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Reabilitando Virgínia Leone Bicudo

RESENHA

Reabilitando Virgínia Leone Bicudo1 1 Resenha de Virgínia Leone Bicudo, Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo (São Paulo: Editora Sociologia e Política, 2010)

Mário Augusto Medeiros da Silva

Inédita durante sessenta e cinco anos, após ter sido defendida na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo [ELSP], sob orientação de Donald Pierson, a dissertação de mestrado de Virgínia Leone Bicudo, intitulada originalmente Estudos de Atitudes de Pretos e Mulatos em São Paulo, vem a público, no centenário de seu nascimento, em um elegante e bem documentado livro organizado por Marcos Chor Maio, pela Editora Sociologia e Política. Aos interessados nos estudos das relações raciais no Brasil, bem como da história das Ciências Sociais em São Paulo, é dada oportunidade de conhecer um trabalho pioneiro e original, o primeiro sobre o assunto no país, guardado desde 1945 nos arquivos da agora Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo [FESPSP].

Alguns dos principais estudiosos contemporâneos daquelas áreas, como Antônio Sérgio Guimarães, Elide Rugai Bastos, Joel Rufino dos Santos, Mariza Corrêa, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e Peter Fry, assinam prefácio e comentários sobre a trajetória e importância do trabalho. Além disso, anunciando a pluralidade de interesses da autora em tela, Maria Ângela Moretzsohn e Maria Helena Teperman, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, evidenciam a contribuição decisiva da socióloga e psicanalista Virgínia Leone Bicudo para os campos de estudo a que se dedicou até seu falecimento, em 2003.

Antes de comentar a obra, é necessário pensar, no entanto, as razões para tanto tempo em espera, bem como por que gerações de pesquisadores e ativistas das relações sociais racializadas desconheceram e/ou não citaram a pesquisa de Bicudo. Por que Virgínia Leone Bicudo não foi lida? Por que, para várias gerações de cientistas sociais, historiadores, intelectuais negros e militantes da questão racial ela é uma ilustre desconhecida? Por que somente 65 anos depois que autora defendeu seu mestrado, ele é publicado? Ou 63 anos depois de seu artigo (BICUDO, 1947) na revista Sociologia? Por que a autora não quis/não pôde publicá-lo antes? Ou seus pares contemporâneos não o fizeram? Por que passados sete anos de sua morte (2003) e no ano de seu centenário de nascimento, somente a Sociedade Brasileira de Psicanálise e a Fundação Escola de Sociologia Política, em 2010, lhe rendem homenagens? Por que, quase concomitantemente à fatura de sua dissertação, a autora migrou de área, da análise social para a Psicologia Social e Psicanálise?

Quem foi, o que fez, afinal, essa intelectual? Mulher negra ou mestiça, com tons de pele mais claros ou escuros (dependendo da técnica empregada na revelação e dos contextos intelectuais e sociais em que foram tiradas suas fotografias), como foi possível Virgínia Leone Bicudo, filha de migrante italiana e pai negro, funcionário público, moradora da operária Vila Economizadora, no contexto acadêmico dos anos 1930-40 da capital paulista? E por que, ao lado de Aniela Ginsburg, ela é um dos nomes femininos menos lidos e mencionados do relatório da Pesquisa Unesco em São Paulo, juntamente com Oracy Nogueira, todos oriundos da ELSP?

Algumas respostas a essas questões encontram-se na apresentação de Chor Maio, bem como no trabalho de pesquisa documental e iconográfico, registrado ao fim do livro, expondo fotos e informações acerca da família Leone Bicudo, da trajetória pessoal e profissional da socióloga e psicanalista, ou como divulgadora científica e uma das fundadoras da Sociedade Brasileira deste último campo no país.

Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo situa-se num contexto interessante: mestrado realizado entre 1941 e 1944, antes que pesquisas hoje mais conhecidas se tornassem clássicas e citações obrigatórias para a área de estudo das relações raciais. Nenhuma menção a Bastide, por exemplo (embora o autor já tivesse publicado artigo sobre a "Poesia Afro-Brasileira em São Paulo", em 1943 [1973]); a menção a Gilberto Freyre se dá a Sobrados e Mucambos, especialmente o capítulo sobre a "Ascensão do Bacharel e do Mulato"; referente a aspectos da questão racial, nessa época, Florestan Fernandes ainda estava finalizando seu estudo monográfico sobre o culto ao líder negro religioso João de Camargo, em 1942, não podendo ser mencionado.

Quem são, então, os interlocutores privilegiados de Bicudo? Robert Park, Everett Stonequist, Ellworth Faris, Donald Pierson; Freyre e Oracy Nogueira (este último seu colega na ELSP e que havia publicado artigo sobre os anunciantes paulistas e as atitudes desfavoráveis em relação aos homens de cor, em 1942). Eles se situam, majoritariamente, numa bibliografia internacional, fundadores e interlocutores da Escola de Chicago, de onde ela construirá seu plano de trabalho e hipóteses, com proposições metodológicas e analíticas que se discutirão a seguir.

Bicudo não privilegia uma análise das relações sociais estruturadas na construção que os grupos sociais forjaram nos processos da história sociopolítica brasileira e suas instituições; ao contrário: opta por pensar no registro da socialização do quotidiano das relações raciais. Os processos educacionais e seus ambientes (familiares e escolares); os constrangimentos das trajetórias pessoais e os destinos sociais de seus entrevistados; os contatos estabelecidos pelos sujeitos na rua, na cidade, em interações privadas e públicas (casas de famílias, escritórios, cafés, cassinos, bailes, festas, etc.); as estratégias afetivas e matrimoniais, visando fortalecer o grupo ou anulá-lo (casamentos para escurecer ou branquear a raça); as percepções acerca dos sentimentos de beleza, dos afetos, do sofrimento, de inferioridade ou igualdade; os bons e maus modos, públicos e privados, etc.

Parte, assim, da esfera micro para o macro, sem perder de vista o sujeito social. Numa de suas primeiras afirmações, ela diz: "As atitudes sociais expressam o aspecto subjetivo da cultura e conduzem ao conhecimento das condições sociais que concorreram para sua formação" (BICUDO, 2010, p. 63). E, pensando com Park, "as mudanças sociais começam com as mudanças nas atitudes condicionadas pelos indivíduos, operando-se posteriormente mudanças nas instituições e nos mores" (BICUDO, 2010, p. 64).

Nessas duas afirmações, estão contidos muitos dos elementos norteadores do texto. Bicudo, ao pensar em atitude, pensa na construção do sujeito social, que contém em si o indivíduo. Este entrevistado, muitas vezes, possui autopercepção de estar à parte de seu grupo social ou querer dele se distanciar (especialmente entre os estratos inferiores, mas também entre os mais graduados). Entretanto, na correlação entre a atitude e mudança social, a pesquisadora suscita, sem afirmar explicitamente, a possibilidade de que, com a análise das construções sociais das atitudes individuais, seja possível pensar numa mudança social mais ampla. O uso que faz de suas entrevistas, com 30 indivíduos, é algo muito importante e estruturante de seu trabalho. Ela deixa o sujeito social falar - o que não significa dar-lhe voz, pois ele já a possui - para que ele enuncie, clara ou obscuramente, a construção social da qual faz parte.

Essas entrevistas encenam outro registro importante, dando ao estudo uma dimensão analítico-comparativa distintiva. A autora situa os pretos e mulatos nos estratos inferiores e intermediários, além daqueles organizados em torno de uma Associação de Negros Brasileiros. Com isso, consegue expor um panorama sobre a situação social dos descendentes de indivíduos escravizados, os filhos e netos dos últimos cativos, pouco mais de meio século depois do fim da Abolição. Os entrevistados são nomeados como Casos e numerados progressivamente. Interessante notar que ocupam a maior parte das páginas os casos referentes aos pretos de classes sociais intermediárias, estando aí os casos 8 e 9 como grandes narrativas do processo de conscientização do negro acerca da necessidade (e dos perigos) de lutar contra o problema racial; bem como, os casos dos mulatos de classe social intermediária. Ambos com seus dilemas e trajetórias, truncadas e limitadas, vividas objetivamente.

Revelam-se nos casos o drama do ajustamento do negro e do mestiço à nova ordem social pós-Abolição. Vivido no quotidiano, socializado nos contatos entre os indivíduos, estruturam suas percepções sobre o futuro de seu grupo social e seu próprio destino pessoal. Para alguns, a saída será admitir o aspecto socialmente imposto da inferioridade do negro e tentar burlá-la, assumindo padrões atribuídos pelo branco para o negro; outros optarão pelo isolamento dos contatos sociais, seja entre pretos, mestiços e brancos, por manter aspectos de rivalidade com os primeiros e hostilidade com os segundos; haverá, ainda, estratégias dolorosas de ajustamento, como a autonegação, o constrangimento e controle social que normatizem as possibilidades de relações afetivas, matrimoniais e de descendência; ou a percepção de que, por mais que se esforce e lute, objetivando a integração, o negro e o mulato jamais seriam iguais ao branco, ainda que possuíssem os mesmo diplomas, a mesma formação e aparentemente fossem portadores dos mesmos direitos sociais, resultando daí as mais diversas soluções, particulares ou coletivas: angústia, depressão, alcoolismo, morte, indignação, revolta, associativismo, protesto e luta social, etc.

As entrevistas constituem, assim, ponto alto do trabalho de Bicudo. Demonstram que os indivíduos pretos e mulatos possuem lugares e identidades pré-estabelecidos fixamente no espaço social, mas que são sujeitos sociais fora de lugar, paradoxalmente, ao tomarem consciência disso. Antecipa e confirma, destarte, em 37 anos, a discussão da intelectual negra Lélia González sobre o Lugar do Negro (1982). A nova ordem social, tal como se apresenta não lhes absorve em massa e nem lhes é satisfatória individualmente. As atitudes que empregam para se ajustar a ela possuem eficácias limitadas, individual e coletivamente. Outro fato interessante é a preocupação da autora em procurar pretos e mulatos nos estratos intermediários, evidenciando suas posições de chefia, seus diplomas de cursos superiores; o papel que a trajetória escolar até o nível médio (ou em nível superior, nas profissões liberais dos dentistas e advogados) e o funcionalismo público possuíram na ascensão social desse grupo. Trata-se de uma constatação analítica de suma importância para os estudos das relações raciais posteriores, pois permite caminho alternativo à estereotipia comum da trajetória do grupo social negro brasileiro e abre trilhas para a discussão das organizações sociais no meio negro, protagonizadas pelos indivíduos desses estratos.

A autora não menciona os nomes verdadeiros de seus entrevistados, tampouco da Associação de Negros Brasileiros e seu jornal, Os Descendentes de Palmares. Ela afirma, em nota de rodapé sobre os últimos dois: "Por razões óbvias, o nome da Associação e o título do mensário são fictícios" (BICUDO, 2010, p. 124). Embora técnica e politicamente esteja correta em não mencionar o nome de seus entrevistados (em função da relação pesquisador-pesquisado, das opiniões emitidas e dos constrangimentos possíveis, além de ainda estar vigente o Estado Novo), não é demais lamentar, para a posteridade, esse fato. Explica-se: as trajetórias negras e mestiças são, em geral, extremamente lacunares. Pesquisadores sabem das dificuldades em se conseguir referência a nomes completos, acessos a arquivos, estudos familiares, citações biobibliográficas corretas sobre sujeitos sociais negros até os anos 1960. Virgínia Leone Bicudo construiu um mapa formidável de indivíduos, jovens, maduros e idosos. Quais seus nomes? Quem foram eles? Que destinos tiveram seus descendentes? Que decorrências tiveram, nos anos seguintes, suas atitudes de ajustamento à nova ordem social? Parafraseando Jean-Paul Sartre, no prefácio que escreveu a Frantz Fanon, o que fizeram com o que foi feito deles?

Em relação à Associação e seu jornal, a autora possui um mérito que precisa ser enunciado e reconhecido. Para isso, no entanto, é necessário trair sua confiança e nota de rodapé. Virgínia Leone Bicudo é, salvo melhor juízo, a primeira pesquisadora a evidenciar uma associação reivindicativa de negros e seu jornal em São Paulo. O importante e clássico artigo sobre "A Imprensa Negra do Estado de São Paulo", de Roger Bastide, onde o autor trabalha essas dimensões, de 1915 aos anos 40, seria publicado somente em 1951, na revista Sociologia (e republicado em 1973). Além disso, a Associação sobre a qual a professora Bicudo discute inicia suas atividades em 1931, transformando-se posteriormente em partido político, fechado pelo golpe do Estado Novo, de Novembro de 1937. Essas e outras pistas presentes nas falas dos entrevistados esclarecem, como demonstram os comentadores do livro, que Virgínia Leone Bicudo manteve contato, entrevistou e estudou com detalhes os militantes da Frente Negra Brasileira [FNB] e seu jornal A Voz da Raça.

Isso confere à autora, infelizmente de maneira póstuma, o mérito de ter conhecido, valorizado e discutido, em primeira mão, uma das mais importantes associações negras paulistas e brasileiras do século XX. Bicudo conferiu importância semelhantes ao ativismo e associativismo negro paulista, ao que, alguns anos mais tarde, Roger Bastide e Florestan Fernandes dariam em suas análises. E ela evidencia o surgimento daquele negro de novo tipo, reivindicativo, questionador, que ocupa os espaços do centro da cidade (como nos casos da Rua Direita) e não quer ser lembrado como o preto submisso; negro de novo tipo este tão criticado por Paulo Duarte, em 1947, nos seus já famosos artigos "Negros do Brasil", discutidos por Elide Rugai Bastos (1988). O mesmo Duarte que seria, anos depois, um dos animadores da Pesquisa sobre relações raciais no Brasil, de acordo com o trabalho de Chor Maio (1997). Paulo Duarte publicaria em sua revista Anhembi, inclusive, no relatório da pesquisa, estudo de Bicudo, intitulado Atitudes dos alunos dos grupos escolares em relação com a cor dos seus colegas (1953), fruto de outro aspecto de seu mestrado.

As qualidades do estudo suscitam, ainda, outras questões. Primeiro: Virgínia Leone Bicudo, refletindo sobre as atitudes de pretos e mulatos, discute o indivíduo e o sujeito social, do âmbito psicológico e das relações sociais. Faz isso, como visto, entre 1941 e 1944, defendendo sua tese em 1945. Se, no título da dissertação e livro, aparecem explicitamente o mulato e o preto, vale dizer que o branco é um personagem oculto, mas um ausente extremamente presente. Discutir as atitudes de pretos e mulatos, norteado pela ideia de mudança social, significa também discutir o branco, suas atitudes e pensar em mudá-lo, bem como as instituições e processos sociais que brancos, negros e mestiços forjaram.

Foi o branco quem escravizou o negro, foi ele quem o classificou como social e racialmente inferior, quem lhe conferiu e o fez embutir uma série de estereótipos negativos, quem orquestrou uma Abolição complicada e quem, na nova ordem social, lhes impõe lugares delimitados. São o negro e o mestiço quem têm que se haver com a criação das categorias do branco, quem têm de lidar com seus destinos e operar social e mentalmente com os processos e categorias coletivas que lhes foram impostas, como ela afirma em, ao menos, dois momentos: "Com mentalidade formada pelo branco, o preto desenvolve o auto-ideal de branco, que não se expressa abertamente no desejo de ser branco" (p. 97). E: "o preto e o mulato têm concepção desfavorável de si mesmos, como reflexo da concepção do branco para eles, dada a influência dos contatos primários, principalmente da infância" (BICUDO, 2010, p. 159-160). Geram-se, para o negro, atitudes positivas ou negativas a partir disso e ele que tem que pensar em forjar os seus líderes, intelectuais, escritores e associações, para que assumam suas tarefas em relação ao seu grupo social, contrariando os valores pré-estabelecidos.

Segundo: somente anos depois que o mestrado de Bicudo foi defendido, o psicanalista e revolucionário martinicano Frantz Fanon publicaria, em francês, seu clássico estudo Pele Negra, Máscaras Brancas, em 1952, tese de doutorado em medicina rejeitada por Lyon. Pode-se dizer, ligeiramente, que Bicudo antecipa em quase uma década uma discussão fundamental acerca dos processos sociais e dos processos mentais, o grande tema de Fanon (1983). Em Peau Noires, Masques Blancs, o autor discutirá os processos de interação entre brancos e negros, nos mais diversos níveis psicossociais, bem como o problema da colonização. Tema que seria retomado em Os Condenados da Terra (Les Damnées de la terre, 1961[1979]), enfocando questão da violência revolucionária, o racismo como produtor de uma cultura, a necessidade de se criar uma cultura antirracista e as tarefas do intelectual colonizado. Sabem-se quais foram as consequências do pensamento de Fanon: ajudou a pensar as revoltas de libertação nacionais africanas e colaborou decisivamente com a Revolução Argelina. Quais teriam ou poderiam ter sido os impactos e usos da análise de Bicudo se o seu trabalho tivesse circulado anteriormente? E ainda: qual teria sido a recepção conferida pelos militantes da associação que estudou? O que os antigos membros da FNB discutiram acerca de Estudos de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo?

Não é improvável pensar isso, já que na ELSP se encontrava o ativista e intelectual negro Raul Joviano do Amaral, antigo fundador da FNB, membro da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, amigo de militantes como José Correia Leite (1992) e de pesquisadores como Mário Wagner Vieira da Cunha e Roger Bastide, informante da Pesquisa Unesco em São Paulo e autor do livro Os Pretos do Rosário de São Paulo, em 1951[1991]. Contemporâneo a Bicudo, talvez Amaral tenha sido um dos entrevistados da autora. Que usos poderiam ter tido, então, seu trabalho para as gerações seguintes de intelectuais e militantes negros?

O penúltimo aspecto a comentar também se encontra na esfera das hipóteses e inferências. Virgínia Leone Bicudo foi uma intelectual mestiça. Quanto de reflexividade possui seu trabalho? Não se trata de fazer um exercício de jogos de espelho, mas de perguntar quanto a sua própria trajetória intelectual posterior confirma algumas das hipóteses que ela logrou formular acerca das atitudes de pretos e mulatos em São Paulo e suas formas de ajustamento à nova ordem social. Ela possuía um diploma de curso superior; provinda de uma camada social inferior, mas se encontrava, no momento da defesa da tese, numa posição intermediária; estava integrada entre seus pares, portanto. Por que não foi reconhecida? Ou foi tão pouco reconhecida nas ciências sociais? Por que optou ou teve de optar por se realizar profissionalmente em área diversa da qual se formou e investiu seus interesses iniciais? Sobre o problema da reflexividade, como lhe é de costume no texto, sutilmente ela nos alerta à segunda página de sua tese. É ainda mais incisiva na entrevista concedida a Chor Maio, parcialmente transcrita em sua apresentação, quando afirma: "Desde criança eu sentia preconceito de cor. Queria o curso de sociologia, porque, se o problema era esse preconceito, eu deveria estudar sociologia para me proteger do preconceito, que é formado ao nível sociocultural" (BICUDO, 2010, p. 23).

A autora discute se a mudanças nas atitudes individuais poderiam provocar alterações nas instituições e padrões sociais. Mudando o indivíduo, muda-se o coletivo. Há aí uma aposta interessante e democrática no aspecto cultural e na socialização do sujeito social; mas que poderia ser completada e matizada por um aspecto mais amplo, referente à efetiva análise das instituições sociais e os processos sociais que as construíram. Exemplarmente, a Frente Negra Brasileira logrou apostar na mudança do negro e do branco; todavia, seus objetivos foram sustados por uma esfera socialmente exterior, calcada na longa história política e cultural do autoritarismo institucional brasileiro, naufragando seus objetivos individuais e coletivos.

Virgínia Leone Bicudo se encontra no registro daquilo que Luiz Carlos Jackson (2001) afirmou acerca de Antonio Candido: faria parte d' A Tradição Esquecida. Com esta publicação, estão sendo reabilitadas as análises de Bicudo (e a própria autora), no campo das Ciências Sociais, possibilitando-se a reflexão sobre suas ideias, seus alcances e limites, contribuições pioneiras e de enorme importância para a área.

  • Amaral, Raul Joviano do (1991) Os pretos do rosário de São Paulo: subsídios históricos. 2Ş. Ed. São Paulo: João Scortecci Editora.
  • Bastide, Roger (1973) Estudos Afro-Brasileiros São Paulo: Perspectiva.
  • ______ e Fernandes, Florestan (2008) Brancos e Negros em São Paulo 4Ş. Ed. São Paulo: Global.
  • Bastos, Elide Rugai (1988) "Um debate sobre o negro no Brasil". São Paulo em Perspectiva, vol. 01, n. 05, p. 20-26.
  • Bicudo, Virgínia Leone (1945) Estudo de Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Dissertação de Mestrado. Escola Livre de Sociologia e Política.
  • ______ (1947) "Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo". Sociologia, volume 09, n. 03, pp. 195-219.
  • ______ (2010) Atitudes raciais de pretos e mu atos em São Paulo São Paulo: Sociologia e Política.
  • Duarte, Paulo (1947) "Negros do Brasil". O Estado de São Paulo, 16 e 17 de abril.
  • Fanon, Frantz (1979) Os Condenados da Terra 2Ş. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • ______ (1983) Pele Negra, Máscaras Brancas Salvador: Fator.
  • González, Lélia e Hasenbalg, Carlos (1982). Lugar de Negro, Rio de Janeiro: Marco Zero.
  • Jackson, Luiz Carlos (2001) "A tradição esquecida: estudo sobre a sociologia de Antonio Candido", Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, n. 47, pp. 127-140
  • Leite, José Correia & Cuti (1992) ... E disse o velho militante José Correia Leite São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura.
  • Maio, Marcos Chor (1997) A História do Projeto Unesco: estudos raciais e ciências sociais no Brasil. Tese de Doutorado. Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro.
  • Nogueira, Oracy (1942) "Atitude desfavorável de alguns anunciantes de São Paulo em relação aos empregados de cor". Sociologia, vol. 04, n. 04, PP. 328-358.
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    Resenha de Virgínia Leone Bicudo,
    Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo (São Paulo: Editora Sociologia e Política, 2010)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Fev 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2011
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