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Crianças indígenas: ensaios antropológicos

RESENHAS

LOPES DA SILVA, Aracy, NUNES, Angela e MACEDO, Ana Vera (orgs.). 2002. Crianças indígenas: ensaios antropológicos. São Paulo: Global. 280 pp.

Flávia Pires

Doutoranda, PPGAS/MN/UFRJ

O livro Crianças indígenas: ensaios antropológicos é uma tentativa de romper com mais um dos tantos "centrismos" que assombram a antropologia. Se as crianças foram por tanto tempo tratadas como adultos em miniatura, isso não se deveu a uma característica própria da infância, mas sim a uma postura "adultocêntrica", nas palavras de Angela Nunes, predominante ao longo da história das ciências sociais. Se nunca fora atribuída agência às crianças, não é porque estas fossem meros reprodutores da sociedade adulta, mas porque havia um completo desconhecimento das especificidades do mundo infantil. Nesse sentido, o livro filia-se explicitamente a um projeto intelectual em termos do qual as crianças devem ser tratadas como sujeitos sociais completos e interlocutores legítimos do pesquisador. A constituição deste paradigma esteve associada à proliferação dos estudos sobre crianças em contextos urbanos, industriais e globalizados, principalmente na Europa (:12-15); procurando estendê-lo, este livro fornece uma porta de entrada aos estudos sobre crianças em contextos indígenas (embora os capítulos bibliográficos da segunda parte falem também de outros contextos). A primeira parte da coletânea é composta por sete artigos, todos baseados em pesquisa de campo em sociedades indígenas (Xavante, Kaiapó-Xikrin, Guarani, Kaiowá, Asurini) e orientados pelo projeto de constituição de uma antropologia da criança ou da infância.

Em sete ricos flashes etnográficos, recolhidos em um longo trabalho de campo (de 1971 a 1995) entre os A'uw? (ou Xavante e Xerente), Aracy Lopes da Silva discute os processos de aprendizagem, transmissão e expressão do conhecimento, onde a corporalidade se revela como um dos mecanismos centrais. Ao dizer, no segundo flash: "Há sempre o que aprender, e durante a vida toda se aprende" (:43), Aracy contribui para os estudos em que a cultura é vista como algo em perene constituição. Afinal, não são apenas as crianças que aprendem, mas todos os sujeitos sociais, inclusive os adultos e idosos, como a autora bem mostra nesse flash sobre a experiência corporal em contextos rituais. O flash número quatro, sobre como as situações corriqueiras são momentos de aprendizagem, suscita-me espontaneamente uma pergunta: então, qual o sentido da escola formal? Essa questão é tratada na parte final do artigo: é necessário "questionar a compatibilidade efetiva entre a educação indígena e a escolarização" (:58). A autora se posiciona contra as abordagens da socialização como uma ação adulta sobre as crianças passivas e propõe como premissa epistemológica a autonomia do universo infantil. As crianças, diz ela, como os xamãs, são a porta de entrada do novo nas sociedades.

Angela Nunes, ao descrever uma série de brincadeiras infantis xavante, diz que as crianças, quando brincam, estão contextualizando e elaborando o contexto social em que vivem. Seu artigo equaciona os aspectos do cotidiano e a atividade lúdica através da constatação de que a brincadeira faz parte do dia-a-dia e se presta a resultados reais. Além disso, a autora parte das brincadeiras para evidenciar as dimensões da cultura e da vida social, como tempo e espaço, presentes nas brincadeiras sazonais. Espaço e tempo são apenas algumas das categorias analíticas utilizadas pela antropologia e que poderiam ser exploradas a partir de estudos comparativos sobre o aspecto lúdico infantil.

Eduardo Carrara lança luzes sobre a forma como o conhecimento das espécies animais, especificamente das aves, é aprendido pelos meninos (uma vez que as meninas não serão caçadoras) entre os Xavante. O conhecimento das aves se faz em sintonia com o lugar reservado aos animais e outros seres não-humanos pelos povos ameríndios. Os animais, além de fazerem parte da sociedade dos humanos, possuem, eles próprios, modos de vida humanos. Assim, para conhecê-los, é preciso ir além da morfologia. Os meninos muito cedo já aprendem sobre as aves por meio do contato corporal. Mas não apenas as crianças aprendem: os adultos também não cessam de aprender. Além disso, o conhecimento é produto social e político, ele se dá preferencialmente nos warã (conselhos políticos). Por fim, o autor ressalta que nas sociedades urbanas foi a emergência das ciências naturais, das cidades e das indústrias que demarcou o "mundo natural" como algo separado do homem. A educação ambiental é devedora desta idéia moderna, no entanto, entre os Xavante, ela é mais que ecológica, ela é pensada como "um conjunto de múltiplas inter-relações que envolvem saberes, técnicas e uma constante interpenetração intelectual e prática entre natureza e sociedade" (:115).

Clarice Cohn apresenta-nos uma rica descrição do cotidiano das crianças em uma aldeia xikrin, dando detalhes das festas ou rituais. A autora procura responder à pergunta: o que é uma criança, segundo os Xikrin? Vemos o quanto as crianças estão presentes no cotidiano da comunidade, já de saída porque são importantes para definir as categorias de idade, que, juntamente com a classificação de gênero, estabelecem o status social dos indivíduos. A autora reflete ainda sobre o aprendizado infantil no contexto ameríndio. As crianças estão aqui em uma posição especial na vida social, que se caracteriza pela não necessidade de se respeitarem regras de evitação, essenciais na vida adulta. Dessa forma, desfrutam de uma mobilidade bastante grande, que lhes permite circular entre as casas e freqüentar quase todos os momentos da vida social, e assim "tudo ver" (:138, 141). A visão é, junto com a audição, um dos meios básicos através dos quais o aprendizado se faz. Essas duas capacidades são fortalecidas com o decorrer do tempo e resultam no aprendizado.

Ao estudar o parentesco kaiowá, Levi Marques Pereira foi levado a perguntar-se sobre o estatuto das crianças adotadas, cuja elevada quantidade aponta como "uma das principais estruturas da organização do sistema de parentesco" (:172). Ele pondera que a relação biológica entre mãe e filho não contém, entre os Kaiowá, um componente naturalizante forte. A relação de afinidade suplanta a de consangüinidade, quando as duas não podem ser combinadas, geralmente na morte ou na separação dos pais. Os adotados, chamados guachos, o são preferencialmente por parentes próximos. Entretanto, isso só ocorre quando há o desejo ou a possibilidade de se "levantar parentela", ou seja, depende do ciclo de desenvolvimento do "fogo familiar". O autor mostra que o processo de constituição da pessoa está em relação estreita com a parentela, o que coloca em xeque a condição humana do "guacho puro", um dos modelos de adoção. "Guachos puros" são crianças sem prestígio, que geralmente não vão à escola e cujo valor se reduz a prover a ampliação numérica da parentela e a contribuir com sua força de trabalho. O laço com a família de origem foi rompido e um novo laço familiar dificilmente será estabelecido. Criação bastante distinta ocorre com as crianças de alto prestígio social, pois em seu caso o não-rompimento dos laços com a família de origem propicia o estabelecimento de alianças privilegiadas entre os dois grupos. Ocorre aqui uma adoção aditiva, potencializando o prestígio da criança, visto que "o ideal de todo Kaiowá é pertencer a uma parentela suficientemente ampla, para disputar o prestígio e o poder político em boas condições. O pertencimento a uma parentela é precondição para a existência social" (:185).

Regina Pólo Muller procura compreender as mudanças em curso na vida asurini - em particular, as relações entre transmissão da cultura e transformações sociais. Temos como pano de fundo o profundo impacto demográfico do contato: um decréscimo populacional violento, ocorrido entre 1971 e 1982, e o aumento da taxa de natalidade a partir de então. Em 1976, havia apenas uma criança na faixa etária entre 0 e 5 anos; hoje, quase a metade da população se enquadra nesta faixa. Em tal situação, os adultos procuram reelaborar nos rituais o conteúdo de sua cultura, e se mostram preocupados em promover a transmissão de conhecimento mediante a aprendizagem de práticas rituais e artísticas. Entretanto - essa é a questão proposta por Muller -, faz-se necessário entender como as crianças elaboram a nova realidade social, constituída afinal de uma sociedade de crianças, onde elas experienciam o "mosaico de situações interculturais" proporcionado pela vasta gama de relações que podem estabelecer seja no grupo doméstico, seja na coletividade da aldeia.

Talvez o artigo de Mariana Kawall Leal Ferreira forneça elementos para responder à questão colocada por Muller. A autora, assim como Angela Nunes, adota o foco sobre as brincadeiras infantis como um meio de entrada ao campo de estudo. A pesquisa foi realizada entre os grupos Guarani M'byá e Guarani Nhandeva, cuja aldeia, situada em Itaoca (SP), se encontra a menos de um quilômetro do lixão municipal. A situação de miséria em que vivem esses Guarani não foi suficiente para que abandonassem sua busca pela Terra-Sem-Mal. Mas são sobretudo as crianças, em suas brincadeiras, que se mostram como agentes ocupados em pensar sua cultura e propor maneiras de lidar com sua trágica situação histórica. A autora descreve três brincadeiras de representação: na primeira delas, o pequeno índio pretende ser um "cantor", mas sua mãe violentamente lhe chama à realidade: quando muito, ele será cortador de bananas, embora "catar latinhas" seja a perspectiva mais óbvia, encenada pelo irmão que brinca ao lado. A segunda - "brincar de ambulância" - representa a calamitosa situação de saúde à qual estão submetidos os Guarani. A terceira brincadeira, propiciada pela chegada do carregamento de doces doados por uma igreja evangélica, serve para a encenação do ciclo de reciprocidade. O artigo também pode ser lido como denúncia tocante de uma realidade dramática mas insuficientemente conhecida.

A segunda parte da coletânea contém sobrevôos bibliográficos sobre os temas de fundo. No primeiro artigo, Clarice Cohn discute os problemas do aprendizado e da socialização, tal como foram estudados por vários antropólogo(a)s e antropologias, enquanto um recorte possível para entender esses mundos infantis. Ela nos conduz assim por um trajeto que vai de Florestan Fernandes a abordagens mais recentes cuja premissa é o reconhecimento da autonomia do universo infantil - campo em que C. Toren aparece como figura-chave -, passando, entrementes, pelo estrutural-funcionalismo britânico, por M. Mead e pela escola de Cultura e Personalidade, por análises antropológicas que (como a de Janet Carsten) enfatizam o lugar das crianças na cosmologia, por Piaget e Vygotski como representantes da psicologia do desenvolvimento infantil, por Barth e outros tratamentos dos modos de transmissão oral de conhecimento. No segundo artigo desta parte, Angela Nunes traça um quadro do modo como a criança indígena vem sendo tratada nos textos de etnologia indígena brasileira e oferece algumas reflexões sobre o assunto, para concluir registrando a inexistência de um referencial teórico e um espaço efetivo para discussão sobre a infância.

Percebe-se no livro, desde a Introdução, a amplitude do projeto intelectual ensejado pelos autores. De modo geral, trata-se de ver as crianças como sujeitos sociais e agentes de mudança. Elas não apenas reproduzem o que aprendem dos mais velhos, mas, como bem diz Carrara, aprendem também com seus próprios pares, atualizando o que lhes é ensinado. Ao se conceder à criança a capacidade de agência em face da cultura que lhe é proposta, enfatiza-se assim que não existe previamente uma cultura a ser incutida nos pequenos, mas que esta cultura se faz a cada instante. Mais que aceita pelos indivíduos ou imposta a eles, ela deve ser vista como dinamicamente elaborada no momento da socialização, um processo que, mais que transmissão, envolve re-feitura. Se, portanto, o aprendizado cultural implicasse exclusivamente as crianças, não haveria saída senão dizer que a infância não cessa jamais. Somos crianças por toda a vida.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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