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O Brasil diante do afropessimismo de Frank Wilderson III

WILDERSON, Frank B.III. 2021. Afropessimismo . São Paulo, Todavia. pp 400.

“Afropessimismo”, de Frank B. Wilderson III, é o primeiro livro do autor no mercado editorial brasileiro. Tem como objetivo explicitar dimensões epistemológicas que oferecem à dor negra um lugar central no mundo moderno e a possibilidade de estabelecer comparações transatlânticas das condições de anti-negritude. Publicado pela editora Todavia em 2021, com tradução de Rogerio W. Galindo e Rosiane Correia de Freitas, ele foi disponibilizado simultaneamente para o público norte-americano e brasileiro. Resultado de uma pesquisa realizada na Alemanha com bolsa para pesquisadores experientes, Wilderson III carrega as credenciais de escritor, dramaturgo, cineasta e crítico. Professor na Universidade da Califórnia, possui extensa lista de livros publicados, filmes produzidos e coleciona alguns prêmios. Ele foi orientado por aquela que leva o título, nem sempre aceito por ela mesma, de “mãe” do pensamento afropessimista, Saidiya Hartman. O livro em tela recolhe uma série de ensaios com memórias de sua trajetória que constroem uma metateoria sobre a dimensão global da anti-negritude, posicionando corpos negros frente ao mundo branco e outros grupos subalternos. Organizado em duas partes, o livro se divide em sete capítulos e um epílogo. Carregado de histórias sobre sua infância e juventude, bem como cenas cinematográficas, ele tem em seu cerne o problema do estatuto dos humanos e não-humanos, ou seja, levanta a questão do não lugar de humanidade da população negra.

O pensamento afropessimista tem causado fissuras nas formas de entendermos a questão racial, pois rompe com as análises usuais sobre raça e desigualdades. Seus leitores muitas vezes têm considerado ser esse um pensamento radical, niilista e com poucas saídas para a ação política concreta. Como nomes dessa vertente de pensamento poderíamos mencionar Joy James, Hortense Spillers, Jared Sexton, Sylvia Winter, Katherine Mckittrick, e, no Brasil, Osmundo Pinho, Denise Ferreira da Silva, João Helion Vargas e Jaime Amparo Alves, estes últimos com vasta produção sobre afropessimismo e profunda colaboração que liga grupos afrodiaspóricos no Brasil e no mundo. Para estes diferentes autores, há uma incomensurabilidade entre a modernidade e os corpos negros, pois sobre estes últimos é que são depositadas as dores do mundo, ou melhor, estes as vivenciam em sua plenitude, as sustentam. Cabe destacar esforços analíticos que entrelaçam diferentes vivências, possibilitando o intercâmbio teórico negro a partir do terror racial que interliga grupos afro ao redor do mundo.

Muito influenciado pelo esquadrinhamento da escravidão proposto por Orlando Patterson (2008PATTERSON, Orlando. 2008. Escravidão e morte social: um estudo comparativo. São Paulo: Edusp.), bem como pelo pensamento fanoniano e cesariano, o afro-pessimismo tem como uma das suas bases a ideia de que a dor negra é o fundamento do mundo moderno. O corpo negro funciona como um cavalo sobre o qual monta toda a violência. Fundamentalmente, esta mantém esse corpo em completa assimetria e subalternidade, como não pertencente ao mundo dos vivos, mas sob o manto permanente da morte. Um exemplo disso são as imagens veiculadas do assassinato de pessoas negras em mídias digitais onde a dor derrama lágrimas breves que rapidamente são revertidas em julgamentos sobre o que deveriam ter feito para que não fossem alvos. Ou seja, a vítima da violência é colocada no lugar da responsabilidade sobre sua punição, sendo seu corpo transformado em plausível de violência gratuita. Esta é a recorrência que associa modernidade, terror racial e anti-negritude: a violência, mesmo que absurda e imperdoável, é transformada em justificável, suportável e passageira, pois é depositada sobre corpos negros.

A leitura do primeiro capítulo nos provoca um verdadeiro assombro, acompanhado por uma rigidez corporal que nos convoca a um estado de alerta, pois antevemos situações de violência e terror cotidianos. Assim, tentamos antecipar quais reações teríamos diante daquelas situações que nos são descritas. Quando lemos sobre anti-negritude, não lemos sobre o outro distanciado, longínquo e oblíquo, mas sobre nós, nossos pais, mães e irmãs, ou seja, sobre comunidades e pertencimentos que nos atravessam. Acreditamos que as reações ao livro de W. III sejam necessariamente realizadas a partir de uma leitura localizada, apesar de estrutural. Pessoas brancas e pessoas negras terão reações e interações diferentes com o livro. Não nos seria possível falar sobre as reações das pessoas brancas. Podemos, contudo, elucidar algumas provocações que ele realiza sobre uma leitura parcial. Frank B. Wilderson III fala de sua infância e o título do capítulo já é desconcertante: em um momento em que todos precisam de fantasias e máscaras, ele não precisaria de adereços para o Halloween porque seu rosto caracteriza uma figura bestial, é um monstro de cara limpa e não precisa de incrementos para seu estado maligno.

Na exposição do autor, a anti-negritude está localizada em todas as faixas etárias da vida humana, percorre a vida desde os mais tenros e doces momentos da infância até uma possível velhice. Nesse sentido, a raça carrega uma dimensão territorial, pois posiciona e localiza grupos em escalas de humanidade, restando, contudo, para alguns, a condição de não-humanos, já que negros. Estes são os marcadores e referenciais de abjeção, são expulsos do reino dos vivos, retirados do mundo humano e jogados, não sem violência, para a animalidade. Destacamos nesse capítulo, a presença de um debate sobre o inato e o adquirido, tema caro à teoria social, de modo que o pensamento sobre a anti-negritude revelaria a centralidade dos estudos raciais para essa preocupação socioantropológica. Sabemos que frequentemente os estudos sobre raça são tidos como uma parte do pensamento social geral, e não como essenciais para questões basilares desse campo de estudo.

O segundo capítulo situa o que é o afropessimismo. Ele é conceituado como uma metateoria para localizar o sofrimento negro no mundo em uma relação que não é meramente causal, mas está diretamente relacionada a uma economia libidinal. A carne negra é parasitada como alicerce do mundo, ela lhe serve de esteio, como amparo para as frustrações, medos e ansiedades da branquitude. Ela é o sustentáculo do mundo como conhecemos. Ao mesmo tempo que esse capítulo situa o que é o afropessimismo, fala o que se pode fazer a partir desse pensamento. Não se trata de um reformismo, construção de um outro mundo paradisíaco, mas da proposição de que ao destruir, ao se engajar na raiva, é possível ver o fim do mundo e gozar com isso. Para o autor, o fim do mundo é consequentemente o fim da supremacia branca. Com exemplos que situam a incomensurabilidade da dor negra, narrados a partir de suas vivências, ora frente a povos indígenas, ora frente a mulheres brancas progressistas, localiza a dor negra para além dos cânones, situando a zona do não-humano como indispensável para o que conhecemos como Humanidade e as constelações em seu entorno (brancos e não-negros). Aqui, a potencialidade da dor e da raiva é indispensável para produzir conhecimentos não apenas a partir da usual afetação antropológica, de esquemas de performatividade em alta nos últimos anos, mas para, a partir da abjeção, ver o mundo como ele é: um mundo que odeia negros e se sustenta sobre a dor negra. A partir desta aceitação, que é fundamental, poder encará-lo. O capítulo quatro traz a eminência de perigo que sobretudo o homem negro suscita. Em um mundo antinegro que nos odeia, nossos corpos seriam controlados, observados e sobretudo temidos. Aqui uma questão de gênero se destaca, pois está no homem negro a constante desconfiança e temor. Não que sobre a mulher negra também não recaiam temores, mas sobre o corpo masculino a desconfiança opera em um registro de controle distinto. São os homens negros os maiores alvos da polícia; são eles os temidos por como se expressam corporal e verbalmente. Sobre corpos femininos, o controle da reprodução, da sexualidade, da beleza e do trabalho são mais visíveis. Lembrando que essas polaridades nos servem como modelos para explicitar algo que é recorrente e não como regra cravada em pedra. Assim, o autor relata momentos em que foi perseguido pelo FBI, e de como começou a praticar esporte a fim de canalizar a energia violenta que teria em si. Esse é outro aspecto abordado nesse capítulo: o ódio contra o ódio que nos é incutido. Nós pessoas negras temos que lidar com uma carga muito pesada de violência dentro de nós para conseguirmos levar o sistema antinegro que nos envolve. Quando essa violência é expressada contra corpos brancos a ameaça ressurge em forma de opressão. E é sob essa dinâmica que é recorrente o medo de pessoas brancas em relação aos negros. No capítulo quatro, uma das questões centrais está, assim, em que não há causalidade ou relação direta entre a dor negra e o mundo do direito, conquistas no campo da sociedade civil e o corpo negro. O negro não pertence ao mundo dos humanos: ele compõe o mundo dos humanos como algo, como uma besta que sustenta e dá alívio às dores dos seres humanos. A morte e a violência gratuita e presumida são recebidas como chagas antes mesmo de se nascer. Em suas palavras: “A diferença entre alguém que morrer e algo morrer não pode dar origem a uma analogia” (:187). Mas ao mesmo tempo, o povo negro não pode morrer por completo porque sem ele a existência humana seria ininteligível e insuportável. Porém, sua “inclusão” é sempre parcial e seletiva.

Deve ser incompleta pois é responsável por gerar o próprio dilema. Como sobreviver sem ele? É indispensável o escárnio e a dor como fundamentos do mundo.

No capítulo cinco, a partir da abordagem das histórias das mulheres negras escravizadas, Wilderson III situa a alienação natal: relata múltiplas violências do período da escravidão, de mulheres negras com seus corpos violados. Assim, filhos fruto de estupros, bastardos, humilhações e prazeres sádicos compõem o campo do terror racial. Para além da violência em si, é fundamental situar as máculas e chagas para aqueles que nascem, pois já nascem sem direito ao passado. Sua memória é rasura, impossível de completar. Para negros é impossível traçar uma genealogia de origens, de parentesco e de presença no mundo. Este é um tema caro porque a ancestralidade é algo que tem percorrido as discussões afro com aspectos relacionados ao direito à memória, aos feitos heroicos e às construções potentes de vida. Entretanto, para ele não há para onde retornar justamente pela condição estrutural do que é o cativeiro e o terror racial.

No capítulo seis, Wilderson III narra seu contato com os estudos pós-coloniais; com Edward Said, em especial, com quem teve aulas na pós-graduação. Meses depois, mudou-se de Nova York e se juntou ao Congresso Nacional Africano na África do Sul. Em suas elaborações, que partem de Fanon, argumenta ser necessário entender as motivações reais para uma revolução e não uma mera reforma ou reconciliação. Para o autor, o negro sofre de formas que não podem ser conciliadas com as dimensões de sofrimento de outros humanos oprimidos, tais como o sujeito pós-colonial. Enquanto os inimigos dos nativos são os colonos, os inimigos dos negros são os humanos. A questão repousa em um vácuo de relacionalidade.

No último capítulo, Frank W. III relata um pouco mais sobre sua estadia na África do Sul. Mais uma vez, o tom narrativo ganha forma na descrição. Aqui, Frank mostra como era frágil sua posição como educador muito influenciado por Gramsci em um país em que negros eram impedidos de circulação e cidadania. A ideia de que uma teoria marxista daria conta daquela realidade cai por terra em sua experiência de militância.

No epílogo, por fim, o autor volta com a força de seu pensamento, um tanto quanto sem saída, para dizer que a pessoa negra jamais terá redenção. Nem se casando com uma pessoa branca, nem ficando rica, nem tendo cargos políticos relevantes. A condição negra é a condição do cárcere, e a ela nenhuma pessoa negra escapa. Assim, seu material gira em torno da afirmação sobre a situação de cativeiro em que os corpos negros estão submetidos. Pessoas negras sempre serão criminalizadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • PATTERSON, Orlando. 2008. Escravidão e morte social: um estudo comparativo. São Paulo: Edusp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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