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Up against the law: affirmative action and the Supreme Court

RESENHAS

João Feres Júnior

Professor de Ciência Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Iuperj

Lincoln Caplan, Up against the law: affirmative action and the Supreme Court. Nova York, The Twentieth Century Fund Press, 1997, 75 pp.

Up against the law é um livro pequeno com um grande conteúdo. Qualquer pessoa interessada na interface entre políticas de ação afirmativa e direito não deve deixar de lê-lo. O mesmo para aqueles que estudam temas mais gerais, como a judicialização da política. O livro de Caplan, contudo, extrapola o âmbito exclusivo da ciência jurídica e toca em questões muito importantes da justificação política e moral das políticas de ação afirmativa, ainda que de maneira não muito sistemática. Isso faz dele leitura de valor para qualquer pessoa interessada no tema da ação afirmativa.

Formado em Direito pela Universidade de Harvard, Lincoln Caplan é um prolífico autor de livros sobre direito e justiça. A obra em questão tem como tema principal os casos de ação afirmativa julgados pela Suprema Corte dos Estados Unidos, com destaque para Regents of the University of California versus Bakke, de 1978, primeiro sobre o assunto a alcançar o tribunal supremo daquele país. Outros casos importantes são examinados, ainda que sem o mesmo detalhe. O livro também narra a evolução da percepção social da ação afirmativa nos Estados Unidos, assim como o conflito político que se desenvolveu em torno do tema. Caplan não deixa de expressar sua posição favorável às políticas que, segundo ele, se fundamentam na tradição do pragmatismo norte-americano.

O autor mostra como a ação afirmativa tem sido o tema mais controverso na história da Suprema Corte norte-americana, comparável somente à legalidade do aborto. Essa controvérsia se expressa, entre outras coisas, na falta de consenso entre os juízes nas decisões proferidas até agora em mais de quatorze casos sobre ação afirmativa escolhidos pela casa: não raro o voto divide o tribunal ao meio, restando ao presidente ou a outro juiz o voto de minerva. Foi assim no caso Bakke e também no mais recente Grutter versus Bollinger, que tinha como objeto o programa de ação afirmativa da University of Michigan. Essa cisão espelha, segundo Caplan, uma divisão no seio da sociedade norte-americana, um verdadeiro conflito de interpretações acerca do significado e da finalidade da ação afirmativa.

É importante notar também a evolução do tratamento que a Corte dispensou ao tema. As políticas de ação afirmativa começaram a ser implantadas nos Estados Unidos já na primeira metade da década de 1960, mas demorou quase quinze anos para que o contencioso gerado por elas chegasse à Corte, período durante o qual a ação afirmativa expandiu-se do emprego público à universidade, de Washington para todo o país. Dado que nos Estados Unidos a Suprema Corte tem autonomia para escolher os casos que deseja julgar, usando para isso o critério da relevância constitucional, percebe-se que houve, senão um consenso progressista nesse período, pelo menos leniência no tocante ao tema. Isso muda já com o primeiro caso, Bakke. A Corte não somente "racha" no voto, mas também aprova uma sentença final proibindo o uso de cotas nos programas de ação afirmativa e, ao mesmo tempo, declarando constitucional o uso da raça como um critério de seleção entre vários. Daquele momento em diante a Suprema Corte tem adotado uma posição crescentemente restritiva em relação à ação afirmativa.

Os votos dos juízes no caso Bakke contêm informações cruciais sobre ação afirmativa. Primeiro, nota-se como os conservadores se apoiaram na cláusula da não-discriminação para defender a inconstitucionalidade da política. Os progressistas, capitaneados pelo juiz William Brennan, expõem claramente a distinção entre discriminação negativa e discriminação positiva, argumentando que o texto constitucional proíbe a primeira e não a segunda. Em uma variante do argumento progressista, Ronald Dworkin propõe a mesma distinção sem fazer apelo à interpretação da intenção original do legislador, uma vez que propiciar melhor emprego e formação para indivíduos de um grupo discriminado é muito diferente de, por exemplo, mandá-los para a câmara de gás.

É também no caso Bakke que o juiz William H. Renquist, no argumento de seu voto, aplica pela primeira vez à ação afirmativa o critério do escrutínio estrito (strict scrutiny) – o padrão mais estrito de constitucionalidade praticado pela Corte. Segundo esse critério, programas que violam a cláusula da proteção igual da lei (14ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos) só podem ser declarados constitucionais se cumprirem um "interesse imperativo de Estado". Em 1995, no caso Adarand Constructors, Inc. versus Pena, o escrutínio estrito já era consensual entre os juízes da Suprema Corte. Isso significa, entre outras coisas, que cabe à parte que pratica as políticas o ônus de mostrar que seu programa cumpre um interesse de Estado imperativo. Mais importante, contudo, é que, ao adotar esse critério com consistência para a ação afirmativa, a Corte assume que tal iniciativa viola a 14ª Emenda, rejeitanto, portanto, a interpretação progressista do texto em favor da interpretação conservadora, que se nega a distinguir os dois tipos de discriminação.

O livro discute ainda aspectos essenciais da justificação das políticas de ação afirmativa, como a reparação, a justiça social e a diversidade, valor esse associado pelo autor à revisão conservadora da política que se deu a partir de Bakke e à defesa recente da ação afirmativa por parte de grandes empresas e corporações norte-americanas, interessadas nessa política por razões meramente utilitárias: qualificação de mão-de-obra barata.

A narrativa que Caplan apresenta é de um país caminhando aos poucos em direção a um consenso conservador, o que significa, no fim das contas, a negação do espírito pragmático norte-americano, daquilo que Caplan define como "a expressão de um otimismo na disposição de enfrentar problemas, na atitude de construir soluções e na confiança de que esse agir faz o país mais forte". É esse pragmatismo que permitiu a alguns norte-americanos, políticos, administradores e juízes, pensar em soluções criativas para os problemas sociais de seu país, ainda que elas tivessem que estar inseridas em um arcabouço constitucional de viés liberal clássico, isto é, minimalista.

Nossa Constituição, elaborada quase duzentos anos depois da Constituição norte-americana, é muito mais extensa, pois, entre outras coisas, contém conquistas acumuladas ao longo de todo esse período de lutas pela expansão de direitos civis, políticos e sociais. Em vez de se resumir a uma série de proteções individuais (direitos civis), ela avança no campo "social", utilizando-se de uma linguagem prenhe da idéia de ativismo estatal, ou seja, de ação afirmativa. Mesmo assim, o conflito de interpretações no campo da moral e da legalidade aqui se assemelha muito ao dos Estados Unidos, pois nos dois países há gente que defende o universalismo formal da lei acima da igualdade real entre os cidadãos; que rejeita a intervenção do Estado nas relações sociais como algo moralmente perverso, mesmo que seja em benefício de grupos historicamente discriminados. Lá, contudo, essa posição é assumidamente conservadora, identificada com o Partido Republicano e, em suma, pertencente ao campo tradicionalmente chamado de direita. No Brasil, contudo, é quase unânime a rejeição desse rótulo político, ainda que não de suas posições programáticas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Nov 2006
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