Resumos
Neste texto, aproximam-se as idéias contidas na Fenomenologia da Percepção, do filósofo francês Merleau-Ponty, das idéias usuais de percepção que sustentam o estatuto da linguagem de representação gráfica utilizada no Desenho, considerando esse como comunicador tecnológico e instância pedagógica. É um trabalho feito a partir de leituras teóricas que objetivam o ensaio de questões que tematizam os fundamentos desse estatuto, quando contrapostos em distintas visões.
Epistemologia; Fenomenologia; Linguagem; Percepção; Desenho
In this text, I examine the ideas contained in the Phenomenology of the Perception, of the French philosopher Merleau-Ponty, about the usual ideas about perception which sustain the graphical representation language used in Drawing, used for tecnological comunicator as well as pedagogical purposes. The work is based on theoretical readings and aims to raise questions that focus on the basis of this tecnological language seen from various perspectives.
Epistemology; Phenomenology; Language; Perception; Drawing
Expressão Gráfica e Conhecimento
Sobre a percepção espacial
Adlai Ralph Detoni
Departamento de Fundamentos do Projeto - UFJF
E-mail: detoniar@ms.rc.igce.unesp.br
Resumo
Neste texto, aproximam-se as idéias contidas na Fenomenologia da Percepção, do filósofo francês Merleau-Ponty, das idéias usuais de percepção que sustentam o estatuto da linguagem de representação gráfica utilizada no Desenho, considerando esse como comunicador tecnológico e instância pedagógica. É um trabalho feito a partir de leituras teóricas que objetivam o ensaio de questões que tematizam os fundamentos desse estatuto, quando contrapostos em distintas visões.
Palavras-chave: Epistemologia, Fenomenologia, Linguagem, Percepção, Desenho.
Abstract
In this text, I examine the ideas contained in the Phenomenology of the Perception, of the French philosopher Merleau-Ponty, about the usual ideas about perception which sustain the graphical representation language used in Drawing, used for tecnological comunicator as well as pedagogical purposes. The work is based on theoretical readings and aims to raise questions that focus on the basis of this tecnological language seen from various perspectives.
Key-words: Epistemology, Phenomenology, Language, Perception, Drawing.
1- Introdução
No dicionário Aurélio, perceber está ligado à aquisição de conhecimento por meio dos sentidos, com ênfase no ver. Há, ainda lá, a idéia de percepção como discernimento por via intelectiva. O senso comum, inclusive aquele impregnado nas ciências, trabalha com essas concepções e as tem como seu fundamento na busca de seus modelos explicativos de mundo.
Uma leitura do ideário filosófico ocidental nos leva a encontrar as bases dessas concepções ou pelas vias de um empirismo, para o qual os objetos aparecem dados a um sujeito a quem, atento, cabe senti-los e, a partir disso, formar idéias - simples ou complexas - ou, por outro lado, pelas vias intelectualistas, nas quais o sujeito do pensamento, aquele em cuja consciência residem as formas de organização do mundo, constitui os objetos segundo sua intelecção.
O positivismo, já no século passado, contemporâneo da edificação dos valores científicos, articula uma combinação dessas duas tendências, procurando resguardar, tanto a existência de uma realidade factível, quanto o papel do sujeito na abstração cogniscível dos invariantes, caminho para a cientificidade. Depois dele, a representação de mundo ganha método e significados de rigor e exatidão, que se presentificam como comuns a todos os ramos da ciência.
A aceitação da representação de mundo como afirmação da cognoscilibilidade das coisas esteia o momento histórico do abraçamento do tecnológico com o científico. A necessidade de uma linguagem gráfica para a representação dos objetos do mundo físico - natural ou fabril - encontra, então, sua edificação dentro da estrutura dos conceitos geométricos, movimento já prenunciado na visão de mundo-máquina geometrizável, como em Galileu.
Duas características do pensamento de bases positivistas são a retirada do fenômeno do mundo, a partir de fatos verificáveis, e a exterioridade desses fatos em relação ao sujeito, sendo este, portanto, neutro. Com elas, as ciências adquiriram um alto grau cultural de confiabilidade. Há, porém, direções possíveis de tomar contra essa tendência. Como exemplo recorrível, conhece-se o quadro crítico metodológico e conceitual da Física Quântica.
Nesse trabalho, opta-se pela direção crítica que advém da Fenomenologia. Ela, como abordagem filosófica, quer voltar às coisas mesmas, isto é, ver as coisas se manifestando ainda como fenômenos antepredicados numa linguagem científica. No pensamento do filósofo francês Merleau-Ponty1 1 As idéias merleaupontianas foram, para este trabalho, buscadas em sua obra Fenomenologia da Percepção, doravante citada como (MP, 1971). , podemos ampliar a concepção de percepção como meio de retomada do fenômeno e abranger criticamente, daquele modo positivista de conceber, a percepção como sinônimo de sensação que sustenta o estatuto da linguagem gráfica, tomada como registro geométrico análogo ao ato sensitivo de ver o mundo.
2- Percepção, representação e linguagem na fenomenologia
Contra as concepções clássicas de conhecimento, para a Fenomenologia, a percepção nem é a chegada do sujeito e sua consciência constituinte às coisas e nem o conjunto de respostas à estimulação sensível dos objetos ao sujeito como sua primeira informação. Para a abordagem fenomenológica, a percepção é o encontro do sujeito com o mundo. Como em Heidegger, o sujeito é ser-no-mundo, isto é, nem há mundo sem sujeito, nem sujeito sem mundo.
A Fenomenologia não trabalha com o preceito clássico do princípio primeiro: o mundo ou o sujeito?; essa questão não se funda para ela. Como em Merleau-Ponty, o primado é a percepção, vista não como princípio causal, mas como fundo do ser e do mundo: o tal encontro. Quando as coisas se fazem (manifestam-se) ao sujeito, este também está se fazendo.
Então, realidade é o vivido. A realidade não é algo categoricamente construído no e pelo sujeito e não se faz na soma de respostas do sujeito a estímulos orientados a partir dos objetos. "A realidade (...) emerge da intencionalidade da consciência voltada para o fenômeno" (Bicudo, 1994). Uma dimensão existencial é necessária para tornar possível tanto a fisiologia dos estímulos-respostas quanto a intelecção de mundo. Por lidar com o ser-no-mundo enquanto modalidade existencial, a Fenomenologia fala na primeira pessoa; assim, as coisas existem enquanto são para mim, e não para um ego transcendental.
Enquanto sou no mundo, ele se manifesta em minhas experiências. Vivo minhas experiências sempre a partir de meu corpo, que é histórico e cuja história carrega os invariantes dessas experiências. Minha experiência é multiperspectival e não se reduz a nenhum momento efetivo. As coisas me oferecem suas faces e eu as percebo de diversos pontos de vista espaciais e temporais, e "seu presente não apaga seu passado, seu futuro não apagará seu presente" (MP, 1971, p. 83).
Uma casa é vista por mim de todos e de nenhum lugar. Aquilo que vejo é uma síntese de todas as visadas que empreendi de vários pontos e em vários momentos. E, mesmo que eu tenha o conceito "casa", ela não é uma síntese intelectual, é uma síntese perceptiva. A característica temporal dessa síntese desdobra a concepção de percepção na Fenomenologia: a percepção também é uma abertura ao futuro. Em Merleau-Ponty, aqui reside a noção de projeto, na qual a casa permanece como possibilidade para outras sínteses. A casa só é uma determinação quando já se está numa atitude predicativa, tal como quando seu projetista tem de afirmar sua objetividade. Esse não é, senão, o espírito de uma ciência em que uma determinação é também a morte do objeto, por esgotamento de suas possibilidades.
Há uma tendência de se considerar o objeto expresso numa linguagem gráfica como momento do objetivo, e os símbolos dessa expressão como equivalentes aos caracteres objetivos da coisa que se expressa. Essa equivalência é tida como natural, e seus elementos, numa certa biunivocidade, cogniscíveis; daí, a possibilidade de um entendimento científico. Uma atitude natural, porém, rompe com o engajamento do ser-no-mundo, separando as coisas de suas manifestações fenomênicas:
Nessa atitude são tomadas como objeto tanto a coisa que se torna objeto para o sujeito, quanto a consciência que opera relações desse conhecimento. Isso significa que o Eu e suas experiências subjetivas são assumidas como coisas em si, como parte do mundo. E o mundo é representado por imagens ou por signos, representação essa considerada tão mais correta quanto mais se adequar ao que representa. (BICUDO, 1999)
No plano da ciência gráfica, essa naturalidade é fundada numa certa perceptividade visual dos objetos e na tradução do espaço visual e suas dimensões em elementos lingüísticos de natureza geométrica. A racionalidade que se tem como asseguradora da representação do mundo é considerada como possível se apoiada num corpo lingüístico estruturado, e conhecer passa a ser sua utilização adequada. Porém, "todos os conhecimentos se apóiam em um `solo' de postulados e, finalmente, em nossa comunicação com o mundo como primeiro estabelecimento de racionalidade" (MP,1971, p. 18).
No plano pedagógico, essa atitude natural leva a dizer, dada a cogniscividade dessa equivalência, que a educação gráfica é a todos possível, sendo o acesso de um aprendiz à linguagem gráfica um correlativo de suas condições universais de sensibilidade visual acrescidas de uma instrução geométrica.
A partir daí, a percepção deixa de ser o encontro do ser no seu mundo-vida2 2 Mundo-vida é tradução do alemão "Lebenswelt", da filosofia de Husserl, significando o mundo que é fenomenologica-mente constituído na intersubjetividade e que se abre à história e à linguagem. e passa a ser uma função anteguiada por estruturas sensórias e cognitivasque configuram as coisas segundo adequações a essas estruturas.
Merleau-Ponty precisa a distinção entre o ato do ver natural e o do ver perceptivo, segundo sua concepção de percepção fundada no corpo-próprio3 3 A noção de corpo-próprio é básica para a filosofia de Merleau-Ponty. Ele afirma que "a espacialidade do corpo é o desdobramento de seu ser de corpo " (MP, 1971, p. 159), isto é, o corpo está presente na criação de seu próprio mundo espacial. Ele não é o meio fisiológico a serviço da intelecção; é o fundo de toda a intelecção: "nosso corpo não é um objeto para um `eu penso': é um conjunto de significações vividas" (MP, 1971, p. 164). : eu vejo por uma estrutura objeto-horizonte, isto é, ao me pôr perceptivamente numa situação, meus olhos percorrem todo o campo e, ao me envolver, meu olhar engajado se detém num fragmento da paisagem, que se anima; os outros objetos são deslocados para a margem, mas não deixam de estar lá, como horizontes possíveis. Só vejo um objeto porque os outros se escondem para que eu o veja. É minha percepção em envolvimento que efetiva o visível e o invisível, e "o horizonte é logo o que assegura a unidade do objeto no decurso da exploração" (MP, 1971, p. 81). A essa estrutura existencial do objeto-horizonte Merleau-Ponty também chama perspectiva, e nenhuma ação da memória ou de uma conceituação poderia nos abri-la.
Uma concepção não existencial, naturalística, aproxima o fenômeno do olhar à câmara cinematográfica, mas, como reflete Merleau-Ponty, a tela de cinema não tem horizontes, e a efetivação de um objeto que o cineasta apresenta é feita por uma sucessão de lembranças no espectador inserido dentro da estrutura da linguagem cinematográfica.
Enfim, "ver é entrar num universo de seres que se mostram, e não se mostrariam se não pudessem se esconder uns atrás dos outros ou atrás de mim" (MP, 1971, p. 81), diz a Fenomenologia, contra a acepção da visão como ato fisiológico que exterioriza um objeto entre os demais.
Com a versão fenomenológica da percepção podemos interpretar a representação gráfica que faz um projetista como um momento de síntese. Fenomenologicamente, toda síntese é de transição e segue sendo uma abertura. Mesmo a coisa já expressa numa linguagem se põe como fenômeno. Para aceitar essa abertura, devemos considerar que o perceptivo não se esgota na representação, e compreender que mesmo a linguagem permanece como uma modalidade de se ser-no-mundo. Diz-se, aqui, da linguagem que não se reduz ao seu ser gramatical, mas que se estrutura como um campo semântico e, se vivida, não serve como registro final do objeto, mas como um reabrir perceptivo.
Essa percepção na linguagem pode ser compreendida como a entrada das pessoas nos horizontes dela, porque há um mundo lingüístico aberto, cujos significados e significantes têm uma história. Não usamos simplesmente de uma linguagem, habitamo-la, o que quer dizer que, a cada uso, revivemos sua história desde os sentidos primeiros que permitiram seus significados. Também, se estou inserido num contexto de comunicação gráfica, os símbolos me remetem às experiências tidas sobre o objeto representado.
A comunicação gráfica é, dessa forma, não um veículo de informações objetivas numa cadeia de pessoas envolvidas, mas aquilo que permite projetar-se numa intersubjetividade na qual a presença do projetista permanece na alteridade. Por essa abertura, a Fenomenologia considera que toda linguagem é poiética, e a poíesis4 4 Poíesis é trazida aqui como ato criativo, notadamente na expressão desse ato em uma linguagem, quando se está além do cotidiano, em atitude de reinvenção. é uma dimensão sempre presente nas ações humanas. Na tradição pedagógica do Desenho, no entanto, essa dimensão é usada apenas para a distinção entre o que é artístico e o que é técnico, o que é dom e o que é capacidade intelectiva.
Merleau-Ponty diz que a Fenomenologia não quer invalidar a ciência, questionando, apenas, o que é esse mundo que é seu solo, no qual "a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las" (MP, 1984, p. 85). A ciência da representação gráfica se faz sobre um mundo que é comum ao de nossa existência, mas, a partir de uma concepção naturalista de percepção reduzida à capacidade visual, vê retirada essa comunidade em nome de uma visualização que não é de ninguém encarnado, mas de alguém transcendental que privilegiadamente olha por mim, como um demiurgo.
3- Considerações finais
Ao abordar-se fenomenologicamente a percepção, surgem várias direções de questionamentos. Nenhuma, porém, viria a desestabilizar a linguagem de representação gráfica em seu constructo histórico, até porque é uma história de sucesso prático. Em questão, fica exposto como se compreende esse constructo e que sentidos fazem ao seu usuário e ao seu aprendiz. A abordagem desses aspectos requer reinterpretações, e a Fenomenologia sugere que isso deve ser considerado fora do internalismo das estruturas dessa linguagem.
Nesse texto, a Fenomenologia de Merleau-Ponty aparece trazendo duas direções críticas principais. Uma primeira faz termos como visada, perspectiva ou ponto-de-vista necessitarem de ser refundados em concepções mais amplas que as homólogas ao mecanismo fisiológico da visão. Já no início do século, Poincaré perguntava se não era mero convencionalismo reduzirem-se os inúmeros discernimentos visuais - a retina bidimensional, a convergência, a adaptação bi para monocular, entre tantos outros movimentos musculares dos olhos - apenas à tridimensionalidade. Retornar aos fenômenos da percepção é, pelo menos, importante para se compreender a opção histórico-cultural que se faz ao ser usuário da linguagem técnica tradicional do desenho. Essa seria uma direção ontológica.
Numa outra direção, questiona-se se o constructo da linguagem técnica do desenho serve apenas à representação, ou se ele desdobra valores da própria ciência dessa linguagem, servindo de reabertura a um pensar gráfico, que, vimos pela Fenomenologia, não se restringiria a si mesmo, mas seria reabertura de significados ao mundo dos seus fenômenos. Essa seria uma direção epistemológica.
Essas duas direções podem incidir sobre a pedagogia do Desenho, como vimos, não desfazendo o estatuto da linguagem da representação gráfica, mas interferindo na atitude do professor que se preocupa não em instruir, mas em reconstruir a cada aula a sua ciência.
A abordagem fenomenológica sobre a representação gráfica leva a uma convergência da técnica, da tecnologia e da ciência no fio condutor comum da linguagem: como coisas do homem, não são fragmentos partes-extra-partes. Ciência e tecnologia possuem significados constituídos culturalmente dentro de linguagens específicas, e estar na linguagem, seja num ambiente profissional ou didático, é reconstituir a história desses significados, cuja compreensão vai se fazendo na medida em que fazem sentido nas experiências de cada um, ao contrário de serem postos como conceitos.
Os sentidos do que é o humano se presentificam se, no uso da linguagem, ainda vive-se num processo de criação. De outra forma, isto é, se no exercício da linguagem gráfica um desenho é apenas o registro técnico-formal de um objeto, o humano se reduz ao mecânico e o ato de desenhar deixa de ser a expressão de toda a possibilidade daquele objeto.
Artigo recebido em 06/11/2000.
- BICUDO, M. A. V. A contribuição da fenomenologia à educação. in: Fenomenologia, uma visão abrangente da educação. São Paulo: Olho d'água. 1999.
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- PALLAMIN, V. Forma e percepção: considerações a partir de Maurice Merleau-Ponty São Paulo: FAUUSP, 1996.
- POINCARÉ, H. O valor da ciência Trad. de Maria H F Martins. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Ago 2003 -
Data do Fascículo
Mar 2001
Histórico
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Recebido
06 Nov 2000