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Revolução 2008-?

Revolution 2008-?

Resumos

Por dois séculos, a experiência da França em 1789 transformou a relativamente anódina categoria da revolução num eixo obrigatório do juízo político em todo o mundo. Nessa longa travessia, ela serviu mais insistente e efetivamente para definir a lealdade e a antipatia políticas do que para dirigir a agência política para fins bem definidos e politicamente acessíveis. O que a equipou para fazer isso foi uma imagem das exigências imperiosas e abrangentes da razão humana no interior da vida coletiva. Mas é duvidoso hoje que tais pretensões sejam capazes de oferecer uma base massiva de solidariedade para reconstruir a sociedade e a política, depois do colapso ou derrubada de um regime.

Revolução e teoria política; Revolução Russa; Revolução Francesa


For two full centuries the experience of France in 1789 turned the relatively anodyne category of revolution into a mandatory axis of political judgment across the world. Throughout that long traverse it served more insistently and effectively to define political allegiance than to direct political agency towards well defined and potentially accessible ends. What equipped it to do this was a picture of the comprehensive and imperious requirements of human reason within the collective life. But it is dubious today that those claims are still able to offer a massive basis of solidarity for reconstructing society and polity in the aftermath of regime collapse or overthrow.

Revolution and political theory; The Russian Revolution; The French Revolution


Revolução 2008-?* * Traduzido por Plínio Dentzien. Nossos agradecimentos à revisão de Eunice Ostrensky.

Revolution 2008-?

John Dunn

Professor do Departamento de Política da Universidade de Cambridge (Reino Unido)

RESUMO

Por dois séculos, a experiência da França em 1789 transformou a relativamente anódina categoria da revolução num eixo obrigatório do juízo político em todo o mundo. Nessa longa travessia, ela serviu mais insistente e efetivamente para definir a lealdade e a antipatia políticas do que para dirigir a agência política para fins bem definidos e politicamente acessíveis. O que a equipou para fazer isso foi uma imagem das exigências imperiosas e abrangentes da razão humana no interior da vida coletiva. Mas é duvidoso hoje que tais pretensões sejam capazes de oferecer uma base massiva de solidariedade para reconstruir a sociedade e a política, depois do colapso ou derrubada de um regime.

Palavras-chave: Revolução e teoria política; Revolução Russa; Revolução Francesa.

ABSTRACT

For two full centuries the experience of France in 1789 turned the relatively anodyne category of revolution into a mandatory axis of political judgment across the world. Throughout that long traverse it served more insistently and effectively to define political allegiance than to direct political agency towards well defined and potentially accessible ends. What equipped it to do this was a picture of the comprehensive and imperious requirements of human reason within the collective life. But it is dubious today that those claims are still able to offer a massive basis of solidarity for reconstructing society and polity in the aftermath of regime collapse or overthrow.

Keywords: Revolution and political theory; The Russian Revolution; The French Revolution.

Quando se trata de revolução, a principal pergunta é em que medida esse conceito nos ajuda, ou impede de, compreender o que está politicamente em jogo e o que se pode produzir pela ação política em tempos e lugares específicos (Dunn, 2007). Ninguém duvida de que tal categoria possa ser empregada de maneira extremamente vaga ou leviana. Desde 1789, o que essa categoria sofreu e promoveu já foi suficiente para mostrar que durante algum tempo ainda ela permanecerá em circulação em boa parte do mundo, seguindo cursos que, freqüentemente, pouco contribuem para esclarecer o que se passa nas situações às quais ela é aplicada. Outros, e isso é bastante certo, por muito tempo abusaram flagrantemente dessa categoria e se empenharão ao máximo em continuar a fazer isso, em nome de finalidades políticas próprias formuladas com maior ou menor clareza. É absolutamente menos claro, entretanto, até que ponto nós mesmos temos boas razões para agora empregá-la, e o que ela, de algum modo, nos permite entender ou o que não poderíamos entender, ou até mesmo conhecer a fundo, por meio de outras categorias de menor ambição epistemológica e menos vulneráveis à fortuna política. Nunca convém superestimar a capacidade intrínseca de iluminar, produzida por categorias políticas (democracia, Estado, direitos, seja o que for). Mas continua a ser razoável creditar algumas categorias políticas específicas, pelo menos em certas situações e por alguma fração de sua duração histórica, de uma considerável e inerente capacidade de mistificar e confundir. (Tais categorias não precisam ter uma referência primordialmente política: igreja poderia ser um forte exemplo e é quase inquestionável que mercado, embora mais recente, também seja.) Nesse sentido, revolução, na longa época em que manifestamente teve uma carga potente de significado, originou-se no trauma e no contentamento, e se difundiu em ondas cada vez maiores por consideráveis dois séculos, largamente impulsionada pela confusão e espalhando confusão à sua frente, aonde quer que fosse. A época em que não se pode ignorar facilmente sua presença abarca pelo menos dois séculos, entre 1789 e 1989, e é unânime que, de longe, o maior ímpeto na retaguarda de sua dispersão veio com a queda do império czarista em 1917.

No início dessa época, eminentes historiadores da grande Revolução Francesa - levados, ao menos num caso influente, pelo desejo de reverter o que viam como o dano provocado por 1917 e para reparar as indiscrições de sua própria juventude - tentaram apresentar a totalidade dos dois séculos em parte como obra de uma única grande ilusão, agora se aproximando, já tarde, de seu fim (Furet, 1981 e 1999). Mas nenhum historiador de cada um desses episódios poderia prontamente duvidar de que algo importante de fato ocorreu nessas duas sociedades nos períodos em questão, e que o termo revolução, não importa o que se pense a seu respeito, referia e decifrava aquilo que tornou seu assunto tão importante. Pelo menos nesses dois episódios, seja qual for sua pertinência em relação a outros acontecimentos anteriores ou posteriores, a categoria revolução assumiu o status de nome próprio. Decerto podemos (e devemos) perguntar o que foram exatamente as Revoluções Francesa ou Russa - em que consistiram - e também por que aconteceram; mas não podemos perguntar, em sã consciência, se elas realmente aconteceram (Dunn, 1972 e 1990; Skocpol, 1979).

Antes de 1789, havia duas diferentes tradições de pesquisa política e moral que enfatizavam a vulnerabilidade do Estado absolutista francês, as instituições que o governavam e a sociedade que ele tentava organizar: o que hoje chamamos de ancien régime. A primeira se preocupava acima de tudo com o aperto fiscal e o engajamento geopolítico que tão drasticamente ampliara esse aperto e pretendia, antes de tudo, julgar até que ponto esse aperto poderia ser remediado pela reconstrução mais habilidosa ou drástica de suas providências legais, políticas, sociais ou econômicas. Como fora o hesitante controle do governo do rei sobre esse aspecto de seus recursos e dívidas que levara à convocação dos Estados Gerais em 1788, dando ao abade Sieyès sua grande oportunidade, é razoável ver nisso a causa próxima do colapso do antigo regime, embora o aperto fiscal, em si mesmo, tenha afinal sofrido pouca modificação pelo desfecho da revolução. Como mostrou recentemente Michael Sonenscher em seu impressionante estudo Before the deluge (Sonenscher 2007 e 1997; Hont, 2005), durante quase um século, muitos dos pensadores políticos mais agudos na Europa identificaram, no desafio político de financiar, por volta de 1789, uma guerra cada vez mais dispendiosa em todo o mundo, a principal ameaça à forma econômica, social e política das monarquias e repúblicas comerciais da Europa.

A segunda tradição não enfocava, em princípio, os Estados, mas uma avaliação crítica da verdade e falsidade da crença humana. Ela sempre foi constituída de muitas camadas e politicamente plástica. Em sua forma mais radical e desencantada, sua trajetória em direção a 1789 foi recentemente recontada, em minúcias e com infatigável entusiasmo, por Jonathan Israel (Israel, 2001 e 2006) como uma história da progressiva caracterização e repúdio de todo o ancien régime europeu como estrutura massiva única de crenças sistematicamente falsas e supersticiosas (Koselleck, 1985, especialmente pp. 39-54, e 1988). Em 1789, pela primeira vez na história, as duas tradições se fundiram numa só, emprestando certa medida de credibilidade maciça à perspectiva de reconstrução abrangente de Estados (e mesmo de sociedades e de economias) para adequar-se às demandas da verdadeira crença sem superstições. Cada uma dessas tradições sublinhava algo que claramente aconteceu entre 1789 e 1794. Mas nenhuma delas explicou, de maneira plenamente convincente, por que deveria ter acontecido como aconteceu e, portanto, as duas deixavam um largo espaço para o enorme repúdio da legitimidade ou racionalidade da Revolução, que viam em sua inteireza como um único e medonho erro político, ou um crime indefensável contra a humanidade. Mas a inadequação explicativa de cada tradição e a manifesta dificuldade de harmonizá-las também deixava em aberto uma conclusão essencialmente oposta, que via a Revolução não como a operação predestinada de suas limitações inerentes, mas, em vez disso e acima de tudo, como uma falha de clareza e resolução políticas, agravada por puro azar. O quadro retrospectivo de um ancien régime estruturalmente vulnerável, não só em sua posição estratégica e fiscal, mas também em suas crenças constitutivas, na organização econômica flagrantemente desigual e em crueldades sem sentido, corroído por gerações de interrogações cada vez mais esclarecidas e audaciosas, e derrubado pela ousada confrontação popular, comprovou a base de tal desafio e reforçou o ímpeto para exigir contas à monarquia restaurada.

Em retrospecto, tanto os amigos como os inimigos da Revolução discordavam duramente em relação à contribuição do esforço político consciente para ameaçar a velha ordem ou intensificar o penoso conflito que se seguiu à sua queda. A casuística de atribuir a responsabilidade pela sujeira, sofrimento e brutalidade que banhou as duas revoluções percorreu incansavelmente várias gerações e mesmo hoje está longe de ter terminado. Boa parte da história do pensamento político ocidental, nestes dois séculos, foi dirigida pelas vorazes demandas dessa casuística, a qual exigia que cada Estado incluído na esfera do interesse europeu (até bem recentemente, a maior parte do mundo com exceção das Américas) demonstrasse sua estrutura e seu principal propósito constitutivo à imagem dessas duas grandes convulsões. Por aproximadamente meio século, depois da Segunda Guerra, mesmo os Estados Unidos da América, até então animadamente auto-suficientes e ansiosos em manter a Europa a uma distância respeitosa, viram-se na desagradável situação de também ter de fazer isso. O fundamento dessa demonstração poderia, em princípio, ser simples ou infinitamente complexo. Mas os requisitos retóricos e imaginativos da política favorecem drasticamente a simplicidade e excluem toda tendência a escapulir-se para o infinito. O resultado, corretamente previsto por Edmund Burke mais ou menos desde o começo (Burke, 1989), foi uma escolha, imposta pelo contexto, entre duas maneiras de ver a revolução como um bloco, com a opção mais atraente do ponto de vista intelectual e mais prudente do ponto de vista político de vê-la como uma infinidade desestruturada de opções e decisões inteiramente contingentes, às vezes quase submersas durante décadas. Em caricatura familiar, a escolha politicamente disponível e pertinente estava (como esteve muito antes que cada uma se manifestasse) entre dois projetos fortemente colidentes. O primeiro exigia uma defesa intransigente do ancien régime em sua inteireza, um amplo repúdio das pretensões da razão humana de torná-lo melhor, e um resoluto compromisso de restabelecê-lo o mais completa e rapidamente possível. O segundo reclamava o término sistemático e amplo da reconstrução que a Revolução lançara, a fim de que o resultado atendesse plenamente às exigências da razão humana e eliminasse os vastos resíduos de crenças falsas que seu fracasso temporário havia deixado para trás. O terceiro excluído, toda a superfície da detalhada reforma institucional ou da engenharia social gradual (como Karl Popper mais tarde a chamaria), naturalmente conservava um vívido apelo político para governos em exercício e para elites emergentes que viam oportunidades reais de desafiar tais governos, sempre que estes se mostrassem mais ou menos capazes, na expressão de Lenin, de "continuar à moda antiga" (Lenin, 1947, II, p. 621), ou houvessem encontrado uma base aceitável que lhes permitisse ceder terreno a seus adversários.

Sob o olhar severo de dedicados revolucionários ou contra-revolucionários, tais regimes viviam no equivalente histórico de um paraíso dos tolos, ilusão transitória que só poderia ser resolvida em uma direção ou em outra. Mas a seus próprios olhos, naturalmente, esses regimes só pareciam historicamente afortunados, fosse por feliz e mais ou menos imemorial herança nacional, como a Grã-Bretanha gostava de pensar a si mesma, fosse por habilidosa, brava e oportuna autoconstrução, como ainda preferem os Estados Unidos (com alguma razão) (Dunn, 2008).

É possível observar as três opções pelo mundo a partir de 1789, mudando constantemente de contorno, conforme se movem ao longo do tempo de um cenário a outro. Até em 2007, mesmo na República Popular da China tornou-se um pouco claro que a terceira opção, a via da reforma gradual numa direção não muito definida, mas com olhos sempre atentos para o insucesso, sobreviveu melhor. No entanto, agora é tarde demais para a China simplesmente seguir esse caminho, e não é nada claro, nem mesmo para as autoridades atuais, o que significa até mesmo tentar fazer isso - assim como seria irresponsavelmente prematuro fazê-lo em ancien régimes remanescentes (como o Reino da Arábia Saudita) que só parecem capazes, por ora, de continuar à moda antiga.

Com uma ligeira estilização, portanto, é possível ver o desfecho da grande Revolução Francesa como um conflito entre três tradições, cada uma com suas próprias forças e fraquezas, e todas com potência histórica bastante variada ao longo do tempo e de um lugar a outro. Duas se organizaram em torno e por meio de sua interpretação de revolução, e retiram sua orientação primária de seu apoio ou rejeição. Por mais oportunista ou implacável que tenha sido a condução de sua política, cada uma dessas tradições, ao menos, baseava em princípios suas coordenadas características, e sua única alternativa era empregar revolução como categoria fundamental de julgamento político. Somente a tradição - promíscua, embora atenta - de reforma poderia rebaixar a estatura da revolução, qualificando-a como resultado de erro político gratuito (ainda que surpreendente) por parte dos detentores do poder, ou catástrofe ilogicamente sofrida por seus infelizes súditos. Vistas com generosidade, as tradições da revolução e da contra-revolução eram cosmopolitas e definidas por seu compromisso, enquanto a tradição da reforma promíscua era cosmopolita apenas em seu desencanto e baseada nos princípios, quando muito, da escolha pessoal contingente. Essa é certamente uma cartografia política pré-Fukuyama (Fukuyama, 1992), mas tem a virtude de captar, mais do que ele, aquilo que vem acontecendo na política global desde 1789.

Em que pé fica, então, a revolução como categoria de julgamento político para o mundo que hoje habitamos? Certamente devemos, do meu ponto de vista, continuar a aceitar como um dado a suspeita de que de fato houve revoluções (as que dizem ter ocorrido não foram sempre miragens, nem conceitualizações incorrigivelmente incompetentes sobre fenômenos associados de maneira arbitrária, suscetíveis de uma apreensão muito melhor em termos bastante diferentes). Houve uma revolução na França em 1789 e não simplesmente porque essa foi a maneira pela qual ela escolheu se batizar. Houve uma revolução na Rússia em 1917, como quase tinha havido em 1905. Houve uma revolução na China, no mais tardar em 1949 (ver enfaticamente Skocpol, 1979). Eu diria também, de modo um tanto desconcertante, que houve uma revolução no Irã em 1979. Com base nessa premissa, também houve muitas outras revoluções, possivelmente antes de 1789, intermitentemente entre as duas datas, e certamente depois de 1949. As perguntas em que se deve insistir não são: quantas revoluções houve até hoje? Quais são as candidatas mais claras e as menos claras a essa denominação? Ou mesmo: quais são exatamente os critérios para decidir se um certo episódio histórico é de fato um caso de revolução (por mais imperfeita que esta última pergunta decerto seja para propósitos acadêmicos)? A pergunta em que devemos insistir é: excluída a autodenominação histórica, o que exatamente nos leva a caracterizar pelo menos os três primeiros exemplos como revoluções? É uma questão difícil de responder com rapidez, e é provável que não possa ter uma resposta definitiva. Mas é uma questão real, e a resposta a ela ainda tem uma grande importância política. Muitas coisas continuam a depender dela.

Eu diria que o caráter obrigatório da categoria revolução deriva de algo que os três primeiros episódios claramente tinham em comum, e do qual o quarto possivelmente compartilha: a presença de um ancien régime bastante definido (claramente de antiguidade muito variante), o extenso colapso dessa velha ordem, pelo menos em certa medida por causa do ataque direto de seus próprios súditos, e um projeto sustentado, dinâmico e culturalmente abrangente para a construção de uma nova ordem, sancionado por concepções muito exigentes e explicitamente ecumênicas de legitimidade (Dunn, 1972, 1990). A situação um pouco anômala da revolução iraniana, segundo esses critérios, surge pelo menos em dois aspectos bastante dissociados de sua relativa falta de compromisso com a reconstrução econômica. A monarquia Pahlavi era um regime bastante arrivista de acordo com os padrões dos Capetos ou da dinastia Romanov, sem mencionar os estabelecidos pelo extraordinário império chinês. Se a fissura entre o islamismo suni e shiah não houvesse limitado a ressonância ecumênica da República Islâmica do Irã, sua origem legitimadora a teria prontamente ignorado, numa improvisação teológica quase extravagante1 1 Para muitos, então e desde então, as ações de Lenin em 1917 beiram a improvisação extravagante (ou inteiramente inescrupulosa). . (Na revolução, como na política em geral, nada tem tanto sucesso quanto o sucesso.) É óbvio que não vem ao caso o fato de as revoluções da França, Rússia e China adotarem uma posição consciente no interior de uma linhagem racionalizadora de procedência indiscutivelmente européia, enquanto a do Irã, enfaticamente, não a adotou.

Tanto o limite como a capacidade organizadora da categoria revolução derivam de sua associação de dois elementos, com ritmos políticos muito diferentes: uma passagem intensa e, às vezes, notavelmente rápida, de colapso do regime, muitas vezes iniciada e sempre em certa medida concluída por ação de massa de organização variada, e um episódio muito mais longo e, em geral, mais árduo de tentativas de reconstrução a serviço de exigentes ideais de bem-estar e aspirações políticas, econômicas, sociais e mesmo espirituais, sempre empreendida em face da presença de uma hostilidade profundamente sentida em relação aos resíduos do antigo regime (às vezes uma grande maioria da população, como, de maneira importante, no México; Dunn, 1972, cap. 2) e, freqüentemente, em condições de agudo medo racional e profunda privação material para um número imenso de pessoas. O que torna a política da revolução ao mesmo tempo tão evocativa e tão ameaçadora é o selvagem casamento arranjado (ou a ostensiva incompatibilidade) entre os requisitos para a segunda (o mergulho reconstrutivo) e as oportunidades oferecidas pela primeira (o colapso do regime e o caos que se segue em seu rastro; Dunn, 1980 e 2007).

É uma questão interessante (embora um tanto abstrata) por que alguém teria algum dia pensado que a primeira fornecesse condições propícias para a segunda. Se a consideramos com uma certa abstração, imediatamente vemos por que alguns se sentiram inclinados a procurar características das tradições religiosas formadoras das sociedades em questão (por mais cognitivamente metamorfoseadas que tenham sido ao longo do tempo) para uma resposta: a busca do milênio, o messianismo político. Mas o messianismo inadvertidamente ecoa o julgamento histórico e político da contra-revolução num grau imprudente. E considera que o processo de aversão a um ancien régime, processo cumulativo, mas descontínuo e infinitamente disperso, seja de algum modo integral e predestinado a terminar num cambaleio gratuito e inteiramente incontinente para o desconhecido, e não como um espaço de julgamento político não mais intrincado, nem necessariamente mais incapacitante do ponto de vista cognitivo, do que a infindável quase estagnação da política rotineira, sempre e em todos os lugares. Considerar que a estrutura da escolha política em situações potencialmente revolucionárias se situe apenas entre o imobilismo e a histeria religiosa secularizada é tão supersticioso como Joseph de Maistre e Louis de Bonald em seus aspectos mais repulsivos, sem ao menos iluminar a psicodinâmica da imprudência política.

Uma compreensão muito mais aguda do que se passou é fornecida pela antiquada historiografia política das Revoluções, com sua ponderada dispersão da atenção pelas seqüências mediante as quais, e das situações em que, os julgamentos dos principais atores políticos eram feitos às claras, a limitada informação e os modestos recursos analíticos à disposição da maioria deles, a hesitante direção das tradições políticas nas quais e pelas quais haviam formado esses julgamentos, e o desafio, algumas vezes esmagador, das situações que eram obrigados a enfrentar. Qualquer um que julgue trilhar pelas Revoluções Francesa ou Russa como seqüências de experiência política de um grande número de atores, dos quais alguns conhecemos bastante hoje, certamente deparará com julgamentos confusos e com uma pletora de crenças excessivamente irrefletidas. Mas também encontrará uma quantidade muito maior de julgamentos prontamente inteligíveis e muitas vezes bastante razoáveis sobre o que estava acontecendo e quais eram as opções reais para prosseguir de maneira razoavelmente ordeira a partir dos pontos já alcançados. A duras penas encontraríamos um único caso na grande Revolução Francesa em que uma figura parecesse ter tido uma visão sóbria, sinóptica e estrategicamente esclarecedora do que a revolução implicava desde o início (Sieyès seria provavelmente o mais forte nome: Forsyth, 1987; Sieyès, 2003); e, mesmo no caso da Revolução Russa, em que todos os principais atores do lado revolucionário (se não do contra-revolucionário) tinham a tentação, não só intelectual, mas também política de reivindicar a perspectiva divina do que estava em curso, está longe de ser claro, olhando retrospectivamente, que algum dos envolvidos tenha alcançado um alto grau de clarividência política quanto a isso. No registro histórico, a revolução tem um ponto de partida na rejeição e no repúdio, mas permanece duvidoso que ela tenha uma linha de chegada em qualquer coisa que não seja a pura lógica do desejo. As impressionantes estruturas interpretativas que os europeus desenvolveram a partir das lições geradas pela experiência da França, e que boa parte do resto do mundo desde então retrabalhou com tanta inventividade e demora, procuravam acima de tudo captar uma lógica transparente ou mesmo uma fatalidade já garantida, que ligasse o movimento de repúdio decisiva e confiavelmente a um destino muito mais atraente. Durante grande parte do período desde 1789, e é razoável dizer que até 1989, o modo mais plausível de providenciar essa ligação foram as duas fórmulas do Abade Sieyès, a arte ou ciência social, e o socialismo (Guilhaumou, 1998; Hont, 2005; Sonenscher, 2007). Hoje as duas fórmulas sucumbiram, se não à resistência política dos antigos regimes em pessoa (à contra-revolução), pelo menos às formidáveis capacidades coercitivas do capitalismo global. Tudo o mais que se pode dizer sobre cada uma delas hoje (e não há como resumir a infinidade de julgamentos potenciais que cada uma delas abriu), o que hoje é claro como a luz do sol, é que nenhuma delas oferece uma fórmula para a completa decretação revolucionária: a passagem da prolífera desintegração do regime para a alvorada, qual fênix de uma era muito melhor. Nenhuma delas chega nem sequer a mostrar que, e muito menos como, uma ordem inteiramente nova pode vir a existir a partir das ruínas da velha.

O papel do revolucionário profissional nasceu como um agente para completar uma tarefa política já drasticamente inaugurada; e a convicção que ele precisava para consolidá-la e mantê-la em forma proveio do animado ímpeto da Revolução Francesa. Mas nos dois séculos que se seguiram a essa convulsão, o papel viajou por toda parte, e veio a ser em muitos lugares e em muitos momentos de um empreendedor tanto do início como da conclusão. Duvido muito que ele conserve algum magnetismo real como agente de conclusão, seja sob a égide da ciência social, do socialismo ou mesmo, ai!, da realização islâmica (uma visão de chegada mais antiga e ainda mais torturante, muito mais peremptória na especificidade e talhada com base na aversão a um regime de fato muito antigo e desordenado). Como modelo e plano para atacar regimes, ele claramente conserva um poderoso apelo numa grande variedade de situações, embora seja incerto que ele, nessa roupagem, não se misture inconsútil a outros papéis, inclusive o de terrorista global (se é que esse é mesmo um papel).

Desde 1789, esse papel atraiu a suas bandeiras um enorme número e uma desconcertante variedade de homens e mulheres, alguns de aguda inteligência política, alguns de audácia carismática, alguns de inspiradora generosidade de espírito, e outros, o que não é surpreendente, com poucas ou nenhuma dessas belas qualidades, e muitas outras bem menos cativantes. Como agente iniciador, ele nunca realmente precisou de um plano - apenas aversão mais ou menos centrada no que aí está, e a coragem de atacá-lo em pessoa e estimular outros a se juntarem a ele. Nessa roupagem, tudo o que realmente se exige é uma capacidade de oportunismo bem desenvolvida ou, em termos mais neutros, certa medida de talento político. Mas seus formidáveis poderes de recrutamento ao longo desses dois séculos e o caminho que marcou na história política do mundo moderno não se devem apenas às carreiras que ele abriu ao talento político e à vida sem enfado. Devem-se, pelo menos na mesma medida, ao canto de sereia da conclusão: a promessa de um futuro transcendentalmente melhor, já vivo e plenamente formado no interior das misérias do presente.

Por mais de um século depois de 1794, não havia prova sólida de que o papel de revolucionário profissional, o pressuposto da revolução como vocação pessoal e modo de vida completo por um grande conjunto de indivíduos, tivesse a mínima conseqüência histórica ou política. Importava certa medida de glamour à la Byron ou Shelley àqueles que resolveram assumi-lo, e mais do que sugestão de ameaça aos defensores da velha ordem de Metternich em diante. Mas ao longo da primeira metade de sua duração histórica, nunca foram os revolucionários profissionais que derrubaram um regime, muito menos o mantiveram assim para sempre. Durante algum tempo, o que conferiu força histórica mundial aos revolucionários profissionais e mostrou que, no lugar e no momento certos, diante (se quisermos) do elo mais fraco, eles podiam mudar o curso da história numa escala imensa, foi a chegada dos bolcheviques ao poder em 1917. O que disseminou essa lição por bem mais que meio século e despertou incessantes esforços para imitá-la, foi uma descoberta sobre a crescente vulnerabilidade de diferentes tipos de regime, especialmente no xeque-mate da Guerra Mundial (Dunn, 1980). É muito difícil saber quanto do impulso para imitá-la veio da expectativa de conclusão (da realização revolucionária), mesmo sob o questionamento mais detalhado, e talvez isso não esteja nem mesmo determinado como questão. Podemos estar certos de que no total foi bastante substancial.

Temos todas as razões para confiar em que a vulnerabilidade dos regimes continue generalizada. Não há uma razão sólida, a meu ver, por que qualquer possível forma de regime possa ser considerada imune a ela para sempre, de modo que o projeto de derrubada está ainda bem vivo, havendo todas as razões para esperar que mantenha seu apelo, até e mesmo sua perspectiva intermitente de eficácia, num futuro qualquer que possamos coerentemente imaginar. Menos plausível é que o projeto de conclusão ainda mantenha seu encanto. Se não conseguir mantê-lo, isso marcará o dobre de finados de uma forma singular de comunidade política, uma contraparte sombria e secular da Civitas Dei, mantida unida, ainda que precariamente, pelo esquivo objeto de seu amor comum, que se estendeu por todas as épocas desde 1789. Em situações particulares e durante algum tempo, esses laços imaginários podiam e, às vezes, chegaram a alcançar, pelo menos espasmodicamente e muito além das fileiras dos revolucionários profissionais, milhares de pessoas esforçando-se para reconstruir suas vidas despedaçadas. O surgimento e desaparecimento desses elos de solidariedade constituiram não só um aspecto da história da revolução, como a brutal pragmática da ruptura e nova subjugação do Estado na sua esteira. Se no futuro existirem episódios que necessitem a categoria revolução, será porque eles também trazem à tona essa solidariedade numa escala de massa e as mantêm por períodos significativos de tempo. É difícil ver como poderiam fazer isso sem uma visão crível de conclusão. Se ela se mostrará disponível, teremos de esperar para ver.

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    Traduzido por Plínio Dentzien. Nossos agradecimentos à revisão de Eunice Ostrensky.
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    Para muitos, então e desde então, as ações de Lenin em 1917 beiram a improvisação extravagante (ou inteiramente inescrupulosa).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Abr 2009
    • Data do Fascículo
      2008
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