Acessibilidade / Reportar erro

Percepção de consumidores de drogas sobre família: um estudo fenomenológico

RESUMO

Objetivo:

compreender a percepção de consumidores de drogas acerca do “ser família” no contexto de sua reabilitação psicossocial.

Método:

fundamentado no referencial teórico-filosófico de Maurice Merleau-Ponty. Realizado com onze usuários do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD) em um município da região Sul da Bahia, Brasil, por meio do Grupo Focal, em agosto de 2015. O material resultante foi submetido à técnica Analítica da Ambiguidade.

Resultados:

as leituras das descrições vivenciais permitiram a definição da categoria temática: Nuances do ser família: visão materialista e existencial.

Considerações finais:

os resultados do estudo convergiram para a compreensão de que o consumidor de álcool e outras drogas reconhece o “ser família” a partir de duas dimensões: uma mais materialista e outra existencialista, as quais precisam ser consideradas no processo de reabilitação psicossocial desse usuário.

Descritores:
Enfermagem; Drogas Ilícitas; Família; Reabilitação; Saúde Mental

ABSTRACT

Objective:

to understand the perception of drug users about “being a family” in the context of their psychosocial rehabilitation.

Method:

based on the theoretical-philosophical reference of Maurice Merleau-Ponty. It was carried out with eleven users of the Center for Psychosocial Care Alcohol and other Drugs (CAPS AD) in a municipality in the South of Bahia, Brazil, through the Focal Group, in August 2015. The resulting material was submitted to the Ambiguity Analytical Technique.

Results:

the readings of the descriptions allowed the definition of the thematic category: Nuances of being family: materialist and existential view.

Final considerations:

the results of the study converged to the understanding that the user of alcohol and other drugs recognizes the “being a family” from two dimensions: a more materialistic, and an existentialist, which need to be considered in the process of psychosocial rehabilitation of this user.

Descriptors:
Nursing; Illegal Drugs; Family; Rehabilitation; Mental Health

RESUMEN

Objetivo:

comprender la percepción de los consumidores de drogas acerca del ser familiar en el contexto de su rehabilitación psicosocial.

Método:

fundamentado en el referencial teórico-filosófico de Maurice Merleau-Ponty. Realizado el estudio con once usuarios del Centro de Atención Psicosocial Alcohol y otras Drogas (Caps ad) en un municipio de la región Sur de Bahía, Brasil, a través del Grupo Focal, en agosto 2015. El material resultante fue sometido a la técnica Analítica de la Ambigüedad.

Resultados:

las lecturas de las descripciones vivenciales permitieron la definición de la categoría temática: Nuances del ser familia: una visión materialista y existencial.

Consideraciones finales:

los resultados del estudio convergieron para la comprensión de que el consumidor de alcohol y otras drogas reconoce el “ser familia” a partir de dos dimensiones: una más materialista y otra existencialista, las cuales necesitan ser consideradas en el proceso de rehabilitación psicosocial de ese usuario.

Descriptores:
Enfermería; Las Drogas Ilícitas; Familia; Rehabilitación; Salud Mental

INTRODUÇÃO

A família, vista como sistema aberto que tem identidade própria e comunicação multidirecional(11 Mangueira SO, Lopes MVO. Dysfunctional family in the context of alcoholism: concept analysis. Rev Bras Enferm[Internet]. 2014[cited 2015 Feb 10];67(1):149-54. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n1/0034-7167-reben-67-01-0149.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n1/003...
), é uma unidade de cuidado com organização dinâmica e complexa cujos integrantes são amplamente influenciados pela estrutura econômica, política e social na qual ela está inserida. Nesse espaço, são definidos valores espirituais, sociais, éticos, morais e conceituais do ser humano(22 Nunes ECDA, Silva LWS. Nurse subjectivity expressing the significance of family care through art. Texto Contexto Enferm[Internet]. 2011[cited 2015 Feb 10];20(3):453-60. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v20n3/05.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v20n3/05.pd...
-33 Soccol KLS, Terra MG, Girardon-Perline NMO, Ribeiro DB, Silva CT, Camillo LA. Family care to individuals dependent on alcohol and other drugs. Rev Rene[Internet]. 2013[cited 2015 Feb 10];14(3):549-57. Available from: http://www.revistarene.ufc.br/revista/index.php/revista/article/view/1104
http://www.revistarene.ufc.br/revista/in...
).

As inúmeras mudanças e transformações dos séculos XX e XXI produziram reflexos nas relações familiares, intensificando novos e variados arranjos, bem como alterando as concepções de conjugalidade e parentalidade(44 Souza ABL, Beleza MCM, Andrade RFC. New family arrangements and challenges to family law: a reading from the court of Amazon. PRACS[Internet]. 2012[cited 2015 Mar 15];5:105-19. Available from: http://periodicos.unifap.br/index.php/pracs/article/viewArticle/577
http://periodicos.unifap.br/index.php/pr...
). Para estes autores, a formação dos arranjos familiares, vistos como tipo de organização, não tem a ver com o fato de ter ou não laços consanguíneos, incluindo famílias nucleares (pai, mãe e filhos), extensas (incluindo três ou quatro gerações), homoafetivas (casais do mesmo sexo, com ou sem filhos), monoparentais (chefiadas só por um dos genitores) e reconstituídas (após a separação conjugal)(44 Souza ABL, Beleza MCM, Andrade RFC. New family arrangements and challenges to family law: a reading from the court of Amazon. PRACS[Internet]. 2012[cited 2015 Mar 15];5:105-19. Available from: http://periodicos.unifap.br/index.php/pracs/article/viewArticle/577
http://periodicos.unifap.br/index.php/pr...
).

Em meio a tantas mudanças que a família vem sofrendo, estudiosos passaram a vê-la como objeto de estudo nas diversas áreas de conhecimento; a exemplo da psicologia, da sociologia, da antropologia e da saúde; uma vez que se trata de um dos dispositivos sociais no qual se pode compreender as interrelações humanas, em suas nuances e desdobramentos micropolíticos, estabelecidos por relações afetivas e de poder entre seus membros. Tal perspectiva nos conduz à compreensão da família como uma estrutura social dinâmica, complexa, global, diversa e única, dentre outros aspectos que caracterizam sua multidimensionalidade e ultrapassam as definições associadas à consanguineidade e afinidade(55 Figueiredo MHJS, Martins MMFPS. From practice contexts towards (co)construction of family nursing care models. Rev Esc Enferm USP[Internet]. 2009[cited 2015 Mar 15];43(3):615-21. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43n3/a17v43n3.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43n3/a1...
).

A família pode constituir-se tanto como um fator de adversidade quanto de proteção aos processos de saúde e doença de seus integrantes(11 Mangueira SO, Lopes MVO. Dysfunctional family in the context of alcoholism: concept analysis. Rev Bras Enferm[Internet]. 2014[cited 2015 Feb 10];67(1):149-54. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n1/0034-7167-reben-67-01-0149.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n1/003...
). Isso ocorre porque suas relações são modificadas quando um dos membros apresenta um problema de saúde, a exemplo do alcoolismo, que tanto pode desestruturar a família como pode despertar nela processos de adaptação e resiliência(11 Mangueira SO, Lopes MVO. Dysfunctional family in the context of alcoholism: concept analysis. Rev Bras Enferm[Internet]. 2014[cited 2015 Feb 10];67(1):149-54. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n1/0034-7167-reben-67-01-0149.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n1/003...
).

O consumo de álcool e outras drogas não pode ser entendido sem se considerar as mudanças estruturais e organizacionais apresentadas atualmente no núcleo familiar, problema esse influenciado por inúmeros fatores que perpassam questões sociais, culturais, econômicas, políticas, e entre outras que envolvem a sociedade moderna. Portanto, os profissionais do serviço, a família e os usuários precisam reconhecer esse contexto e passar a definir estratégias para superar esse desafio, com vistas a aumentar a resiliência e construir possibilidades de reabilitação psicossocial, incluindo ações voltadas tanto para os usuários quanto para sua família(66 Silva BLC, Araújo AP, Carvalho RN, Azevedo EB, Moraes MN, Queiroz D. Participation of family members in the treatment of alcohol and drug users from the psychosocial care center. Rev Bras Pesq Saúde[Internet]. 2012[cited 2015 Mar 25];14(4):61-6. Available from: http: www.periodicos.ufes.br/RBPS/article/download/5120/3846
http: www.periodicos.ufes.br/RBPS/articl...
).

Diante da diversidade de fatores e da complexidade que envolve o consumo de drogas, o Ministério da Saúde criou o Programa Nacional de Atenção Integrada aos Usuários de Álcool e outras Drogas com o objetivo de organizar ações de promoção, prevenção, proteção à saúde e educação desses usuários, a partir de uma rede estratégica de serviços extra-hospitalares e que inclui a participação da família, articulada à rede de atenção psicossocial e fundamentada na abordagem de redução de danos(77 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. Brasília: OPAS; 2005[cited 2015 Mar 25]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
).

Assim, a família, vista no contexto da política brasileira sobre drogas como um suporte indispensável no processo de reabilitação das pessoas que consomem álcool e outras drogas de forma habitual, passa a ser considerada como uma parceira no tratamento, apontada como o alicerce e a fonte de manutenção do vínculo social de seu familiar(88 Alvarez SQ, Gomes GC, Oliveira AMN, Xavier DM. Support group as a strategy of care: the importance for relatives of drug users. Rev Gaúcha Enferm[Internet]. 2012[cited 2015 Mar 25];33(2):102-8. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v33n2/15
http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v33n2/15...
). Além disso, a família pode ser vista pelos profissionais dos serviços de saúde como necessitada de cuidado, o que sugere a manutenção de uma rede de suporte social que seja capaz de romper com o modelo de assistência fragmentado, focado apenas no consumidor de drogas(99 Sena ELS, Boery RNSO, Carvalho PAL, Reis HFT, Marques AMN. Alcoholism in family context: a phenomenological approach. Texto Contexto Enferm[Internet]. 2011[cited 2015 Apr 11];20(2):310-18. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v20n2/a13v20n2.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v20n2/a13v2...
).

Em nossa vivência em serviços de saúde mental, em um município da região Sul da Bahia, mais especificamente no Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas (CAPS AD), percebemos a ausência das famílias nas atividades desenvolvidas pela equipe de saúde mental. Isso nos inquietou profundamente e nos fez refletir sobre o papel da família no itinerário terapêutico e de reabilitação psicossocial de um familiar que consome droga de forma habitual.

Ao percebermos que, apesar da Política Nacional de Saúde Mental preconizar a corresponsabilização da família pela reabilitação psicossocial dos usuários dos serviços de saúde mental, os familiares continuam distantes desse processo; e ao reconhecermos que a família pode constituir-se como fator de proteção ao contribuir para a resiliência e empoderamento dos seus membros, ocorreu-nos a ideia de realizar uma pesquisa a partir do seguinte questionamento: como usuários de um CAPS AD veêm a família no contexto de sua reabilitação psicossocial?

OBJETIVO

Compreender a percepção de consumidores de drogas acerca do “ser família” no contexto de sua reabilitação psicossocial, à luz da abordagem fenomenológica de Merleau-Ponty.

MÉTODO

Aspectos éticos

Obtivemos a autorização dos participantes por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE). O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), respeitando as disposições legais para pesquisa com seres humanos, de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466/12(1010 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde-CNS. Resolução Nº 466 de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília: MS; 2012[cited 2015 Feb 25]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
).

Referencial teórico-metodologico e tipo de estudo

Trata-se de um estudo fenomenológico, fundamentado no referencial teórico-filosófico de Maurice Merleau-Ponty, o qual nos levou a reconhecer que “olhar o objeto é entranhar-se nele [...] e vir habitá-lo e dali aprender todas as coisas, [...] ele está exposto por inteiro, suas partes coexistem, seu presente não apaga seu passado, seu futuro não apaga seu presente”(1111 Merleau-Ponty M. A fenomenologia da percepção. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.).

A fenomenologia merleau-pontyana defende que a percepção do fenômeno sempre ocorre de forma ambígua, em um campo fenomenal, onde o sentimento e a reflexão mostram-se de forma entrelaçada(1111 Merleau-Ponty M. A fenomenologia da percepção. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.). Tal perspectiva nos mobiliza a entender o contexto macro no qual o consumidor de drogas e sua família estão envolvidos; permite-nos refletir sobre as correlações estabelecidas por eles no mundo da vida (sentir) e no mundo da cultura (refletir), sem definir causa e efeito, com isso, conseguimos quebrar a lógica positivista e gerar um contra-argumento reflexivo sobre o assunto(1212 Reis HFT, Moreira TO. Crack in the family’s context: a phenomenological approach. Texto Contexto Enferm[Internet]. 2013[cited 2015 Aug 18];22(4):1115-23. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n4/30.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n4/30.pd...
).

Cenário do estudo

O campo da pesquisa foi o CAPS AD, localizado em um município do sul da Bahia, que foi escolhido por caracterizar como espaço favorável à expressão da criatividade, construção de vida e estabelecimento de pontes com a sociedade(1313 Azevedo DM, Miranda FAN. Professional practice and treatment offered in CAPS ad in the city of Natal-RN: with the word, the family. Esc Anna Nery Rev Enferm[Internet]. 2010[cited 2015 Aug 10];14(1):56-63. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v14n1/v14n1a09.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ean/v14n1/v14n1...
). A escolha também ocorreu a partir da retomada da necessidade de desenvolvermos estudos que revelem novas possibilidades de olhar o processo de reabilitação psicossocial proposto neste campo, até porque o aumento da implantação desse tipo de serviço não coaduna com o número de publicações, que além de insuficientes, concentram-se nos centros de pós-graduação disseminados pelo país(1414 Zanatta AB, Garghetti FC, Lucca SR. Psychosocial attention center for alcohol and other drugs in the perception of user. Rev Baiana Saúde Pública[Internet]. 2012[cited 2015 Aug 10];36(1):225-37. Available from: http://files.bvs.br/upload/S/0100-0233/2012/v36n1/a3011.pdf
http://files.bvs.br/upload/S/0100-0233/2...
).

Fonte de dados

Participaram da pesquisa onze usuários do CAPS AD, sendo dez homens e uma mulher; entre os homens, oito declararam-se solteiros e dois casados; e a mulher declarou-se solteira. Iniciaram o consumo de drogas com idade entre 10 e 20 anos, sendo que todos faziam acompanhamento no CAPS AD há mais de um ano. Em relação ao vínculo familiar, apenas um declarou não ter família, dois conviviam com algum familiar, e os demais mantinham o vínculo através das redes sociais, ligações telefônicas, encontros virtuais e presenciais. Como critérios de inclusão, foram adotados: ser usuário cadastrado e em tratamento no CAPS AD há, no mínimo, seis meses; frequentar o serviço, pelo menos três dias/semana; e ser maior de 18 anos de idade. A fim de preservar o anonimato, foram atribuídos codinomes de pedras preciosas aos participantes.

Coleta e organização dos dados

A produção das descrições vivenciais ocorreu em agosto de 2015, por meio de dois encontros de Grupo Focal (GF), com duração aproximada de uma hora e meia, realizados na sala de convivência do CAPS AD sob a facilitação de um mediador (coordenadora da pesquisa) e um observador. O observador registrava a discussão do encontro sem fazer inferências e o mediador estimulava os participantes a falarem livremente; encorajando-os a expressarem sentimentos, opiniões e pareceres sobre suas percepções de família; e além de manter a discussão focalizada, resumia e retomava o assunto quando alguém se desviava dele(1515 Trad LAB. Focal groups: concepts, procedures and reflections based on practical experiences of research works in the health area. Physis[Internet]. 2009[cited 2015 Feb 10];19(3):777-96. Available from: http://www.scielo.br/pdf/physis/v19n3/a13v19n3.pdf
http://www.scielo.br/pdf/physis/v19n3/a1...
).

A questão aberta “comente sobre o que significa família para você”, relacionada à temática do estudo, disparou o diálogo e norteou as discussões do encontro. Baseadas no referencial de Merleau-Ponty, buscamos dialogar com participantes para nos aproximar das coisas mesmas, oportunizar o desvelar do contexto e garantir que o fenômeno fosse percebido em si mesmo para que pudéssemos conhecer a experiência vivida(1111 Merleau-Ponty M. A fenomenologia da percepção. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.). As falas do GF foram gravadas em equipamento digital, conforme consentimento dos participantes.

Análise dos dados

As descrições vivenciais foram submetidas à técnica Analítica da Ambiguidade, que consistiu na operacionalização das seguintes etapas: construção do texto a partir da transcrição das gravações na íntegra; leituras minuciosas do texto com o objetivo de reconhecer os fenômenos em si mesmos, a partir de si mesmos, mediante o olhar figura-fundo estabelecido pelo exercício perceptivo; definição dos eixos temáticos que se exprimiram como ambiguidades, ou seja, desvelaram-se segundo o entrelaçamento das dimensões humanas: sensível (sentimento) e reflexiva (pensamento)(1616 Sena ELS, Gonçalves LHT, Müller Granzotto MJ, Carvalho PAL, Reis HFT. Analytics of ambiguity: methodological strategy to the phenomenological research in health. Rev Gaúcha Enferm[Internet]. 2010[cited 2015 Feb 15];31(4):769-75. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v31n4/a22v31n4.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v31n4/a22...
). Com isso, o resultado do GF não consistiu em uma troca de informações, mas um caminho para a construção de outras possibilidades(1717 Sena ELS, Carvalho PAL, Reis HFT, Souza VS. The care intersubjectivity and the knowledge in the phenomenological perspective. Rev Rene[Internet]. 2011[cited 2015 Feb 15];12(1):181-8. Available from: http://www.revistarene.ufc.br/vol12n1_pdf/a24v12n1.pdf
http://www.revistarene.ufc.br/vol12n1_pd...
). O estudo desvelou a categoria Nuances do ser família: visão materialista e existencial, que foi discutida nos resultados.

RESULTADOS

Na filosofia merleau-pontyana, as coisas devem ser percebidas a partir de sua existência intersubjetiva. Portanto, a pesquisa foi desenvolvida com essa perspectiva, e não como uma tentativa de formular explicações para os fenômenos revelados à percepção, uma vez que correríamos o risco de perder a capacidade de reconhecer o que existe além do plano objetivo. Para tanto, foi preciso abandonarmos o postulado empirista da prioridade dos conteúdos e ficarmos livres para reconhecer o modo de existência singular que nos ocorre por meio da percepção(1111 Merleau-Ponty M. A fenomenologia da percepção. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.).

Esse artigo, cujo objetivo consiste em compreender a percepção de consumidores de drogas acerca do “ser família” no contexto de sua reabilitação psicossocial, revelou que toda tentativa dos participantes de objetivar o que é ser família foi insuficiente para exprimir o significado da experiência. Assim, reconhecemos que a categoria Nuances do ser família: visão materialista e existencial, objetivada como resultado do estudo, apareceu como ambiguidade do processo perceptivo, sendo que este “se manifesta ora com uma experiência sensível, ora como uma experiência reflexiva”(1717 Sena ELS, Carvalho PAL, Reis HFT, Souza VS. The care intersubjectivity and the knowledge in the phenomenological perspective. Rev Rene[Internet]. 2011[cited 2015 Feb 15];12(1):181-8. Available from: http://www.revistarene.ufc.br/vol12n1_pdf/a24v12n1.pdf
http://www.revistarene.ufc.br/vol12n1_pd...
).

Do mesmo modo, foi possível compreender a percepção de consumidores de drogas acerca do “ser família” segundo duas perspectivas: a primeira, desvelada como materialista, atrelada à própria construção socioantropológica dos usuários nessa sociedade ocidental moderna cujos caracteres todos nós herdamos: princípios, valores morais e éticos, crenças, costumes, que reforçam mais o ter, ao invés do ser, vinculando as relações ao cunho utilitarista; e outra, mais existencialista, orientada por sentimentos instintivos de pertencimento e afetividade.

Na primeira perspectiva, a materialista, os participantes do estudo revelaram que “ser família” é atender às necessidades de seus membros, independente das diferenças. No momento em que os usuários mais precisam, contam com a família, que, geralmente, não se nega ao cuidado, uma vez que eles depositam grande expectativa nela, como percebemos nas descrições a seguir:

Família é alguém que a gente pode contar. Mesmo com algumas brigas, divergências entre os membros, com certeza, no momento que a gente mais precisar, eles vão estar do nosso lado. Trata-se de uma amizade verdadeira, alguém que a gente pode contar. (Pérola)

Família são aquelas amizades verdadeiras, que lhe ajudam mesmo, não tendo nenhum grau de parentesco com você. (Topázio)

Ainda nessa perspectiva, a relação familiar parece ter se estabelecido por um cunho utilitarista. A família, além de estar presente nas diversas situações da vida, precisava oferecer ajuda e apoio de todas as formas, inclusive financeiro, conforme apareceu nas seguintes descrições:

Eu já fui preso em um presídio. Para vocês terem uma ideia: comprava droga e não pagava, mas minha família depositava o dinheiro, procurava me ajudar de todas as formas. (Topázio)

Em nenhum momento em minha vida minha família me deixou sem apoio. Minha família me apoia. Eles pagam o meu aluguel direitinho, no dia certo, mandam comida para que eu possa aprontar. (Esmeralda)

Eu sou o irmão que minhas irmãs mais gostam. É a mim, que elas procuram. Eu podendo ajudar, eu ajudo; também, na hora que eu preciso, elas me ajudam. (Turmalina)

A família é a formação de um grupo genético que, dentro da sociedade, se ajuda mutuamente. (Diamante)

Eu ligo para minha mãe e ela pergunta: Meu filho, está precisando de quê? Eu ligo para minha irmã, ela diz a mesma coisa; ligo para meu irmão, ele diz a mesma coisa. (Esmeralda)

Com relação à perspectiva existencialista, as falas demonstraram que “ser família” é ter um vínculo afetivo, de tal forma que a pessoa é capaz de reconhecer carinho, companheirismo, amizade, lealdade e união como sentimentos necessários na constituição do “ser família”. A intersubjetividade fez ver que a relação intrafamiliar deve garantir a seus membros apoio, direcionamento, tolerância, doação, indissolubilidade, afeto, comprometimento, respeito e compreensão, conforme mostraram as falas:

Família é afeto, carinho, companheirismo, amizade verdadeira. (Pérola)

Família para mim é uma pessoa boa. (Turmalina)

Família é cumplicidade, lealdade, legião da boa vontade. (Ametista)

Eu mesmo, tenho família, agora, família para mim, a gente tem que ter união, quando a gente não tem união com a família, nada dá certo. (Turmalina)

Família é aquela que oferece um ombro amigo para desabafar, para falar de minha vida, para me ajudar a achar o caminho. (Rubi)

Ninguém suportaria o nosso temperamento, como eles suportam. Isso é muito importante, eu fico feliz por isso, não é? De alguém ter carinho por nós. (Pérola)

Meu pai e minha mãe nunca me abandonaram. (Jade)

O vínculo afetivo remeteu os participantes do estudo à ideia de coexistência no mundo e, com isto, ocorreu-lhes a sensação de que não estavam sozinhos, um sentimento de pertencimento, origem, ligação a outrem, inclusive a Deus, como desvelaram as descrições a seguir:

Eu jamais poderia falar que eu fui gerado por um desconhecido, eu fui gerado por minha mãe e mãe é família, irmão é família. (Topázio)

Meu pai cuida de mim bastante, eu agradeço por tudo, por essa família grandiosa, ele faz quase o impossível para me deixar bem. (Jade)

A família é aquela que cuida dos filhos, cuida da mulher e dá lição de moral para a gente aprender. (Ágata)

Família é Deus. Somos frutos de Deus. Deus é família, Ele nunca me abandonou. Deus é tão fiel, que nunca me abandonou. (Jade)

O estudo fez ver a permanência do modelo da família nuclear na reflexão dos participantes. Mesmo em uma sociedade moderna cercada por novos arranjos familiares, neste estudo, a família é percebida em nível nuclear como aquela composta por pai, mãe, avós, conforme observamos a seguir:

Família para mim significa uma árvore boa. E hoje eu dou graças a Deus por essa família, que é única: meu pai e minha mãe. (Jade)

É importante ter um pai, uma mãe, que está perto. (Ágata)

Neste contexto, a figura materna foi desvelada e correlacionada às manifestações de afeto. A mãe foi percebida como aquela que acolhe, cuida e afaga; sempre disposta a ajudar, apoiar. E no momento em que o filho se encontra marginalizado, sem o conforto do lar, devido à condição habitual de consumo de álcool e/ou outras drogas, a mãe foi aquela figura que buscou acolhê-lo e reintegrá-lo à família, conforme revelaram as descrições:

De toda a família, ela [a Mãe] é a principal, é a base. Eu fiquei dormindo na rua, quem abriu a porta para que eu dormisse dentro de casa foi essa velhinha, minha mãe. [...] Eu tenho um pai que ele não é um pai, ele é uma mãe. Ele é mais que um pai, entende? (Jade)

Em relação a minha família, minha mãe é o ponto mais alto. (Esmeralda)

Temos um privilégio porque temos uma mãe em casa e outra aqui no CAPS AD. (Pérola)

Os participantes reconheceram que a família é o alicerce de suas vidas, perceberam-na como o seu ponto de apoio e sustentação, como “a base de tudo”. Foi através da família que eles passaram a ingressar na vida, como revelaram as falas:

A minha família é o alicerce, é a minha estrutura, sem minha família eu estava no cemitério. (Esmeralda)

Na minha concepção, família é a base de tudo, a gente pode citar aqui “N” palavras em relação à família, só que todas vão se resumir em vida. (Axinite)

Os participantes relataram ainda que para ser família não necessariamente tem que ter laços de consanguinidade, e sim uma relação capaz de produzir afeto, o que motiva o ser humano a reconhecer a solidariedade, a cumplicidade, a generosidade, a benevolência, a bondade, o amor e a fidelidade. Inclusive, aquele participante que afirmou não ter família apontou a relação com Deus como algo capaz de proporcionar esse vínculo, de modo que Deus também apareceu como um membro da família, conforme percebemos nas falas seguintes:

Então, para mim, família são aquelas amizades verdadeiras, que lhe ajudam, mesmo não tendo nenhum grau de parentesco com você. Para mim, família é isso (Topázio).

Hoje eu tenho essa família, que é minha sogra e meu sogro, eles me dão várias oportunidades. Minha esposa sofre por mim, mas com fé em Deus eu vou sair dessa e voltar para minha família. (Ametista)

Eu encontrei aqui no CAPS AD uma segunda família. (Rubi)

Minha família é esse povo do CAPS AD porque eu não tenho pai, não tenho mãe, não tenho avó, minha família é esse pessoal. Eu moro no Centro de Recuperação e eu trato como minha família. (Ágata)

Eu não tenho parente e vivo com Deus. Eu não tenho nada na minha vida, só Deus e esse pessoal que me acolhe de coração. (Ágata)

DISCUSSÃO

Ao desvelar a percepção do “ser família”, os participantes do estudo o fizeram por meio de dois aspectos ambíguos: ora existencial, ora material; de modo que ambos foram revelados como perfis de uma mesma moeda, plenos no que se refere a nossa existência e indissolúveis na nossa compreensão do que é ser família no século XXI.

Desse modo, consideramos que os resultados do estudo em relação ao significado de “ser família”, segundo a percepção de usuários do CAPS AD, se fazem ver segundo duas perspectivas. A primeira delas parece convergir para um sentido mais materialista, revelando, de certa forma, uma visão utilitária, ou seja, “ser família” significa ser útil, atender necessidades e expectativas de seus consanguíneos, sejam elas de cunho material, afetivo ou relacional. Trata-se, portanto, de uma perspectiva que compreende as relações interpessoais como tendentes a serem remodeladas “à semelhança dos meios e objetos de consumo e segundo as linhas sugeridas pela síndrome consumista”(1818 Bauman Z. Vida Liquida. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar; 2009.).

Ao certo, é que vivemos no contexto de discussões contemporâneas sobre uma sociedade do descarte. Aquele que não está sempre disposto a nos servir em nossas necessidades, está sujeito ao descarte. Isto ocorre também no âmbito da parentela, no contexto familiar(1818 Bauman Z. Vida Liquida. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar; 2009.). Nas sociedades ocidentais, a exemplo da nossa, o poder da cultura dominante chega a entrelaçar-se em certas posturas e atitudes ou participar de certas práticas que, no plano reflexivo e moralista, talvez, nunca aprovaríamos e ficaríamos horrorizados com elas.

Aprendemos, em nossa cultura, que família é aquela que sempre deve estar disposta a apoiar seus integrantes, independentemente do que lhes ocorra(44 Souza ABL, Beleza MCM, Andrade RFC. New family arrangements and challenges to family law: a reading from the court of Amazon. PRACS[Internet]. 2012[cited 2015 Mar 15];5:105-19. Available from: http://periodicos.unifap.br/index.php/pracs/article/viewArticle/577
http://periodicos.unifap.br/index.php/pr...
). Não é raro ouvir falar de famílias que, se um dos integrantes é preso por tráfico de drogas ou por furtos, elas pagam fiança para libertá-lo da prisão. Para alguns consumidores de álcool e outras drogas, se a família não se dispõe a esta e outras práticas de “generosidade”, não pode ser considerada como família.

Nos escritos de Merleau-Ponty, percebemos que ele se debruça a argumentar contra a visão objetivista, aquela que considera o mundo como um conjunto de coisas em si, que estão separadas de nós(1010 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde-CNS. Resolução Nº 466 de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília: MS; 2012[cited 2015 Feb 25]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
). Para o filósofo, entre o homem e todas as demais coisas criadas há uma universalidade, um entrelaçamento, que lhes torna uno e os vincula. Logo, não existe dicotomia entre homem e natureza, alma e corpo, consciência e mundo, sujeito e objeto(1111 Merleau-Ponty M. A fenomenologia da percepção. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.,1919 Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify; 2002.).

Esse pensamento do autor coaduna com a percepção dos participantes do estudo de que a universalidade e o entrelaçamento que ocorre no contexto familiar devem mobilizar os familiares a fazerem algo para ajudá-los, mesmo quando se envolvem em atos ilícitos. Entretanto, as descrições mostram que o “algo” que os participantes do estudo esperam da família tem a ver com o atendimento de necessidades materiais, afetivas e relacionais, de modo que revela uma visão objetivista, ao considerar a possibilidade de dicotomia entre eles e a família, caso esta não faça o que eles esperam.

Por outro lado, o “ser família” pode afluir para um sentido mais existencialista, mostrando, de certo modo, uma percepção de afetividade e pertencimento, correspondente a um vínculo que se tem, a um sentimento de que a pessoa não surgiu caoticamente, ela nasceu de alguém(2020 Silva VA, Marcon SS, Sales CA. Perceptions of family members of patients with cancer on musical encounters during the antineoplastic treatment. Rev Bras Enferm[Internet]. 2014[cited 2015 Sep 25];67(3):408-14. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n3/0034-7167-reben-67-03-0408.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n3/003...
). E essa perspectiva nos remete ao pensamento de Merleau-Ponty de que não estamos separados do mundo, das coisas e do outro, mas entrelaçados a eles(1111 Merleau-Ponty M. A fenomenologia da percepção. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.).

A retomada da questão primordial de Merleau-Ponty, de que somos uma consciência encarnada, revela a principal tese sobre a qual o filósofo recusa terminantemente – a dicotomia alma e corpo, consciência e mundo, homem e natureza – e que é fortalecida pela perspectiva utilitarista. Nessa perspectiva, a compreensão dicotômica da relação família-participante ou mundo-sujeito interfere de forma contundente na efetivação da proposta de reabilitação psicossocial, principalmente no que tange ao contexto de participação da família no processo.

Todas essas reflexões nos fazem entender que as transformações sociais ocorridas a partir do século XX fizeram com que a família deixasse de ser vista apenas como unidade de procriação para ser vista como geradora de novas formas de convivência, com comprometimento e responsabilidade mútuos entre seus membros(2121 Vianna RC. O instituto da família e a valorização do afeto como princípio norteador das novas espécies da instituição no ordenamento jurídico brasileiro. Rev Esmesc[Internet]. 2011[cited 2015 Sep 25];18 (24):511-36. Available from: http://www.revista.esmesc.org.br/re/article/view/41/45
http://www.revista.esmesc.org.br/re/arti...
). Para tanto, a família precisa oferecer amor, afeto, carinho, solidariedade, educação e respeito recíproco; extrapolar os vínculos consanguíneos; além de dar conforto material aos seus integrantes. Nesse sentido, a família bem-sucedida deve ser capaz de construir novos vínculos com pessoas significativas em nível de seus territórios geográficos e existenciais(55 Figueiredo MHJS, Martins MMFPS. From practice contexts towards (co)construction of family nursing care models. Rev Esc Enferm USP[Internet]. 2009[cited 2015 Mar 15];43(3):615-21. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43n3/a17v43n3.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43n3/a1...
).

Assim, o estudo revela tanto a percepção de família no contexto materialista, como no contexto existencial. Foi apontada como “a base de tudo” e também, como suporte social do ser humano(2222 Gabardo RM, Junges JR, Selli L. Arreglos familiares e implicaciones a la salud en la visión de los profesionales del Programa Salud da la Familia. Rev Saúde Pública[Internet]. 2009[cited 2015 May 25];43(1):91-7. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v43n1/6943.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rsp/v43n1/6943....
), percepções tais que retratam a visão convencional de que a família é, indiscutivelmente, a primeira célula social(2323 Teixeira LC, Parente FS, Boris GDB. New family settings and their subjective implications: assisted reproduction and female monoparental family. Psico[Internet]. 2009[cited 2015 Mar 25];40(1):24-31. Available from: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistapsico/article/view/2848/4138
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/...
), um local de convivência e aprendizado, considerada como a unidade primária de cuidado social(33 Soccol KLS, Terra MG, Girardon-Perline NMO, Ribeiro DB, Silva CT, Camillo LA. Family care to individuals dependent on alcohol and other drugs. Rev Rene[Internet]. 2013[cited 2015 Feb 10];14(3):549-57. Available from: http://www.revistarene.ufc.br/revista/index.php/revista/article/view/1104
http://www.revistarene.ufc.br/revista/in...
). A Constituição Federal Brasileira de 1988, no seu artigo 226, apresenta a família como base da sociedade e que, por isso, deve ter especial proteção do Estado(2424 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil[Internet]. 1988[cited 2015 Mar 25]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
).

Assim, os participantes correlacionaram o “ser família” ao vínculo afetivo e nos fez refletir que, em nível da coexistência, nascemos de alguém, originamos de outrem, não somos isolados, ou seja, não somos pontuais, o que revela um sentimento subjacente ao ser humano de estar ligado a alguém e faz eco ao pensamento merleau-pontyano de que o mundo não surgiu caoticamente, e as coisas estão ligadas umas às outras.

Logo, o vínculo afetivo entre a pessoa e sua família foi desvelado como algo existencial, ideia que ofereceu sustentação às falas dos participantes de que família é aquela que “dá o ombro”, “o carinho”, “a atenção”, entre outras características das relações afetuosas, imanentes ao ser humano, que emergem do sentimento de pertencimento e vinculação aos outros, às coisas e ao mundo(1111 Merleau-Ponty M. A fenomenologia da percepção. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.).

O estudo revelou que as ações de reabilitação psicossocial no contexto do consumo de drogas podem ser fortalecidas por relações afetivas e entrelaçadas nas quais usuários dos serviços de saúde mental e seus familiares agenciem, apoiem e solidifiquem o cuidado. A família apareceu como um dos dispositivos da rede de atenção em saúde mental imprescindível ao processo de reabilitação psicossocial, muito embora sua própria concepção tenha sofrido várias transformações e impactos sociais importantes, que implicaram em alterações significativas no contexto contemporâneo.

Limitações do estudo

Por se tratar de um estudo que se propõe a conhecer os perfis que se desvelam na percepção humana, sabemos que todas as vezes que lermos os discursos dos participantes, teremos muitas outras percepções acerca do estudo, no entanto, o fato de termos que finalizá-lo faz com que escrevamos apenas sobre alguns perfis, o que coaduna com o pensamento de Merleau-Ponty de que o conhecimento é inacabado e que é sempre necessário realizar novas leituras das descrições vivenciais. O estudo evidencia a necessidade de realizar novas pesquisas que se proponham a escutar familiares de consumidores de drogas acerca do “ser família”.

Contribuições para a saúde

O presente artigo constitui-se em um conhecimento importante à reflexão, de enfermeiros, também de toda a equipe de saúde mental, como da gestão pública em saúde, no momento da reformulação de políticas e modelos de atenção, uma vez que, no âmbito da atenção em saúde mental, já se convencionou que a família corresponde a um dispositivo de cuidado primordial na composição da rede.

Em meio a uma série de mudanças conceptuais, a família é convocada a desempenhar papel efetivo na consolidação do modelo psicossocial em saúde mental. Para tanto, é preciso que lhes seja dada voz ativa, assim como aos usuários dos serviços que desejam ser ouvidos quanto ao que sentem e pensam. A intenção inicial do presente estudo não foi exatamente conhecer o significado de “ser família”, mas ao mesmo tempo em que os usuários do CAPS AD desvelaram a necessidade da família ser inserida em sua reabilitação psicossocial, fizeram ver o sentido de “ser família” para eles e suas descrições conduziram-nos à construção deste artigo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo apresentou resultados referentes à escuta primorosa de usuários do CAPS AD acerca do significado de “ser família” no contexto de sua reabilitação psicossocial e nos fez refletir sobre a necessidade de a equipe interdisciplinar desse dispositivo contribuir para a reconstrução do vínculo usuário-família, o que pode despertar na família o desejo de envolver-se tanto no processo terapêutico do usuário, como na rede de atenção em saúde mental, conforme proposto pelo Ministério da Saúde (MS).

O referencial filosófico de Merleau-Ponty permitiu o olhar atento para as descrições vivenciais produzidas com os participantes do estudo, mediante a leitura figura-fundo, uma maneira artística de fazer pesquisa e que resgata modos de ser da Enfermagem, como ciência e como arte. A partir dessa leitura, foi possível compreender dois significados em relação ao “ser família”, segundo a perspectiva de consumidores de drogas, os quais configuramos como: um olhar mais materialista e utilitário, e outro mais existencial.

A primeira perspectiva está pautada no pensamento merleau-pontyano em relação à influência sociocultural nos modos de “ser” e “fazer” dos homens, pensamento que faz ressonância à noção de sociedade líquida cuja característica máxima é o consumismo e o utilitarismo, inclusive no contexto das relações interpessoais, na família e no meio social. A segunda perspectiva se assenta também em Merleau-Ponty, quando trata da experiência sensível ou mundo dos sentimentos, o que inclui a sensação de pertencimento e de coexistência presentes nas descrições dos usuários do CAPS AD, em relação às suas famílias.

Mediante o exposto, acreditamos que a visão existencialista apresentada pelos usuários seja útil à nossa reflexão sobre a humanidade e que precisamos manter vivas as relações sociais capazes de produzir solidariedade, bondade, afetividade, generosidade, entre outras. Com isso, devem ser estimuladas práticas de cuidado ao consumidor de álcool e outras drogas que reconheçam e dignifiquem o ser humano, que respeitem suas escolhas e ofereçam diversas possibilidades de tornar-se um outro “eu mesmo”.

As relações estabelecidas com o mundo, com o homem e com as coisas refletem esse elo do consumidor de álcool e outras drogas com a essência humana, de modo que o desenvolvimento de práticas que favorecem a transcendência do ser sensível, pautada em uma escuta capaz de promover essa conexão, deve contemplar o envolvimento de gestores, profissionais de saúde, família e comunidade nas ações de cuidado, as quais sugerem a inserção de todas as pessoas significativas para ele, independente de ter ou não vínculos consanguíneos.

REFERENCES

  • 1
    Mangueira SO, Lopes MVO. Dysfunctional family in the context of alcoholism: concept analysis. Rev Bras Enferm[Internet]. 2014[cited 2015 Feb 10];67(1):149-54. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n1/0034-7167-reben-67-01-0149.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n1/0034-7167-reben-67-01-0149.pdf
  • 2
    Nunes ECDA, Silva LWS. Nurse subjectivity expressing the significance of family care through art. Texto Contexto Enferm[Internet]. 2011[cited 2015 Feb 10];20(3):453-60. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v20n3/05.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/tce/v20n3/05.pdf
  • 3
    Soccol KLS, Terra MG, Girardon-Perline NMO, Ribeiro DB, Silva CT, Camillo LA. Family care to individuals dependent on alcohol and other drugs. Rev Rene[Internet]. 2013[cited 2015 Feb 10];14(3):549-57. Available from: http://www.revistarene.ufc.br/revista/index.php/revista/article/view/1104
    » http://www.revistarene.ufc.br/revista/index.php/revista/article/view/1104
  • 4
    Souza ABL, Beleza MCM, Andrade RFC. New family arrangements and challenges to family law: a reading from the court of Amazon. PRACS[Internet]. 2012[cited 2015 Mar 15];5:105-19. Available from: http://periodicos.unifap.br/index.php/pracs/article/viewArticle/577
    » http://periodicos.unifap.br/index.php/pracs/article/viewArticle/577
  • 5
    Figueiredo MHJS, Martins MMFPS. From practice contexts towards (co)construction of family nursing care models. Rev Esc Enferm USP[Internet]. 2009[cited 2015 Mar 15];43(3):615-21. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43n3/a17v43n3.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43n3/a17v43n3.pdf
  • 6
    Silva BLC, Araújo AP, Carvalho RN, Azevedo EB, Moraes MN, Queiroz D. Participation of family members in the treatment of alcohol and drug users from the psychosocial care center. Rev Bras Pesq Saúde[Internet]. 2012[cited 2015 Mar 25];14(4):61-6. Available from: http: www.periodicos.ufes.br/RBPS/article/download/5120/3846
    » http: www.periodicos.ufes.br/RBPS/article/download/5120/3846
  • 7
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. Brasília: OPAS; 2005[cited 2015 Mar 25]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf
  • 8
    Alvarez SQ, Gomes GC, Oliveira AMN, Xavier DM. Support group as a strategy of care: the importance for relatives of drug users. Rev Gaúcha Enferm[Internet]. 2012[cited 2015 Mar 25];33(2):102-8. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v33n2/15
    » http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v33n2/15
  • 9
    Sena ELS, Boery RNSO, Carvalho PAL, Reis HFT, Marques AMN. Alcoholism in family context: a phenomenological approach. Texto Contexto Enferm[Internet]. 2011[cited 2015 Apr 11];20(2):310-18. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v20n2/a13v20n2.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/tce/v20n2/a13v20n2.pdf
  • 10
    Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde-CNS. Resolução Nº 466 de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília: MS; 2012[cited 2015 Feb 25]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
  • 11
    Merleau-Ponty M. A fenomenologia da percepção. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.
  • 12
    Reis HFT, Moreira TO. Crack in the family’s context: a phenomenological approach. Texto Contexto Enferm[Internet]. 2013[cited 2015 Aug 18];22(4):1115-23. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n4/30.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n4/30.pdf
  • 13
    Azevedo DM, Miranda FAN. Professional practice and treatment offered in CAPS ad in the city of Natal-RN: with the word, the family. Esc Anna Nery Rev Enferm[Internet]. 2010[cited 2015 Aug 10];14(1):56-63. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v14n1/v14n1a09.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/ean/v14n1/v14n1a09.pdf
  • 14
    Zanatta AB, Garghetti FC, Lucca SR. Psychosocial attention center for alcohol and other drugs in the perception of user. Rev Baiana Saúde Pública[Internet]. 2012[cited 2015 Aug 10];36(1):225-37. Available from: http://files.bvs.br/upload/S/0100-0233/2012/v36n1/a3011.pdf
    » http://files.bvs.br/upload/S/0100-0233/2012/v36n1/a3011.pdf
  • 15
    Trad LAB. Focal groups: concepts, procedures and reflections based on practical experiences of research works in the health area. Physis[Internet]. 2009[cited 2015 Feb 10];19(3):777-96. Available from: http://www.scielo.br/pdf/physis/v19n3/a13v19n3.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/physis/v19n3/a13v19n3.pdf
  • 16
    Sena ELS, Gonçalves LHT, Müller Granzotto MJ, Carvalho PAL, Reis HFT. Analytics of ambiguity: methodological strategy to the phenomenological research in health. Rev Gaúcha Enferm[Internet]. 2010[cited 2015 Feb 15];31(4):769-75. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v31n4/a22v31n4.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v31n4/a22v31n4.pdf
  • 17
    Sena ELS, Carvalho PAL, Reis HFT, Souza VS. The care intersubjectivity and the knowledge in the phenomenological perspective. Rev Rene[Internet]. 2011[cited 2015 Feb 15];12(1):181-8. Available from: http://www.revistarene.ufc.br/vol12n1_pdf/a24v12n1.pdf
    » http://www.revistarene.ufc.br/vol12n1_pdf/a24v12n1.pdf
  • 18
    Bauman Z. Vida Liquida. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar; 2009.
  • 19
    Merleau-Ponty M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify; 2002.
  • 20
    Silva VA, Marcon SS, Sales CA. Perceptions of family members of patients with cancer on musical encounters during the antineoplastic treatment. Rev Bras Enferm[Internet]. 2014[cited 2015 Sep 25];67(3):408-14. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n3/0034-7167-reben-67-03-0408.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n3/0034-7167-reben-67-03-0408.pdf
  • 21
    Vianna RC. O instituto da família e a valorização do afeto como princípio norteador das novas espécies da instituição no ordenamento jurídico brasileiro. Rev Esmesc[Internet]. 2011[cited 2015 Sep 25];18 (24):511-36. Available from: http://www.revista.esmesc.org.br/re/article/view/41/45
    » http://www.revista.esmesc.org.br/re/article/view/41/45
  • 22
    Gabardo RM, Junges JR, Selli L. Arreglos familiares e implicaciones a la salud en la visión de los profesionales del Programa Salud da la Familia. Rev Saúde Pública[Internet]. 2009[cited 2015 May 25];43(1):91-7. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v43n1/6943.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rsp/v43n1/6943.pdf
  • 23
    Teixeira LC, Parente FS, Boris GDB. New family settings and their subjective implications: assisted reproduction and female monoparental family. Psico[Internet]. 2009[cited 2015 Mar 25];40(1):24-31. Available from: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistapsico/article/view/2848/4138
    » http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistapsico/article/view/2848/4138
  • 24
    Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil[Internet]. 1988[cited 2015 Mar 25]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    13 Fev 2017
  • Aceito
    01 Out 2017
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br