Acessibilidade / Reportar erro

Aprendendo a Comprender Minha Ação numa Pré-Escola Montessoriana

APRENDENDO A COMPREENDER MINHA AÇÃO NUMA PRÉ-ESCOLA MONTESSORIANA

Vera Lagoa

Escola Jardim Maria Montessori - SP

Não seria possível esquecer as mais que justas homenagens prestadas à Professora Doutora Carolina Martuscelli Bori, quando, em setembro de 1994, recebe na Universidade de São Paulo o título de Professor Emérito. Jamais vi a Universidade brasileira cumprir um dever tão imperativo e fazê-lo com tanto entusiasmo e até unção!

Hoje, pedem a minha modesta contribuição em relação ao trabalho que, sob a orientação dessa grande mestra, pude realizar. Tentei esquivar-me, assaltada pela dúvida se teria mesmo correspondido ao esforço e tempo que em mim Carolina investiu. Depressa afasto a dúvida, movida por um sentimento maior: a gratidão.

Lembro-me de, em Ribeirão Preto, em outubro de 1994, ter sido convidada para, de improviso, saudar a Dra. Carolina. Nenhum segundo para pensar (aquilo que é transparente, brota): louvei a nota característica da Professora Carolina, aquela que sempre mais me impressionou e que parecia evidente nas "falas" e fisionomias de quase três gerações presentes - sua "tenacidade", sua incrível capacidade de enfrentar obstáculos, de seguir em frente. Não se buscando (como vejo, com tanto pesar, nas esferas universitárias) e, sim, sempre se doando.

Não é, pois, nenhuma novidade para mim o que dela ouço falarem: continua intrepidamente sua caminhada, movendo-se como uma jovem mulher, neste vasto país, acudindo a quantos sua Ciência possa ajudar.

Um segredinho: eu antevia isso. Parabéns, minha mestra!

Hoje acode-me falar da "abrangência" do trabalho de Carolina. Ela estava evidente naquele oceano de resumos de teses e dissertações, afixados no vasto salão onde as homenagens, em Ribeirão Preto, se desenrolavam. Que cenário eloqüente! E agora, permitam-me falar, considerando essa abrangência, de trabalhos dos quais Carolina é mediadora direta e de outros que ela desconhece mas que são frutos também de sua influência.

Trabalhar na linha Montessoriana já vinha sendo algo a que me dedicava há alguns anos. Podia observar que o Sistema Montessori funcionava. "Por que?" Me perguntava. Foi o trabalho de tese de doutoramento (concluído em 1973), sob a hábil e perspicaz orientação da Professora Carolina que permitiu-me descobrir, à luz da Análise Experimental do Comportamento, que princípios de aprendizagem presentes nesse sistema garantiam seu êxito.

Assim, pois, quando em 1975 é fundado o Jardim Maria Montessori (abrigando crianças de dois a seis anos de idade) o trabalho se solidifica: estava explícito, agora, o implícito embasamento do Sistema Montessori nas técnicas de Análise do Comportamento. Talvez, através de um contato especial com uma das crianças dessa instituição, consiga, o mais brevemente possível, dar uma idéia da dinâmica do que ocorreria nessa casa de educação. Reporto-me a Pedro (três anos de idade) que freqüentava o "agrupamento vertical" de aprendizes.

Bate, um dia, o menino na porta da "diretoria" perguntando:" Você não quer me convidar para trabalhar?" "E o que você gostaria de fazer?" "Quero aprender a escrever as vogais." Não frustrar o menino era imperioso. Considerar tantos pré-requisitos a serem vencidos? Ridículo. Propus:" Quer conhecer o P do seu nome?" "Quero." "Que outra letra você quer aprender?" "A letra do Rui" (irmão dele). Destaca o P e o R do escaninho. Procedo à "Seção dos Três Tempos". Pergunto se ele quer experimentar fazê-lo. Observo a segurança com que passeia os dedos indicador e médio sobre as duas letras, sobre a lixa, fazendo-o rigorosamente na orientação direcional da escrita e pronunciando os fonemas com absoluta perfeição. Repete o exercício várias vezes, sem nenhuma solicitação minha. "Agora, eu quero conhecer a letra da minha mãe (Cristina) e a da minha irmã (Juliana). A do meu pai eu já conheço. É a vogal E (Eros)". Nova apresentação. Repetição da criança que executa com seu acerto. Pede-me jogar com as quatro letras aprendidas (tal comovia no "agrupamento"). Proponho um. Solicita outros. Seu rítmo de trabalho parece inesgotável. Enfim, chega a hora do lanche. Pedro só concorda em parar porque eu (temendo uma superdose) informo que estava com fome. Ao sair disse: "Adorei trabalhar com as letras". A sessão durou cerca de 25 minutos.

No dia seguinte, Pedro volta à "diretoria", "Vamos trabalhar com as letras?" Percebo que o domínio das quatro consoantes está perfeito. Arrisco o processo de junção das consoantes conhecidas, com as vogais. A apresentação é breve, sem nenhuma palavra a não ser a do som resultante quando dois tabletes de letra, por vez, são unidos. Pedro ri entusiasmado. "Quero experimentar". E, incansavelmente, junta consoante com vogais, dizendo apenas, após cada junção de tabletes, o nome das sílabas. Quando junta C e E diz:" que". Informo apenas: "ce". O mesmo acontece com C e I, diz "qui", digo "ci". Pedro diz: "C e E, e C e I "são diferentes". Apenas concordo. Hora do lanche. Volta da porta dizendo: "As vogais são vermelhas. São cinco, mas tem sete sons. Como se chamam as letras azuis?" Informo:" Consoantes". Repete como a fixar o nome "Consoantes ... Quantas são as consoantes?" "Aqui na diretoria não há letras murais, mas na sua sala elas ficam na parede, e você pode olhar para elas e contá-las."

No terceiro dia, volta Pedro, com a informação "Contei um dez de consoantes mais oito" (Pedro estava ainda no primeiro plano do Sistema Decimal, ou seja na numeração de 1 a 10. Informo, no final da tarde, à professora da classe que já está na hora de oferecer ao menino a primeira visão do Sistema Decimal). "Vamos trabalhar?" O tom de voz já não é o de um pedido. É uma ordem. Com o domínio perfeito de quatro consoantes, não há por que continuar no ritmo de apresentação de outras. Tudo no" ambiente preparado" está disposto para que Pedro continue suas conquistas, escolhendo livremente e dentro de seu ritmo próprio, as demais consoantes. Eis porque já colocara na "diretoria" a caixa do ALFABETO MÓVEL e algumas outras caixas com objetos cuja "escrita" envolvesse as consoantes P, C, J, R. Coloco um tapete com linhas no chão. Abro a caixa diante de Pedro. Ele a examina com grande interesse, mesmo já a tendo visto em sua sala. Digo: "Pedro, vou compor uma palavra no tapete." (faço como se estivesse pensando numa palavra)." Vou compor ‘pai’." Retiro P do compartimento do" p". Coloco-a sobre o tapete, acima da linha. Pego a A, junto-a ao P. Pego a I, junto-a ao A. Digo "pai". Pedro nem olha para mim. Contempla o "PAI". Pergunto: "Você quer compor alguma palavra? Olhe, aqui nestas caixas há vários objetos. Se você quiser, pode escolher um e ao lado escrever o nome dele". Olha detidamente os objetos. Escolhe o copo, coloca-o no tapete e ao lado, uma a uma, as letras C - O - P - O. Limito-me a ler o produto: "Copo ... Muito bem, Pedro". Quase a gritar o menino diz: "Quero compor outras palavras.". Pega a fotografia do irmão e, ao lado, na ordem correta, dispõe as letras: R - U - I. Em seguida, pega a jaca (miniatura em massa) e compõe a palavra J A C A. Ao lado de um pedaço de madeira, coloca as letras P A U. Compõe "pia". Pergunta, pegando um broche, "Isto é uma jóia, não é?". Coloca-o no tapete e ao lado, as letras J O I A. Minha intervenção se limita a ler aquilo que ele compõe.

Em 16 sessões Pedro domina todo o alfabeto e compõe qualquer palavra fonética. Já na 6a sessão, depois de uma brevíssima informação minha, começa a usar as etiquetas auto-corretivas (presentes nas diversas caixas com objetos), já não necessitando de minha leitura como informação de seu acerto. Quase já não pergunta "Que letra é essa?". Já informa ao chegar à "diretoria" "Aprendi o F e o L com minha irmã; já sei qual é o T e o M..., a letra do seu nome é o V...". Não só compõe como está lendo qualquer palavra fonética, retirando o sentido dos sinais gráficos. O recurso montessoriano (tentado na 8a. sessão) de oferecer bilhetinhos contendo, um a um, palavra de objetos que ele deve trazer à mesa (COPO - PALITO - CANETA - SAPATO) ou de bilhetinhos que devam ser levados aos objetos correspondentes (JANELA - PIA - TINA - CABIDE) denotam a leitura silenciosa compreensiva.

Pedro aprecia particularmente o "jogo das ordens" (bilhetinhos com ordens no imperativo: PULE - RIA - FALE - CORRA - LEIA). Continua compondo no tapete. Minha presença é totalmente desnecessária. Enquanto trabalho na minha mesa, seu típico gesto de estalar os dedinhos me informa que ele acaba de ser auto reforçado pelo seu trabalho. Na 16a sessão traz à "diretoria" dois queijinhos "polengui". Informa:" Para o nosso lanche aqui". Aproveita e pergunta: "Como se escreve queijo? Não é com CE". Pergunto: "Você quer aprender as ‘dificuldades ortográficas’? Vamos aprender o QUE e o QUI?". Concorda. Disponho no tapete as sílabas QUE e QUI. Dou a "lição dos três tempos". Repito, sob ângulo novo, o segundo tempo da "lição", perguntando: "Posso misturar tudo? Agora, refaça QUE e o QUI". Pedro o faz perfeitamente. Apresento-lhe o envelope com o título "que qui". Ele contém figuras, bonitas e bem claras, que envolvem palavras como esquilo, quiabo, esqueleto, queijo, quilo, quepe; e, numa dobra interna do envelope, etiquetas com os nomes dessas figuras permitirão o controle do erro. Pergunto a Pedro se quer colocar as gravuras (em coluna) no tapete e compor ao lado delas (com as letras móveis) o nome de cada figura. Informo, também, que depois pode, usando as etiquetas, verificar se acertou. Da minha mesa, sem que ele o perceba, vejo-o trabalhar concentradamente.

Aos que lerem este episódio isolado quero dizer que a descrição desse aspecto do Sistema Montessori foi feita em termos puramente montessorianos. Traduzi-los (assim como os demais aspectos do Sistema) em termos da Análise Experimental do Comportamento, identificando nesta descrição os princípios e leis desta abordagem, constituiu meu trabalho de tese de doutoramento.

É abrangente mesmo o trabalho de Carolina Martuscelli Bori. Vai comigo à pré-escola. Comigo vai também a uma fascinante experiência de "Educação à Distância" em 1987, quando comprometo-me com uma afamada fundação brasileira (o decoro obriga-me a não mencionar o nome), contando com a colaboração de outra professora por mim escolhida, para organizar um curso que oferecesse auxílio psicopedagógico ao significativo contingente de professores leigos espalhados por este Brasil afora. O desafio foi dos maiores. O compromisso era de através de textos e dos recursos do circuito interno de televisão, oferecer subsídio para assistência e incentivo na área da Psicologia e da Didática ao professor leigo. Os módulos propostos foram 10 e cobriam os principais pontos do ensino programado (embora tenham sofrido as modificações exigidas pela direção a que estávamos sujeitas).

Num primeiro momento foi necessário ler e ouvir as muitas entrevistas feitas por uma equipe técnica com uma amostra significativa de professores leigos do Brasil, a fim de possuir um bom perfil do tipo de pessoas a quem iríamos nos dirigir. Depois, tratava-se de adequar-nos às possibilidades desse tipo de professor e aos recursos de que ele dispunha e sugerir-lhe, em termos compreensíveis, como agir tirando partido efetivo do conteúdo dos módulos. De início, D. (doméstica, dois anos de escolaridade) ouvia nossa leitura e opinava. Em função da reação dessa audiência, conservávamos, modificávamos ou eliminávamos quer a linguagem, quer o conteúdo, refazendo os textos, apelando para os parcos recursos existentes. A todo momento nos lembrávamos dos ensinamentos da Professora Carolina durante suas sessões de orientação para a tese de doutoramento.

E, quem diria? Foram essas mesmas orientações que tornaram possível o trabalho que mais tarde realizamos com "meninos de rua" em plena Praça Portugal. Através dos recursos de "aproximações sucessivas" e" reforçamento diferencial" é desenvolvido todo o trabalho. Sentada na Praça, numa esteira portátil, ligo o gravador. O som de uma lambada faz-se ouvir. Outras fitas, com outras músicas, são espalhadas na esteira. Um grupo se aproxima. Alguém pergunta o meu nome. "Vera"."Legal, tia". "Gostam da música? Querem dançar?" Com graça imensa uma menina começa a fazê-lo. Logo, outros a acompanham. Aumento o volume do som. Já são seis a dançar, rindo gostosamente. Chega um menino cheirando cola contida num saco de leite. Desligo o gravador mas continuo a conversar como se nada tivesse acontecido. O garoto se vai e novamente o gravador é ligado. Mais um" cheirador" se aproxima e o gravador é desligado. "Ei, você não viu que a ‘tia’ não quer gente cheirando cola, aqui?" Com um bofetão afasta o indesejável menino. Digo simplesmente: "Não se bate assim num amigo". O grupo de dançarinos decide: "Quem quer dançar fica aqui; quem quer cheirar cola vai para a outra ponta da praça." Olham as outras fitas. "Tem samba tia?". "Veja, você". "Não sei ler". "Tem, sim". Coloco um samba no aparelho. Conto dez crianças dançando. A tarde vai caindo. "Agora, eu preciso ir embora. Eu já contei meu nome. E vocês, como se chamam?". Dizem seus nomes. "A senhora vai voltar aqui?". "Se vocês quiserem, volto". "Amanhã"? "Pode ser". "Você é legal, tia". Estabelecidos os laços, uma semana depois convido-os para irem à" Casa de Convivência". Preparo várias atividades para eles. Durante três meses de convívio é profundamente reforçador ver essas crianças agindo sobre materiais que nunca tinham visto e que as encantam tanto. Foi assim que Carolina foi parar entre os" meninos de rua". Vicissitudes externas interrompem o trabalho. Alguma criança chegou a ser recuperada? Não sei, creio que não. Só sei que foram mais felizes e realizaram atividades úteis durante o nosso convívio. Só sei que eu descobri um caminho. Resta dizer: "Que bom que você existe, Doutora Carolina. Que bom ter aprendido com você!"

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 1998
  • Data do Fascículo
    1998
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revpsico@usp.br