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Forças do trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização desde 1870

RESENHAS

Jesus Ranieri

Sociólogo e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp

Beverly J. Silver, Forças do trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização desde 1870. São Paulo, Boitempo, 2005, 240 pp.

Nem é preciso avançar muito na leitura de Forças do trabalho para sentir o impacto com o qual a autora expõe o texto. Ainda no prefácio (à edição brasileira), nos deparamos com a seguinte assertiva a respeito das diferentes interpretações teóricas sobre o movimento operário mundial nos anos de 1980: "Naquela época, os movimentos de trabalhadores nos países centrais [...] estavam na defensiva e, em alguns casos, notadamente nos Estados Unidos, atravessavam crises profundas. Observando esses processos, muitos cientistas sociais concluíram que a classe trabalhadora não era mais um ator social significativo, e que havia terminado o período histórico no qual os movimentos de trabalhadores foram agentes de mudança social". Ao que a autora responde dizendo que o grupo de pesquisa com o qual trabalhava na época "discordava veementemente dessa conclusão", argumentando "que esse prognóstico se devia a uma parcialidade das ciências sociais em favor dos países centrais" (p. 11). Só essa tomada de posição já mostra o quanto, na análise de Silver, podemos acreditar que a perspectiva do capital se traduz em revisão teórica, e portanto cultural, de sua própria forma de ser, do ponto de vista da possibilidade de sua realização. Mas não é só isso: o importante do texto é que, ao expor de forma contundente essa contraposição, ele nos brinda com um escopo teórico ancorado em dados empíricos que só fazem bem à teoria, que, aliás, tem lugar de sobra no trabalho de Beverly Silver como ápice de rigor interpretativo dos rumos do trabalho. E, ao mesmo tempo, a autora expõe esses conflitos teóricos todo o tempo, sempre apostando num entendimento pleno das várias interpretações reinantes sobre o mundo do trabalho. São essas interpretações, na sua diversidade, que informam um texto que tem como pano de fundo um belo exemplo do procedimento acerca do como se fazer pesquisa, algo que vem a calhar quando o objeto é, em si mesmo, o ponto de mutação da sociedade contemporânea.

O que o livro realiza, em verdade – e isso pode parecer um tanto inusitado ou mesmo fora de lugar para os parâmetros a partir dos quais um pesquisador do trabalho costuma partir –, é a interação com as chamadas categorias filosóficas fundamentais, ainda que em momento algum haja a preocupação explícita de mostrar que isso esteja sendo feito. E talvez, realmente, não haja de maneira nenhuma essa intenção por parte da autora. Dito de outra forma, o que notamos ao ler o texto é que se mantém, analiticamente, aquilo que aparece como dominante e permanente no processo de reprodução societária do homem, ou seja, a transformação de seu trabalho em fonte de riqueza para o conjunto da sociedade sob apropriação privada. Ao expor os nódulos e as relações existentes entre singularidade, particularidade e universalidade, obtém-se um panorama extremamente rico das relações estabelecidas entre capital e trabalho, mas não do ponto de vista (como a própria Beverly Silver irá insistentemente dizer) de uma generalização pronta dessa relação, mas de como sujeitos concretos, nas esferas da política, da economia e do próprio trabalho, se comportam diante de tal imbricação. Em primeiro lugar, não se trata de um texto puramente historiográfico, ainda que a relação entre título e subtítulo do livro possa nos enganar: o veio teórico tem como ponto de partida a relação social de produção do capital e seu lugar nas determinações das diferentes sociedades limitadas pelo jogo econômico e político, diante, sempre, da capacidade (ou não) da mobilização operária. Esse elemento, para Silver, é sempre fator a ser levado em conta, pois não há nenhum tipo de instauração social da luta (institucional ou não) sem que o trabalho esteja ali; como ela mesma diz: "A trajetória histórica dos movimentos operários ao longo do século XX plasmou a política global e foi por ela plasmada – em especial a dinâmica da hegemonia, da rivalidade, dos conflitos internacionais e da guerra" (pp. 24-25). Em outras palavras, o trabalho (essa categoria que sustenta a exposição de seu texto como um grande sistema) ganha absoluta centralidade, notadamente porque não é possível pensar em sociabilidade alguma sem o concurso da produção e da reprodução humanas.

Em segundo lugar, o texto também mostra claramente o quanto é difícil estabelecer, sob o rigor científico, a nova composição da classe trabalhadora, e o faz confrontando habilmente a tese do fim da centralidade do trabalho, argumento recorrente que toma o pós-fordismo como o canto da sereia do movimento operário – o dinamismo aliado à fluidez incessante do capital contrapõe concentração e centralização a novas formas de extração de excedente de trabalho vivo, o que põe à prova a possibilidade de homogeneização e identidade universal de classe, uma vez que a universalização dessa perspectiva não necessariamente segue acompanhada pela política de concessão e luta da classe trabalhadora com outras instâncias, por exemplo o Estado. Mais do que dar respostas, a autora mostra que a dificuldade no presente é lidar com a plurivocidade de um elemento cujo conteúdo exige desdobramentos na prática de sua realização. Para saber do conteúdo dessa realização, a teoria obriga-se a confrontar constantemente aquele dinamismo, e o resultado é apresentado na exata medida da organização de um método: as soluções encontradas pelo capital para a garantia de sua efetivação aparecem como dissoluções de formas anteriores de manutenção de lucratividade e, em alguma medida, as substituem. Hoje, "o sucessivo deslocamento geográfico do capital constitui uma tentativa de solução espacial para crises de lucratividade e controle", o que Beverly Silver irá chamar de solução tecnológica; igualmente, soluções desse tipo têm outros desdobramentos sempre prontos a dar fôlego e vida à dinâmica do capital, como no caso da chamada "solução de produto", quando "os capitalistas tentam aumentar os lucros e o controle não apenas se deslocando para novos locais ou transformando o processo de trabalho, mas também se deslocando para novos setores e linhas de produto menos sujeitas à competição intensa e a outros aborrecimentos". Da mesma forma, a "solução financeira" aparece quando "o capital tende a sair do comércio e da produção e migrar para as finanças e a especulação" (p. 51).

Uma vez que não é possível falar da higidez do capital sem o concurso da força viva humana de trabalho, quando a autora toca na questão da resistência operária é sintomático o espaço reservado aos resultados atingidos pela pesquisa de Marx e de como ela tem ressonâncias analíticas no contexto do mundo de hoje. A atualidade das conclusões desse autor salta aos olhos, uma vez que sua formulação sugere, em vez de uma quebra, o aumento tanto do poder de barganha no local de trabalho como do poder associativo entre os trabalhadores. Como diz Silver, "uma leitura do conjunto do volume I de O capital sugere uma progressão muito menos linear do poder da classe trabalhadora, fortemente consonante com a dinâmica contemporânea. O cerne do volume I pode ser lido como uma história da dialética entre a resistência operária à exploração no local de produção e os esforços do capital para vencer essa resistência, revolucionando as relações sociais e de produção. A cada mudança – da manufatura ao sistema fabril de maquinofatura – antigas formas de poder de barganha operário são minadas, ensejando novas formas de barganha numa escala maior e com mais potencial de perturbação" (p. 34).

Ao longo do livro, essas reflexões assumem pleno potencial explicativo, distribuindo-se pelo conjunto dos capítulos numa bem estruturada apresentação da problemática colocada: a mobilidade do capital é associada às manifestações dos trabalhadores naquele setor considerado de ponta no capitalismo do século XX, ou seja, a indústria automobilística, já que aí o capital conheceu boa parte de sua realização fundamental e, nela, o movimento dos trabalhadores e sua eficácia nas conquistas no embate com esse mesmo capital; o alcance da análise difunde-se ainda mais quando, junto com esse diagnóstico voltado à reestruturação tanto espacial como tecnológica dos processos de acumulação capitalista, a autora lembra do conflito entre manifestação operária e formação estatal, e da relação dessas com a guerra (pp. 126-127). Na verdade, as soluções que enumeramos acima aparecem, nessa dinâmica de exposição do texto, como a espinha dorsal que explica todo o movimento do qual o capital lançou mão para a manutenção de sua própria integridade como formador de riqueza e incorporador de trabalho humano. O livro conclui com a apreciação da relação entre crise financeira do final do século XX e movimento operário, sem dúvida o grande problema que a análise sociológica tem de enfrentar nos dias de hoje e que nem sempre é feito a contento, já que não é freqüente a sociologia se propor diagnósticos que estejam fora da criação de seus próprios modelos de interpretação sociológica.

O livro é, enfim, um trabalho de leitura obrigatória para todos aqueles que se ocupam dos estudos de sociologia do trabalho. E tanto mais quanto boa parte da literatura vinculada a essa área do conhecimento não necessariamente respeita as diferenças de atuação do capital segundo a sua configuração como elemento mundializado ou global. Ao tratar do futuro do movimento operário e considerar que a crença de que a classe trabalhadora deixou de ser um "ator social significativo" não necessariamente é verdadeira, Beverly Silver repõe a necessidade de ampliar a análise tanto histórica como geograficamente. O fato de incorporar em seu trabalho um leque diferenciado de países (dos Estados Unidos à Coréia do Sul; da Alemanha à Argentina) faz com que ele tenha um diferencial enorme, na medida em que permite a comparação a partir de realidades particulares na sua relação com a economia global, em vez da consideração puramente unilateral da economia dos países centrais. Como foi dito no início, a grande contribuição de Forças do trabalho é o respeito pela unidade na contradição, e esse respeito só pode ser atingido quando cada uma das determinações que compõem um ente é levada em conta. É esse o caso do livro de Beverly J. Silver, pois ele não rejeita um fato que nem sempre é lembrado quando o tema é evolução técnica do capitalismo: a fundação da reação política a partir da exploração do trabalho pelo capital. E quem vier a ler o livro terá plena visão de conjunto desse fator, pois sem ele não há perspectiva alguma de resposta alternativa ao poder, também político, do capital.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
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