Recorrente na história da educação brasileira, sobretudo a partir do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, a demanda por uma escola pública de qualidade e para todos pode ser compreendida no horizonte de uma escola de tempo integral e de formação humana integral. Esse tempo é considerado na perspectiva do que dispõe o Artigo 34 da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), enquanto ampliação de jornada, para além do turno, o que fraciona, fratura e caracteriza nosso sistema educacional. Já a formação humana entende-se no contexto do desenvolvimento integral e global de cada um e de todas e de todos, para além do aspecto cognitivo, que caracteriza a organização da escola básica brasileira.
A proposição deste dossiê, com foco nos desafios e nas possibilidades de uma escola de tempo e de formação humana integrais, no campo das políticas afirmativas de direitos, dialoga com a contemporaneidade brasileira, momento em que o poder público, em suas diferentes esferas, vem avançando na construção da "educação integral de tempo integral" na escola.
Em um contexto de desigualdades econômicas, políticas e sociais, em que o acesso à educação, à ciência, à cultura e à tecnologia vincula-se, via de regra, ao pertencimento de classe, a construção da escola básica de dia inteiro deve ser compreendida como parte das políticas afirmativas de direitos e de enfrentamento de desigualdades.
O padrão reduzido de tempo escolar é preponderante em escolas que atendem a populações que historicamente estiveram à margem das políticas públicas, os silenciados e os esquecidos de nossa sociedade. Já as camadas médias, de modo geral, complementam a jornada educativa diária de seus filhos com atividades esportivas, culturais, artísticas, o aprendizado de línguas estrangeiras, entre outras, convergindo para a ideia do tempo ampliado e da formação humana em múltiplas dimensões. Para esses, mais atividades formativas; para aqueles, ingresso prematuro e precário no mundo do trabalho, o que caracteriza uma dualidade mantenedora da estrutura de classes.
A jornada escolar reduzida no seu tempo diário dá conta de opções políticas realizadas historicamente pelos grupos dirigentes da sociedade brasileira, em detrimento de uma expansão igualitária da rede escolar. Nesse sentido, o sistema educacional brasileiro, além de tardio (em relação aos de outros países republicanos), pode ser caracterizado como desigual e seletivo por não ter assegurado, ao longo da história, condições iguais de acesso e permanência a populações tão desiguais nas suas condições concretas de existência. Ao contrário disso, as piores condições materiais de funcionamento escolar foram reservadas exatamente para aqueles que mais precisam da escola. Portanto, a ampliação da jornada escolar na perspectiva da educação integral dialoga tanto com avanços consolidados mundo afora em termos de direitos educativos das novas gerações quanto com as demandas da sociedade brasileira no enfrentamento de suas desigualdades estruturais.
A escola de tempo e formação integrais, desse modo, em sua contextualização e sentido, requer um projeto histórico, cultural e socialmente relevante caracterizado pela diversificação de conteúdos, de metodologias e pela oferta de atividades educativas que atendam às necessidades e desenvolvam as potencialidades dos estudantes. Requer ainda a otimização e a adequação de sua infraestrutura; a formação dos profissionais da educação, bem como a ampliação do tempo de dedicação; a garantia de condições de trabalho adequadas; uma dinâmica e uma organização curriculares coerentes, que produzam sentido para a ampliação do tempo escolar e garantam diálogo com os contextos sociais, políticos e culturais das realidades nas quais a escola está inserida.
Tomando-se como referência os novos dispositivos legais nesse campo, sobretudo os contidos na Lei 13.005/2014, que dispõe acerca do Plano Nacional de Educação, nos próximos 10 anos, pelo menos metade das escolas públicas brasileiras - cerca de 90 mil escolas - e 25% dos estudantes brasileiros da educação básica - cerca de 12 milhões de estudantes - deverão estar em tempo integral. Por meio do Programa Mais Educação, estratégia indutora do governo federal para ampliação de tempos, espaços e oportunidades formativas nas escolas, esse processo foi desencadeado.
Posto isso, este dossiê propõe a discussão de temas relacionados à complexidade dessa construção no contexto de políticas afirmativas de direitos. Parte-se de questões que interpelam a natureza e o propósito do tempo ampliado na escola: mais tempo na escola implicará, necessariamente, redesenho de sua organização curricular na perspectiva da formação integral? Na construção do tempo integral como política pública, explicitam-se pressupostos de uma política afirmativa de direitos? Em que medida as vozes das infâncias e das juventudes brasileiras são ouvidas nos "novos" desenhos da vida escolar? Como explicitam-se interesses divergentes acerca de mais tempo na escola? Como essa política de mais tempo escolar não se confunde com hiperescolarização, avançando para novos territórios e novos sentidos?
Em tempos de acirramento dos projetos em disputa no Brasil, o dossiê se pauta pela perspectiva da Educação Integral como direito, o qual não se reduz apenas à ampliação dos tempos escolares, trazendo uma outra forma de olhar para os sujeitos e seus processos formativos, na perspectiva de uma educação integral em que escola, família, comunidade e a própria cidade sejam educadoras e aprendizes em um processo coletivo de formação. Os textos aqui presentes convergem para a afirmação da escola pública de qualidade e para todos, problematizando e qualificando o debate sobre a ampliação da jornada escolar e a educação integral.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2015