mesmo após o surgimento da teoria da relatividade e da mecânica quântica, a física teórica continuou a ser objeto de discussão. Essa situação é percebida pela produção continuada de artigos e discursos, com os quais os físicos teóricos, muitas vezes no momento em que tomavam posse publicamente de suas cátedras, se dirigiam aos seus pares e estudantes, e nos quais discorriam sobre esse tema.

As discussões relativas à física teórica diziam respeito aos seus objetivos (o que cabe a uma teoria física?; uma teoria física explica ou descreve a natureza?), aos seus métodos (como se elabora uma teoria física?; é lícito o uso de hipóteses?; deve-se obrigatoriamente partir dos dados empíricos conhecidos ou pode-se usar livremente a criatividade científica?), aos seus processos de validação (de que modo e quando é adequado recorrer à experiência?), à sua relação com a natureza (as teorias físicas atingem o nível das essências ou permanecem no nível fenomênico?) e ainda à sua relação com a técnica. Na época de Boltzmann, era muito comum que os físicos se preocupassem com essas perguntas. Eles não as consideravam como problemas menores, o que nos mostra que eram conscientes de que a sua prática era determinada pelas respostas sugeridas e aceitas.

No caso específico da física teórica, esses debates, que reuniram cientistas da envergadura de Helmholtz, Hertz, Mach, Ostwald, Duhem, Poincaré, Planck, além, é claro, de Boltzmann, acredito que eles foram fundamentais para que ela pudesse encontrar o seu espaço. Uma característica desses mesmos debates é que eles, como é comum acontecer nesses casos, não foram conclusivos. Em outras palavras, não se pôde chegar a determinar se a física teórica deveria ser praticada de um único modo. Por exemplo, não se conseguiu formular uma posição única a respeito da importância das hipóteses, do método indutivo ou se as teorias físicas deveriam descrever os fenômenos naturais, deixando de lado o antigo ideal de atingir o nível das causas reais.

Considerada a participação intensa e contínua de Boltzmann nesses debates, pode-se concluir que ele não apenas os considerava necessários, mas mesmo fundamentais para a determinação da natureza da física teórica. Um exemplo, bastante conhecido na história da Física, foi o debate que o opôs a Georg Helm e Ostwald na reunião dos cientistas naturais alemães, ocorrida em 1895 na cidade de Lübeck, no norte da Alemanha7 7 A esse respeito, sugiro a leitura de Videira e Videira [5]. . Esse debate foi proposto ao organizador dessa reunião pelo próprio Boltzmann. Era tão grande a importância que Boltzmann, dava aos temas, objetos das discussões com seus pares, que ele escreveu uma série de artigos e conferência, analisando a sua posição, bem como aquelas de seus colegas, em especial daqueles que eram os seus oponentes, como Mach e Ostwald. Um ano antes de sua morte, em 1905, ele reuniu tais trabalhos num livro, intitulado Populäre Schriften8 8 A primeira edicão desse livro apareceu pela célebre editora alemã J.A. Barth (Leipzig). Recentemente, foi publicada em português uma selecão desses textos [3]. .

3. O estilo epistemológico de Boltzmann9 9 As seções (3), (4), (5) e (6) são adaptacões de [6].

De início, pensamos ser importante caracterizar o estilo empregado por Boltzmann na apresentação de suas idéias sobre os fundamentos da Ciência, e, em particular, daquela sua preferida a física teórica. Acreditamos que essa caracterização, é importante para melhor situar o lugar ocupado por ele nos debates que tiveram lugar nos últimos anos do século XIX.

Boltzmann não procurou nunca elaborar uma filosofia da Física, nem, muitos menos, uma filosofia da Ciência, em geral. O seu estilo epistemológico consistia em sustentar os seus pontos de vista sobre os fundamentos da Ciência contra as críticas que lhe opunham cientistas e filósofos e que ele atribuía a equívocos devidos a uma compreensão errada do que fosse uma teoria científica.

Um outro fator responsável pelo estilo de Boltzmann na exposição dos seus pontos de vista epistemológicos encontra a sua razão de ser em um dos seus mais importantes princípios epistemológicos, que estabelecia que nenhuma teoria científica, ao procurar alcançar uma posição hegemônica entre os membros da comunidade científica, deveria, por isso, excluir as demais teorias. Segundo Boltzmann, a exclusão de teorias conduziria a uma eliminação da possibilidade de progredir a Ciência, não podendo a dogmatização inerente a essa exclusão conduzir ao que quer que fosse de positivo, dando lugar, pelo contrário, como conseqüência, ao empobrecimento do empreendimento científico. Assim, ao participar dos debates científicos-epistemológicos da sua época, Boltzmann combatia em favor de uma atitude aberta a respeito da análise das diversas teorias. Seu espírito em favor do pluralismo era reforçado pela sua crença de que, em um futuro não muito distante, a Ciência seria submetida a profundas transformações, que ninguém, por aquela época, poderia antecipar com certeza.

Para Boltzmann, o final do século XIX caracterizou-se como uma época de dúvidas, permeado por uma desconfiança e um mal-estar crescentes dos cientistas para com a Ciência. Mais precisamente, como muitos se haviam praticamente convencido de que modificações importantes teriam forçosamente que ocorrer, isso, de um certo modo, fez com que eles fossem levados a defender as suas idéias, de maneira que um dentre eles pudesse ajudar a extrair a Ciência do impasse em que se encontrara.

Comparado, por exemplo, a Ostwald, Boltzmann era mais prudente. Mesmo estando convencido da validade de suas idéias mecânico-atomísticas, Boltzmann não se permitia afirmá-las com a veemência freqüentemente encontrada em vários dos textos produzidos por Ostwald. Ao participar de discussões epistemológicas, Boltzmann procurava, em primeiro lugar, assegurar a sobrevivência de suas teorias preferidas, garantindo, no entanto, um lugar para outras teorias.

A capacidade de uma teoria científica de prever novos fenômenos não a torna capaz, de pressentir o seu próprio futuro nem, conseqüentemente, o da Ciência. Por outro lado, uma teoria que já deu bons resultados não deve ser abandonada. Reconhecer os limites científicos de uma teoria não quer dizer que ela se encontra excluída do domínio da Ciência. Provavelmente, foi tendo como causa a incapacidade de prever o futuro de uma teoria que levou Boltzmann a tentar melhor compreender o processo de desenvolvimento da Ciência. Apoiando-se em sua interpretação do darwinismo, ele chegou a algumas conclusões, que considerava pertinentes e que lhe deram uma confiança suplementar no caminho que pretendia percorrer. Toda teoria deve possuir a oportunidade de permanecer no domínio científico mesmo tendo a necessidade de se submeter a restrições, ou limitações em seu domínio de validade, passando simplesmente o seu domínio de aplicação a ser mais restrito do que anteriormente. Além disso, nenhuma teoria tem direito de se considerar como a mais capaz de dizer o que é a realidade, ou real. Uma teoria científica, como Boltzmann sempre afirmou, não possui nenhum valor ontológico; ela não pode ascender ao nível das essências, ultrapassando o plano determinado pelos fenômenos fenomenal. O valor de verdade de uma teoria não é determinado em função da capacidade de especificar aquilo que está por detrás do nível fenomênico. Uma teoria é ''verdadeira'' se, por meio das suas implicações (previsões, por exemplo), ela conduz a resultados que correspondem à experiência. Em breves palavras, para Boltzmann, uma teoria científica, nada mais é do que uma representação da natureza.

Ao afirmar que uma teoria científica é uma representação, Boltzmann coloca-se em uma perspectiva diferente daquela de Mach e de Ostwald. Apesar das diferenças epistemológicas existentes entre ambos, Mach e Ostwald procuraram introduzir nas Ciências Naturais fundamentalmente a mesma concepção fenomenista. Para eles, as teorias físicas têm como objetivo descrever aquilo que é percebido pelos órgãos sensoriais humanos, organizando aquilo que é ''colhido'' por esses em um todo coerente e econômico. Nesse trabalho de organização, a faculdade intelectual humana é passiva. Tudo aquilo que é importante para uma boa realização da tarefa científica já está dado pela observação. A posição de Boltzmann era muito diferente. Mesmo não acreditando que as leis do pensamento, as responsáveis pelo trabalho de elaboração das teorias científicas, fossem imutáveis10 10 Uma exposicão mais detalhada a esse respeito pode ser obtida em [7]. , ele considerava que a razão humana é a fonte de um dos ''lugares'' de origem dessas representações.

Compreendida dessa maneira, uma representação é elaborada a partir de conceitos que também são produtos daquela mesma atividade criadora. Além do mais, não se deve esquecer que as leis da Física se referem a casos ideais e não àquilo que é diretamente observado. Isso é uma outra maneira de dizer que a Física não pretende decifrar o que é o real, mas apenas compreendê-lo. Por exemplo, vejamos o que se passa com o atomismo. O átomo existe na medida em que possui um valor explicativo, uma vez que ele é o produto de uma atividade de teorização científica, seja ela Matemática ou Física. A ''existência'' do átomo é, pois, garantida por uma malha de relações físico-matemáticas, as quais são estabelecidas sem que se leve em consideração aquilo que ocorre na realidade ([8], p. 223). Um dos motivos que garantiram o lugar do átomo na Física, ao lado de outros conceitos, frustrando as tentativas malogradas mas insistentes e numerosas, de pessoas como Mach e Ostwald em negar-lhe todo e qualquer tipo de existência, foi a sua grande capacidade unificadora, derivada desse conceito poder ser usado, quase que instintivamente, em vários domínios das Ciências Naturais.

Apesar de ter sido justamente sua utilização em vários ramos da Física e da Química que deu a Boltzmann argumentos para continuar a afirmar que o átomo não era um conceito, uma noção, inútil e ultrapassada, existiam já outras razões - quiçá mais fortes e convincentes - para garantir a validade da hipótese atômica. Boltzmann pensava que a linguagem matemática empregada pela Física exigia o conceito de átomo. De acordo com os fenomenólogos matemáticos, como, por exemplo, Kirchhoff, os sistemas de equações diferenciais poderiam ser elaborados (concebidos), formulados e resolvidos sem que fosse necessária qualquer referência ao atomismo. Para Boltzmann, os fenomenólogos estavam errados [9]. Toda e qualquer equação diferencial, tal como estabelecida por Fourier para a propagação do calor, se fundamentava na hipótese da existência de pequeníssimas partículas de matéria e do comportamento das mesmas. Tendo feito algumas hipóteses sobre o tamanho dessas partículas, toma-se o limite em que os intervalos de tempo e de comprimento tendem a zero. O mesmo acontece com as soluções dessa equação: o único procedimento rigoroso existente para resolvê-la lança mão da idéia de que o número dessas partículas é limitado, sendo somente a partir dessa aproximação que se deixa aumentar o seu número até o infinito.

Por ocasião da reunião da Sociedde em Lübeck no ano de 1895, quando o atomismo foi severamente atacado por Helm e por Ostwald, a defesa feita por Boltzmann foi tão convincente que Arnold Sommerfeld (1868-1951), na época um jovem cientista e participante desse congresso, declarou muitos anos depois:

Nós, os jovens matemáticos, estávamos todos do lado de Boltzmann; era para nós evidente a impossibilidade de [se deduzir], a partir de uma equação energetista, as equações de movimento ainda que para uma [só] partícula material, isso para não falar daquelas equações pertencentes a um sistema com um número arbitrário de graus de liberdade (Sommerfeld, em [10]).

As palavras de Sommerfeld fazem-nos perceber aquilo que estava em jogo na defesa boltzmaniana do atomismo. Em um primeiro momento, aquilo que o físico considera como tendo possibilidade de ser real surge como uma dedução estabelecida a partir da malha de princípios físicos e equações matemáticas constituintes de sua teoria. A confrontação com a experiência, responsável pela validação do conceito físico, vem em seguida. Assim, tem-se como evidente que a teoria é uma coisa; a realidade, uma outra. As relações entre teoria e realidade se constituem, não apenas porque existe uma correspondência de ordem experimental, mas porque a representação, que decorre daquela mesma malha e antes da comparação, possui um ''conteúdo'' suscetível de ser objetivado, e, portanto, corresponder ao real. É justamente essa característica da representação a responsável pela diferença entre a posição de Boltzmann e aquela defendida pelos fenomenistas. Todavia, existe um ponto comum esposado por essas duas concepções epistemológicas; as representações, ou teorias, não mais procuram dizer o que é o real. Persistindo, no entanto, entre eles uma diferença muito importante: a função da representação.

Para Mach, a teoria terá realizado sua tarefa caso tenha conseguido descrever aquilo que é dado pela observação, sem que haja necessidade de serem introduzidos elementos fictícios ou hipotéticos. A primazia concedida aos fatos empíricos e a teoria lhe obedece, o que faz com que um elemento técnico nada mais seja do que uma cópia da experiência. Mas, se cada elemento de uma teoria corresponde a um fato, ou mesmo a um conjunto de fatos, a teoria também pode ser considerada como verdadeira, caso todos os seus elementos sejam capazes de vincularem-se à experiência. Contudo, em sendo assim, uma teoria, tal como a teoria da gravitação de Newton, teria que, então, ser revista em sua totalidade. Nenhuma experiência se comporta como a lei da gravidade prescreve. De mais a mais, o conceito de força central no modelo newtoniano, não possui nenhum correspondente no real. Caso nos lembremos dos sucessos obtidos pela teoria newtoniana, torna-se claro que o critério estabelecido por Mach é restritivo: caso ele seja aplicado, que teoria científica suportaria essa mesma aplicação?

O caráter restritivo do critério proposto por Mach não passou despercebido a Heinrich Hertz (1857-1894), que compreendeu que a Física se esvaziaria de seu conteúdo, caso Mach tivesse razão. Mais ainda, os problemas da mecânica clássica não seriam resolvidos por meio do dictum epistemológico de Mach e seus partidários. Além disso, a falta de elementos empíricos implica que o conceito de força. por exemplo, não estava situado na origem desses problemas. As razões para isso seriam de outra natureza. Segundo Hertz, as dificuldades eram devidas à incompreensão dos métodos da Ciência. È verdade que cada conceito empregado em uma teoria física deveria, em última instância, obter seu conteúdo objetivo por meio da experiência. Apenas alguns elementos de uma teoria possuem essa característica, a qual, deve ser exigida de um conjunto de proposições teóricas. A conseqüência dessa nova exigência imposta por Hertz é que, em uma teoria científica, coexistem dois níveis diferentes: um nível lógico ou sintático e um nível empírico ou semântico (conferir [11]).

Foi tomando como ponto de partida essa distinção que Hertz pôde, não somente continuar a aderir à mecânica clássica, mas também afirmar que a novidade por ele mesmo estabelecida se situa em um plano lógico ou filosófico. Em suma, o que ele propõe é ...desenvolver uma nova organização para a Física, a qual poderia evitar a falsa significação metafísica. Em outras palavras, ele considerava que muitos dos problemas que afetavam a Física de seu tempo (dificultando a sua compreensão), resultavam exclusivamente daquele plano sintático e que nenhum confronto com a experiência seria capaz de eliminá-los. Por outro lado, compreendendo-se qual era o método correto da Física ou, ao menos, reconhecendo a existência dos níveis sintático e semântico, vários problemas e questões mal formuladas desapareceriam.

Mas, por que aparecem essas más questões e esses falsos problemas? Porque os físicos tinham dificuldades em reconhecer que uma teoria científica é composta de dois níveis distintos e separados. A primeira parte é formal e não possui relação com a experiência. Apesar disso, no segundo livro de Die Prinzipien der Mechanik, quando surge o momento apropriado para se fazer essa junção, Hertz relaciona a parte formal de sua teoria sobre a mecânica com a experiência. Embora as conseqüências epistemológicas dessa distinção sejam muitas, considerarei apenas a que diz respeito à atividade da razão. Para Hertz, esta última possui um campo de ação muito mais largo e amplo do que para Mach, não sendo os seus movimentos limitados pela experiência. Os conceitos fundamentais da Física são modelos para a experiência, seja a atual, seja a pensada.

4. O pluralismo teórico

Toda e qualquer apresentação sobre a epistemologia de Boltzmann fica incompleta, caso deixe de se mencionar a sua principal tese, comumente denominada pluralismo teórico. Para ele, não existe qualquer método científico (ou teoria) que seja intrinsecamente melhor que qualquer outro; nenhum método (ou teoria), sob risco de transformar-se em dogma, pode pretender excluir do domínio científico outros métodos (ou teorias) científicos.

Uma teoria que se torna um dogma deve ser considerada como constituindo um perigo para a Ciência, pois, nesse caso, ela passa a ser considerada como a única verdade existente, não dando possibilidade para que outras teorias possam surgir e ajudar os cientistas em sua tarefa de compreensão da natureza. Como conseqüência dessa situação, ocorre que o progresso da Ciência, talvez a sua principal característica, está ameaçado. Com efeito, Boltzmann considerava que o progresso da Ciência seria possível caso existissem várias teorias, que permitissem à comunidade científica escolher aquela que seria a mais capaz de representar os fenômenos. É necessário que exista uma competição entre as diferentes teorias; competição que se assemelha àquela existente nos mundos animal e vegetal, tal como apresentado por Darwin em sua teoria da evolução. Em outras palavras, o progresso científico se realiza graças ao concurso, ou coexistência, de várias teorias que asseguram aos cientistas a possibilidade de construir representações, talvez mais adequadas que as antigas. Em suma, o progresso científico torna-se possível em decorrência do pluralismo teórico.

Mesmo sendo realista naquilo que concerne à existência do mundo exterior - a negação dessa existência conduziria aqueles que defendiam, uma tal idéia a um solipsismo sem saída, Boltzmann não aceita uma das conseqüências possíveis da posição realista, a saber: as teorias científicas estariam em condições de determinar quais são os componentes últimos da natureza. Boltzmann substitui o conceito de ''adequação'' ao conceito de verdade enquanto critério para julgar o valor, ou o alcance, das teorias. A noção de verdade, em sentido estrito, não poderia ser o critério último, pois ela pressupõe que as teorias científicas determinam a realidade em si. A adequação significa simplesmente que uma teoria A é mais adequada que uma outra teoria B, caso ela torne inteligíveis certos fenômenos que escapam à segunda teoria. O critério de adequação permite, assim, afirmar que qualquer teoria científica é uma representação ou imagem. Para Boltzmann, toda teoria é uma pura imagem interna, ou mental ([3], p. 51-56), tendo como objetivo a construção de imagens internas do mundo exterior. Essas imagens existem no homem, servindo-lhe de guia em seu trabalho de reflexão. A atividade de construção das imagens internas, da mesma forma que o trabalho de aperfeiçoamento de seus graus de adequação ao mundo exterior, é instintivo no homem ([3], p. 163-186), ou seja, a construção de imagens não é um privilégio pertencente apenas aos cientistas. Desde o seu aparecimento na Terra, os homens fazem uso dessa capacidade para controlar o ambiente à sua volta. A fim de poder sobreviver, eles precisaram agir e intervir sobre o meio ambiente. Todas as representações, inclusive aquelas nomeadas de teorias, tinham e têm, um lado prático que possibilita o homem melhor aproveitar, em seu proveito, a natureza.

Segundo Boltzmann, as leis do pensamento são as responsáveis pela origem das representações e têm sua origem no cérebro [12]. Na teoria darwiniana da evolução, a qual Boltzmann adere, o processo de evolução biológica não possui fim e nem um objetivo determinado a priori. Todas as espécies animais e vegetais podem sofrer modificações em suas estruturas biológicas, inclusive o cérebro humano. Assim, é errôneo pensar que essas leis são as ''fiadoras'' da infalibilidade do conhecimento humano. Não somente esse conhecimento pode ser modificado, corrigido e refutado mas, mesmo as leis que tornam possível esse conhecimento, podem igualmente sê-lo. No caso específico da Ciência, essa ausência de infalibilidade significa que a sua evolução não possui um ponto final e que ela não é um meio para conquistar verdades definitivas. A Ciência se desenvolve ([3], p. 163-186). Tal como na evolução biológica, é impossível conhecer o resultado último do processo evolutivo, o final do desenvolvimento científico permanece igualmente em aberto.

A história do processo evolutivo sofrido pela humanidade deverá ensinar aos que se dedicam à Ciência a prudência necessária para evitar perigosas e dogmáticas generalizações científicas e epistemológicas que poderão conduzir à exclusão de outras teses:

Com efeito, já que a história da Ciência mostra como as generalizações epistemológicas tornaram-se freqüentemente falsas, não será possível que a repugnância moderna pelas representações detalhadas, bem como pela distinção entre formas qualitativamente diferentes de energia, seja um retrocesso? Quem prevê o futuro? Deixais-nos lugar para todas as linhas de pesquisa; acabemos com todo o dogmatismo, seja ele atomista ou anti-atomista! Ao apresentar a teoria dos gases como uma analogia mecânica, nós já indicamos, através de escolha dessa palavra, como estamos longe do ponto de vista que encararia na matéria visível as verdadeiras propriedades das pequeníssimas partículas do corpo ([13], p. 26).

5. A física teórica entre a metafísica e o empirismo

A impossibilidade de prever o futuro de uma teoria científica e a falta de certeza quanto à natureza exata das leis do pensamento, presentes nestas palavras de Boltzmann, remetemo-nos de volta para a mais cara dentre todas as suas teses epistemológicas: o pluralismo teórico. Diferentemente de Boltzmann, Mach considerava que o ideal a ser seguido por toda a teoria científica é o de descrever completamente os fatos, ainda que de maneira assintótica, já que as teorias não têm como atingir completamente o seu objetivo; elas aproximam-se dele pouco a pouco, embora sem realizá-lo totalmente:

Esse ideal é o inventário completo e claro dos fatos de um domínio, o qual deve ser ordenado de maneira econômica, simples e utilizável, e tão visível na disposição, que, caso seja possível, esse inventário possa ser mantido em mente sem qualquer outro meio auxiliar11 11 [14], p. 461. A traducão é minha, bem como todas as outras. .

Mach evitava ao máximo, chegando mesmo a desaconselhar veementemente, o uso de elementos artificiais, especulativos e estrangeiros ao domínio de fatos que se queria descrever. Contudo, havia uma situação, na qual esse uso era permitido: uma teoria científica inacabada. O emprego de elementos arbitrários significava necessariamente que a teoria em questão não havia ainda sido capaz de inventariar, de forma completa, a totalidade dos fatos pertencentes ao seu domínio. A presença de elementos oriundos das reflexões feitas pelos cientistas queria dizer que ainda havia o que ser aperfeiçoado na teoria.

A posição de Boltzmann, no que concerne ao emprego de elementos arbitrários ou hipóteses, era completamente diferente da defendida pelo seu antecessor na Faculdade de Filosofia da Universidade de Viena. Ele acreditava ser completamente impossível aos cientistas a não introdução na experiência de elementos que eles mesmo haviam elaborado, posto que, e como confirmava Goethe, somente a metade da nossa experiência é sempre experiência, sendo preciso que os cientistas trabalhem ativamente no processo de representação dos fatos, sem o que, as representações tornar-se-iam inadequadas. Aos olhos de Boltzmann, a tese de Mach sobre o objetivo da Ciência exige que os cientistas permaneçam a observar passivamente aquilo que ocorre naturalmente ou que é provocado de maneira controlada no laboratório.

Além disso, se Mach estivesse certo, como seria possível, indagava-se Boltzmann, explicar que os cientistas prevêem novos fatos? Como podem eles descobrir algo que ainda não foi observado? É na impossibilidade de dar uma resposta a essas questões que Boltzmann crê ter encontrado o ponto fraco da epistemologia de Mach. Se é possível afirmar que a Ciência deve prever novos fatos, é, então, necessário que os cientistas empreguem hipóteses, e, portanto, que eles ultrapassem o nível da pura observação dos fenômenos. Isto é: quanto mais se ultrapassa audaciosamente a experiência, mais será possível obter-se pontos de vista múltiplos, que permitam aos cientistas descobrir novos fenômenos e, conseqüentemente, enriquecer o conhecimento experimental já disponível. Essa ultrapassagem aumenta as chances de cometer-se um engano. Mas é necessário que esse risco seja assumido porque, sem ele, ocorreria algo de grave: a Ciência tornar-se-ia uma quimera. Não obstante essa necessidade, existiria um meio de se reduzirem os erros assim produzidos: o pesquisador deve comparar, o mais cedo possível, as suas representações à experiência, colocando-se, assim, ao abrigo de possíveis excessos. Contudo, a característica que torna possível a existência e o sucesso da atividade científica (o emprego de entidades hipotéticas) constitui também o seu ponto fraco. Segundo Boltzmann, os problemas e os defeitos de uma representação são devidos à sua própria natureza.

Todavia, nem tudo é desacordo entre Mach e Boltzmann, concordando ambos que nenhuma teoria pode representar definitivamente um domínio de fatos. No caso de Boltzmann, isso significa que o simples fato de ser uma representação, transforma a teoria em uma entidade aberta e inacabada. Paradoxalmente, ele considera essa característica de toda e qualquer teoria científica como sendo definitiva. Boltzmann assim definia a tarefa do cientista:

Disso [do fato de que a teoria está em relação com a natureza, da mesma maneira que o signo com o significado] segue-se que o nosso objetivo não pode ser o de encontrar uma teoria absolutamente correta mas, sim, o de encontrar uma imagem, a mais simples possível, capaz de representar o fenômeno. Pode-se mesmo pensar que existam duas teorias científicas diferentes e que, todas as duas, igualmente estejam de acordo com os fenômenos. Apesar de serem totalmente diferentes, são ambas igualmente corretas. A afirmação - existe uma única teoria que pode ser a única correta - somente pode ser a expressão de nossa crença subjetiva acerca [do fato] que não pode existir mais do que uma imagem capaz de estar de acordo ([3], p. 126).

Para Pierre Duhem (1861-1916), explicar quer dizer ...despojar a realidade das aparências que a envolvem em véus, a fim de ver essa realidade nua e face a face ([6], p. 3-4 ). Assim, explicar não é outra coisa do que determinar a essência constitutiva da realidade, daíadvindo uma explicação possuir valor ontológico. Para que se possa determinar aquilo que constitui a realidade das aparências, a observação não é suficiente:

A observação dos fenômenos físicos não nos coloca em relação com a realidade, que se esconde sob as aparências sensíveis, mas com essas mesmas aparências sensíveis, tomadas em uma forma particular e concreta ([6], p. 4).

Caso a Ciência - no nosso caso - a Física, queira ver face a face a realidade das aparências, é preciso que ela responda às seguintes questões: Existe uma realidade material distinta das aparências sensíveis? e Qual é a natureza dessa realidade? ([6], p. 7). Mas, posto que as respostas a essas questões não são obtidas através do método experimental, o qual não conhece outra dimensão diferente daquela conhecida por meio das aparências sensíveis, a solução dessas questões transcende os métodos de observação empregados pela Física; ela é objeto da metafísica ([6], p. 7-8). Contudo, segundo Duhem, uma tal conclusão é falsa porque os objetos de discurso da Física e da metafísica nada possuem em comum. A primeira refere-se à realidade apreendida pelos sentidos e ela o faz utilizando símbolos matemáticos que não possuem relações com a experiência objetiva. Por outro lado, as doutrinas metafísicas são compostas de julgamentos acerca dessa mesma realidade objetiva.

A partir daquilo que foi dito acima, é possível compreender-se a definição de física teórica de Duhem como uma construção simbólica elaborada para resumir, em um pequeno número de definições e princípios, o conjunto de leis experimentais. Boltzmann não pensa ser necessário interditar o emprego do conceito de explicação, o que o coloca em uma posição diferente da de Duhem. Segundo ele, basta que se o redefina: explicar, em Física, significa que a representação da experiência exige a elaboração de modelos, baseados em hipóteses, capazes de sugerir qual é a função de um objeto físico em uma teoria. Em outras palavras, o esforço do físico teórico é compreender, qualitativa e quantitativamente, os fenômenos, sem que se seja obrigado a conhecer a essência da realidade.

Mas, para que o conceito de explicação de Boltzmann se torne perfeitamente claro é preciso compreender aquilo que ele nomeava de ''realidade das entidades físicas''. Boltzmann reconhece que, uma vez que a teoria conquistou o mundo, o que significa que se está bastante mergulhado no mundo das teorias, existe sempre o perigo de tomar as imagens pela realidade. A única maneira de escapar disso é submetendo, de novo e o mais cedo possível, as imagens ao teste experimental. A realidade das representações físicas (leis e teorias) não é de natureza sensorial; elas são construções, portanto, eles são abstrações ([3], p. 177-178).

Um dos principais objetivos da Ciência é prever novos fenômenos. Essa previsão ocorre através do emprego de teorias científicas, as quais, em última instância são, como já tivemos ocasião de observar, produto da capacidade intelectual dos homens. Prever significa, em sentido latu, ver antes. Mais precisamente: prever significa ser capaz de saber que alguma coisa vai acontecer antes mesmo de sua efetiva realização. No caso específico da Ciência, prever é o mesmo que ''ver'' através das teorias e leis que compõem o conhecimento científico. Assim, são as teorias científicas as responsáveis pela possibilidade da previsão. Mas, por que possuem elas essa capacidade? Em outros termos, o que é uma teoria científica?

Segundo Boltzmann, conforme já afirmado anteriormente, uma teoria científica é uma representação que existe no cérebro do cientista, elaborada com o intuito de dar conta, não somente daquilo que ele observa com os seus instrumentos científicos, mas também daquilo que ele prevê como novos fenômenos, ou seja, fenômenos que ainda não foram observados, seja em laboratório, seja no meio-ambiente.

Algumas vezes, aquilo que já se encontra integrado à Física não é suficiente para tornar possível a elaboração de uma representação da natureza. Quando isso se dá, é preciso que o cientista seja criativo, mostrando-se capaz de inventar novos ''utensílios'' (leis, conceitos, modelos, instrumentos e dispositivos de medida, teorias, etc.). Freqüentemente, uma das maneiras mais comuns de empregar a criatividade científica aparece no momento da elaboração de uma hipótese. Pode-se definir uma hipótese como sendo uma afirmação ainda não demonstrada ou comprovada: seu valor de verdade permanece em suspenso.

Opondo-se a Mach, Boltzmann observa que as leis da Física referem-se a casos ideais. Um caso ideal não é outra coisa que um sistema despido de tudo aquilo que não é pertinente à descrição e à explicação do fenômeno em questão. Existe, portanto, entre o caso ideal e o caso atual certas diferenças qualitativas relevantes. Mas, como se faz, segundo Boltzmann, para se passar do caso atual ao caso ideal? Os parâmetros físicos que permanecem após o trabalho de ''seleção'' foram escolhidas em função de opções, previamente feitas pelos cientistas. Estes últimos estudam algumas características de um fenômeno, e, para isso, ele devem considerar quais são os parâmetros que desempenham um papel importante nesse mesmo fenômeno. O cientista só pode fazer essa escolha caso ele lance mão de hipóteses, tornando possível a determinação de se um parâmetro é insignificante no caso abordado. A Ciência moderna tornou-se possível por que os cientistas se deram conta muito cedo que seria necessário recorrer a hipóteses.

6. Observações sobre as perspectivas epistemológicas de Boltzmann e Maxwell

A introdução do pluralismo teórico na Física foi, segundo o próprio Boltzmann, uma das principais contribuições epistemológicas de James Clerk Maxwell (1831-1879), o qual, em seu trabalho, On the Physical Lines of Force, observa que, uma vez que os fatos do eletromagnetismo são bastante complicados e variados, é importante e necessário possuir várias hipóteses, todas elas capazes de fornecer uma explicação para um certo grupo de fatos. Ainda segundo Maxwell, essa multiplicidade não possui apenas um interesse estritamente físico; ela é importante para saber se a explicação sugerida confirma a exatidão da teoria e se a utilização bem sucedida de uma mesma formulação matemática, para dois grupos de fenômenos diferentes, implica que esses dois grupos não são, em realidade, apenas um.

Ainda que valorize o emprego de várias hipóteses diferentes em um único domínio de fatos, Maxwell, contrariamente a Boltzmann, não excluía a possibilidade de que, um dia, os pesquisadores viessem a encontrar uma explicação que fosse verdadeira ([16], p. 53). Mas, se Maxwell não se mostrava completamente convencido da impossibilidade de se elaborar uma teoria capaz de ser completamente ajustada aos fenômenos em consideração, Boltzmann a refuta, justificando a sua própria interpretação com as reflexões epistemológicas do físico escocês:

Enquanto que especialmente os partidários posteriores da velha física clássica pretendiam reconhecer, através dela, a verdade das coisas, Maxwell, quiçá menos que os criadores daquela, quis conceber a sua teoria como sendo apenas uma imagem da natureza ou, conforme ele dizia, como uma analogia mecânica, a qual permitia condensar, no momento considerado e da maneira a mais uniforme possível, a totalidade dos fenômenos ([3], p. 101).

A afirmação da tese segundo a qual as teorias científicas não passam de imagens, não esgota, segundo Boltzmann, o conteúdo epistemológico das idéias do criador da teoria do eletromagnetismo. Boltzmann exprime ainda duas outras idéias, as quais, conjuntamente com aquela que acabamos de assinalar, são muito importantes, pois lhe fornecem os meios para que possa estabelecer os eixos do seu próprio pensamento epistemológico, a saber: o pluralismo teórico e a fecundidade de uma teoria. Este último, consiste na capacidade de uma teoria sugerir novas descobertas experimentais ou conseqüências teóricas, o que já teria sido antecipado, segundo Boltzmann, pelo próprio Maxwell.

Contudo, mesmo existindo semelhança e concordância entre as teses epistemológicas desses dois físicos, é preciso observar que os contextos, nos quais elas foram apresentadas e discutidas, eram completamente distintos. Maxwell elaborou as suas idéias a partir de sua intenção de encontrar teorias capazes de explicar os fenômenos eletromagnéticos, contrariamente, aquilo que move Boltzmann é o seu desejo de salvar a Ciência de um espírito dogmático que poderia ser fatal à atividade científica.

7. Conclusão

Boltzmann permaneceu sempre fiel às suas idéias sobre o atomismo, sobre a mecânica clássica e sobre a relevância epistemológica do darwinismo. Contudo, ele o foi de uma maneira particular com relação a outros cientistas, seus contemporâneos que tomaram parte nos mesmos debates que ele. Durante as discussões em que defendia as suas idéias, sempre que uma oportunidade se lhe apresentava, Boltzmann acentuava a sua vontade de não excluir as concepções rivais. Isso o conduziu a defender as suas idéias de uma maneira tal que, uma vez que elas fossem assinaladas, elas não pudessem ser compreendidas como verdades últimas, capazes de negar a validade de outras concepções científicas e epistemológicas. De acordo com ele, o critério de verdade não pode ser aplicado nem ao conteúdo da Ciência, nem às reflexões acerca da natureza epistemológica desta última. Para julgar o valor científico de uma teoria, deve-se aplicar o critério de adequação ([3], p. 172-175) e, para julgar a sua importância epistemológica, não havia outro critério do que aquele condicionado pelo gosto pessoal do cientista. Tal como eu o interpreto, Boltzmann pensava que esse critério de adequação reforçaria a tese do pluralismo teórico.

Ao longo de todo este artigo, fui favorável à tese de que Boltzmann lutou pelo reconhecimento, científico e institucional, da física teórica, passando a desfrutar de autonomia, fundada na existência de características que lhe eram próprias. Entre o início de sua carreira, no final da década de 1860, e a sua morte, na primeira década do século passado, aquilo que era uma intenção passou a ser uma realidade: a física teórica não mais se confundia com a física matemática e com a física experimental. No entanto, essa autonomia, que deveria se concretizar na inserção plena da física teórica no rol das disciplinas acadêmicas, não deve ser entendida como implicando a separação completa dos outros ramos que compunham a Física. A unidade dessa Ciência não deveria ser comprometida, mesmo que os métodos e os objetivos de cada uma delas impedissem uma prática individual unificada.

Apesar de o problema da preservação da unidade da Física não ter sido exaustivamente trabalhado por Boltzmann, acredito que ele reconhecia a sua existência e a sua relevância, tal como aconteceu em 1904 no congresso científico da Exposição Universal de Saint Louis, nos Estados Unidos:

Minha conferência de hoje foi classificada sob a rubrica ''matemática aplicada'', enquanto a minha atividade como professor e investigador é dedicada à Ciência da Física. A brutal separação que dividiu a Ciência em dois campos dificilmente terá sido tão agudamente definida como na organização das palestras a serem apresentadas nesse congresso científico. (...) Estou me referindo à divisão entre física teórica e física experimental. Como representante da física teórica, fui alocado na seção A, correspondente às ciências normativas; a física experimental aparece muito mais adiante na seção C para a ciência física. Entre as duas encontram-se a história, a lingüística, a literatura, a teoria da arte e a teoria da religião. O físico teórico deve, através de todas elas, estender a mão ao físico experimental. Por isso, nós não poderemos evitar completamente a questão concernente à justeza da divisão da Ciência: geralmente, em duas partes e, particularmente, a física em teórica e experimental ([3], p. 163-164).

A solução para este certamente difícil problema não se encontrava na formulação e na defesa de um método único a ser empregado em cada uma das áreas da Física ou, ainda, na defesa de um mesmo objetivo para elas. Nem mesmo os seus objetos - de um lado, leis; de outro, medições - poderiam ser invocados. Já não mais seria possível defender a existência de uma correspondência imediata entre as áreas da Física. Tal correspondência só seria alcançada caso fosse construída. A construção é uma característica existente em cada uma das três áreas que constituem o conjunto da Física: as teorias e os modelos, construções de uma mente livre e criativa; os instrumentos e laboratórios científicos, necessários para a exploração e comprovação provisória das representações teóricas; os cálculos físico-matemáticos, transmissores dos conteúdos físicos, decorrem parcialmente de linguagens matemáticas; e, finalmente, no domínio da atividade pedagógica, as exibições didáticas, realizadas durante as preleções, contribuem para o aprendizado.

As construções somente são válidas caso consigam alcançar os objetivos pré-determinados pelos seus construtores. De que modo, a tese a respeito de a Física ser, ela mesma, uma construção, contribui para a manutenção da sua unidade? Neste ponto, devo observar que avanço uma idéia, para a qual não tenho uma ''prova'' definitiva. Esta idéia afirma que, para Boltzmann, perceber a física como uma construção respeitava a sua crença no darwinismo como solução para os problemas filosóficos da Ciência, uma vez que ele nos obriga a não mais procurar explicações para além das atividades humanas e para além daquilo que podemos alcançar com os nossos sentidos ordinários e com o nosso cérebro. Ou seja, haveria um substrato comum a todo e qualquer tipo de atividade humana, não sendo relevante se essa atividade é, ou não, de natureza intelectual. Em outras palavras, representar é uma ação humana tão comum e corriqueira como qualquer outra. Representar, finalmente, passar a ser uma construção, na medida em que exige decisões escolhas que temos que fazer para resolver os problemas que desejamos resolver. Representar não seria outra coisa que agir.

  • [1] Christa Jungnickel and Russell McCormmach, Intellectual Mastery of Nature - Theoretical Physics from Ohm to Einstein, v. I, (The Torch of Mathematics 1800-1870) e v. 2 (The Now Migthy Theoretical Physics 1870-1925) (The University of Chicago Press, Chicago, 1986).
  • [2] Sérgio Bernardo Volchan e Antonio Augusto Passos Videira, Rev. Bras. Ens. Fís. 23, 19 (2001).
  • [3] Ludwig Boltzmann, Escritos Populares, seleçăo, traduçăo e apresentaçăo Antonio Augusto Passos Videira (Editora Unisinos, Săo Leopoldo, 2004).
  • [4] Antonio Augusto Passos Videira, in A.L.M. Dias, C.N. El-Hani, J.C.B. de Santana e O. Freire Jr, (orgs) Perspectivas em Epistemologia e História das Cięncias (Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 1997), p. 11-24.
  • [5] Antonio Augusto Passos Videira e Antonio Luciano Leite Videira, in A.A.P. Videira e S.R.A. Salinas (orgs) A Cultura da Física: Contribuiçőes em Homenagem a Amélia Império Hamburger (Livraria da Física, Săo Paulo, 2001).
  • [6]Antonio Augusto Passos Videira, Cięncia & Filosofia 6, 199 (2000).
  • [7] Antonio Augusto Passos Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 61, 225 (2005).
  • [8] Ernst Cassirer, Substanzbefriff und Funktionsbegriff (Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1910, 1987).
  • [9] Antonio Augusto Passos Videira, Cadernos de História e Filosofia da Cięncia Série 3, 7, 53 (1997b).
  • [10] Stephen Brush, Synthese 18, 200 (1968).
  • [11] Paul Alexander, in Paul Edwards (ed), Hertz in The Encyclopedia of Philosophy, v. 4 (The Hamilton Company and the Free Press, Nova York, 1967).
  • [12] L. Boltzmann, Populäre Schriften (J.A. Barth, Leipzig, 1905), p. 179.
  • [13] Ludwig Boltzmann, Lectures on Gas Theory, traduzido por S.G. Brush (University of California Press, Berkeley e Los Angeles, 1964).
  • [14] Ernst Mach, Die Principien der Wärmelehre historisch-kritisch entwickelt (Barth, Leipzig, 1896, 1900).
  • [15] James Clerk Maxwell, Über physikalische Kraftlinien, traduzido por L. Boltzmann (Wissenchaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1976).
  • [16] Pierre Duhem, La Théorie Physique: Son Objet - Sa Structure (Vrin, Paris, 1906, 1989).
  • 1
    E-mail:
  • 2
    A descricão histórica, que apresento nesta secão, é inspirada na magistral obra de Christa Jungnickel e Russell McCormmach, publicada pela primeira vez em 1986 [1].
  • 3
    Uma descricão pedagógica das idéias de Boltzmann a esse respeito encontra-se em [2].
  • 4
    Contudo, Boltzmann também não gostou do clima da cidade de Berlim, excessivamente cerimonioso e formal, segundo ele.
  • 5
    Conferir, por exemplo, a Ref. [3]. Mas especificamente, os capítulos dedicados aos métodos da física teórica.
  • 6
    Conferir, por exemplo, Videira [4].
  • 7
    A esse respeito, sugiro a leitura de Videira e Videira [5].
  • 8
    A primeira edicão desse livro apareceu pela célebre editora alemã J.A. Barth (Leipzig). Recentemente, foi publicada em português uma selecão desses textos [3].
  • 9
    As seções (3), (4), (5) e (6) são adaptacões de [6].
  • 10
    Uma exposicão mais detalhada a esse respeito pode ser obtida em [7].
  • 11
    [14], p. 461. A traducão é minha, bem como todas as outras.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      2006
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