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Sucessos e Desafios no Enfrentamento das Doenças Cardiovasculares no Brasil: Viver Mais e Melhor

Palavras-chave
Sucessos; Desafios; Epidemiologia; Doenças Cardiovasculares; Câncer

As doenças cardiovasculares (DCV) e o câncer representam as maiores causas de morte no Brasil e no mundo. Tendo em vista tamanha relevância epidemiológica, o artigo “Taxas de Mortalidade por Doenças Cardiovasculares e Câncer na População Brasileira com Idade entre 35 e 74 Anos, 1996-2017”,11. Mansur AP, Favarato D. Cardiovascular and Cancer Death Rates in the Brazilian Population Aged 35 to 74 Years, 1996-2017. Arq Bras Cardiol. 2021; 117(2):329-340. doi: https://doi.org/10.36660/abc.20200233
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por meio da análise dos dados de mortalidade das Estatísticas Vitais do DATASUS (Sistema de Informação de Mortalidade – SIM), apresenta o perfil de mortalidade por esses grupos de doenças, discute sua evolução entre 1996 e 2017, e estima a contribuição futura dessas causas de morte, caso as tendências sejam mantidas. Os principais achados incluem a maior contribuição atual das DCV para a mortalidade no Brasil, porém com redução gradual de suas taxas padronizadas por idade. Esta tendência não ocorre para as taxas de mortalidade por câncer – que permanecem estáveis – de forma que em poucos anos o câncer se tornará a principal causa de morte no país.

As DCV e o câncer, apesar de possuírem diferentes etiopatogenias, compartilham fatores de risco (FR), como tabagismo, obesidade, diabetes, consumo excessivo de álcool e baixo nível socioeconômico. Dessa forma, a manutenção da saúde cardiovascular ideal é inversamente proporcional à incidência de câncer.22. Rasmussen-Torvik LJ, Shay CM, Abramson JG, Friedrich CA, Nettleton JA, Prizment AE, et al. Ideal Cardiovascular Health is Inversely Associated with Incident Cancer: The Atherosclerosis Risk in Communities Study. Circulation. 2013;127(12):1270-5. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.112.001183. Assim, torna-se importante entender as tendências de exposição da população a esses FRs comuns ao longo das últimas décadas, quando as mudanças no estilo de vida derivadas da urbanização e o envelhecimento populacional contribuíram para a incidência e mortalidade elevadas de ambas as doenças.33. Ribeiro ALP, Duncan BB, Brant LC, Lotufo PA, Mill JG, Barreto SM. Cardiovascular Health in Brazil: Trends and Perspectives. Circulation. 2016;133(4):422-33. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.114.008727. Com essas informações em mente, Mansur e Favarato analisaram os dados de mortalidade de homens e mulheres por todas as causas, por DCV, doenças isquêmicas do coração (DIC), doenças cerebrovasculares (DCbV) e câncer neste período de 21 anos.

As taxas de mortalidade proporcionais por DCV (30%) e câncer (20%) foram responsáveis por metade das mortes entre 1996 e 2017. Nesse período, a taxa de mortalidade padronizada para idade por DCV teve redução de 38%, dado que está em consonância com as estimativas do estudo Global Burden of Disease (GBD) 2017 publicados por Malta et al.,44. Malta DC, Teixeira R, Oliveira GMM, Ribeiro ALP. Cardiovascular Disease Mortality According to the Brazilian Information System on Mortality and the Global Burden of Disease Study Estimates in Brazil, 2000-2017. Arq Bras Cardiol. 2020;115(2):152-60. doi: 10.36660/abc.20190867. que demonstrou uma diminuição de 34,8% de 2000 a 2017. O estudo GBD tenta, ao processar os dados primários de mortalidade do país através de modelos que incluem correções para subnotificações e redistribuição de códigos garbage, minimizar as limitações do SIM - como as disparidades na cobertura e na proporção de causas mal definidas de óbito, historicamente maior nos estados menos desenvolvidos.44. Malta DC, Teixeira R, Oliveira GMM, Ribeiro ALP. Cardiovascular Disease Mortality According to the Brazilian Information System on Mortality and the Global Burden of Disease Study Estimates in Brazil, 2000-2017. Arq Bras Cardiol. 2020;115(2):152-60. doi: 10.36660/abc.20190867.

Os autores também observaram que as taxas de mortalidade por DCV padronizada por idade são menores entre as mulheres e que a diminuição da mortalidade foi mais expressiva nesse grupo. Martins et al.,55. Martins WA, Rosa MLG, Matos RC, Silva WDS, Souza Filho EM, Jorge AJL, etal. Trends in Mortality Rates from Cardiovascular Disease and Cancer between 2000 and 2015 in the Most Populous Capital Cities of the Five Regions of Brazil. Arq Bras Cardiol. 2020;114(2):199-206. doi: 10.36660/abc.20180304. frente a achados semelhantes, atribuiu ambas as tendências à maior adesão das mulheres ao rastreamento e prevenção dessas doenças na atenção primária à saúde (APS), além da proteção hormonal que sabidamente retarda a mortalidade por DCV.55. Martins WA, Rosa MLG, Matos RC, Silva WDS, Souza Filho EM, Jorge AJL, etal. Trends in Mortality Rates from Cardiovascular Disease and Cancer between 2000 and 2015 in the Most Populous Capital Cities of the Five Regions of Brazil. Arq Bras Cardiol. 2020;114(2):199-206. doi: 10.36660/abc.20180304. DIC e DCbV foram responsáveis por 57% das mortes por DCV, com as taxas de mortalidade por DCbV mostrando redução mais acentuada, possivelmente devido ao melhor reconhecimento, tratamento e controle da hipertensão arterial sistêmica (HAS) nesse período,66. Brant LCC, Nascimento BR, Passos VMA, Duncan BB, Bensenõr IJM, Malta DC, et al. Variations and Particularities in Cardiovascular Disease Mortality in Brazil and Brazilian States in 1990 and 2015: Estimates from the Global Burden of Disease. Rev Bras Epidemiol. 2017;20(Suppl 1):116-28. doi:10.1590/1980-5497201700050010. fator de risco mais fortemente relacionado à DCbV do que a DIC – esta mais associada a fatores metabólicos do que a DCbV, os quais tiveram tendências desfavoráveis no período.77. Lotufo PA, Goulart AC, Passos VMA, Satake FM, Souza MFM, França EB, et al. Cerebrovascular Disease in Brazil from 1990 to 2015: Global Burden of Disease 2015. Rev Bras Epidemiol. 2017;20(Suppl 1):129-41. doi:10.1590/1980-5497201700050011.,88. Brant LCC, Nascimento BR, Veloso GA, Gomes CS, Polanczyk CA, Oliveira GMM, et al. Burden of Cardiovascular Diseases Attributable to Risk Factors in Brazil: Data from the Global Burden of Disease 2019. Rev Soc Bras Med Trop. 2021;2021(54). Epub ahead of print.

O padrão descendente da taxa de mortalidade por DCV tanto em homens quanto em mulheres no Brasil está intrinsecamente relacionado à implantação de políticas públicas para controle dos FR – como aquelas voltadas para o controle do tabagismo ou que permitiram acesso ao tratamento da HAS – da implementação do sistema de atendimento de urgências e emergências em 2003, além de melhorias e expansão da rede de Atenção Básica no país.66. Brant LCC, Nascimento BR, Passos VMA, Duncan BB, Bensenõr IJM, Malta DC, et al. Variations and Particularities in Cardiovascular Disease Mortality in Brazil and Brazilian States in 1990 and 2015: Estimates from the Global Burden of Disease. Rev Bras Epidemiol. 2017;20(Suppl 1):116-28. doi:10.1590/1980-5497201700050010. Tais medidas promovem hábitos saudáveis, permitem o diagnóstico e tratamento precoce das DCV agudas e crônicas, além do controle de seus determinantes – pilares do enfrentamento da DCV. Apesar desse relativo sucesso, é importante salientar que as taxas de mortalidade por DCV ainda são altas, como citam Mansur e Favarato,11. Mansur AP, Favarato D. Cardiovascular and Cancer Death Rates in the Brazilian Population Aged 35 to 74 Years, 1996-2017. Arq Bras Cardiol. 2021; 117(2):329-340. doi: https://doi.org/10.36660/abc.20200233
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e o país ainda tem grandes desafios: a redução desigual das taxas de mortalidade, menor nos estados brasileiros menos desenvolvidos e entre os homens, o crescente número de mortes pelo crescimento e envelhecimento populacional, além do aumento da prevalência de obesidade e suas consequências metabólicas adversas.66. Brant LCC, Nascimento BR, Passos VMA, Duncan BB, Bensenõr IJM, Malta DC, et al. Variations and Particularities in Cardiovascular Disease Mortality in Brazil and Brazilian States in 1990 and 2015: Estimates from the Global Burden of Disease. Rev Bras Epidemiol. 2017;20(Suppl 1):116-28. doi:10.1590/1980-5497201700050010.,88. Brant LCC, Nascimento BR, Veloso GA, Gomes CS, Polanczyk CA, Oliveira GMM, et al. Burden of Cardiovascular Diseases Attributable to Risk Factors in Brazil: Data from the Global Burden of Disease 2019. Rev Soc Bras Med Trop. 2021;2021(54). Epub ahead of print.

Em relação ao câncer, o estudo observou que não ocorreram variações significativas na taxa de mortalidade padronizada para idade na população geral entre 1996 e 2017. Isso aconteceu devido ao aumento de 5,8% da mortalidade em mulheres (Variação percentual anual média [VPAM]=0,3%, p=0,2), apesar da redução significativa de 3,7% entre homens (VPAM=-0,1%, p<0,001). É importante notar que, entre as regiões do país, há grandes diferenças nos padrões de mortalidade. Nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, são mais comuns neoplasias relacionadas a infecções – característica comum em países de baixa e média renda – enquanto que as outras regiões do Brasil apresentam padrão semelhante ao de países de alta renda, com cânceres associados ao envelhecimento e a condições crônicas.99. Bigoni A, Antunes JLF, Weiderpass E, Kjærheim K. Describing Mortality Trends for Major Cancer Sites in 133 Intermediate Regions of Brazil and an Ecological Study of its Causes. BMC Cancer. 2019;19(1):940. doi: 10.1186/s12885-019-6184-1.,1010. Santos MO. Estimate 2018: Cancer Incidence in Brazil. Revista Brasileira de Cancerologia. 2018;64(1):119-20. Além disso, as regiões Norte e Nordeste apresentam tendências de aumento na mortalidade por câncer até 2030, enquanto que nas outras regiões, as tendências são estáveis ou de diminuição,1111. Barbosa IR, Souza DLB, Bernal MM, Costa ÍDCC. Cancer Mortality in Brazil: Temporal Trends and Predictions for the Year 2030. Medicine. 2015;94(16):746. doi: 10.1097/MD.0000000000000746. revelando como a maior mortalidade, independente da causa, está intimamente relacionada à pobreza, que atua desfavoravelmente em várias frentes: educacionais, nutricionais, e de acesso a diagnóstico e tratamento.1010. Santos MO. Estimate 2018: Cancer Incidence in Brazil. Revista Brasileira de Cancerologia. 2018;64(1):119-20.

Diante do exposto, o aumento proporcional da mortalidade por câncer é esperado na medida em que a mortalidade por DCV reduz, já que as causas de morte são competitivas. Portanto, sendo a morte inexorável, vale destacar outro dado revelado por Mansur e Favarato: a redução mais expressiva da mortalidade por todas as causas e, principalmente por DCV, nos grupos etários mais jovens, revelando uma diminuição da mortalidade prematura no Brasil nas últimas décadas,1111. Barbosa IR, Souza DLB, Bernal MM, Costa ÍDCC. Cancer Mortality in Brazil: Temporal Trends and Predictions for the Year 2030. Medicine. 2015;94(16):746. doi: 10.1097/MD.0000000000000746. um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pela Organização Mundial de Saúde para 2030.1212. World Health Organization. Sustainable Development Goals. The Global Health Observatory [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2021 [cited 2021 Jul 9]. Available from: https://www.who.int/data/gho/data/themes/sustainable-development-goals/GHO/sustainable-development-goals.
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Em suma, os dados do presente estudo mostram avanços, mas reforçam que desafios perenes e novos requerem a implementação e renovação de políticas públicas que promovam o enfrentamento das DCV e do câncer como prioridades no cenário da saúde no país, para que os brasileiros possam viver mais e melhor.

  • Minieditorial referente ao artigo: Taxas de Mortalidade por Doenças Cardiovasculares e Câncer na População Brasileira com Idade entre 35 e 74 Anos, 1996-2017

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Ago 2021
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