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Nem loucas, nem santas

RESENHAS

Nem loucas, nem santas

Ana Rita Fonteles Duarte

Universidade Federal de Santa Catarina

La rebelión de las madres – História de las madres de Plaza de Mayo. Tomo I (1976-1983).

GORINI, Ulises

Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2006. 670 p.

La Rebelión de las madres é um livro que nasce sob o signo do clássico. Lançado ano passado, na Argentina, dentre inúmeras obras escritas para lembrar os 30 anos do golpe militar de 1976, que instalou a ditadura mais sangrenta do Cone Sul, foi recebido com expectativa e estardalhaço. Pedir informações sobre trabalhos que retratem as madres a qualquer livreiro argentino, desde então, é garantia de receber o volumoso exemplar de 670 páginas nas mãos, sem chance de ser informado sobre qualquer outro. E assim deve ser por muitos e muitos anos ou pelo menos até que chegue às livrarias o segundo tomo da pesquisa, do mesmo autor, e novo alvoroço aconteça.

Alguns elementos ajudam a compreender a dimensão do livro. O autor, Ulises Gorini, além de jornalista engajado na luta pela democracia na Argentina, é advogado de direitos humanos e professor da cátedra de Historia de las Madres na Universidade Popular Madres de la Plaza de Mayo. Durante vários anos, vem recolhendo farto material de pesquisa em arquivos jornalísticos, documentação oficial e, principalmente, entrevistas e arquivos pessoais abertos pelas madres de quem é fiel colaborador. Ele alcançou legitimidade e confiança para obter informações inéditas sobre um dos fenômenos políticos mais duradouros e complexos da história contemporânea. E essa complexidade, é possível afirmar, foi reforçada pelo trabalho de Gorini.

Como todo clássico, principalmente aqueles que partem da escrita de pessoas diretamente envolvidas na construção da memória de um grupo ou movimento, o autor poderia ter se deixado levar pelo caminho da mitificação e heroicização de seus personagens. Não é possível negar a admiração e encantamento de Gorini pelas mulheres que há 30 anos reclamam contra o desaparecimento de seus parentes e pela punição dos torturadores, mas tampouco ele escreve um libelo de celebração a "mães amantíssimas".

A principal contribuição de Gorini está na tentativa de compreensão, com base em forte pesquisa histórica, das condições objetivas que possibilitaram o surgimento das madres como protagonistas de um dos movimentos políticos mais importantes de nosso tempo, responsáveis diretas pelo desgaste e queda do regime militar argentino. O pesquisador não repete o senso comum ao tratar a atuação das mães como obra do "amor materno". Embora leve esse conceito em conta, procura situá-lo historicamente, o discute, mostrando que o amor impulsiona a ação, mas tampouco a explica.

Ele nos mostra, ainda, a partir de relatos de militantes e da análise documental, as transformações sofridas pelo movimento ao longo do tempo, assumindo bandeiras políticas mais amplas e a adoção de novas estratégias e novo léxico que acabaram por modificar a forma de encarar a política e ocupar o espaço público. A metáfora da separação entre as esferas pública e privada, aliás, torna-se cada vez mais estreita e ineficaz se nos propomos a analisar um movimento dessa magnitude.

Outro mérito de Gorini é incorporar em seu relato discussões já existentes sobre a utilização do gênero pelas integrantes do movimento das madres, como estratégia de combate e sobrevivência em meio a um regime acusado de ter assassinado 30 mil pessoas. Esses fatores estão presentes em seu relato sobre a inadaptação das mães às formas de ação das entidades de direitos humanos existentes antes de sua organização, no caráter espontâneo das primeiras reuniões, na escolha dos símbolos de identificação e nas dificuldades dos militares de agir diante de mulheres que protestavam contra o regime, utilizando os mesmos estereótipos de mães zelosas defendidos como forma de resguardar a família reacionária propagada pela ditadura. É certo que essa discussão precisa ser aprofundada, mas o jornalista já nos fornece uma série de pistas e argumentos bem fundamentados.

O livro é organizado em quatro partes que contemplam a atuação das madres de forma cronológica. Em alguns momentos, essa opção pode se demonstrar enfadonha, mas nos fornece uma boa idéia das transformações e incorporações de novas temáticas e estratégias na luta e nos discursos das mães-militantes. Ë possível mesmo traçar paralelos muito claros entre o movimento argentino e o Movimento Feminino pela Anistia, no Brasil.

A primeira parte, denominada "Las locas", faz uma narrativa sobre a origem do movimento, seu inicial caráter espontâneo, a relação quase que umbilical entre a Plaza de Mayo e o início da ação, além da posterior convocatória a todas as mães, surgimento da liderança de Azucena Villaflor, primeira presidente da Associação, e a publicação das solicitadas, listagens de pessoas desaparecidas publicadas em jornais argentinos do período. São retratadas as primeiras batalhas de rua com os representantes do regime e as tentativas do movimento de ganhar a imprensa internacional. Gorini procura traçar um perfil das mulheres que se uniram para procurar seus filhos.

Na segunda parte, "Desde la Plaza al mundo", é enfocado o período situado entre fim de dezembro de 1977 até abril de 1979, iniciado com a tentativa de reorganização das mães, logo após o seqüestro e desaparecimento de três militantes, entre elas a presidente Azucena Villaflor. É narrado o início da liderança da até hoje presidente Hebe de Bonafini.

Gorini enfoca o papel das mulheres como ponta de lança da resistência e os conflitos surgidos no interior das famílias pela pouca adesão masculina nos processos de busca e mobilização. O processo de realização da copa do mundo de futebol na Argentina, em 1978, exacerbou os desentendimentos entre maridos aficionados pelo esporte e mulheres que lutavam para demonstrar a falsidade do discurso patriota do governo, chamando a atenção da imprensa internacional para o desaparecimento de milhares de pessoas e a desinformação sobre seus paradeiros.

Os conflitos se transformariam em verdadeira guerra de imagens com os responsáveis pelo regime que, em peças publicitárias e em discursos governamentais, tentavam responsabilizá-las pelas ações "subversivas" praticadas pelos filhos. Eram chamadas de "anti-argentinas". O sucesso da mobilização junto aos jornalistas que cobriam a copa as tornou conhecidas em vários países e deu mais repercussão ao seu trabalho. As viagens internacionais começaram a fazer parte de seu quadro de ações, gerando grande repercussão. Os casos de desaparecimento eram tratados coletivamente. A solidariedade transformava-se em arma política.

Em "Resistências", a terceira parte, Gorini narra a luta mais direta entre as mães e o regime ditatorial, com o surgimento ampliado de evidências de extermínio em massa de pessoas, a partir das intervenções de comissões internacionais de direitos humanos. As mães intensificaram a luta para saber o paradeiro dos detidos-desaparecidos e não aceitaram que os filhos fossem dados como mortos simplesmente, sem que circunstâncias e culpados fossem apontados e estes punidos.

Elas não aceitavam a tese de que "excessos" cometidos por forças ligadas ao Estado fossem responsáveis por milhares de detenções e desaparecimentos. Cobravam audiências com o presidente da Junta Militar. Assumir a morte sem apurá-la era a abertura de um caminho para a desmobilização das madres e para a impunidade dos responsáveis. Por sua recusa em aceitar listas de mortos, foram tratadas como "caprichosas". Criaram a insígnia Aparição com Vida, como forma de se fortalecer e cobrar responsabilidades do Estado.

A quarta e última parte, "El símbolo de casi todos", retrata a luta das madres na fase final da ditadura Argentina, de 2 de abril de 1982 até dezembro de 1983. Um dos marcos dessa batalha foi a tentativa das militantes do movimento de não permitir que a Guerra das Malvinas, entre a Argentina e a Inglaterra, fizesse com que a questão dos desaparecidos perdesse fôlego perante a sociedade, diante da tentativa do governo militar de unir apoiadores e oposicionistas numa suposta luta patriótica comum pelo território disputado com os ingleses.

O fracasso dos militares argentinos e o agravamento da crise econômica repercutiram de maneira decisiva para o fim do regime. Nesse novo cenário, as mães que mantiveram seus posicionamentos, denunciando o regime, viram sua popularidade crescer e obtiveram os mais diferentes apoios, inclusive da imprensa que, em outros momentos, as rejeitou, tornando-se, efetivamente, força-chave no jogo político na Argentina, o que acontece até hoje de fato.

É nesse mesmo período que se amplia a discussão sobre o tratamento dado aos desaparecidos pela futura democracia a ser implantada, uma vez que a maior parte das forças políticas não concordava com o esquecimento ou se mobilizava efetivamente pelo esclarecimento dos desaparecimentos e punição dos possíveis culpados. O esquecimento ou mesmo a mera apresentação de listas de desaparecidos já dados como mortos, pelo senso comum, não interessavam às madres.

Gorini nos mostra o surgimento de uma questão essencial que alcança repercussões atualmente no país portenho: o que fazer com essas mulheres que não aceitam saídas "diplomáticas"? Esse se tornou um problema que militares, partidos políticos, sindicatos, imprensa e elite não conseguiram resolver desde o fim da ditadura. E o livro nos ajuda a entender por que a história política da Argentina pode ser dividida entre antes e depois das mães da Praça de Maio.

Movidas pela dor, as donas-de-casa que foram à praça, repetindo suas rondas às quintas-feiras e mobilizando continuamente a sociedade argentina, transformaram-se em sua condição de mães, através da experiência política, angariando apoios e com eles responsabilidades. Decidiram não arredar pé de seus princípios e reivindicações, mesmo com o advento da deformada democracia que tentou condenar ao esquecimento 30 mil pessoas. Salvaram a dignidade da Argentina, refundaram uma nação e reinventaram a política.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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