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Novos mares

Editorial

Novos mares

Entendendo a reestenose - Acreditou-se, por muitos anos, que uma resposta fibroproliferativa exagerada, com resultante espessamento neo-intimal, fosse a causadora do comprometimento do fluxo, na reestenose após o emprego do cateter-balão. Por isso e por mais de uma década, as investigações experimentais e clínicas concentraram-se na prevenção da proliferação celular. Contudo, diferentemente dos muitos modelos animais1,2, em artérias humanas, os vários agentes farmacológicos (antiplaquetários, antitrombínicos, antiisquêmicos, antiinflamatórios, antiproliferativos e hipolipemiantes), contra os diversos e complexos alvos fisiopatológicos da seqüência de eventos celulares, pós-injúria com o balão, não foram convincentes na redução da reestenose3.

As razões para esses resultados instigantes e desapontadores suscitaram especulações, longos debates e investigações, até que, recentemente, com estudo seriado, por meio de ultra-som intracoronário (pós-intervenção e na fase de seguimento de seis meses)4, pôde-se entender melhor o processo da perda luminal tardia e interpretar o insucesso das medidas farmacológicas para o controle da reestenose.

Permitindo imageamento tomográfico in vivo, pós-intervenções por cateter (que não o implante de stents), esse método pôde subdividir a reestenose em dois componentes básicos: a proliferação de tecido e a remodelação arterial. Mais do que isso, o ultra-som pôde discernir a contribuição ponderal desses componentes, já que 73% da perda luminal tardia deveu-se à remodelação arterial (redução da área de secção transversal compreendida pela membrana elástica externa - MEE) e 27%, ao crescimento neo-intimal (aumento da área de secção transversal compreendendo placa e camada média).

Essas verificações foram além. Observou-se que as mudanças na área compreendida pela MEE pós-intervenções percutâneas (excluindo-se os stents) são bidirecionais. Alguns vasos apresentam remodelação adaptativa ou positiva e outros literalmente "encolhem", o que foi chamado de remodelação patológica ou negativa. Entende-se agora, mais facilmente, por que muitas lesões tratadas, apesar de exibirem até intenso crescimento de tecido, mostram pouca ou nenhuma mudança na área de secção transversal da luz, por apresentarem remodelação arterial adaptativa; enquanto outras, por experimentarem remodelação arterial patológica, apresentam importante perda tardia das dimensões luminais, mesmo sem um processo de hiperplasia neo-intimal exagerado.

Dados adicionais de dois outros estudos5, envolvendo o ultra-som intracoronário seriado o OARS (Optimal Atherectomy Restenosis Study) e o SURE (Serial Ultrasound analysis of REstenosis) , confirmaram esses achados e chamaram a atenção para outros fatos de grande interesse: 1o) que o fenômeno da remodelação estende-se aos segmentos contíguos ao da lesão-alvo tratada; 2o) que a remodelação bidirecional pode se verificar no mesmo paciente, sendo adaptativa, nas fases iniciais (24 horas a um mês pós-intervenção) e patológica, com encolhimento, nas fases entre 1 e 6 meses de evolução; e 3o) que a remodelação adaptativa quando verificada tardiamente, e que ocorre na maioria dos casos (60 a 70%), representa a manutenção do mesmo fenômeno confirmado na fase precoce pós-revascularização percutânea.

O crescimento de tecido, portanto, é o lado menor (ainda que também de importância) da reestenose, quando não se usam as endopróteses coronárias. Por isso, as chamadas discrepâncias nos conceitos de reestenose (que preferimos denominar de pseudodiscrepâncias) são mais fruto da compreensão parcial do fenômeno do que propriamente incongruências ou falta de correlação entre o que ocorre no interior do vaso e o que se vê à angiografia e na evolução clínica.

O conceito bigger is better - Na incessante procura de entender e solucionar a reestenose, inúmeras análises de séries de pacientes submetidos à angioplastia com o balão, na década passada, identificaram preditores clínicos, angiográficos e técnicos associados a esse fenômeno. Entre eles, emergiu, consensualmente, a importância do resultado final após o procedimento, refletido pelo diâmetro mínimo da luz (DML) ou pelo porcentual de estenose do diâmetro (%ED) ao final da intervenção, julgados pela angiografia coronária quantitativa. Surgia, então, o conceito bigger is better e a busca de tornar ótimos os resultados finais, na expectativa de melhor evolução tardia.

Em 1992, Kuntz et al.6, avaliando ganhos agudos e perdas tardias (pela ACQ) após três tipos diferentes de intervenções (balão, aterectomia direcionada e implante de stents), puseram em evidência a interpretação mecanística, esclarecendo a razão pela qual os novos instrumentais eram mais bem sucedidos que o balão (em especial o stent), quanto aos resultados tardios. Demonstraram esses autores:

1o) que as novas técnicas não diminuíam a hiperlasia neo-intimal; de fato, aumentavam-na, seguindo o princípio de que "quanto maior a injúria, maior a resposta proliferativa de reparação";

2o) que a habilidade dos novos instrumentais (particularmente dos stents) em reduzir a reestenose, quando comparados ao balão, era dependente de sua capacidade de produzir suficiente ganho imediato da luz, que acomodasse a hiperplasia intimal subseqüente (perda tardia), proporcionando, ainda, área para um fluxo coronário adequado;

3o) que a persistente ocorrência de 19% de reestenose pós-stent sugeria que nenhum instrumental seria capaz de reduzir adicionalmente esse fenômeno, a não ser que ele (ou a farmacoterapia concomitante) também fosse capaz de reduzir a hiperplasia neo-intimal.

Essas verificações desencadearam mudanças técnicas, no sentido de se alcançar os mais amplos ganhos agudos positivos, de maneira segura, e ensejaram o aparecimento do que veio depois a se chamar "aterectomia ótima", "angioplastia ótima" e "implante ótimo" dos stents coronários.

O conceito bigger is better, conquanto represente apenas parte das soluções, como sabemos hoje, é real e atual, e o capricho na execução e obtenção do melhor resultado imediato é parte integrante da conquista de manutenção tardia. Além do mais, o que soa paradoxal não é, pois, apesar de a maior injúria na obtenção de uma luz ampla causar estímulo a maior hiperplasia intimal se o ganho inicial puder sobrepujar significativamente a perda tardia , garantir-se-á um ganho líquido vantajoso. Foi essa a contribuição histórica do emprego dos stents coronários.

Mudança do paradigma - Essas evoluções conceituais proporcionaram uma reviravolta, em termos de opções técnicas para revascularização percutânea. Até 1990, o cateter-balão tinha plena soberania (a despeito das limitações já bem reconhecidas àquela época), pois que apresentava vantagens, benefícios e efetividade comprovadas para o tratamento de vários subgrupos de doentes coronarianos. À busca da ampliação da efetividade, entre 1990 e 1994, a nova tecnologia passou a ser empregada e três modalidades foram exaustivamente testadas: as aterectomias (direcional e rotacional), o laser e as endopróteses coronárias. A compreensão do relativo insucesso das duas primeiras técnicas em reduzir a reestenose veio concomitantemente ao entendimento dos próprios mecanismos da reestenose. Por mais ampla luz que proporcionassem, as aterectomias e o laser falharam, por não atuarem na remodelação arterial tardia (o maior componente da reestenose). Ao mesmo tempo, os stents demonstraram, de maneira convincente, ser capazes de reduzir a reestenose angiográfica e clínica, nos estudos Stress-17 e Benestent-18, publicados em 1994. Nessa ocasião, de técnica promissora, as endopróteses ganharam a categorização de comprovadamente efetivas, com tradução clínica inconteste: a sobrevida livre de eventos, em 210 dias de observação, foi de 70% para o balão e de 80% para o stent de Palmaz-Schatz, no estudo europeu8.

A razão mecanística desse resultado positivo veio da angiografia coronária quantitativa8, reproduzindo as próprias observações de Kuntz6. Em estudo posterior, com ultra-som intracoronário, Mintz4 esclarece o melhor resultado das endopróteses, porque quando se comparam lesões tratadas com stents com aquelas tratadas por outras intervenções percutâneas, as primeiras não só experimentam um alargamento maior da área da luz arterial (bigger is better) mas, também, têm a remodelação arterial praticamente abolida. Por isso, mesmo que o acúmulo de tecido neo-intimal seja maior - e o é , a taxa de reestenose é menor do que a observada quando não se usam os stents.

A nova técnica de implante das próteses intracoronárias, proposta por Colombo9, associada a um protocolo medicamentoso com antiplaquetários (aspirina e ticlopidina), eliminou o excesso de complicações hemorrágicas e vasculares, reduzindo a trombose da prótese a índices de 1,5%, com mais um impacto favorável em termos de risco-efetividade.

Em investigação subseqüente, o grupo Benestent, por meio do estudo II piloto10, demonstrou um avanço adicional em termos de benefícios angiográfico e clínico, porquanto a reestenose angiográfica caiu a 13% e a sobrevida sem eventos em 210 dias elevou-se a 86%, e, além disso, comprovou-se uma custo-efetividade mais favorável do que a do estudo anterior.

A partir de 1994, e em virtude de toda essa evolução favorável, surge a era dos stents e esperam-se, para o presente ano, que sejam implantadas cerca de 800.000 endopróteses coronárias.

Paradoxo? (Ver artigo publicado na pág. 357.) Não, efetividade comprovada! Os stents promovem melhor resultado angiográfico imediato e tardio, resolvem situações morfológicas difíceis, diminuem as complicações; melhoram a evolução clínica, porque têm impacto positivo sobre o fenômeno da reestenose, e apresentam boa adaptação ao uso rotineiro no laboratório de cateterismo e com os demais instrumentais.

Todos os problemas resolvidos? Também não. Os escopos da nova década são: a redução adicional da reestenose (se possível, a um dígito); a ampliação do benefício comprovado aos diversos subgrupos de coronarianos; a verificação da efetividade dos diversos modelos; a determinação do papel da farmacoterapia coadjuvante, a definição mais precisa da contribuição dos métodos adjuntos (angiografia quantitativa, ultra-som, Doppler-flow wire, etc.) e a custo-efetividade.

Reestenose clínica versus angiográfica - Nos anos oitentas, época em que os diversos ensaios avaliavam o impacto da farmacoterapia para redução da reestenose, a única tecnologia percutânea disponível era o balão, aplicado predominantemente à doença uniarterial coronária. Àquela ocasião, a Indústria interessava-se pelo retorno da angina aos seis meses de evolução, pelo desempenho ao teste de esforço, e ignorava a expressão: angiografia coronária quantitativa (ACQ). O cardiologista intervencionista, por seu turno, estava literalmente obcecado pelas taxas de reestenose aos seis meses, esperando uma espécie de interpretação mecanística. A avaliação do angiograma coronário era visual, usando-se o critério binário (lesão > 50%), e as virtudes da ACQ eram ignoradas. Curiosamente, os organismos reguladores federais estavam interessados no objetivo composto: óbito, infarto do miocárdio e... insuficiência cardíaca, acredite-se ou não!

Dez anos após, já na era das novas intervenções, da liberação do local de drogas e, potencialmente, da terapêutica genética, a Indústria está interessada em sobrevida livre de eventos, custo-efetividade e expectativa e qualidade de vida. O cardiologista intervencionista, agora acostumado com a ACQ, está utilizando a abordagem contínua dos resultados, está familiarizado com as curvas cumulativas do diâmetro mínimo da luz (DML) e introduziu jargões como: revascularização da lesão-alvo, e do vaso-alvo, aos 6, 9 e 12 meses; ainda desejando uma interpretação mecanística. Como o conceito de reestenose mudou drasticamente, começou a utilizar a abordagem volumétrica, determinada pelo ultra-som quantitativo. Os organismos reguladores ainda se interessam pelo objetivo composto de morte e infarto em um ano e, eventualmente, de acidente vascular cerebral.

Por que a ACQ tornou-se tão popular? Porque ela é uma técnica convencional e plenamente inte-grada na prática do intervencionista. Além disso, a ACQ é uma linguagem comum: objetiva, precisa e reprodutível. O DML é um dado direto, não ambíguo, com um significado fisiológico, cuja avaliação em estudos clínicos permite a redução da amostra, além de poder ser disposto em curvas cumulativas de simples compreensão à primeira vista.

Então, por que a ACQ tem sido tão criticada, atualmente? Será que há ainda dúvidas quanto à sua precisão e reprodutibilidade? Será que a tomografia da parede do vaso destronou o luminograma, nas análises imediatas e tardias do resultado? Não acreditamos.

O DML é de fato uma supersimplificação, como medida da hiperplasia neo-intimal, além do que se tem percebido que o seguimento angiográfico pode interferir com a história natural da doença e do tratamento, devido ao chamado "refluxo óculo-estenótico" (outro jargão da Cardiologia Intervencionista), que implica reintervenções desnecessárias. Isso acontece porque o intervencionista, acostumado à história natural após angioplastia com o balão, não atenta para o fato de que esta é claramente distinta do curso natural do tratamento com os stents.

A discordância (ou pseudodiscordância) entre evolução clínica e angiográfica tem, então, questionado a validade e o fundamento para a avaliação angiográfica no seguimento (ver artigo publicado na pág 357).

Ousaríamos dizer que, em nossa experiência no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, os casos de discordância são raríssimos. Acreditamos que a tal discordância é devida, parcialmente, a um desempenho subótimo do core lab angiográfico, pois a ACQ é uma ciência exigente, que requer treino e verificação permanente do método de análise. Por outro lado, a razão de eventual discordância pode residir na contagem de eventos clínicos, que é uma ciência talvez até mais precisa, quando comparada à ACQ, à qual nem todos se detêm com a devida preocupação e documentação. Além disso, vale esclarecer que, em vasos > 3,0mm, tratados com stents ou com aterectomia direcional, nossa experiência demonstra que não é infreqüente (ao contrário do que acontece pós-balão) que se tenha %ED > 50%, aos seis meses de evolução, associado a um ainda bastante amplo DML, num paciente assintomático sem isquemia. Isso não é nem discordância nem paradoxo. Isso traduz a nova história natural do tratamento de revascularização percutânea, com o emprego das novas técnicas (em especial, os stents), a qual muitos ainda desejam ou teimam em igualar ao curso natural após o balão. Estamos navegando novos mares!

A.G.M.R. Sousa

Diretor do Serviço de Cardiologia Invasiva do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, São Paulo, SP.

J.E. Sousa

Diretor do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia; Presidente da Sociedade Latino-Americana de Cardiologia Intervencionista (SOLACI).

1. Janiszewski M, Laurindo FRM, Pasqualucci CA et al. Effects of a single heparin bolus on neointimal growth after arterial injury in intact rabbits. Angiology 1996; 47: 549-56.

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3. Frank SM, Faxon DP. Pharmacologic prevention of restenosis after coronary angioplasty: review of the randomized clinical trials. Cor Art Dis 1993; 4: 232-42.

4. Mintz GS, Popma J, Pichard AD et al. Arterial remodeling after coronary angioplasty: a serial intravascular ultrasound study. Circulation 1996; 93: 35-43.

5. Leon M, Kuntz R, Popma J et al. Acute angiographic intravascular ultrasound and clinical results of directional atherectomy in the optimal atherectomy restenosis study. J Am Coll Cardiol 1995; 25: 137A.

6. Kuntz RE, Safian RD, Levine MJ et al. Novel approach to the analysis of restenosis after the use of three new coronary devices. J Am Coll Cardiol 1992; 19: 1.493-9.

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10. Serruys PW, Emanuelsson H, Giessen W et al. Heparin-coated Palmaz-Schatz stents in human coronary arteries. Early outcome of the Benestent-II pilot study. Circulation 1996; 93: 412-22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2000
  • Data do Fascículo
    Dez 1997
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