Estratégias das enfermeiras obstétricas frente às condições de trabalho em maternidades

RESUMO

Objetivos:

compreender as condições de trabalho e as estratégias adotadas pelas enfermeiras obstétricas nas maternidades. Métodos: estudo qualitativo, descritivo, exploratório, com 20 enfermeiras obstétricas de maternidades públicas do município do Rio de Janeiro. Os dados foram coletados de junho a setembro de 2018 através de entrevistas semiestruturadas, submetidos à análise temática de conteúdo e discutidos à luz da psicodinâmica do trabalho.

Resultados:

as condições laborais são inadequadas pela infraestrutura precária e pelo déficit de recursos. Diante disso, elaboram-se estratégias defensivas para mitigar o sofrimento, evitar a desestabilização da identidade profissional e minimizar os prejuízos sobre o cuidado, através da compra de materiais, abdicação do horário de almoço, reorganização das tarefas e implementação de pausas.

Considerações Finais:

as estratégias adotadas ocultam a precariedade do contexto do trabalho, sugerindo a alienação dessas trabalhadoras, evidenciando a necessidade de fomentar a consciência política deste coletivo, para promover transformações concretas em sua realidade laboral.

Descritores:
Enfermeiras Obstétricas; Trabalho; Maternidades; Cuidados de Enfermagem; Estresse Ocupacional

ABSTRACT

Objectives:

to understand the working conditions and strategies adopted by nurse-midwives in maternity hospitals.

Methods:

a qualitative, descriptive, exploratory study with 20 nurse-midwives from public maternity hospitals in the city of Rio de Janeiro. Data were collected from June to September 2018 through semi-structured interviews, submitted to thematic content analysis and discussed in the light of the psychodynamics of work.

Results:

working conditions are inadequate due to poor infrastructure and resource deficit. Therefore, they develop defensive strategies to mitigate suffering, avoid destabilization of professional identity and minimize losses on care, through material purchase, lunch hour abdication, task reorganization and break implementation.

Final Considerations:

the strategies adopted hide work precariousness and suggest alienation of workers, evidencing the need to foster political awareness of this collective to promote concrete transformations in their work reality.

Descriptors:
Nurse Midwives; Work; Hospitals, Maternity; Nursing Care; Occupational Stress

RESUMEN

Objetivos:

conocer las condiciones laborales y las estrategias adoptadas por las enfermeras obstetrices en las maternidades.

Métodos:

estudio cualitativo, descriptivo, exploratorio con 20 matronas de maternidades públicas de la ciudad de Río de Janeiro. Los datos fueron recolectados de junio a septiembre de 2018 a través de entrevistas semiestructuradas, sometidas a análisis de contenido temático y discutidas a la luz de la psicodinámica del trabajo.

Resultados:

las condiciones de trabajo son inadecuadas debido a la precaria infraestructura y al déficit de recursos. Ante esto, se desarrollan estrategias defensivas para mitigar el sufrimiento, evitar desestabilizar la identidad profesional y minimizar el daño al cuidado, mediante la compra de materiales, abdicación de horas de almuerzo, reorganización de tareas e implementación de descansos.

Consideraciones Finales:

las estrategias adoptadas esconden la precariedad del contexto laboral, sugiriendo la alienación de estos trabajadores, destacando la necesidad de fomentar la conciencia política de este colectivo, para promover transformaciones concretas en su realidad laboral.

Descriptores:
Enfermeras Obstetrices; Trabajo; Maternidades; Atención de Enfermería; Estrés Laboral

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o neoliberalismo vem transformando o Sistema Único de Saúde (SUS) por meio da redução do papel do Estado e de restrições no financiamento que determinaram o sucateamento das instituições públicas e o surgimento de modelos flexíveis para a gestão de serviços e recursos humanos. Neste contexto, verifica-se a expansão da rede assistencial, principalmente por meio de organizações sociais (OS), e a coexistência de diferentes modalidades de vinculação trabalhista^(1-5).

Esta conformação se associa com a precarização do trabalho no SUS, expressa em condições inadequadas de trabalho na multiplicidade de vínculos dos trabalhadores com a administração pública e na instabilidade de algumas relações laborais, que retira a autonomia dos trabalhadores e os coloca em situações de vulnerabilidade no sentido da insegurança, intensificação e desmotivação^(1-5).

No âmbito da atenção ao parto e nascimento no SUS, essa realidade pode ser constatada no mercado laboral das enfermeiras obstétricas no município do Rio de Janeiro, para as quais a gestão por meio das OS ampliou os postos de trabalho, inclusive com a criação de novas unidades assistenciais pela Rede Cegonha e pelo Programa Cegonha Carioca. No entanto, através de formas de organização do trabalho que flexibilizam as relações trabalhistas, exige-se produtividade e multifuncionalidade, resultando na intensificação laboral^(1,5-9).

Neste cenário, acrescentam-se a divisão técnica do trabalho da enfermagem, as especificidades das atividades gerenciais e assistenciais, a divisão sexual, as relações hierarquizadas e conflituosas, os baixos salários e o acúmulo de vínculos. Tais características agregam complexidade ao processo de trabalho das enfermeiras obstétricas, desvelam a desvalorização dessa especialidade nas maternidades e contribuem para a desmotivação dessas trabalhadoras^(1,7-11).

Frente ao exposto, pondera-se que as diretrizes internacionais e as políticas públicas de saúde brasileiras reconhecem a atuação das enfermeiras obstétricas que, por meio de um processo de cuidar com enfoque nas habilidades relacionais e no uso de tecnologias leves, oferecem um cuidado humanizado e seguro que vem contribuindo para a mudança do modelo obstétrico medicalizado, reduzindo a adoção de condutas intervencionistas e aumentando o grau de satisfação das mulheres^(5,9,12-16).

A despeito desses avanços conquistados na qualificação da assistência obstétrica, são necessários maiores investimentos governamentais, com vistas a melhorar ainda mais os resultados maternos e neonatais através do fomento e da valorização da atuação destas especialistas. Neste sentido, este estudo suscita reflexões necessárias porque, na perspectiva do trabalho, as enfermeiras obstétricas estão atuando em condições laborais adversas que produzem sofrimento, adoecem os trabalhadores e criam desafios para a assistência humanizada no SUS.

Por isso, esta pesquisa está ancorada na psicodinâmica do trabalho de Cristophe Dejours, que investiga o indivíduo e sua relação com a organização do trabalho (contexto, condições e relações laborais), ocupando-se do sofrimento decorrente da intensificação das cargas de trabalho e das estratégias defensivas utilizadas pelos trabalhadores para ressignificar e superar o sofrimento advindo de contextos laborais desestruturantes⁽¹⁷⁾.

Sob esta ótica, a organização laboral, que compreende a divisão do trabalho (divisão e conteúdo das tarefas, cadência e tempo) e divisão dos indivíduos (relações de poder, responsabilidade, hierarquia, comando e controle), prescreve atividades e relações humanas para o trabalhador. Essa configuração mobiliza as subjetividades do indivíduo produzindo vivências de prazer quando a organização permite a transgressão do trabalho prescrito, possibilitando a estruturação psíquica e a expressão da identidade. Caso a organização não permita a subversão do prescrito pelo indivíduo, há vivências de sofrimento e a elaboração de estratégias defensivas no intuito de mitigá-lo^(17-19).

OBJETIVOS

Compreender as condições de trabalho e as estratégias adotadas pelas enfermeiras obstétricas nas maternidades.

MÉTODOS

Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em atendimento aos aspectos éticos e legais de pesquisas com seres humanos, as participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), explicitando a participação voluntária e a manutenção do anonimato. Para tanto, adotaram-se as letras EO, concernente ao termo enfermeira obstétrica, seguidas de algarismos arábicos, representando a ordem de realização das entrevistas.

Tipo de estudo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória, que permite compreender as relações e as subjetividades de um fenômeno por meio do relato de experiências e percepções dos atores envolvidos⁽²⁰⁾. Nesta perspectiva, o estudo adotou as diretrizes propostas pelo Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ).

Procedimentos metodológicos

Cenário do estudo

Este estudo não teve a pretensão de focar em maternidades específicas. No entanto, destaca-se que as participantes atuavam como enfermeiras obstétricas em sete das doze maternidades do município do Rio de Janeiro, com diferentes perfis assistenciais.

Participantes do estudo

A pesquisa foi realizada com 20 enfermeiras obstétricas. Como critérios de inclusão, adotou-se: ser especialista em enfermagem obstétrica; atuar em maternidades públicas do município do Rio de Janeiro há, pelo menos, um ano; trabalhar em regime de plantão; possuir vínculos laborais estatutário e/ou celetista nessas maternidades. Foram excluídas as enfermeiras que atuavam, concomitantemente, em maternidades da rede pública e privada.

Para a captação das participantes, utilizou-se a técnica de Bola de Neve⁽²¹⁾, buscando as participantes-sementes através de uma seleção intencional, por contato telefônico com três egressas da especialização em enfermagem obstétrica de uma instituição de ensino superior pública. Tal escolha se deve à facilidade de os autores obterem os contatos junto à coordenação do referido curso.

Assim, a amostragem se constituiu a partir dessas participantes-sementes, as quais indicaram outras potenciais participantes que, por sua vez, apontaram outras novas participantes, conformando uma cadeia de referência de amostra não probabilística até o indicativo de saturação, que foi atingido quando cinco novas participantes passaram a repetir os conteúdos já obtidos em entrevistas anteriores, sem acrescentar novas informações relevantes à pesquisa⁽²⁰⁾.

Coleta e organização dos dados

A coleta dos dados aconteceu no período de junho a setembro de 2018, por meio da técnica de entrevista individual, que possibilita ao pesquisador estabelecer um diálogo com o entrevistado, abordando livremente um tema em profundidade⁽²⁰⁾. Para tanto, utilizou-se um instrumento semiestruturado contendo perguntas fechadas sobre a caracterização das participantes e as seguintes questões abertas: como você se sente em relação ao seu trabalho? Como você percebe suas condições de trabalho? Quais elementos do seu ambiente de trabalho são desfavoráveis e/ou favoráveis ao desenvolvimento de suas atividades? Como você age diante dessas condições de trabalho? Qual a influência dessas condições sobre sua saúde e suas práticas assistenciais?

Mediante contato telefônico com as participantes para esclarecimentos e convite à participação na pesquisa, as datas das entrevistas foram agendadas em comum acordo entre as partes. As mesmas foram realizadas por um dos autores do estudo, doutorando na época da coleta dos dados, e aconteceram na residência das participantes em condições adequadas de comodidade e privacidade, proporcionando a espontaneidade necessária.

As entrevistas tiveram duração média de 60 minutos, sendo gravadas em dispositivo digital, sem registros das expressões e sentimentos manifestados. Após a transcrição, esse material foi enviado para a validação do conteúdo pelas participantes, via e-mail.

Cabe ressaltar que foram realizadas três entrevistas-piloto, as quais indicaram a adequação do instrumento e, mesmo sem a necessidade de alterações, essas participantes não foram incluídas no estudo. Pontua-se, também, que não houve recusas ou perdas de participantes ao longo deste processo, ou seja, das 23 participantes captadas, foram excluídas somente as três que participaram do teste piloto.

Análise dos dados

Na categorização dos depoimentos, trabalhou-se com a técnica de análise temática de conteúdo de Bardin⁽²²⁾, cujos achados foram discutidos à luz do referencial teórico da psicodinâmica do trabalho⁽¹⁷⁾. Sem utilizar qualquer software, este processo iniciou com a pré-análise, seguida da exploração do material, para identificação das unidades de registro, as quais foram organizadas em unidades de significação e reagrupadas em unidades temáticas, que foram submetidas à inferência e à interpretação entre os autores, o que possibilitou a construção das categorias do estudo intituladas: “As condições inadequadas de trabalho das enfermeiras obstétricas: infraestrutura precária associada ao déficit de recursos materiais e humanos” e “Estratégias de defesa adotadas pelas enfermeiras obstétricas diante das sobrecargas físicas e psíquicas de trabalho”.

RESULTADOS

Os participantes deste estudo são do sexo feminino e encontram-se na faixa etária entre 25 aos 34 anos. Em relação ao tempo de formação, dezoito possuem mais de três anos e duas possuem menos de dois anos. No tocante aos vínculos laborais, onze possuem somente um vínculo, sendo cinco estatutárias e seis celetistas, sendo que nove acumulam dois ou três vínculos. A maioria dessas trabalhadoras desenvolve suas atividades laborais na assistência e no serviço diurno, em plantões de 12x60 horas, perfazendo uma jornada igual ou superior a sessenta horas semanais.

As condições inadequadas de trabalho das enfermeiras obstétricas: infraestrutura precária associada ao déficit de recursos materiais e humanos

Essa categoria evidenciou que as condições de trabalho das enfermeiras pesquisadas são inadequadas, em função da infraestrutura precária, expressa na planta física obsoleta, no mal funcionamento de equipamentos e na falta de recursos materiais nos ambientes laborais. Essas questões se configuram inadequações das condições de trabalho que representam exposições a riscos físicos e interferem na produção do cuidado, conforme recomendado pelas diretrizes programáticas da humanização.

A estrutura física é obsoleta [...] deixa muito a desejar! Por exemplo, o banheiro é muito ruim! Não tem chuveiro e aqueles que possuem, o chuveiro vive quebrando! Tem que estar pedindo manutenção toda hora. (EO5)

Uma coisa que a gente briga muito aqui é por uma estrutura física melhor! Os boxes, o fato de ter um banheiro e um chuveiro para todas as pacientes [...] é impossível, ainda mais com a casa cheia. (EO9)

Aqui nós trabalhamos com poucos recursos. A gente consegue aplicar alguns recursos tecnológicos de cuidado baseados em evidências, mas faltam o cavalinho, a bola suíça [...]. Coisas que a gente não tem no momento. Então, atrapalha um pouquinho. (EO14)

É um hospital antigo [...] não foi preparado para esse modelo novo de humanização! Então, para você dar uma assistência adequada, baseada na humanização, fica bem mais complicado. Às vezes, uma paciente não consegue ficar muito tempo no banheiro porque uma outra quer entrar. (EO15)

A sala foi desativada devido ao calor! Nós estamos sem manutenção há meses e os aparelhos de ar condicionado estão todos com defeito! Bem difícil [...]. (EO20)

Além desses aspectos, que também foram pontuados por EO4, EO11 e EO19, acrescentam-se as sobrecargas física e psíquica do trabalho resultantes da redução do número de profissionais da enfermagem, do aumento da demanda de mulheres por atendimento e da cobrança de produtividade por parte das instituições. Esse contexto laboral, na maioria das vezes, leva ao acúmulo de tarefas e/ou funções e culmina na intensificação do trabalho das enfermeiras em maternidades, identificada nas falas de quinze participantes.

A questão da diminuição de profissionais também é muito ruim porque diminuiu o número de profissionais e aumentou a demanda. [...] então, a gente acabou ficando com todo o trabalho e estou acumulando serviço. E o meu trabalho em si, às vezes, eu não consigo fazer [...] reduziu o número de enfermeiras obstétricas e de técnicos de enfermagem. (EO6)

Por ser OS, eles cobram muito! A partir do momento que a coordenação é cobrada, eles cobram em cima da gente porque têm medo da demissão. Há pressão para atendermos mais pessoas. (E07)

Muitas vezes, somos cobradas por estarmos fazendo menos parto que a outra instituição. A cobrança é constante. (EO13)

Aqui se tem muita pressão para a produtividade no atendimento e na classificação! [...] a classificação [referindo-se à classificação de risco preconizada pelo Ministério da Saúde] tem que ser em dez minutos! Então, tem que seguir isso. (EO20)

Estratégias de defesa adotadas pelas enfermeiras obstétricas diante das sobrecargas físicas e psíquica do trabalho

Essa categoria revelou que, frente às condições laborais inadequadas e às sobrecargas física e psíquica, as enfermeiras elaboram estratégias de defesa centradas na resolução de problemas, tais como comprar materiais por meios próprios, abdicar, total ou parcialmente, da pausa oficial do horário de almoço, reorganizar as tarefas e implementar pausas não oficiais para a equipe de enfermagem durante o turno laboral.

A gente vai comprando os materiais, os equipamentos necessários [...] não tudo, é claro, mas vamos comprando o que dá e vamos dividindo os custos. Então, a gente está precisando de bolas suíças, óleos e aromas [...] aí, a gente faz uma vaquinha e compra. (EO4)

Em alguns momentos, a gente não consegue fazer uma refeição de intervalo de uma hora. Tem que tirar menos, senão o colega fica sem comer ou vai almoçar muito mais tarde. Então, a gente sempre tenta se adequar, mas isso acaba sobrecarregando de qualquer forma. (EO12)

O pessoal sempre está dando suporte. A gente procura dividir mais. Dividimos as tarefas para reduzir sua carga de trabalho. (EO17)

Nossa atividade gera muito estresse. Então, a gente tenta ao máximo “segurar a onda”, mas tem horas que a gente descompensa. [...] durante o plantão, ficamos extremamente cansadas, então, até eu mesma já falei assim: “Senta aí um pouquinho e relaxa que eu vou lá ver as pacientes agora”. (EO18)

A minha equipe é bem unida, todo mundo está ali no mesmo barco. Então, o que um pode ajudar o outro, ajuda. Quando um está doente, o outro ajuda. (EO19)

DISCUSSÃO

A infraestrutura é um elemento essencial da ambiência hospitalar, pois ambientes laborais com espaços, mobiliários e recursos materiais necessários à prática assistencial, com temperatura, som, iluminação, sinestesia e cor adequados às especificidades do cuidado proporcionam privacidade, individualidade e confortabilidade; esses elementos se traduzem em bem-estar para os usuários e vivências de prazer para os trabalhadores^(9,23-28). Por outro lado, um ambiente em dissonância com os padrões preconizados pode gerar insatisfação e desgaste do trabalhador no desempenho de suas atividades laborais, conformando situações de sofrimento que impactam negativamente sobre a humanização, a qualidade e a segurança da assistência^{(2,7,9,27-33)}.

Sob a ótica da psicodinâmica do trabalho, as condições de trabalho integram elementos da infraestrutura, do apoio e das práticas administrativas, que caracterizam o lócus de produção, envolvendo ambiente físico e biológico, circunstâncias antropométricas, de higiene e de segurança, instrumentos e equipamentos, objetos materiais simbólicos e suporte organizacional. Assim, quando as condições laborais oferecidas pela organização são precárias e não acolhem as expectativas e desejos do trabalhador, surgem vivências de sofrimento⁽³⁴⁾.

Tal configuração deletéria transparece nas defasagens entre o trabalho prescrito, como as tarefas fixadas para um determinado processo de trabalho e o trabalho real enquanto atividades que se concretizam na prática, considerando as singularidades dos trabalhadores e as variáveis materiais, organizacionais e/ou sociais das condições de produção⁽¹⁷⁾. À complexidade dessa relação, soma-se que, no âmbito da atenção à saúde, o trabalho prescrito também incorpora as diretrizes normativas e programáticas das políticas públicas, a estruturação da rede assistencial, os marcos bioéticos e os dispositivos legais⁽⁷⁾.

Desse modo, o trabalho prescrito interage com as subjetividades do trabalhador e as possibilidades oferecidas pelas condições de trabalho, conformando um trabalho real que se apresenta como adaptações do prescrito diante de situações reais do labor. Nesta dinâmica, as condições de trabalho podem proporcionar vivências de prazer quando permitem a estruturação psíquica e a expressão da identidade do trabalhador, ou podem determinar vivências de sofrimento e interferir na construção da identidade, nas formas de sociabilidade e na autoestima⁽¹⁷⁾.

Conforme verificado nas falas das enfermeiras obstétricas sobre a infraestrutura das maternidades, nota-se que a planta física obsoleta, o mal funcionamento de equipamentos e a falta de recursos materiais revelam a precariedade da ambiência, a qual é um dos elementos das condições de trabalho que desencadeia vivências de sofrimento, pois interfere no desenvolvimento de um processo de cuidar humanizado e desestabiliza a identidade profissional dessas trabalhadoras.

Enquanto uma diretriz da Política Nacional de Humanização, a ambiência é definida como ambientes físico, social, profissional e de relações interpessoais organizados para propiciar espaços saudáveis, acolhedores e confortáveis que criem lugares de encontro entre profissionais, usuários e gestores para melhorar as condições e os processos de trabalho em saúde com vistas à construção de relações humanas e resolutivas^(23-24).

Na perspectiva dos serviços obstétricos, a recomendação oficial para a ambiência perpassa por uma infraestrutura hospitalar que favoreça os processos de parturição e nascimento por meio da adoção de práticas baseadas em evidências científicas e da implementação de locais para o acolhimento com classificação de risco, do alojamento conjunto e de quartos com leitos de pré-parto, parto e pós-parto (PPP), equipados com banheiro que dispõe de box e chuveiro⁽²⁴⁾. Recomenda-se também que os PPP ofereçam conforto lumínico, térmico e acústico, bem como disponibilizem áreas para deambulação e equipamentos para relaxamento, alívio da dor e estímulo à evolução fisiológica do trabalho de parto, tais como fisioball, escadas de ling, cavalinho, banheira e/ou chuveiro com água quente, dentre outros^(9,24-25).

Considerando essas recomendações oficiais, percebe-se a inadequação da ambiência das maternidades, pois as participantes consideram que a planta física obsoleta não favorece o cuidar com respeito à privacidade e promoção de conforto à mulher, uma vez que não contempla banheiros com boxes individualizados e chuveiros com água quente. Ademais, o mal funcionamento recorrente de aparelhos de ar condicionado expõe profissionais e usuárias a riscos físicos devido às altas temperaturas do ambiente, e a falta de disponibilização institucional de instrumentos específicos utilizados pelas enfermeiras obstétricas prejudica o oferecimento do cuidado humanizado com o mínimo de intervenção e impede a manifestação de seus referentes identitários no ambiente laboral.

No processo de cuidar humanizado característico das enfermeiras obstétricas, a bola, o cavalinho e os óleos essenciais são alguns dos recursos materiais necessários para o uso de Tecnologias Não-Invasivas de Cuidado de Enfermagem Obstétrica (TNICEO), conceituadas como técnicas, procedimentos e conhecimentos que contribuem para a progressão fisiológica da parturição, incentivam a autonomia feminina, promovem o bem-estar e reduzem as intervenções desnecessárias^{(13-14,35-36)}. Para além dessas contribuições, as TNICEO são referentes identitários que geram pertencimento, conferem distinções ao cuidado das enfermeiras obstétricas e criam representações do modelo assistencial humanizado que permitem o reconhecimento dessas especialistas dentre os demais profissionais da saúde^(13,36).

No âmbito das diretrizes internacionais e das políticas públicas brasileiras, estas especialistas são reconhecidas como agentes estratégicas para impulsionar as práticas humanizadas nos serviços de atenção ao parto e nascimento, por meio das TNICEO^(7,13). Assim, quando a organização laboral não disponibiliza os instrumentos necessários à utilização dessas tecnologias, evidencia-se a desvalorização e o não reconhecimento institucional do trabalho das enfermeiras obstétricas, visto que o reconhecimento é uma retribuição simbólica advinda da contribuição do trabalhador à instituição, consequente aos significados e valores atribuídos às suas atividades⁽¹⁷⁾.

Nessa perspectiva, é possível inferir que as condições laborais referidas pelas participantes fomentam vivências de sofrimento, pois a falta de instrumentos importantes para o uso de TNICEO desestabiliza seus referentes identitários e agrega carga psíquica ao trabalho pela privação de objetos materiais simbólicos que conferem sentidos às suas práticas, reforçam sua identidade profissional e propiciam a valorização social da enfermagem obstétrica.

Como outro elemento relacionado às condições de trabalho nas maternidades e que também produz vivências de sofrimento, evidenciou-se a intensificação laboral, manifestada nas falas das participantes por meio da sobrecarga de trabalho decorrente do quantitativo reduzido de profissionais da enfermagem, do aumento da demanda de mulheres por atendimento e da cobrança institucional por produtividade.

Nas últimas décadas, o mundo do trabalho vem se reconfigurando a partir das determinações neoliberais de flexibilidade e racionalização da organização laboral, associadas às exigências de qualificação, polivalência e multifuncionalidade. Neste contexto, a exploração e a espoliação da força de trabalho, muitas vezes em condições precárias e com vínculos frágeis, juntamente com o enfraquecimento da capacidade coletiva de mobilização dos trabalhadores, mostram-se fundamentais para atender as demandas dos processos produtivos sob a égide do capital^(1-4).

Como efeito desta conjuntura, verificam-se mudanças no conteúdo, na natureza e no significado do trabalho que passam a agregar pressão pelo incremento da produtividade e do desempenho, culminando na intensificação laboral ou no aumento do grau de intensidade do trabalho, que se expressa no prolongamento das jornadas, nas tarefas realizadas em ritmo intenso e com controle rigoroso, no acúmulo de funções, na flexibilidade e na remuneração variável^{(1-4,9,11,37)}.

Tais características atribuídas ao labor estão presentes na organização do trabalho em saúde. No entanto, a enfermagem é a equipe mais afetada, pois, além do frequente acúmulo de vínculos em função dos baixos salários, suas atividades perpassam pela escassez de trabalhadores e pelo desgaste relacionado à complexidade e heterogeneidade das atividades ocupacionais em âmbito hospitalar, as quais se configuram como sobrecarga por agregar uma carga maior de trabalho material e imaterial^{(1,6-9,29-30,38)}.

Supõe-se que o trabalho deva ser fonte de prazer e realização profissional, entretanto, em condições adversas e de intensificação laboral, há maiores possibilidades de o trabalho se configurar como fonte de estresse, frustração, despersonalização e desmotivação, comprometendo a capacidade funcional e moral dos trabalhadores, bem como a qualidade da atenção à saúde^(1-2,4,6-9).

Nessa perspectiva, verificou-se que as participantes se encontram imersas em condições inadequadas de trabalho que conformam vivências de sofrimento criativo, que se caracteriza pela utilização do potencial de ressignificação do trabalho através de mudanças congruentes com o desejo do trabalhador para resistir às desestabilizações no trabalho. Ao mesmo tempo, algumas participantes revelam vivências de sofrimento patogênico, o qual ocorre quando há esgotamento dos recursos internos e externos do trabalhador para fazer frente às exigências de uma organização do trabalho rígida, no qual o espaço de liberdade é limitado⁽¹⁹⁾.

Diante da precariedade da ambiência e das sobrecargas de trabalho, as enfermeiras obstétricas utilizam a inteligência prática, que consiste em recorrer a recursos próprios e usar a capacidade inventiva, e a cooperação, que representa formas de agir em grupo para enfrentar o sofrimento no trabalho por meio do desenvolvimento de estratégias de defesa predominantemente coletivas, as quais contribuem para a coesão no trabalho, pois são elaboradas por um grupo de trabalhadores para suportar as adversidades da organização laboral^(18-19).

Nesse sentido, a compra de alguns instrumentos para o uso de TNICEO é uma estratégia coletiva de defesa elaborada para evitar que as condições inadequadas de trabalho desestabilizam a identidade profissional das enfermeiras obstétricas, manifestada no cuidado humanizado, e para minimizar os impactos deste contexto sobre a assistência nas maternidades. Por outro lado, a abstenção, total ou parcial, do direito ao horário de almoço, a reorganização das tarefas e a implementação de pausas não oficiais para a equipe de enfermagem durante o turno laboral são estratégias coletivas de defesa que objetivam amenizar os efeitos das sobrecargas física e psíquica do trabalho das enfermeiras, bem como mitigar o sofrimento patogênico diante de uma realidade laboral adversa.

Apesar de essas estratégias defensivas serem coletivas, elas não produzem mudanças efetivas nas condições laborais e nem representam uma organização das enfermeiras obstétricas para lutar por seus direitos no trabalho. Tal constatação remete à ideia de servidão voluntária, na qual os trabalhadores, apesar de conscientes da submissão ao prescrito, submetem-se às regras do ofício, por alienação ou em função da gestão utilizando o medo, encobrindo graves problemas organizacionais e estruturais que afetam a sua dignidade e bem-estar no trabalho^(39-40).

Cabe ressaltar que a atual configuração do mundo do trabalho é potencialmente nociva à saúde dos trabalhadores, visto que as restrições de investimentos em recursos humanos e infraestrutura agregam incertezas, insatisfações, estresse ocupacional e sofrimento^(29-30,38). Tais questões promovem desequilíbrios que se exteriorizam através de angústia, frustração, tristeza, estresse, taquicardia, cefaleia por tensão, falta de concentração e de criatividade, depressão, baixa produtividade, dores osteomusculares, cansaço, desgaste progressivo e esgotamento^(2,27). Algumas dessas alterações espoliantes da saúde transpareceram nas falas das participantes, denotando que as condições laborais geram vivências de sofrimento patogênico, que se materializa no adoecimento pelo trabalho.

Frente ao exposto, esta pesquisa constatou que as estratégias defensivas utilizadas pelas enfermeiras obstétricas não são direcionadas ao enfrentamento das condições inadequadas de trabalho nas maternidades. No entanto, perpassam pelo sentimento de pertença e de coesão dessas trabalhadoras, funcionando como recursos coletivos eficientes para minimizar o cansaço, o estresse e as sobrecargas decorrentes de um contexto ocupacional indigno, com ambiência precária, intensificação e exigência de produtividade, que induzem ao isolamento social, desestabilização da identidade profissional, sofrimento e adoecimento das trabalhadoras.

Ressalta-se que os achados deste estudo são corroborados por pesquisas internacionais que abordam as condições laborais dos profissionais da enfermagem em diferentes países do mundo, correlacionando-as com sofrimento, adoecimento e insatisfação no trabalho^(29-33,38). Neste sentido, enfermeiras obstétricas e parteiras que atuam em ambientes laborais com segurança, recursos necessários e boas relações interpessoais, aliados a salários e jornadas dignas, apresentam maiores graus de satisfação no trabalho, com reflexos positivos sobre sua saúde e a qualificação da assistência obstétrica^{(29-33,38,41)}.

Limitações do estudo

Considerando a profundidade e a diversidade dos dados encontrados, vislumbra-se que a não utilização de um software para a análise das 20 entrevistas realizadas pode ser considerada uma limitação, visto que seria um recurso eficiente para a organização e interpretação dos dados, o qual confere fidedignidade ao processo de construção das categorias analíticas em pesquisas qualitativas.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política pública

As reflexões deste estudo suscitam um novo pensar o ensino da enfermagem. As maternidades do município do Rio de Janeiro são cenários de formação prática de enfermeiras e enfermeiras obstétricas, as quais estão imersas em condições laborais inadequadas. Por isso, é preciso direcionar esforços para minimizar a distância entre o prescrito e o real, pois a convivência dos educandos com o contexto precarizado do mundo do trabalho da enfermagem pode prejudicar a constituição do perfil da futura enfermeira ou especialista, bem como interferir no processo de construção da identidade profissional, com potencial para a desmotivação em relação à profissão.

A precarização laboral no SUS pode comprometer o avanço das iniciativas governamentais direcionadas para a qualificação da atenção à saúde das mulheres e para a humanização da assistência, visto que o estudo evidenciou, predominantemente, vivências de sofrimento entre as enfermeiras obstétricas que trabalham em maternidades. Tal constatação pode desencadear a evasão dessas especialistas para outros cenários assistenciais, sobretudo quando a organização do trabalho não proporciona condições de trabalho dignas e cobra produtividade dos trabalhadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contexto laboral das enfermeiras obstétricas apresenta indícios de precariedade, pois as condições de trabalho inadequadas mobilizam a inteligência prática e a cooperação dessas trabalhadoras, de modo que desenvolvem estratégias de defesa para enfrentar as sobrecargas e minimizar o sofrimento. No entanto, a natureza desses mecanismos sugere a alienação delas, uma vez que suas ações não promovem transformações concretas em sua realidade laboral e, ao mesmo tempo, ocultam a precariedade do contexto do seu trabalho.

No sentido de romper com uma configuração que mantém um ciclo contínuo de precarização, este estudo evidenciou a importância de fomentar a consciência política para a organização deste coletivo de trabalhadoras, no intuito de lutar por condições dignas de trabalho. Além disso, também despertou reflexões acerca dos efeitos deste panorama sobre o ensino da enfermagem e as políticas públicas de atenção à saúde das mulheres, ressaltando que a problematização dos desajustes entre o trabalho prescrito e real é necessária para a constituição de trabalhadores conscientes de suas lutas e com disposições para reivindicar a valorização de seu labor, para fortalecer o modelo humanizado e, ao mesmo tempo, enfrentar a lógica neoliberal no mundo do trabalho.

Assim, este estudo aponta para a necessidade de realizar novas pesquisas sobre o trabalho das enfermeiras obstétricas em outros cenários assistenciais e no âmbito das maternidades de outras esferas administrativas e de outros estados, com vistas a aprofundar a discussão acerca da importância de condições dignas de trabalho, sob o ponto de vista das instalações, dos recursos humanos, dos insumos materiais e tecnológicos, que propiciem vivências de prazer e promovam o bem-estar para a realização de um trabalho de inestimável valor social, como o da enfermagem.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho

EDITOR ASSOCIADO: Ana Fátima Fernandes

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  24 Mar 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  14 Maio 2020
• Aceito
  01 Set 2020