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Violência e saúde

RESENHAS BOOK REVIEW

Miguel Ângelo Montagner; Rosendo Freitas de Amorim; Juliana Guimarães e Silva; Samira Valentim Gama Lira

Universidade de Fortaleza

Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. 132p.

Em boa hora nos chega o livro de Maria Cecília de Souza Minayo, que há muitos anos dedica-se ao tema. A autora dispensa apresentação, tal o grau das contribuições reconhecidas para o desenvolvimento da saúde coletiva no Brasil, autora do 'nosso clássico' O desafio do conhecimento: socióloga, antropóloga social e doutora em Saúde Pública, pesquisadora titular da Fundação Oswaldo Cruz FIOCRUZ, coordenadora científica do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (CLAVES).

O livro realiza uma reflexão sobre as repercussões da violência na saúde dos brasileiros, por meio de três vertentes: o campo sociológico de conceituação da violência, a articulação entre a violência e saúde e, por fim, as propostas para atuação no combate à violência.

O livro estrutura-se em três partes orgânicas, começando pela colocação em perspectiva histórica do fenômeno da violência, ressaltando sua complexidade e seu lugar na sociedade brasileira. Na segunda parte, o tema é subsumido à área da saúde, especialmente à saúde pública, ressaltando-se a emergência do tema na agenda atual deste campo e as diversas manifestações do fenômeno. Por fim, na terceira parte, a autora procura delinear as possibilidades de atuação e intervenção nessa realidade, concluindo com algumas propostas e sugestões pertinentes sobre o assunto.

O capítulo I destaca os aspectos teóricos e a polissemia do termo violência. Este vocábulo de origem latina vem da palavra "vis", que significa força. A autora pontua as características da violência como oriundas dos conflitos de autoridade, das lutas pelo poder, da vontade de domínio, de posse e de aniquilamento do outro ou de seus bens. Ela sublinha a visão popular da violência cuja representação dominante é a do crime e da delinqüência, ao trazer pesquisas realizadas com a população brasileira, como a carioca, que identifica quatro outros nomes para a violência: pecado, corrupção, miséria e crime. Saindo da visão popular e analisando a visão erudita, observa que a violência está arraigada nas relações sociais e, principalmente, construída no interior das consciências e subjetividades. Destaca, portanto, algumas fontes explicativas para a violência como a revolta frente à sociedade e como um meio para atingir fins objetivos.

As raízes históricas da violência, associadas à colonização e ao desenvolvimento do país, são o fulcro do capítulo II. Minayo relata os primeiros tipos de violência na época da colonização, por meio da exploração da força de trabalho dos índios e a aniquilação de sua cultura (etnocídio). Discorre também acerca da exploração das mulheres pelos imigrantes que buscavam apenas o prazer. Assim, o período colonial foi marcado pelo desprezo e crueldade. Mais recentemente, o Brasil atravessou outra fase violenta, a ditadura militar (1964-1985), na qual a população jovem, especialmente a estudantil, sofreu repressão, aprisionamento e torturas individual e coletiva, como conseqüência dos movimentos políticos. Esse momento vivenciado pela população brasileira despertou, no período seguinte da mundialização, um debate nacional para tornar a violência social uma questão pública.

O capítulo III destaca as características pós-modernas da violência: a globalização propiciou novas formas de violência além das tradicionais e seculares. A população brasileira ficou exposta durante o processo de globalização, e o incremento e exacerbação das diferenças econômicas e sociais atingiram principalmente os jovens, levando-os à adesão à criminalidade e ao tráfico de drogas.

No capítulo IV, a violência é considerada em sua transversalidade. Nesse sentido, ela influencia na saúde individual e coletiva, pois ocasiona danos, lesões, traumas e mortes, e repercute nos altos custos sociais, emocionais e na segurança pública. A violência acaba por tornar-se de interesse econômico para alguns setores, como o de segurança privada (comercialização dos sentimentos de insegurança na população), construção civil (prevenção de violência atrás de seus muros e arquiteturas "seguras"), indústria de blindagem, produção de armas, dentre outras. Por outro lado, as desigualdades sociais favorecem os riscos e propicia o comércio ilegal de armas e drogas.

No capítulo seguinte, a autora constata que a violência não costuma ser considerada um problema de saúde pública e nem um problema médico típico e, somente a partir da década de 80, a violência é incorporada na agenda da saúde púbica, tanto no Brasil como no mundo. As violências e acidentes, ao lado das doenças crônicas e degenerativas, configuram na atualidade um novo perfil no quadro dos problemas de saúde do Brasil e do mundo. Assim, a inclusão da violência na pauta do setor saúde veio pioneiramente com o problema das violências contra crianças e adolescentes; posteriormente, o movimento feminista fez sobressair a violência contra a mulher e, atualmente, os maus-tratos contra idosos começam a ser incluídos na pauta.

No capítulo VI, a autora versa acerca da fragmentação e da lentidão do setor saúde em admitir a violência como problema para área e elenca as iniciativas nesse sentido realizadas pelos profissionais da área. Para isso, uma farta documentação é apresentada (programas, planos de ação, estatutos). Minayo faz uma genealogia do tema, inicialmente discutido por pediatras, epidemiologistas e psiquiatras que publicaram seus trabalhos na década de 70, e, posteriormente, a produção científica relativa à temática que apresentou crescimento significativo nos últimos 25 anos.

No sétimo capítulo, Minayo traça o quadro de morbimortalidade ligado aos acidentes e violências, que coloca o Brasil como quarto país da América Latina em índice de violência depois da Colômbia, El Salvador e Venezuela. A partir destes e de outros dados expostos, a autora suscita a reflexão acerca do tema que se traduz como problema de saúde pública, em função da magnitude e seqüelas orgânicas, e enfatiza a necessidade de readequação do setor saúde no sentido atender a demanda gerada por suas vítimas.

A seguir, a autora discorre acerca da visão do setor saúde sobre a violência e a analisa em duas vertentes: explicativa (reflexões teóricas e filosóficas) e operacional (constatação de transtornos biológicos, físicos e emocionais em decorrência dos eventos violentos). Ressalta que os comportamentos violentos são uma associação de aspectos biológicos e sociais que permeiam a construção da subjetividade dos sujeitos.

No nono capítulo, são enfatizadas as expressões culturais da violência e suas relações com a saúde, de acordo com os grupos sociais específicos. Primeiro, a violência contra crianças e adolescentes e suas principais manifestações: estrutural - que incide sobre a condição de vida a partir de decisões histórico-econômicas e sociais, tornando-os vulneráveis; intrafamiliar - é a que acontece no lar e envolve os membros da família; institucional - responsável pela manutenção das desigualdades e exclusão social e delinqüencial - comportamentos anti-sociais e criminais produzidos pela desigualdade social. Segundo, a violência contra a mulher, evidenciada pela violência de gênero: sexual, física, emocional, psicológica e social. A violência contra o idoso caracteriza-se por um ato ou omissão que causa dano ou aflição e ocorre em um tipo de relação em que existe expectativa de confiança entre o idoso e seu cuidador. Dessa forma, ele fica exposto a abusos físicos, psicológicos, sexuais e financeiros, além de abandonos, negligências e manifestações de autonegligências.

No capítulo X, analisa-se o modelo ecológico proposto pela Organização Mundial da Saúde para explicar a origem da violência, que busca a identificação de fatores biológicos, relacionais, comunitários e sociais capazes de desencadear comportamentos e atos violentos. Para Minayo, a metodologia para compreender e dimensionar os impactos da violência na saúde passa pela utilização de ações inter e transdisciplinares, com abordagens quantitativa e qualitativa direcionadas para a magnitude e os sentidos do fenômeno.

No último capítulo, Minayo aprofunda-se no desvelamento da relação entre os conceitos e os sentidos da violência em nosso contexto histórico, cultural e social e a ação do setor saúde. Para ela, nossa prática deve pautar-se nas diretrizes da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. O capítulo finaliza-se com a valorização do cuidado e da prevenção, o que coloca o campo da saúde como o setor-chave no enfrentamento da violência.

O livro oferece uma compreensão ampla do fenômeno da violência em suas diferentes facetas e contextos. Além disso, amplia a capacidade de análise diante deste tema complexo que afeta a população brasileira nos mais diversos âmbitos da vida humana, dentro da perspectiva da promoção da saúde.

A linguagem simples, clara e concisa permite o uso desta produção científica por leigos, profissionais de saúde, docentes e acadêmicos, o que facilita o acesso a este conhecimento, que se configura de fundamental importância na realidade do Brasil contemporâneo.

É de indiscutível relevância a contribuição desta obra para o enfrentamento da violência, bem como para a sensibilização dos profissionais de saúde em relação ao reconhecimento, abordagem e atuação destes profissionais diante dos casos de pacientes vitimados pela violência. Minayo surpreende-nos com um livro que, embora recente, se apresenta como um novo clássico na área.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2008
  • Data do Fascículo
    Abr 2008
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