Acessibilidade / Reportar erro

Apresentação

Apresentação

A Saúde Pública, no mundo, tem tentado, através de estudos e pesquisas, conhecer as doenças e causas de morte que assolam a humanidade para, assim, combatê-las e preveni-las. Entretanto, seu enfoque tem sido sempre a análise de doenças e mortes naturais. As chamadas "causas externas" ou, como preferem alguns, "causas não naturais"ou "causas violentas", englobando, segundo definição internacional (OMS-1979)13 os acidentes e as violências propriamente ditas - auto e hetero infligidas - sempre chamaram a atenção por serem eventos súbitos e inesperados, bem como pelo fato de incidirem particularmente em jovens. As mortes decorrentes destas causas, todavia, embora existam em número não desprezível, desde tempos imemoriais, não têm merecido, senão recentemente, a atenção dos estudiosos (Mello Jorge7, 1979).

Os acidentes existem desde a época em que o homem enfrentava os grandes perigos de um ambiente hostil e, para sobreviver a inundações, tempestades, incêndios e ataques de animais, expunha-se ao risco de morrer. A violência existia também em relação ao próprio semelhante: o homem lutava contra o homem para defender a propriedade, a honra, para atingir o poder. O Antigo Testamento relata a morte de Abel por seu irmão Caim, considerado este como o primeiro homicídio da história. O suicídio é também tão antigo quanto a própria humanidade. A Bíblia cita casos de morte voluntária de si mesmo, através de meios diversos. O Evangelho de São Mateus relata o caso de Judas que, "tendo vendido e crucificado Jesus, enforcou-se". Na Grécia e Roma antiga eram numerosos os casos de suicídios. Aos tempos da decadência, os indivíduos, esgotados pela corrupção e excesso de prazeres, acabavam buscando, na morte, o remédio contra o tédio da vida. Escolas filosóficas contra a vida floresceram em todo o mundo. Os suicídios por amor, por vingança e por imitação multiplicaram-se na vida real e inspiraram a literatura e as artes. Shakespeare, Goethe e Dante mostram, em suas obras, heróis suicidas. Mais tarde, são os próprios escritores que se matam: Anthero de Quental, Camilo, Hemingway e, entre nós, Raul Pompéia (Mello Jorge7, 1979).

Embora possa parecer paradoxal, na medida em que foi aumentando o conhecimento científico, que possibilitou o desenvolvimento tecnológico em várias áreas, foi crescendo também a diversidade de tipos de causas externas. Os envenenamentos, que até o século XIX eram quase que exclusivamente por produtos naturais, atualmente, passaram a ocorrer por uma variedade muito grande de novos produtos químicos e bioquímicos. Diversas substâncias, produzidas ou exploradas com finalidades fundamentalmente industriais, foram capazes de causar danos à saúde do homem, como demonstram os acidentes do bióxido de enxofre, na Bélgica, em 1930; do agente laranja, na Itália, em 1976, e de Bophal, na Índia, em 1984. A máquina a vapor e sua aplicação ao transporte ferroviário provocaram vários tipos de acidentes a partir do século XIX; o início do século XX viu o surgimento crescente dos acidentes de trânsito por veículos automotores. A partir do final da sua segunda década foram as aeronaves que promoveram o aparecimento de acidentes e de mortes, por elas provocadas. No ano de 1945, de uma só vez, morreram milhares de pessoas devido a um novo tipo de arma, a bomba atômica e, desde então, várias formas de acidentes vêm ocorrendo como conseqüência das diversas aplicações da energia atômica. No final da década de 50 surge outra possibilidade de causa externa, agora devida aos acidentes com veículos espaciais. Certamente, esta escalada não se esgota aqui, pois outros tipos de avanços tecnológicos deverão possibilitar novos tipos de acidentes e de violências.

Atualmente, as causas externas representam importante parcela da mortalidade em, praticamente, todos os países do mundo. Quase sempre estão entre as dez primeiras e, em muitos, entre as primeiras cinco (Tabela). Para a avaliação dessa situação utiliza-se, freqüentemente, o quadro da mortalidade por essas causas, pois esses dados são coletados de forma rotineira e estão facilmente disponíveis; porém, como para qualquer agravo à saúde, o ideal seria conhecer também a morbidade, para que se obtivesse o total de casos, mortais ou não. Vale, para as causas externas, a comparação comumente feita para a mortalidade e morbidade por outras causas: a mortalidade é apenas a ponta do iceberg em que cada problema se constitui.

É claro que esses números, analisados de forma global, se por um lado permitem o macrodimensionamento do problema dos acidentes e das violências, por outra parte, mascaram alguns tipos de causas, escondendo sua grandeza e encobrindo sua verdadeira medida. Em alguns países, como Estados Unidos e França, a representatividade dos acidentes de trânsito é bastante apreciável; em outros como Áustria, Japão e Hungria sobressaem os suicídios, enquanto que na Colômbia e no México são os homicídios, os responsáveis pelas taxas mais elevadas. É essa a razão pela qual é necessário um estudo mais detalhado, que seja capaz de apontar como, quando e por que razões ocorre cada um desses acidentes e dessas mortes, quem é vulnerável, em que grau e por que motivos, pois somente esse conhecimento será capaz de representar o elemento fundamental para o estabelecimento seguro de medidas visando à sua prevenção. O mesmo se diga com relação à sua distribuição segundo sexo, idade e regiões.

Em razão da importância desse quadro, o interesse de organizações internacionais pelo assunto vem também aumentando. Em 1955, quando da realização da VIII Assembléia Mundial da Saúde, em Genebra, foi proposto que a luta contra os acidentes fosse considerada um problema de saúde pública (Puffer e Serrano17, 1973). Seis anos mais tarde, a Organização Mundial da Saúde (OMS) - que criara o Dia Mundial da Saúde com o objetivo maior de empreender uma cooperação verdadeiramente mundial para a proteção e promoção da saúde humana - escolheu, como tema do ano, "Acidentes e sua Prevenção", referindo-se à "necessidade de uma ação pronta de combate a esse flagelo" (Candeau2, 1961). Em 1991, o tema do ano foi "Desastres não se fazem anunciar: é melhor prevenir do que remediar" (Nakagima10, 1991) e, dois anos após, 199311, o Diretor da OMS chamava a atenção para o fato: "a vida é frágil, previna a violência e a negligência" (OMS14, 1993). Em 1985, a OMS havia estimado que cerca de 7% do total de óbitos no mundo, tanto em países industrializados, como em desenvolvimento, eram devidos às causas externas (Lopez 6, 1993); que uma de cada 4 a 9 pessoas sofria, a cada ano, nos países desenvolvidos, lesões incapacitantes e que 2% da população mundial estava incapacitada, como resultado de uma ação causada por um acidente ou violência (OMS15, 1993).

No Brasil, a importância dos acidentes e das violências tem sido evidenciada também por meio dos dados de mortalidade. Em 1980 morreram, por essas causas, cerca de 70 mil pessoas no País e, em 1990, esse número já atingiu a casa dos 100 mil (Ministério da Saúde9, 1980/94). Propocionalmente às demais causas, pode-se dizer que, nos últimos quinze anos, seu crescimento foi de mais de 50%. Quanto às taxas de mortalidade o aumento verificado é também bastante visível e o fato de incidir sobre uma população jovem faz com que as causas externas se constituam no grupo campeão de anos potenciais de vida perdidos.

Em nosso meio, os acidentes de trânsito e os homicídios sobressaem dentre todas as causas externas. Eles representam importante carga social, não só pelas perdas de vida e pelas seqüelas, mas também por onerarem a sociedade com custos diretos e indiretos, incluindo aqui o importante gasto com a assistência médico-hospitalar.

• A Mensuração das Causas Externas

O tema da violência, do ponto de vista de sua causação, é difícil de ser esgotado, devido, principalmente, aos múltiplos fatores que intervêm em sua gênese. Ao se incursionar por suas raízes, sejam as históricas, as econômicas ou as sociais, é possível mostrar quão diverso é o espectro que o constitui. Trata-se de um fenômeno biopsicossocial que, segundo Minayo8 (1994) tem seu espaço de criação na vida em sociedade. Embora não seja ele um problema específico da área da saúde, é sobre esta que vai recair o maior ônus de todas as suas conseqüências. É de Agudelo1 (1990) a afirmação de que a violência representa um grande risco para a realização do processo vital humano, pois ele ameaça a vida, altera a saúde, produz doenças e provoca a morte, como realidade ou como possibilidade.

Já há alguns anos, vários tipos de estudos epidemiológicos têm sido publicados, possibilitando uma caracterização das causas externas e suas vítimas sob os mais diferentes aspectos: entretanto, eles fazem referência, geralmente, à violência que produz, nos indivíduos, danos quantificáveis, à violência que mata e que lesa as pessoas. É nessa linha aliás, que se encontra a definição de violência dada por Chesnais3 (1976) segundo o qual a violência é a conseqüência de golpes, feridas ou traumatismos resultantes de intervenções exteriores e brutais (contra o termo "brutais", algum questionamento pode ser levantado, como faz, aliás a própria Organização Panamericana de Saúde16, 1994). Essas violências são classificadas em intencionais, derivada de atos deliberados que causaram danos, e não intencionais ou acidentais. Também os administradores de serviço têm procurado avaliar os custos atuais e fazer projeções futuras, mostrando o quanto é importante a prevenção dos acidentes e violências, no sentido de reduzir os gastos com tratamento e reabilitação.

Tanto os estudos epidemiológicos, que servem de base para propostas de prevenção, como os estudos sobre custos, de interesse para os administradores, necessitam da existência de dados sobre as causas externas.

As estatísticas de mortalidade apresentam as mortes segundo as circunstâncias do evento (queda, atropelamento, colisão de veículos, homicídios por arma de fogo, explosão de caldeira e outras), enquanto as estatísticas de morbidade, com destaque às hospitalares, apresentam os casos segundo as conseqüências do evento, identificando, portanto, as lesões ocasionadas (fraturas, esmagamentos, intoxicações, ferimentos, hemorragias e outras).

Esse fato se baseia em recomendação internacional (OMS, 1979)13 que coloca, do ponto de vista da prevenção da morte, ser importante cortar a cadeia de eventos ou instituir a cura em certo ponto. O objetivo mais eficaz da saúde pública é prevenir a ação da causa precipitante e, para esse propósito, a causa básica da morte tem sido definida como "a doença ou lesão que iniciou a cadeia de acontecimentos patológicos que conduziram diretamente à morte ou as circunstâncias do acidente ou violências que produziram a lesão fatal. A origem destas estatísticas é o atestado de óbito que, no caso específico dos acidentes e violências é, segundo determinação legal, gerado por perito legista, a partir dos laudos necroscópicos. Quando se tratar de estudos de morbidade, analogamente, sua origem advém dos resumos de histórias médicas, e o diagnóstico principal, no caso de acidentes e violências, deve se referir às lesões deles decorrentes.

Assim, é difícil — embora não impossível — saber quantos acidentados de trânsito, por queda de altura ou pessoas que tentaram suicídio receberam atendimento hospitalar, bem como, pelas estatísticas de mortalidade, conhecer qual o número de óbitos por traumatismo de crânio ou rotura de fígado, por exemplo.

Nessa linha de raciocínio, fica claro que, para a morbidade, se estudam as lesões como diagnóstico principal e os tipos do acidente/violência que as produziram como causa associada; para a mortalidade, os tipos de acidente e violências é que aparecem como causa básica e as lesões como causa associada.

Até meados do século atual, com exceção de alguns poucos lugares, as causas externas eram mensuradas apenas pela mortalidade. A primeira apresentação estatística de mortalidade por causas que se conhece é aquela feita por Graunt5 (1939), na clássica obra, de 1662, "Natural and Political Observations Made upon the Bills of Mortality", republicada, referente às mortes ocorridas em Londres. O autor sistematizou as causas de morte em 83 categorias, das quais menos de dez correspondiam às causas externas e, entre essas, estavam o enforcamento, o envenenamento, o suicídio e a morte por acidentes.

Durante os séculos XVIII e XIX foram propostas várias classificações de causas de morte sendo que as causas externas sempre apareciam separadamente; só em 1893 é que se conseguiu um consenso para a utilização internacional de uma classificação de causas de morte. Numa primeira revisão da mesma, em 1900, havia apenas 22 categorias para a alocação das causas externas. Da segunda revisão (1909) à quinta (1938), esse número de categorias variou de 32 a 39.

A partir da Sexta Revisão, aprovada em 1948 (OMS12, 1949), a classificação de causas de mortes passou a ser uma classificação de doenças, lesões e causas de morte apresentando, portanto, doenças não mortais e, da mesma maneira, causas externas leves, que poderiam ser motivos de algum tipo de assistência médica. Nessa ocasião, o número de categorias aumentou bastante, passando a 153, e o conjunto delas, que sistematiza essas causas externas, passou a ser uma classificação suplementar, isto é, fora do corpo da classificação propriamente dita. No corpo da classificação apareceu um novo capítulo, chamado de "natureza da lesão" que apresentava as conseqüências das causas externas, para uso exclusivo em morbidade.

Assim, a Classificação Internacional de Doenças, da 6ª Revisão à 9ª Revisão, apresenta duas partes ou duas classificações alternativas no que se refere as causas externas: o capítulo XVII - Lesões e envenenamentos - no corpo da classificação, usado para morbidade, e uma classificação suplementar, segundo as circunstâncias do evento (código E), usado para mortalidade.

Nesse panorama geral, a presente publicação objetiva identificar o problema dos acidentes e das violências no País, do ponto de vista da saúde pública.

Na parte I é mostrada a evolução da mortalidade por causas externas, nos últimos dezessete anos, no País e nas capitais dos Estados, com base nos dados do Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde.

Na parte II são trazidos à luz, pela primeira vez, através de uma análise global para o Brasil, dados de morbidade hospitalar relativos às internações hospitalares por lesões e envenenamentos.

Na parte III é feita a análise do impacto econômico na sociedade brasileira, medido por meio dos gastos com atendimentos médicos, em dias perdidos de escola e de trabalho, como decorrência de acidentes e nos anos potenciais de vida perdidos em razão da mortalidade.

Na Parte IV é apresentado um modelo de prevenção de acidentes de trânsito, tomado como exemplo das mortes e lesões por causas externas, concebido e testado, na prática, na cidade de Bogotá, Colômbia, cujo autor esteve como consultor da OPS/OMS, em 1983. Os resultados obtidos mostram que a redução dos acidentes e das mortes é possível, pode e deve ser feita e que, embora esse trabalho tenha sido realizado fora do Brasil, suas diretrizes apontam para um exemplo a ser seguido entre nós.

Como Apêndice à publicação, é feita a apresentação de como os Acidentes/Violências e Lesões e Envenenamentos são abordados na nona e décima Revisões da Classificação Internacional de Doenças, esta, em vigor desde primeiro de Janeiro de 1996 (OMS14, 1993).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. AGUDELO, S.F. La violencia: un problema de salud pública que se agrava en la región. Bol. Epidemiol. OPS, 11: 01-07, 1990.

2. CANDEAU, M. Del fatalismo a la investigación cientifica. Salud Mundial, (maio/abr): 1961.

3. CHESNAIS, J.C., apud Organizacion Panamericana de la Salud. Las condiciones de salud en las Americas. Washington, 1994. v. 1 (Publ. cientif. 549).

4. DEMOGRAPHIC YEARBOOK, New York 1993. United Nations, 1995.

5. GRAUNT, I. Natural and political observation made upon the bills of mortality, London, 1662. Baltimore, Republ. for the Johns Hopkins Press, 1939.

6. LOPEZ, A.D. Causes of death in industrial and developing countries: estimates for 1985-1990. In: World Bank. Disease control priorities in developing countries. New York Oxford University Press, 1993.

7. MELLO JORGE, M.H.P. Mortalidade por causas violentas no Município de São Paulo. São Paulo, 1979. [Tese de Doutoramento - Faculdade de Saúde Pública/ USP].

8. MINAYO, M.C.S. A violência social sob a perspectiva da saúde pública. In: O impacto da violência social sobre a saúde. Cad. Saúde Pública, 10 (Supl.1), 1994.

9. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Estatísticas de mortalidade, Brasil, 1977/92. Brasília, DF, 1980/94.

10. NAKAGIMA, H. Desastres não se fazem anunciar é melhor previnir do que remediar; Dia Mundial da Saúde, 1991. Saúde Mundo, (mar) 1991.

11. NAKAGIMA, H. La vida es fragil: rechacemos la violencia y la negligencia. Salud Mundial. (mar): 1993.

12. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Manual of the international statistical classification of diseases, injuries and causes of death; 6º rev. Genebra, 1949.

13. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação estatística internacional de doenças: manual de lesões e causas de óbito; 9ª rev., 1975. São Paulo, Centro Brasileiro Classificação Doenças em Português, 1979.

14. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação internacional de doenças e problemas relacionados à saúde; 10ª rev., São Paulo, Centro Colaborador da OMS para a Classificação de Doenças em Português, 1993. v. 1.

15. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Report of the Second Global Liaison Meeting on Accident and Injury, 1986. Apud Organização Panamericana de la Salud. Las condiciones de salud en las Americas. Washington, 1993 v. 1 (Publicacion científica nº 549).

16. ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DE LA SALUD. Las condiciones de salud en las Americas. Washington, 1994, v.1.(Publicacion científica nº 549).

17. PUFFER, R.R. & SERRANO, C.V. Características de la mortalidad en la niñez. Washington D.C., OPS, 1973. (Publicacion cienttífica nº 262).

Maria Helena Prado de Mello Jorge

Ruy Laurenti

Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2001
  • Data do Fascículo
    Ago 1997
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Avenida Dr. Arnaldo, 715, 01246-904 São Paulo SP Brazil, Tel./Fax: +55 11 3061-7985 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revsp@usp.br