Fé e espiritualidade no sentido da vida do idoso com insuficiência renal crônica

RESUMO

Objetivo:

compreender a fé e a espiritualidade no sentido da vida do idoso com Insuficiência Renal Crônica.

Métodos:

trata-se de uma pesquisa qualitativa fundamentada na logoterapia e Análise Existencial de Viktor Emil Frankl. Foram entrevistadas 20 pessoas idosas, entre agosto de 2018 e janeiro de 2019, com idade entre 60 e 79 anos, que realizam hemodiálise em uma unidade privada, referência em Nefrologia na cidade de Salvador, Bahia, Brasil.

Resultados:

desvelaram-se duas categorias de análise: Significado da fé no vivido do idoso com insuficiência renal crônica; Fé como precursora do sentido da vida.

Considerações finais:

a fé e a espiritualidade foram compreendidas como alicerce fundamental na busca do sentido da vida dos participantes do estudo, além de se desvelar como importante estratégia de resiliência frente ao vivido da pessoa idosa com Insuficiência Renal Crônica.

Descritores:
Idoso; Espiritualidade; Religião; Insuficiência Renal Crônica; Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

to understand faith and spirituality in the meaning of life of the elderly with Chronic Kidney Disease.

Methods:

a qualitative research based on Viktor Emil Frankl’s Logotherapy and Existential Analysis. Twenty elderly people were interviewed between August 2018 and January 2019, between 60 and 79 years old, who underwent dialysis in a private unit, a reference in nephrology in the city of Salvador, Bahia, Brazil.

Results:

two categories of analysis emerged: Meaning of faith in the lived of the elderly with Chronic Kidney Disease; Faith as a forerunner of the meaning of life.

Final considerations:

faith and spirituality were understood as a fundamental foundation in the search for the meaning of the study participants’ lives, besides unveiling itself as an important strategy of resilience to the experienced of the elderly person with Chronic Kidney Disease.

Descriptors:
Elderly; Spirituality; Religion; Chronic Kidney Disease; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

comprender la fe y la espiritualidad en el sentido de la vida de los ancianos con Insuficiencia Renal Crónica.

Métodos:

es una investigación cualitativa basada en la logoterapia y el Análisis Existencial de Viktor Emil Frankl. Se entrevistó a veinte personas mayores, entre agosto de 2018 y enero de 2019, con edades entre 60 y 79 años, sometidas a hemodiálisis en una unidad privada, una referencia en Nefrología en la ciudad de Salvador, Bahía, Brasil.

Resultados:

se revelaron dos categorías de análisis: significado de la fe en la experiencia de los ancianos con insuficiencia renal crónica; La fe como precursora del sentido de la vida.

Consideraciones finales:

la fe y la espiritualidad se entendieron como una base fundamental en la búsqueda del significado de la vida de los participantes del estudio, además de ser reveladas como una estrategia de resiliencia importante frente a la experiencia de los ancianos con Insuficiencia Renal Crónica.

Descriptores:
Anciano; Espiritualidad; Religión; Insuficiencia Renal Crónica; Enfermería

INTRODUÇÃO

O envelhecimento populacional constitui um novo desafio do mundo atual tanto nos países desenvolvidos quanto nos países que se encontram em desenvolvimento. Enfrentar o processo do envelhecimento é urgente, principalmente no Brasil, que já apresenta um importante número de pessoas idosas, com tendência a um percentual crescente nos próximos anos^(1-2).

Diante dessa mudança demográfica e de todo o contexto que ela traz consigo, torna-se necessário não somente reorganizar os níveis de cuidado para atender às demandas específicas dessa população, mas inovar e tomar por base experiências de outros países que vivenciam o processo de envelhecimento com maiores estruturas, principalmente em áreas que envolvem a saúde. Nesse patamar de mudanças, as doenças crônicas emergem, trazendo à tona a transição epidemiológica e a necessidade de reestruturação socioeconômica⁽²⁾.

Tais alterações modificam significativamente o perfil de saúde da população, agora com a presença de Doenças Crônicas não Transmissíveis (DCNT), trazendo impactos na qualidade de vida e gastos com saúde, seja por meio de planos de saúde mais onerosos, pelo maior número de internamentos ou a utilização de remédios de alto custo por longo período de tempo^(3-4).

Dentre as DCNT, encontra-se a Insuficiência Renal Crônica (IRC), que tem se apresentado como objeto de grande preocupação no campo da saúde, devido ao comprometimento na morbidade e mortalidade, surgindo de forma indistinta tanto em homens quanto em mulheres, em faixa etária cada vez mais baixa⁽⁵⁾. O relatório anual da Sociedade Brasileira de Nefrologia mostra tendência a aumento global do número de pacientes em diálise crônica, representando um aumento de 31,5 mil pacientes nos últimos cinco anos. O percentual de pacientes em diálise foi maior na faixa etária de adultos e idosos, com 65,7% na faixa etária entre 20 e 64 anos, 21,8% entre 65 e 74 anos e 11,2% em 75 anos ou mais⁽⁶⁾.

Com a IRC, a pessoa idosa passa por um processo de alteração, iniciando com o enfrentamento do diagnóstico de uma doença sem cura, seguindo com a necessidade de realizar regime terapêutico, conviver com a mudança no cotidiano, entender as perdas da vida social, lazer, trabalho e no convívio com outras pessoas. Ela torna-se, portanto, um ser humano com seu modo de vida singular, permeado por características e crenças próprias, além de enfrentar os desafios do processo do adoecimento, como a realização do tratamento, no mínimo, três vezes por semana^(7-8).

Destarte, percebe-se que o caráter irreversível da IRC, associado à sua alta taxa de mortalidade, por vezes, pode despertar na pessoa e seus familiares a reformulação dos princípios relacionados à vida, encontrando um novo sentido à sua existência, significados e saberes, com adequação à nova realidade cotidiana, que exige alternativas diante do entendimento da cronicidade e suas possíveis consequências⁽⁹⁾.

Para além do biológico/físico, a espiritualidade e a religiosidade ocupam um lugar de destaque na vida das pessoas idosas com IRC, podendo explicar-lhes o significado da vida. Nesse grupo de pessoas, o acesso à dimensão espiritual contribui com melhora da QV, proporcionando bem-estar, redução dos níveis de angústia e sentimento de inutilidade, além de favorecimento do desenvolvimento de resiliências em situações difíceis inerentes ao envelhecimento, como perdas físicas e emocionais^(10-11).

Embora intimamente relacionados, porém com significados que diferem entre si, principalmente ao que está relacionado à sua prática, a espiritualidade e a religiosidade podem atuar como constructos capazes de fornecer subsídios à pessoa idosa para enfrentar a IRC e todas as suas demandas. O binômio espiritualidade/religiosidade transita desde as concretudes da existência até os seus aspectos mais profundos e subjetivos, tornando desafiante a integração das dimensões espirituais e religiosas nos cuidados à saúde^(12-13).

O vivenciar da espiritualidade e da religiosidade pode promover a busca do sentido da existência a partir das práticas utilizadas, noções do sagrado e do exercício da fé. A fé, como representação expressiva de ambos, pode também favorecer a busca do sentido da vida em situações cotidianas do ser humano ou, ainda, na busca mais íntima e subjetiva da sua singularidade, coincidindo com o Sentido Último^(12,14).

O Sentido Último é caracterizado pelo sentido do todo, do sentido da vida como um todo. O caminho para o homem encontrar o seu Sentido Último ou supra-sentido pode estar vinculado à análise existencial, ou através de situações vitais, como a IRC. Pode ser observado, também, na transitoriedade essencial da existência humana, na sua atitude frente à vida e nas situações de sofrimento, como a morte e a angústia existencial. O alcance do super-sentido da vida humana torna-se possível através do exercício contínuo da fé, compreendida como uma categoria transcendental, que proporciona a ideia do sentido da vida frente às questões últimas da existência^(14-15).

Embora possua diversas acepções, a fé consente a vontade de sentido de cada pessoa; nos cenários espirituais, pode ser vislumbrada como um direcionamento, uma confiança do ser homem voltada e depositada no transcendente; no sagrado, pode dar novos significados às suas vidas⁽¹²⁾.

OBJETIVO

Compreender a fé e espiritualidade no sentido da vida do idoso com IRC.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética e pesquisa do hospital, local do estudo. Foi conduzida conforme o padrão de pesquisas envolvendo seres humanos, descritos na Resolução 466/12, 510/16 e 580/17, do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa^(16-18). A coleta dos relatos foi realizada após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para garantir o anonimato dos participantes, foram atribuídos nomes fictícios de estrelas.

Tipo de estudo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de abordagem fenomenológica, fundamentada na Análise Existencial de Viktor Frankl^(14,19), norteada pela ferramenta COREQ⁽²⁰⁾.

Cenário do estudo

O estudo foi realizado em uma unidade de nefrologia de um hospital privado de Salvador, Bahia, Brasil, no período de agosto de 2018 a janeiro de 2019. A unidade escolhida está localizada em um bairro periférico da cidade, onde os pacientes realizam hemodiálise e são acompanhados por uma equipe multidisciplinar formada por médicos, enfermeiras, técnicos de enfermagem, nutricionistas, assistentes sociais e fisioterapeutas. Além dos atendimentos em hemodiálise, a referida unidade apresenta programa de diálise peritoneal e transplante renal, atendendo em seu ambulatório pós-transplante cerca de 250 pacientes transplantados.

Participantes do estudo

Para participar do estudo, foram selecionadas pessoas com 60 anos ou mais, que realizam tratamento de hemodiálise na instituição três vezes por semana, durante o período de quatro horas. A escolha dos participantes obedeceu aos seguintes critérios: 1) Inclusão: pessoas idosas que realizam hemodiálise três vezes por semana há pelo menos seis meses, devido a uma melhor vivência da terapêutica e que pudessem estabelecer o processo de comunicação verbal; 2) Exclusão: pessoas idosas que poderiam apresentar instabilidade hemodinâmica durante a coleta de dados por questões diversas. Ressalta-se que houve uma recusa a pesquisa, devido a mal-estar no momento da abordagem.

Por se tratar de um estudo fenomenológico, o número dos participantes se deu através da regularidade dos discursos e quando foi desvelado o fenômeno estudado. Antes de iniciar as entrevistas, foram realizados alguns momentos de aproximação pela pesquisadora, para que fosse criado um ambiente favorável ao desenvolvimento da pesquisa, considerando a empatia como o facilitador da compreensão, sem a necessidade de viver o vivido do outro⁽²¹⁾.

Coleta e organização dos dados

Os idosos selecionados participaram da entrevista fenomenológica, que se constitui como uma abordagem existencial entre duas pessoas, no intuito de poder apreender um fenômeno na perspectiva de quem o está vivenciando e o significando⁽²²⁾, contendo duas questões abertas e disparadoras: o que o Sr. (a) entende por fé? Como o Sr. (a) tem vivido a espiritualidade no seu cotidiano depois do diagnóstico da doença renal?

As entrevistas aconteceram na unidade, em dias previamente agendados, no momento da terapia dialítica, pois muitos pacientes são do interior da Bahia e possuem horários estabelecidos para o retorno, evitando, assim, momentos de ansiedade e preocupação com o horário.

O espaço fenomenológico foi reservado, garantindo privacidade e sigilo das informações, que foram gravadas por um programa de áudio em aparelho celular, sistema Android, e posteriormente transcritas na íntegra.

Análise dos dados

Para sistematizar e compreender os dados obtidos, e partindo do pressuposto que não é possível desvincular tendências filosóficas, intencionalidades e visão do mundo que cogitamos de nossas próprias vivências enquanto ser-no-mundo, torna-se necessário o delineamento da análise fenomenológica, aplicado a essa pesquisa a partir de uma reflexão orientada por um processo dinâmico da concepção de homem, mundo e universo⁽²³⁾.

Desta maneira, optou-se por tratar os dados obtidos através dos propostos por Giorgi e adaptado por Vietta⁽²³⁾, a saber: 1) Leitura atenta dos depoimentos para resgatar os significados; 2) Nova leitura identificando as unidades de significado e locuções de efeito, onde estão contidas as vivências; 3) Identificação e classificações de aspectos que possam apresentar convergências de conteúdo; 4) Agrupamentos dos significados identificados em categorias; 5) Listagem desses agrupamentos em quadros representativos, para uma melhor visualização e compreensão dos resultados; 6) Análise dos dados significativos, tomando por base a interpretação do conteúdo, juntamente com o referencial teórico proposto, a Análise Existencial de Viktor Frankl⁽¹⁹⁾.

RESULTADOS

Caracterização dos participantes

Participou do estudo 20 pessoas idosas com IRC e a idade variou entre 60 a 79 anos, sendo que desses, quatorze são do sexo masculino (Acamar, Regulus, Sham, Castor, Deneb, Sirius, Sol, Izar, Hadar, Baham, Albali, Alcor, Jih, Kraz) e seis do sexo feminino (Maia, Vega, Alcyone, Alya, Lucida, Davi). Quanto ao estado civil, 14 são casados, dois viúvos, dois solteiros e dois separados. O grau de instrução variou de analfabetismo ao ensino médio incompleto, sendo que apenas quatro participantes possuem nível superior completo.

Quanto às comorbidades relatadas, cinco possuem Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS); 10 possuem HAS e Diabetes Mellitus (DM); cinco participantes não relataram essas patologias. Dentre as DCNT potencializadoras da IRC, destacaram-se a HAS e o DM. No tocante à religião, 12 participantes são católicos; cinco são evangélicos; um é testemunha de Jeová; um é da Igreja Messiânica; e um segue o candomblé, porém simpatiza também com o catolicismo.

Os depoimentos evidenciaram a fé como disparadora para o encontro do sentido da vida para a pessoa idosa com IRC, sendo desvelado esse fenômeno nas categorias a seguir:

Significado da Fé no vivido do idoso com Insuficiência Renal Crônica

Ao se deparar com a IRC e a necessidade de realização de hemodiálise para a manutenção da vida, a pessoa idosa com a doença renal passa a enfrentar um processo de aceitação e ressignificação da sua existência, sendo necessário o uso de recursos que os auxiliem no cotidiano com a enfermidade. A fé foi apontada como um desses recursos e ao serem indagados sobre o que significa suas vidas, relataram:

Fé é tudo aquilo que você acredita, sem ter que tocar ou pegar. A fé ela é abstrata, não é? Então, tudo aquilo que você acredita com, com convicção, mas que você não pode pegar ou tocar, eu acho que é a fé verdadeira. (Acamar, homem, católico, 62 anos)

A fé é acreditar. Eu acredito e tenho fé que vou ficar bom desse rim. (Regulus, homem, católico, 68 anos)

Fé é aquela coisa que vem do coração. A gente tem fé porque Deus toca no coração para dar fé a gente. (Sol, homem, evangélico, 72 anos)

Fé é aquilo que você acredita. Eu só tenho uma coisa para lhe dizer: eu tenho muita fé em Deus. Minha fé é em Deus. (Izar, homem, católico, 79 anos)

As definições de fé trazidas por Acamar, Regulus, Sol e Izar envolvem o acreditar na sua subjetividade, aquilo que não pode ser tocado, mas sentido, e que promove esperança. A fé envolve as crenças mais profundas do ser naquilo que é verídico a cada um, movendo expectativas e confiança no futuro, conforme evidenciado nas falas a seguir:

A fé é uma expectativa certa que nós vamos adquirindo na proporção que vamos tendo conhecimento de ter uma esperança sobre o futuro. (Sham, homem, testemunha de jeová, 66 anos)

A fé é um momento mágico, é um momento em que você se aproxima das coisas metafísicas. (Deneb, homem, católico, 74 anos)

Os discursos de Sham e Deneb discorrem sobre a fé diretamente relacionada a uma crença em algo distante de evidências, porém intimamente relacionada ao ser, às esperanças e aos conceitos na sua subjetividade.

Sham aprofunda mais no conceito da fé, quando imprime os ideais do metafisicismo com seus sentimentos e vivências diante da sua credulidade, ou seja, ele transcende sua realidade de experiência sensível por meio de reflexões além da física, através da essência das coisas e de suas vivências.

Ainda, outros participantes significam a fé:

Fé é a gente amar a Deus e tudo que pede se consegue. Se eu não tivesse fé, eu não estava aqui mais, porque do jeito que eu já vim entrando aqui, eu pensei que não voltava mais e a fé de Jesus Cristo, minha fé com ele, eu voltei. Então, para mim é tudo. (Maia, mulher, católica, 61 anos)

Fé é a pessoa crer. É acreditar que existe um Deus, que pode curar, pode fazer o que ele quiser e bem entender. É aquele que ama até o fim. E eu tenho fé. Só não tenho fé de voltar ao normal, como era antes, ativa, professora, trabalhadora, que não dependia de ninguém. (Alya, mulher, católica, 63 anos)

Eu não sei explicar assim com palavras, mas eu tenho fé em Deus que eu estou aqui, mas eu ainda tenho fé que ele vai resolver esse problema meu. Ou pelos médicos, ou por ele mesmo, entendeu? Porque quando ele quer, ele faz a obra, ou por ele mesmo, ou ele faz através dos médicos. Disso eu tenho certeza. (Alcyone, mulher, evangélica, 76 anos)

A compreensão dos participantes acerca da fé relaciona-se à crença em Deus e na possibilidade de Ele representar a força, a superação e o ímpeto na luta diária em prol da doença e continuidade da sua existência.

Maia evidencia que a fé em Jesus representou o seu sustento desde o diagnóstico da IRC como também no enfrentamento do cotidiano. Alya define a fé como o acreditar em Deus, aquele capaz de transformar tudo em nome do amor. Porém, ela compreende a sua doença enquanto incurável e como fator dificultador das suas rotinas antes estabelecidas. Alcyone expressa a fé como confiança em uma possível cura, mesmo diante de uma doença sem possibilidades de cura, pois para ela, a fé está diretamente relacionada a Deus, e Ele tudo pode, mesmo diante do impossível.

Fé como precursora do sentido da vida

Como recurso de enfrentamento e suporte, a fé surge na vida dos participantes como preceitos e valores consistentes sobre aquilo em que acreditam e confiam, mesmo em momentos difíceis relacionados aos percalços trazidos pela doença:

Eu acho que tem momentos de fé, tem momentos de dúvida e são momentos da vida da gente que a gente vai vivendo na esperança. (Deneb, homem, católico, 74 anos)

[...] a fé passa a ser o norte da vida da pessoa. (Kraz, homem, católico, 70 anos)

Tem que ter fé e a fé viva, verdadeira. Como eu estou enfrentando mesmo e graças a Deus, se não fosse esse Deus mesmo que eu tenho e essa fé, acho que eu não existia não, não aguentaria não. (Vega, mulher, católica, 65 anos)

Os relatos acima evidenciam momentos em que a pessoa idosa com IRC refere dúvidas e dificuldades diante das adversidades impostas pela doença, e a fé apresenta-se como apoio e suporte em busca de esperança para continuar a viver.

Em alguns momentos, há contradição entre dizer que tem fé e de fato ter, conforme Vega:

A gente tem que aceitar o que acontecer com a gente, não é? Quando a gente diz que tem fé, tem que ter fé mesmo, do princípio ao fim. No caso, a gente diz que tem fé. Quando vêm as atribulações, as doenças, a gente começa a se desesperar e aí eu acho que é uma fé morta. (Vega, mulher, católica, 65 anos)

Vega utiliza o termo “fé morta”, aquela que ela designa como a fé que não os auxiliam nos momentos de sofrimento e desespero. Ela defende veementemente que a fé deve existir mesmo nos momentos mais dolorosos, o que confirma o conceito de fonte de enfrentamento e suporte de vida. Também, vista como suporte, conforme Hadar:

É quem me põe de pé. É a minha fé. E se eu não tivesse na presença de Deus e uma fé sobrenatural, eu acho que não estava nem vivo. Não estaria vivo, não estaria. Isso me fortalece muito, a presença de Deus na minha vida. É que me levanta todos os dias, me ajuda a respirar, andar, falar, ver. (Hadar, homem, evangélico, 67 anos)

Hadar refere à fé como algo que o levanta e o deixa disposto a lutar diariamente pela sua vida, mesmo diante da IRC. A fé surge no processo de adoecimento da pessoa idosa com IRC como uma fonte de auxílio, para que possam continuar a viver e encontrar o seu sentido de vida, mesmo em situações que trazem dores, sofrimentos e angústias.

Nos cenários das vivências espirituais, a fé é vista como um direcionamento, uma confiança do ser humano depositada no sagrado, que pode levar a ressignificar o sentido de suas vidas, conforme relatos:

Ou você se apega a alguma coisa, no meu caso a espiritualidade, a fé, ou você não anda, entendeu? Eu continuo no mesmo “pique” que eu tinha antes, e todos os dias eu agradeço a Deus, porque sem ele não tem vida. Me sinto muito bem. (Castor, homem, evangélico, 65 anos)

A minha vida é cantar, é dar risada. E eu não gosto de pensar na tristeza, porque se eu pensar na tristeza, eu acho que eu morro. Porque eu estou doente principalmente. Eu acho que eu não tenho cura, mas, eu tenho é muita fé em Deus. (Davi, mulher, católica, 66 anos)

Eu costumo em termos de brincadeira dizer que eu vou viver até pelo menos os noventa anos. Então, eu tenho esperança que isso aí, eu tenho fé que isso vai acontecer. Que eu vou ter uma vida longa. (Albali, homem, católico, 79 anos)

Castor refere a sua fé vinculada à espiritualidade, uma está contida na outra. Partindo do princípio que a espiritualidade independe da religiosidade, a fé existe naquilo que é a crença e a confiança de cada um. Davi sabe que a cura para sua enfermidade não existe, porém ela mantém a fé viva e ativa para continuar vivendo, cantando e sorrindo. Albali revela que possui fé e deseja ter uma vida longa e feliz, seguindo confiante.

Eu vivo mais na fé, não é? Pedindo a Deus primeiramente, aos orixás, para me dar força, sabedoria e continuar aqui. (Lucida, mulher, candomblecista, 70 anos)

Fé, eu acredito que é aquilo que a gente acredita que não vê. Hoje, cada dia que passa fica maior. O antes eu não pensava tanto. Quando eu era mais jovem, tinha saúde e tal. Andava para lá e para cá, fazia as coisas. Não era doente. Para mim, sabia que existia a fé, por que toda minha família sempre foi religiosa, mas, eu não tinha tanta crença. (Sirius, homem, evangélico, 64 anos)

Lucida considera a fé como fonte de força e sabedoria. Sirius comenta que, através da doença, sua fé pôde renascer e se tornar cada vez mais forte no enfrentamento do cotidiano com a IRC. Ao se fortificar na fé, a pessoa idosa com IRC vivencia o processo do adoecimento com mais tranquilidade e menos sofrimento, vislumbrando nela a força que necessita para buscar novos sentidos e significados para sua vida.

DISCUSSÃO

A análise dos depoimentos possibilitou compreender a fé e a espiritualidade no sentido da vida para a pessoa idosa com IRC. Ocorreu o desvelamento do fenômeno na sua real essência, da forma como realmente ele se mostra e como ele realmente é. A fé foi apresentada como precursora do sentido da vida, além de ser vivenciada como uma importante estratégia de resiliência para os participantes.

O ser humano é visto na perspectiva analítico-existencial como uma unidade antropológica, dotado de dimensão corporal ou somática, dimensão psíquica e a dimensão noética ou espiritual. A espiritualidade do homem não se torna apenas uma característica para a distinção do homem, assim como o elemento corporal e psíquico. Ao contrário, a espiritualidade é algo que distingue o homem, algo que só cabe a ele e que lhe advém pela primeira vez^(15,24).

Nessas dimensões biopsicoespirituais, o constituinte determinante que define o ser humano como pessoa é a vivência galgada na espiritualidade inconsciente. Ela é caracterizada como a verdadeira pessoa profunda ou a também chamada por pessoa espiritual, ou seja, o existencial-espiritual mais aprofundado. Sendo assim, a pessoa espiritual não é apenas facultativamente, mas obrigatoriamente inconsciente^(14,25).

Essa apreensão do mundo espiritual e integrante da tridimensionalidade, onde o ser humano experimenta, por diversas modalidades da percepção sensível, sua condição somática como dimensão estruturante para as vivências, oportuniza a sua inclusão como ser no mundo, do mundo e para o mundo, mas que quer lançar-se além do mundo. Destarte, só se pode falar de algo existencial, a partir do dado ser-no-mundo⁽²⁶⁾.

Desse modo, os depoimentos desvelaram que a espiritualidade é um importante constructo para a pessoa idosa que vivencia o processo da IRC enquanto ser-no-mundo, que experimenta um processo de reformulação de hábitos de vida e ao mesmo tempo sofre com as angústias, privações e aflições ocasionadas por essas reestruturações.

A espiritualidade está diretamente relacionada ao encontro pessoal pelo sentido da existência, e o atendimento às necessidades espirituais está diretamente atrelado à busca da plenitude e à possibilidade de transcender a existência. A compreensão da dimensão espiritual, mesmo que em diversas perspectivas e conotações, torna-se essencial para a sua melhor vivência, visto que ela possibilita a busca pelo sentido mais amplo da vida através de um senso de conexão maior com o universo^(15,27).

A IRC exige mudanças no dia a dia dos participantes, pois vivem momentos de sofrimento e angústia espiritual, e a maioria pôde reinventar novas maneiras de ressignificar suas vidas. O fato é que todo ser humano, mesmo em momentos de intenso sofrimento ou falta de esperança, pode encontrar o seu sentido de vida, visto que são possuidores de vontade de sentido, a força motriz da vida humana⁽¹⁹⁾.

A busca pelo sentido da vida pode acarretar dúvidas à pessoa idosa. Apenas o conhecimento e a certeza desse sentido não são suficientes para responder essas questões e solucionar as demandas das situações. Para a análise existencial, o único instrumento capaz de se mostrar elucidador diante desse objeto é a fé. Ela não é uma maneira de pensar na qual se subtrai a realidade, mas um modo de reflexão no qual se acrescenta a existencialidade do pensador⁽¹⁴⁾.

A fé surge na vida dos participantes, sendo caracterizada como uma categoria transcendental, que sinaliza a mobilização dele por algo além e que carrega sua vida de significado em situação de sofrimento. A fé comporta-se no contexto da pessoa idosa com IRC como uma das expressões da espiritualidade, podendo favorecer a busca do sentido da vida nas situações cotidianas ou, ainda, em momentos desafiadores e carregados de sentimentos⁽¹²⁾.

A definição de fé permeia a experiência íntima e absoluta de cada indivíduo de acordo com suas próprias convicções, ideias ou hipóteses, e estão diretamente relacionadas à suas realizações pessoais desenvolvidas através da solidez de sua própria existência⁽¹²⁾. Já a transcendência, está intimamente relacionada com o que perpassa a nossa própria consciência moral. Aprofundando o significado além do filosófico e adentrando em meios espirituais, a transcendência está intimamente relacionada ao imortal e essencial, sobressaindo os limites corporais e estabelecendo uma tentativa de proximidade com Deus ou seu Superior⁽¹⁴⁾.

A fé e a transcendência mostraram-se significativas para os participantes e estão relacionadas à força para enfrentar o instante da descoberta e tratamento da doença, até o momento em que essas pessoas pensam que não iriam mais conseguir superá-los⁽²⁸⁾. Em suas respostas, a fé foi fundamentada em um Deus onipotente, que possui o poder de curar enfermidades e acudir aflitos. A maioria dos depoimentos evidencia que a fé não foi descontextualizada do universo religioso, como a citação da “fé sobrenatural”, elucidada principalmente nas doutrinas evangélicas, possuindo seu desenvolvimento em um mundo puramente espiritual, único elo de comunicação entre o mundo físico e espiritual. A fé, quase sempre, é concebida como proteção, confiança, sustentação e alcance de graça⁽²⁹⁾.

A fé revelada pelos participantes ainda demonstrou uma relação intrínseca do seu Eu mais profundo e um Transcendente⁽²⁶⁾, passando a ser compreendida como uma forma de garantir o sentido da vida frente às questões últimas da existência. Ela pode ser vista como um direcionamento, uma confiança do ser humano voltada e depositada ao sagrado, que pode significar sua vida⁽¹²⁾. Assim, ela torna-se uma das locuções da espiritualidade, podendo ser experimentada a partir dela ou da religiosidade e suas práticas, sobretudo a partir do despertar para aquilo que motiva, a vontade de Sentido Último⁽¹⁴⁾.

O Sentido Último, na análise existencial, é o sentido da vida como um todo⁽¹⁵⁾. É de difícil compreensão para o homem em solo puramente racional, mas sim, em solo puramente existencial, através de todo o seu ser, isto é, por meio da fé. A questão do suprassentido está diretamente relacionada com a fé, que está diretamente relacionada a uma consciência espiritual⁽³⁰⁾.

A fé incondicional e o amor são os principais meios de compreensão do Sentido Último⁽²⁶⁾. Embora os participantes demonstrem sofrimento com a doença, eles evidenciaram, também, o exercício da fé no cotidiano, na superação, no amor, na existência e em Deus, sendo revelada e defendida por Frankl^(14,19,30) como uma tendência inconsciente do homem rumo à Deus, o Deus inconsciente.

Deus como fonte de fé é o Sentido Último da existência humana, dialogando com o homem, quando este entra em contato com a sua própria consciência moral⁽¹⁴⁾. Dessa forma, é perceptível que há uma relação profunda e íntima entre Deus e a pessoa idosa que vivencia a IRC transcendendo em sua intersubjetividade. Além de um suporte essencial no processo saúde-doença, a relação com Deus ou o sagrado significa um autoconhecimento acerca do próprio ser e suas relações, configurando, assim, a pessoa espiritual em seu mundo-vida.

Limitação do estudo

A limitação do estudo refere-se à impossibilidade da generalização dos seus resultados para toda a população idosa, pois representam pessoas idosas com IRC acompanhadas em uma unidade de nefrologia da Bahia. Entretanto, a profundidade dos resultados sobre fé, espiritualidade e sentido da vida pode ser aplicada a pessoas que vivenciam situações de doenças crônicas, como a dos participantes deste estudo.

Contribuições para a área da enfermagem

Os resultados e o embasamento deste estudo podem despertar nos profissionais de saúde, em especial as enfermeiras, a reflexão sobre sua prática clínica no cuidado à pessoa idosa que vivencia a IRC. Nessa perspectiva, considerar a fé e a espiritualidade como importante estratégia de resiliência, que tem a capacidade de ressignificar o sentido de vida, assegura um cuidado multidimensional, pautado nos aspectos biopsicossocioespirituais na totalidade do ser.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fé e a espiritualidade se desvelaram como importante estratégia de resiliência no vivido da pessoa idosa com IRC, além de atuar como alicerce fundamental na busca do sentido da vida desses indivíduos após as mudanças impostas pela doença. Dessa maneira, a fé e a espiritualidade se apresentam como fonte de força, superação e alicerce diante do que não pode ser modificado, mas restruturado e com novos significados e sentidos.

AGRADECIMENTO

Reconhecimento especial a todos que contribuíram lindamente para a conclusão deste artigo, e um agradecimento singular aos participantes deste estudo que se propuseram a nos receber com tanto amor e carinho.

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Editado por

EDITOR CHEFE: ANTONIO JOSÉ DE ALMEIDA FILHO

EDITOR ASSOCIADO: ELUCIR GIR

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  13 Jul 2020
• Data do Fascículo
  2020

Histórico

• Recebido
  15 Abr 2019
• Aceito
  23 Abr 2020