Acessibilidade / Reportar erro

A complexidade da mistura racial no Brasil: a hemoglobina S como marcador étnico nas suas populações

The complexity of racial admixture in Brazil: hemoglobin S as an ethnic marker in its population

CARTA AO EDITOR LETTER TO EDITOR

A complexidade da mistura racial no Brasil: A hemoglobina S como marcador étnico nas suas populações

The complexity of racial admixture in Brazil: hemoglobin S as an ethnic marker in its population

Antonio S. RamalhoI; Luís A. MagnaI; Tiago GiraldiII

IProfessor Titular

IIBolsista PIBIC/CNPq

ABSTRACT

Black people and mulattoes constitute circa 45% of the Brazilian population, and there exists quite a controversy concerning the correct use of the terms Negro, Negroid or Afro-descendant to name this ethnic category. Since the hemoglobin S gene comes predominantly from African descendants, the study of this genetic disorder contributes greatly to the discussion of such a polemic matter. Recently we studied a sample of 817 heterozygous non-consanguineous individuals for the hemoglobin S gene (513 males and 304 females), aged between 18 and 65 years, voluntarily detected in the population of Campinas, State of São Paulo, Brazil. An analysis of the subjects showed that only 53% of the individuals' African ancestry was revealed by his/her phenotype. The gene composition of the individuals in this sample estimated the Negroid gene stock contribution as 45%, the Caucasoid gene stock contribution as 41% and the remaining 14% due to Amerindian gene stock. These data demonstrate that the wide miscegenation that has occurred in Brazil, as well as many internal and external migration streams have dissociated the hemoglobin S from the color of the skin of its carriers. In face of the diversity of criteria used in ethnic classifications, we choose to adopt the term Negroid in our research, which has been well established in Population Genetics, and which is also based upon objective definition criteria.

Key words: Hemoglobin S; Ethnic groups; Racial admixture.

Palavras-chave: Hemoglobina S; grupos étnicos; miscigenação racial.

Senhor Editor

O censo brasileiro pede às pessoas que se classifiquem dentro de uma das cinco categorias seguintes: branco, preto, pardo, indígena ou amarelo (oriental). Pretos e pardos constituem 45% de toda a população e cerca de 99% da população "não branca".1,2 Curiosamente, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios,2 apenas 5,4% dos brasileiros declaram a sua cor como preta.

Como comenta Heringer,3 no Brasil o conceito de raça encontra-se mais relacionado à cor da pele e aos traços faciais do que à ancestralidade. Isso levou alguns estudiosos a analisar a classificação racial brasileira não como "grupos raciais", mas como "grupos de cor".4

Tendo em vista essa diversidade de critérios, bem como a flexibilidade de classificação de cor no Brasil, pretos e pardos são geralmente considerados juntos nas pesquisas, constituindo uma única categoria, assumindo-se que esses indivíduos possuem ascendência africana. Existe muita celeuma, no entanto, quanto à adequação dos termos negro, negróide ou afro-descendente, para designar essa categoria étnica, nem sempre havendo concordância entre o cientificamente adequado e o politicamente correto. Como o gene da hemoglobina S tem origem predominantemente africana, o estudo dessa alteração genética traz uma contribuição importante à discussão desse tema, que diz respeito a grande parte da população brasileira.

Estudamos recentemente uma amostra de 817 heterozigotos do gene da hemoglobina S (513 homens e 304 mulheres), não consangüíneos, com idade entre 18 e 65 anos, detectados voluntariamente na população de Campinas, SP.5 Trata-se, portanto, de uma das maiores amostras brasileiras de portadores do traço falciforme, adultos, não consangüíneos e não relacionados a homozigotos doentes, detectados aleatoriamente em uma única cidade. A análise dessa casuística revelou que apenas 53% dos indivíduos tiveram a sua ancestralidade africana evidenciada pelo seu fenótipo, investigado pelos próprios autores da pesquisa, mediante a utilização de critérios objetivos (cor da pele, características faciais e tipo de cabelo). Investigando a composição genômica dessa amostra, mediante a análise da freqüência dos alelos do sistema ABO e comparação com a freqüência descrita em negros africanos, europeus latinos e índios brasileiros, metodologia recomendada por Beiguelman6 para o estudo de populações tri-híbridas, estimamos a contribuição gênica ne-gróide em 45%, caucasóide em 41% e indígena em 14%. É interessante mencionar, por outro lado, que 36% dos indivíduos que compuseram essa amostra diagnosticada em Campinas eram geneticamente nordestinos (os quatro avós nascidos no Nordeste, sobretudo na Bahia).

Esses dados demonstram, portanto, que a notável miscigenação ocorrida no Brasil, bem como as diversas correntes imigratórias internas e externas, já dissociaram a hemoglobina S da cor da pele dos seus portadores, apesar dessa alteração genética continuar sendo um marcador étnico importante. Embora tais dados tenham sido observados em uma cidade do Sudeste, eles também se aplicam, em maior ou menor escala, às outras regiões do País.

Assim, por exemplo, um portador do traço falciforme com pele branca, cabelos loiros, olhos azuis e características faciais européias (avós maternos italianos, avô paterno alemão e avó paterna negra, com ascendência africana) certamente não poderá ser classificado como negróide, pelas suas características fenotípicas, mas poderá ser classificado corretamente como afro-descendente, pela sua ascendência. Não existem critérios objetivos que permitam ou não classificá-lo como negro, embora seja pouco provável que ele se autorotule dentro dessa categoria étnica. Caso ele o faça, no entanto, visando algum benefício social, a sua declaração não poderia ser contestada. A análise do seu DNA evidenciará, inclusive, a presença de algum haplótipo africano do "cluster" beta-S, provavelmente Bantu ou Benin.

Frente à fragilidade desses conceitos, optamos por adotar em nossas pesquisas o termo negróide (sufixo óide = parecido com), já consagrado em Genética de Populações e que se ampara em critérios objetivos de definição.6 Já em termos assistenciais, consideramos a hemoglobina S como uma característica genética que interessa à população brasileira, independentemente da cor da pele dos indivíduos. É interessante comentar, no entanto, que o termo científico negróide sofre certa rejeição por parte da população afro-descendente leiga, que lhe atribui, erroneamente, uma conotação pejorativa. O mesmo acontece atualmente com o termo mulato, muito usado na literatura relativamente recente.

Referências Bibliográficas

1. IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Contagem da população. IBGE, Rio de Janeiro, 2000.

2. IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. IBGE, Rio de Janeiro, 1999.

3. Heringer R. Desigualdades raciais no Brasil: síntese de indicadores e desafios no campo das políticas públicas. Cad. Saúde Pública 2002; 18(Supl.):57-65.

4. Degler CN. Neither Black or White. University of Wisconsin Press, Madison, 1991.

5. Giraldi T; Magna LA; Ramalho AS. Estudo genético-epidemiológico da hemoglobina S em uma população paulista (Campinas, SP). Anais do XIIIº Congresso Interno de Iniciação Científica da Unicamp 2004, pag. 51.

6. Beiguelman B. Dinâmica dos genes nas famílias e nas populações. Editora da Sociedade Brasileira de Genética, Ribeirão Preto, 1994.

Recebido: 22/09/2005

Aceito: 06/12/2005

Departamento de Genética Médica, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas.

Avaliação: Editor e dois revisores externos.

Conflito de interesse: não declarado

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Ago 2006
  • Data do Fascículo
    Mar 2006
Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia e Terapia Celular R. Dr. Diogo de Faria, 775 cj 114, 04037-002 São Paulo/SP/Brasil, Tel. (55 11) 2369-7767/2338-6764 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria@rbhh.org