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Desventuras das mulheres em busca de emprego

Desventuras das mulheres em busca de emprego

Elizabeth Souza Lobo

Socióloga e professora do Departamento de Ciências Sociais da USP

Procura-se:

Secretária com um ano de experiência, 1º grau completo, hiperbonita para trabalhar com diretor de firma.

Recepcionista com boa apresentação, boa aparência, que não seja de cor, nem japonesa.

Engenheira civil feminina, recém-formada e japonesa.

Faxineira magra e esperta.

Cozinheira que não seja gorda.

O que é sexismo? Cada vez mais presente nas colunas dos jornais, este termo, que surgiu nos movimentos de mulheres da Europa e dos EUA, ainda não está registrado no Aurélio. Como defini-lo? Discriminação sexual? Mais que isso, o sexismo é uma atitude machista — arraigada no inconsciente coletivo — que se expressa cotidianamente, no vocabulário e nas ações, que vê, no outro, apenas um objeto de prazer, e que acaba por mediar as relações entre os indivíduos. Elizabeth Souza Lobo nos mostra aqui como aparece o sexismo nas relações de trabalho.

Os anúncios não são inventados. Estão registrados no SINE (Sistema Nacional de Emprego) em São Paulo. Segundo o coordenador do SINE em São Paulo, estas são vagas "encalhadas", porque tais "qualificações" não existem em nosso mercado.

Sobre o sexismo e racismo explícitos nos anúncios de empregos, nenhum comentário. É verdade que não são novidade. Povoam os classificados dos jornais e a linguagem "cientifica" dos técnicos em relações humanas.

Não se espera, nem de quem redigiu os anúncios nem dos funcionários do SINE, uma reflexão sobre o que é afinal "qualificação" para as mulheres. O que espanta, a mim pelo menos, é a impunidade, a naturalidade com que sexismo e racismo se manifestam. Na verdade, os anúncios vêm reforçar uma tese polêmica: a de que o sexo determina a

qualificação de um trabalho. Assim a avaliação de uma mulher secretária, engenheira ou operária passa por critérios que julgam suas qualidades como mulher. Por isso, antes de se medir a eficiência de uma secretária, mede-se a sua pessoa, como se fosse uma mercadoria, um enfeite. Um contrato de trabalho de uma mulher não compra apenas (e já é muito) a sua capacidade de trabalho. Compra também a mulher. Por isso é que mulher grávida não serve, mulher gorda não serve, mulher negra não serve. A qualificação vem depois.

Se o sexismo (e o racismo também) é às vezes transparente, e não se aplica para os homens o mesmo tipo de critérios aplicados às mulheres, o sutil processo de desqualificação do trabalho feminino é bem mais complicado. Dificilmente encontraremos um anúncio buscando "um engenheiro japonês, viril". Mas é freqüente, sobretudo no trabalho industrial, a dificuldade para distinguir porque uma tarefa feita por homens é considerada mais qualificada do que outra feita por mulheres.

Que seja feminina, bonita e... loira!

O certo é que não só é preciso ser feminina, bonita, às vezes loura, para conseguir trabalhar, mas ainda que as mulheres no seu conjunto estejam nas faixas salariais mais baixas e nas tarefas menos qualificadas.

Não é um problema que se limite ao mercado de trabalho, ao discurso dos gerentes de relações humanas, aos patrões. Vai mais longe e é indicativo do que é ser mulher e trabalhadora no Brasil cotidiano, sob o fino verniz da modernidade da "nova mulher".

É um problema político. Porque sexismo e racismo são questões políticas, que fazem parte da nossa vida, do dia-a-dia das que procuram emprego, vão a hospitais ou postos de saúde, abortam escondidas como criminosas, amam, andam pelas ruas, cuidam dos filhos. Fazem parte também dos discursos oficiais e oficiosos, como o do brigadeiro Valdir de Vasconcellos, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), que declarou que "os vastos espaços vazios que ainda existem neste país não devem ser ocupados por grupos de nordestinos de uma família rural de onze filhos, mas por homens fortes" e, coerentemente, propôs que o planejamento familiar passasse a ser questão de segurança nacional, a ser regulamentada pelas Forças Armadas.

A esta política, o que temos a opor?

O discurso de oposição promete igualdade, dignidade para as mulheres, creches, saúde, uma nova situação civil. O discurso feminista foi mais longe. Denunciou a violência oculta ou aberta contra as mulheres, a dupla jornada de trabalho, e humilhação no trabalho e muitas vezes em casa ou nas ruas.

À margem dos discursos, os resultados são magros. O que se sente é muito mais uma mudança simbólica; meio sufocada pelo modismo da mulher liberada. O que se passa no mundo das mulheres "pobres e obscuras", que brigam por casa e trabalho, que ocupam o SINE, é ainda invisível. E enquanto não surge uma política do cotidiano, as várias faces do sexismo se desdobram.

Em matéria de trabalho, a situação é que se adivinha pelos anúncios do SINE. A única medida do governo atingindo o trabalho feminino de que se tem notícia é a liberação do trabalho noturno. Boa ou má, a medida passou e as mulheres não foram consultadas.

Enquanto isso, as mulheres entram na ordem do dia como máquinas reprodutivas, objetos de um surpreendente interesse, e viram questão de segurança nacional. Tudo isto porque técnicos competentes descobriram que as mulheres estão gerando futuros delinqüentes, seres defeituosos que não servem para honrar as nossas gloriosas Forças Armadas, monstrengos perigosos.

Trata-se, portanto, de impedir que essas mulheres, que certamente não são hiperbonitas, nem femininas, procriem. E o governo, que até hoje pouco ou nada fez pela saúde das mulheres, limitando-se a magros programas de assistência prénatal, de alcance restrito, em que as mulheres só existiam se fossem mães, resolveu produzir um Programa de Saúde Integral da Mulher. A uma política autoritária se sucede outra. Antes não se tratava da contracepção, ou quando muito receitavam-se pílulas, sem atendimento médico, sem informação. Agora, exalta-se a necessidade de "paternalidade" responsável (o brigadeiro fala mesmo de paternidade, nem a maternidade reconhece) e faz-se o elogio da contracepção. Com o pequeno detalhe da insistência nas vantagens da esterilização feminina. E tudo isso virou matéria de segurança nacional, sem que as mulheres fossem ouvidas. Sem que se saiba efetivamente o que se está fazendo em termos de contracepção neste país.

A esta política, o que temos a opor?

Enquanto o Ministério da Saúde finge consultar especialistas, feministas e parlamentares, as condições de aplicação do novo programa são obscuras. E,a nível dos estados, os melhores projetos de saúde da mulher permanecem bloqueados, entre interesses conservadores, temores e hesitações.

E o discurso político, o que diz?

Algumas tentativas das feministas aqui, um ou outro fragmento de discurso ali, mas não há posição nem ação.

Enquanto o brigadeiro Vasconcellos se escandaliza, desta vez com o número de jovens subnutridos, com deficiências dentárias e insuficiências de peso e decide apoiar um planejamento familiar para que "os casais tenham apenas o número de filhos que possam criar", a saúde integral das mulheres passa para segundo plano, e fica mais uma vez evidente que as mulheres não contam. Devem procriar ou não segundo os interesses da nação. Não é de se estranhar que o aborto continue sendo crime e tabu, mas na verdade existindo para maior aperfeiçoamento da raça. Que seja feito à custa da saúde e da vida de muitas mulheres, não interessa.

Assim, mulheres enfeites, ou mulheres máquinas de procriar, a mesma situação se repete: as mulheres são objetos e não sujeitos da política, e não há ainda um espaço político em que elas possam realmente assumir um novo papel.

Na verdade, não é apenas uma questão de espaço. Tampouco se resolve o problema criando órgãos representativos, mas ainda simbólicos, como os Conselhos, ainda que, num quadro mais favorável, estes pudessem ser instrumentos úteis e eficientes. O sexismo e a crítica que dele faz o feminismo apontam para uma perversão gritante: a desigualdade e a opressão que se apóiam sobre o sexo.

O que é talvez tempo de compreender é que esta perversão gritante, fazendo parte do nosso dia-a-dia e sendo uma questão política, não ganha um tratamento político nem ao nível do discurso nem ao nível das iniciativas, das estratégias e das práticas.

Enquanto isso ocorre, do outro lado, patrões e brigadeiros manifestam uma clareza muito grande sobre o fato de que um corpo de mulher não é apenas um objeto qualquer, é um objeto útil e perigoso, a ser controlado e a ser explorado de várias formas. E montam, como quem não quer nada, um sistema de controle social que se baseia na debilidade da posição social das mulheres, na sua submissão, cuidadosamente programada. O brigadeiro quer que o corpo das mulheres seja área de segurança nacional. Os patrões querem que o corpo das mulheres produza mais e mais, sempre mais barato, sempre mais rápido.

E é por isso que Marli Cristina de Campos, 17 anos, ex-empregada doméstica, sete irmãos, mutilou a mão numa prensa de uma indústria de plásticos onde trabalhava sem registro em carteira, sem experiência. Comentário da irmã: "Eu sei que o salário é muito baixo, mas nessa situação não temos muita escolha". E porque Marli, mulher, sem qualificação profissional, provavelmente não hiperbonita nem feminina, precisa trabalhar para sobreviver, a empresa aproveita e explora. Faz sua política.

Como faz sua política o contra-mestre, que atrás dos muros altos da fábrica asséptica e modelar, construtora, afinal, do "milagre do Delfim", grita todos os dias para as mulheres que trabalham sob suas ordens pequenas frases: "Vocês só prestam para ter filhos", "Estão precisando é de homem!" E quando alguém vem pedir licença para sair no dia seguinte, para visitar a filha na UTI, o contramestre responde: "Quem está grave hoje amanhã está morta". A moça conta e pára. A companheira acrescenta: "Diz que a tua filha morreu". As lágrimas aparecem atrás do sorriso doce.

Verdade que é difícil juntar estas formas quase invisíveis do sexismo cotidiano, que aparecem nos desabafos, nas queixas e denúncias. Mas são estas práticas miúdas que constroem a repressão, a humilhação das mulheres. Divididas entre pobres e ricas, mas também entre brancas e negras, bonitas e feias, sulistas ou nordestinas, que podem ter os filhos que querem ou impedidas de tê-los, para não prejudicar a qualidade da nossa população.

Procura-se uma política que dê conta dos sofrimentos cotidianos e dificuldades de mulheres que querem trabalhar e ganhar sua vida, que querem ter filhos ou evitá-los, que querem ser tratadas com dignidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1985
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