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Sofrimento psíquico e a abordagem da comunidade na voz do agente comunitário de saúde* * Pesquisa financiada pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnologico (FUNCAP). É resultado de dissertação de mestrado intitulada Saúde Mental na Voz do Agente Comunitário de Saúde, apresentada na Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

Resumos

O usuário em sofrimento psíquico necessita de um serviço que proporcione uma assistência direcionada, que acolha no momento necessário, atuando como dispositivo ordenador do cuidado ao usuário na rede de atenção a saúde. Objetivou-se descrever como as pessoas em sofrimento psíquico são percebidas pela comunidade na voz do agente comunitário de saúde. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada junto a dezoito Agentes Comunitários de Saúde, de uma Unidade de Atenção Primaria a Saúde (UAPS) situada na SER IV, em Fortaleza-Ceará. Utilizou-se uma entrevista semiestruturada e individual. O processamento dos dados deu-se pela análise de conteúdo. Aspectos éticos e legais sob parecer Nº 957.595. Através dos discursos dos ACS, descrevemos como a comunidade percebe a pessoa em sofrimento psíquico e como está se posiciona frente às problemáticas do seu cotidiano, no que se refere a rejeição, preconceito, discriminação e perda de identidade. Contudo destaca-se que, pelo fato de estar inserido na comunidade, o agente comunitário de saúde percebe de forma mais apurada como tal grupo social trata a pessoa em sofrimento mental. A rejeição da pessoa que adoeceu é observada como uma reação bastante comum, acompanhada do preconceito e discriminação, marginalizando-a da sociedade.

Saúde Mental; Sáude Pública; Agentes Comunitários de Saúde


The user in psychological distress needs a service that provides a targeted assistance, that welcomes when required, acting as originator care device to the user on the network of health care. This study aimed to describe how people in psychological distress are perceived by the community in the voice of the community health worker. It is a qualitative research conducted with eighteen Community Health Agents, a Primary Care Unit Health (UAP) located in BE IV, in Fortaleza, Ceará. We used a semi-structured and individual interview. Data processing was due to the content analysis. Ethical and legal aspects on the advice No. 957,595. Through the speeches of ACS, it describes how the community perceives the person in psychic suffering and how it positions itself in the face of your everyday problems, as regards the rejection, prejudice, discrimination ne loss of identity. However it is emphasized that, because of being inserted in the community, the community health worker realizes more accurate way in which this social group is the person in mental distress. The rejection of the person who became ill is seen as a fairly common reaction, accompanied by prejudice and discrimination, marginalizing her from society.

Mental Health; Public Health; Community Health Workers


El usuario de la angustia psicológica necesita un servicio que proporciona una asistencia específica, que da la bienvenida cuando sea necesario, que actúa como dispositivo de cuidado de autor para el usuario en la red de atención de la salud. Este estudio tuvo como objetivo describir cómo la gente en los trastornos psicológicos son percibidos por la comunidad en la voz del trabajador de salud comunitario. Se trata de una investigación cualitativa realizada con dieciocho Agentes Comunitarios de Salud, una Atención Primaria de la Unidad de Salud (UAP), ubicado en BE IV, en Fortaleza, Ceará. Se utilizó una entrevista semiestructurada e individual. El procesamiento de datos se debió al análisis de contenido. Aspectos éticos y legales en el asesoramiento Nº 957.595. A través de los discursos de ACS, que describe cómo la comunidad percibe la persona en sufrimiento psíquico y cómo se posiciona frente a sus problemas cotidianos, en cuanto al rechazo, perjuicio, pérdida ne la discriminación de la identidad. Sin embargo, se hizo hincapié en que, debido a su inserción en la comunidad, el personal de salud de la comunidad se da cuenta de manera más precisa en la que este grupo social es la persona a la angustia mental. El rechazo de la persona que se enfermaron es visto como una reacción bastante común, acompañado por el prejuicio y la discriminación, la marginación de su parte de la sociedad.

Salud Mental; Salud pública; Agentes Comunitarios de Salud


Introdução

Tomando como encargo o delineamento de uma proposta para a Saúde Mental na Atenção Primária, um diagnóstico realizado nesse contexto revelou limitações no que tange as iniciativas programáticas, bem como à oferta de ações direcionadas para saúde mental. Muito embora a Política Nacional de Saúde Mental preconize praticas focadas no eixo territorial, ha incipiência delas; ou ocorrem descontinuidade das iniciativas/ações registradas nesse âmbito(11. Nunes M, Jucá VJ, Valentim CPB. Ações de saúde mental no Programa Saúde da Família: confluências e dissonâncias das práticas com os princípios das reformas psiquiátrica e sanitária. Cad. Saúde Pública. 2007;23(10): 2375-2384.).

Existe, portanto, um distanciamento entre o que está preconizado pela política pública e o que é realizado na prática. Interpreta-se que, no concreto, os princípios da Reforma Psiquiátrica – que norteiam as ações da célula matriciadora da rede, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – entram em conflito com os da atenção primária, quando as equipes necessitam trabalhar planos integrados de assistência. Atribuiu-se tal fato as dificuldades enfrentadas pelas equipes de ambos os lados para lidar com os aspectos mais operacionais da estratégia do matriciamento em saúde mental – carência de recursos materiais e humanos, demanda excessiva, sobrecarga de trabalho, dificuldade de adesão a um agenda de matriciamento, afastamento da assessoria especializada, grande rodízio ou incompletude das equipes de saúde, dentre outros(11. Nunes M, Jucá VJ, Valentim CPB. Ações de saúde mental no Programa Saúde da Família: confluências e dissonâncias das práticas com os princípios das reformas psiquiátrica e sanitária. Cad. Saúde Pública. 2007;23(10): 2375-2384.).

O que se tem por entendimento é que a operacionalização de uma rede de cuidados em saúde mental no espaço social mais amplo ainda é algo em fase de implementação. Todo o processo ressente-se, ainda, do domínio da clínica entre psiquiatras (e no imaginário social), por um lado; e, por outro, a Estratégia Saúde da Família (ESF) revela-se “pouca à vontade” com o universo da saúde mental, com a lógica operacional requerida, bem como a sua linguagem singular.

Abordando a rede de assistência em saúde mental no Brasil, vale também salientar que sua implantação não se dá de forma homogênea para todos os Estados/Municípios. Enquanto algumas localidades contam com recursos e estão avançadas nos procedimentos, outras não alcançaram o mesmo êxito ou excelência(22. Marques ALM. Itinerários terapêuticos de sujeitos com problemáticas decorrentes do uso do álcool em um centro de atenção psicossocial. 2010. Dissertação – Universidade de São Paulo. 2010.). Indivíduos e comunidade podem, assim, acabarem “vítimas” das fragilidades e inconsistências dos processos no percurso da Reforma Psiquiátrica.

No tocante, vale lembrar que estudiosos(33. Silva JB et al. “Padecendo no paraíso”: as dificuldades encontradas pelas mães no cuidado à criança com sofrimento mental. Rev. Eletr. Enf. [Internet]. 2015 jul./set.;17(3). Disponível em: http://dx.doi.org/10.5216/ree.v17i3.25632.
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) defendem a necessidade de relativizar essa ideia de vitimização da comunidade – pois, se de um lado é preciso que o Estado ofereça o que se sabe necessário, de outro, há preconceito e falta de disposição para agir em saúde mental. Verdade é que as ‘pessoas diferentes’ não são aceitas, nem facilmente incorporadas pelo contexto assistencial e social mais amplo. Até mesmo para as famílias, acredita-se não ser fácil conviver com a realidade de um ente seu “maluco”. O acontecido requer adaptação.

A critica que se faz, no entanto, é que o Estado propôs a desinstitucionalização da pessoa com algum transtorno mental, antes mesmo de preparar o grupamento profissional e, muito menos, de empoderar família e comunidade para lidar com a nova realidade(33. Silva JB et al. “Padecendo no paraíso”: as dificuldades encontradas pelas mães no cuidado à criança com sofrimento mental. Rev. Eletr. Enf. [Internet]. 2015 jul./set.;17(3). Disponível em: http://dx.doi.org/10.5216/ree.v17i3.25632.
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).

Diante de tal corte de realidade nos propusemos a escrever este ensaio. Para tanto, referendamo-nos em um projeto(11. Nunes M, Jucá VJ, Valentim CPB. Ações de saúde mental no Programa Saúde da Família: confluências e dissonâncias das práticas com os princípios das reformas psiquiátrica e sanitária. Cad. Saúde Pública. 2007;23(10): 2375-2384.), dentre os que estão vigentes na cidade de Salvador-Bahia. Este visa a propiciar melhor articulação do segmento CAPS com a ESF – a consolidação do apoio matricial, portanto. Tomamos, a exemplo, os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) como os “porta-vozes das realidades locais”, na medida em que são eles residentes na comunidade que atuam.

Por essa peculiaridade, considera-se que os ACS devam lidar com as famílias com maior identificação/sensibilidade e de modo contínuo. Nos casos de entes familiares assistidos em saúde mental, os ACS deveriam possuir mais chances de reconhecer e atuar na parceria com as equipes, antecipando-se aos impactos mais negativos trazidos pela morbidade em contexto comunitário. Entretanto, esse segmento profissional se reserva a pensar ‘não serem capazes’ de reconhecer a gravidade dos casos e de oferecer, de forma mais proativa, qualquer solução que se configure adequada(11. Nunes M, Jucá VJ, Valentim CPB. Ações de saúde mental no Programa Saúde da Família: confluências e dissonâncias das práticas com os princípios das reformas psiquiátrica e sanitária. Cad. Saúde Pública. 2007;23(10): 2375-2384.).

Destarte, o nosso ineditismo reside em por o ACS para ‘contar do sofrimento’ que comunidade, família e pessoa com algum transtorno mental vivenciam diariamente. Tem como objetivo desvelar modos de esses segmentos perceberem e de lidarem com a doença em contextos específicos. A relevância considerada é manter vivos os debates em torno da necessidade de melhor articular a saúde mental com a ESF, possibilitando a AP consolidar-se como porta de entrada para a RASM.

Método

Trata-se de uma pesquisa de base empírica, comprometida com as dimensões de realidade que não podem ser estimadas em números. É a arte de abordar o universo dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes, dos significados, em fim, que se fazem evidentes no quadro de referência em que os dados foram coletados(44. Minayo M C S, Guerriero I C Z. Reflexividade como éthos da pesquisa qualitativa. Ciência & Saúde Coletiva, 19(4): 1103-1112, 2014.).

Foi realizada junto a dezoito Agentes Comunitários de Saúde, em exercício nas sete Unidades do ESF matriciadas sob a circunscrição da Secretaria Regional IV. A entrevista semiestruturado auxiliou na obtenção dos dados. Mediante a permissão das pessoas envolvidas, foram feitos registros de áudio durante as entrevistas, além de anotações em diário de campo acerca do observado no cotidiano dos ACS na comunidade.

O processamento e análise dos dados foram conforme a proposta operativa da Análise de Conteúdo(55. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2011.): 1) Ordenação dos dados (fase que envolve a classificação dos relatos e observações a partir do contato tanto com as entrevistas quanto com os documentos selecionados para análise); 2) Classificação dos dados (etapa na qual será realizada a leitura detalhada de cada entrevista, registrando as primeiras impressões e, a partir de então, construindo as categorias de análise); 3) Análise final – considerada importante para compreensão e interpretação das falas, permite a classificação dos elementos segundo suas semelhanças e diferenças, com posterior agrupamento em função de características comuns.

Ouvindo os ACS acerca de como família e comunidade percebem a pessoa em sofrimento psíquico e como está se posiciona frente às problemáticas do seu cotidiano, emergiram a seguintes categorias de análises: abandono e exclusão da pessoa doente?; tendo que vencer a barreira do preconceito; perdendo a identidade.

Foram respeitados os preceitos éticos e legais das investigações envolvendo seres humanos, conforme a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Desse modo, o livre consentimento e a opção de participar ou não da pesquisa, podendo desistir a qualquer momento, foi lavrado em Termo de Consentimento Livre Esclarecido(66. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução 466/2012 de 12 de dez. de 2012.[Acesso em: 20 out. 13]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf.
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/...
).

Resultados

Diversas são as reações dos sujeitos quando se trata de situações relacionadas a pessoas em sofrimento psíquico. Os ACS, por estarem na comunidade, acabam vivenciando e testemunhando a forma como as pessoas lidam com isso. Alguns relatos insinuam atitudes de abandono ou de descaso relativo ao bem-estar do doente, em outros se constata a rejeição dispensada por familiares e parte das pessoas da comunidade.

Quando relacionamos familiares ao cuidado de pessoas doentes não tem como deixar de reconhecer uma série de sentimentos envolvidos: incertezas, carinho, raiva, tristeza, medo, rejeição, negação, fuga.... Tratamos desses discursos na cessão a seguir.

Abandono e exclusão da pessoa doente?

Na cultura identificada, a pessoa com transtorno mental no interior da família é “assunto velado”, ou seja, não se fala do assunto e a prática mais comum em relação é a negação. Reagindo à resistência de uma família em levar seu familiar para iniciar tratamento um ACS declara: “Não aceita o tratamento medicamentoso, o acompanhamento. Diz que o filho é normal, que não tem nenhum problema”.

Divulgar que o problema não existe pode minimizar o impacto emocional ocasionado na comunidade. Do lado da família, a negação é um mecanismo legítimo de enfrentamento ou adaptação à nova situação apresentada. São mudanças que ocorrem sem que haja uma linearidade com o percurso de vida normal, que desestrutura e frustra expectativas, acarretando, ainda, funções adicionais para cada membro.

Entende-se, também, que o processo de adaptação dos entes pode passar pela necessidade de não pensar no problema, e que esse mecanismo ajuda a manter a homeostase familiar(33. Silva JB et al. “Padecendo no paraíso”: as dificuldades encontradas pelas mães no cuidado à criança com sofrimento mental. Rev. Eletr. Enf. [Internet]. 2015 jul./set.;17(3). Disponível em: http://dx.doi.org/10.5216/ree.v17i3.25632.
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). Pode ocorrer, todavia, de ‘um olhar de fora’ fixar desse mecanismo apenas o que sua superficialidade informa, ou seja, a impressão de se está diante de uma situação de descaso ou abando. Um ACS expressa sua percepção: “Eu via como se fosse um abandono da família, sabe(?) – que, na verdade, queria se livrar... Não ligava, não ajudava!(?)”.

O ‘não ligar’, ‘não ajudar’, que muito mais é mecanismo de resistência familiar ao problema real, termina por despertar nos ACS necessidades de intervenção junto ao doente – daí a insistência no discurso de que a família nega o problema.

No que atine a essa questão, pesquisadores(77. McGuire, AB., Kukla, M., Verde, A. et al. (2014). Gestão de doença e de recuperação: uma revisão da literatura. Serviços Psiquiátricos, 65 (2), 171-179.) asseveram que, não obstante os movimentos de reforma, as equipes ainda estão muito influenciadas pelo modelo hospitalocêntrico. Neste, a família torna-se substituível diante da ‘capacidade’ do sistema de eleger medidas e de assegurar devidos cuidados ao paciente.

É possível ainda que esse viés venha impedindo a equipe de emancipar o usuário que sofre de algum transtorno mental, e que, inconscientemente, essa conduta reforce imaginários coletivos, fazendo com que a comunidade o exclua, por não aceitar que esse seja o espaço no qual o indivíduo em risco de surto deva estar. Vem de outro ACS essa verbalização:

Os vizinhos até chamar a polícia já chamaram, por causa do barulho. Achavam que a mãe estava sendo agredida. [...]Teve um dia que ela se soltou, saiu do quarto, e ela agrediu a mãe dela e uma criança que passava na rua.

Não obstante o risco real da pessoa em surto, é importante que se conte da acreditação de estudiosos(33. Silva JB et al. “Padecendo no paraíso”: as dificuldades encontradas pelas mães no cuidado à criança com sofrimento mental. Rev. Eletr. Enf. [Internet]. 2015 jul./set.;17(3). Disponível em: http://dx.doi.org/10.5216/ree.v17i3.25632.
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) sobre o fato de a família, bem como a comunidade necessitar acostumar-se, ou seja, passar por fases muito delimitadas, e que nesse processo a equipe de saúde possa auxiliar, reconhecendo que cada um apresenta reação diferente para compreender e aceitar esse momento de transição. Ocorre de, na reforma psiquiátrica proposta, encontrarmo-nos em uma demorada fase de passagem, no contexto da qual os próprios profissionais estão temerosos, porém solicitados a assimilar. É muito importante, entretanto, atentar para que o discurso na contramão de uma adaptação não leve a comunidade a se tornar meramente porta-voz das fragilidades e inseguranças profissionais.

Também não é desejável que apenas a família passe a cuidar, assumindo sem apoio toda responsabilidade demandada pelo paciente psiquiátrico. Essa condição geraria sobrecarga(88. Nolasco M. Sobrecarga dos familiares cuidadores em função do diagnóstico dos pacientes psiquiátricos. 2013.168 f. Dissertação [Mestrado em psicologia] - Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del Rei –PPGPSI, São João del Rei, 2013.), com reflexos negativos nas atividades diárias e preocupações com perdas relativas as redes de sociabilidade.

De acordo com pesquisadores(99. Caqueo-Urízar, A., Miranda-Castillo, C., Giráldez, S., Maturana, S., Pérez, M., Tapia, F. (2014). An updated review on burden on caregivers of schizophrenia patients. Psicothema, 26(2), 235-243.), os familiares de pacientes psiquiátricos vão apresentar pelo menos dois grandes questionamentos, para os quais os profissionais precisam estar preparados: se vai cuidar por tempo indeterminado; e como será o futuro de seu ente querido. No final de tudo, esses familiares são, na maior parte dos casos, os que mais se preocupam com o bem-estar deles. Respeito pelos familiares significa reconhecer e aceitar tanto habilidades quanto limitações, dando-lhe aquisições nesse campo e autonomia para tomar atitudes embasadas(1010. Cohen C, Marcolino JAM. Relação médico-paciente. In: Segre M, Cohen C. Bioética. São Paulo: Edusp; 1995. p. 51-62. ).

Tendo que Vencer a Barreira do Preconceito

Trajetória e futuro dos pacientes psiquiátricos são, normalmente, marcados pelo preconceito. As reações da comunidade são as mais diversas. Frequentemente percebidos pelo ACS, os modos de manifestação do estigma ou a discriminação são partilhados através de relatos, dentre os quais nos serve de exemplo: “As pessoas discriminam muito quem tem problema mental. Vira transtorno dentro dos lares, muitas delas vivem acuadas”.

Percebe-se, assim, que a descriminação começa dentro do próprio lar, nos vínculos familiares, onde a reclusão ou o cárcere é a forma mais comum de expressão dessa prática. No cerne da família essas pessoas, muitas vezes, não possuem voz, liberdade nem é permitida a ela relacionar-se com o meio exterior. Outro agente comunitário de saúde traz outro tipo de percepção do fenômeno:

A gente nota um pouco de preconceito, né? É muito relativo. Uns relatam: ‘ah, fulano não é bem da cabeça, não’! Já não dá aquele crédito todo à pessoa. Há outras que têm um pouco de receio, não dão muita confiança à pessoa, quando a pessoa tem algum problema. Diz: ‘Ah, aquela fulana é louca, é doida, ninguém dá crédito’.

A pessoa em sofrimento psíquico carrega em si o peso da incapacidade como realidade criada primeiramente pela família, depois pelas pessoas do meio externo. Toda a forma de pensar acerca da pessoa doente foi construída no contexto histórico e cultural. Não trabalhada adequadamente decorre em rejeição(1111. Yap, MBH., Mackinnon,A.,Reavley,N. & Jorm, A.F.(2014). The measurement properties of stigmatising atitudes towards mental disorders: results from two community surveys. International Journal of Methods in Psychiatric Research, 23 (1), 49–61.).

A maior percepção pelo ACS das dificuldades da comunidade em relacionar-se com as pessoas em sofrimento psíquico, bem como as suas preocupações com o fato parece advim de um sentimento de responsabilidade para com a desmistificação a loucura, oportunizando a pessoa chance de realizar a sua cidadania. Destacamos o seguinte depoimento de um ACS:

Existe ainda um grande preconceito com as pessoas com transtorno mental – às vezes por parte da própria família, outras da comunidade.

Eu tento desmitificar a questão de transtorno mental dentro da minha área. A gente tenta tratar essas pessoas com a maior naturalidade possível, para que essas pessoas possam conviver e trabalhar.

Os depoimentos dos ACS permite pensar esses profissionais divididos nos que primam pelo julgamento da incapacidade de a pessoa com transtorno mental realizar com autonomia suas atividades cotidianas; enquanto outros oportunizam e ajudam, mesmo sabendo das limitações existentes. O novo modelo assistencial em saúde mental propõe um cuidado que busque a inserção social da pessoa com sofrimento psíquico, abolindo, dessa forma, o modelo estigmatizante. Para fins de esclarecimento, tem-se a Lei nº 5.692/71, que, em seu artigo 206, inciso I, estabelece a “igualdade de condições de acesso” como um dos princípios para o ensino e garante como dever do Estado a oferta do atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino – art. 208(1212. Brasil. Ministério da Educação e Cultura. Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Brasília: MEC, 2008. [Acesso em: 18 maio 2014]. Disponível em: http://peei.mec.gov.br/arquivos/politica_nacional_educacao_especial.pdf
Disponível em: http://peei.mec.gov.br/ar...
) .

Acredita-se que por não ser comum no cotidiano das pessoas relacionarem-se com sujeitos que apresentam algum tipo de transtorno, isso faz com que os indivíduos “normais” os discriminem ao saber da realidade. Quanto ao que foi aventado, houvesse a inserção natural da pessoa em sofrimento psíquico na comunidade, esta já poderia estar mais adaptada ao convívio em comunidade, minimizando os estranhamentos por parte do doente. De outro lado, tanto no passado quanto na nova organização do atendimento à pessoa em sofrimento psíquico, faz-se necessário o apoio familiar no sentido de conduzir o cidadão aos serviços de atenção psicossocial para o acompanhamento de rotina e, principalmente, nos momentos de crise(1313. Gonçalves AM, Sena RR. A reforma psiquiátrica no Brasil: contextualização e reflexos sobre o cuidado com o doente mental na família. Revista Latino-Americana de Enfermagem. 2001;9(2): 48-55.).

Perdendo a identidade

Ao descobrir-se doente, o sujeito, a família e a comunidade envolvida percebem que grandes mudanças ocorrem. Diante das transformações do cotidiano das pessoas, diversas reações e percepções sobre o indivíduo em sofrimento psíquico são formadas. Nesse contexto, constata-se uma crise de identidade do ser que padece de tal sofrimento e das pessoas ao redor que vivenciam o contexto da doença. É possível destacar o discurso de Gavião: “é humilhante, assim, elas já perdem até o nome, né? A partir daquele momento que elas têm algum transtorno mental, já são chamadas de doidas e alguns apelidos”.

Ante os ataques sociais, o sujeito vai assumindo uma “roupagem” que não é sua, diante de ideias pré-concebidas que rotulam o indivíduo, tirando dele o direito à espontaneidade, tendo a sua identidade pessoal suspensa devido aos limites impostos pela doença(1414. Mussi FC, Koizumi MS, Angelo M, Lima MS. Perda da espontaneidade da ação: o desconforto de homens que sofreram infarto agudo do miocárdio. Revista da Escola de Enfermagem da USP. 2002;36(2): 115-24.).

O nome da pessoa culturalmente torna-se fundamental para diferenciar indivíduos. O nome próprio é utilizado antes mesmo até de nascer, pois, para a sociedade, tornou-se um símbolo da identidade de cada ser. Em face do adoecimento psíquico, muitos sujeitos perdem seus nomes, passam a ser adjetivados de forma estigmatizada, num contexto social que discrimina e segrega, sob a concepção de seus pré-julgamentos.

Nessa esteira, políticas de reinserção e ressocialização deveriam ser mais bem trabalhadas para serem aplicadas no cotidiano das pessoas em sofrimento psíquico. A Lei 10.216, que dispõe sobre a proteção e os direitos desses indivíduos com algum transtorno mental e que redireciona o modelo assistencial em saúde mental, é clara ao determinar que o tratamento deve visar, permanentemente, a reinserção social do enfermo, postulando que isso deve ser realizado por meio, preferencialmente, de serviços comunitários de saúde mental. A internação – seja voluntária, involuntária ou compulsória – somente será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes(1515. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Legislação em saúde mental 1990-2002/Ministério da Saúde, Secretaria Executiva. Brasília: Ministério da Saúde, 2002.).

A aproximação dos familiares à pessoa com transtorno psíquico é uma das principais necessidades desta, pois se mantém presente durante todo o processo de tratamento e ficam responsáveis por sua inserção na sociedade, mesmo com amplas dificuldades. Sabe-se que muitas mudanças no serviço ocorreram, no entanto, para contribuir com essa inclusão social, é necessário que se tenha um serviço de referência para dar um maior suporte aos pacientes, não os deixando desamparados e sem assistência(1616. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde Mental / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. – Brasília : Ministério da Saúde, 2015. 548 p. : il. (Caderno HumanizaSUS ; v. 5).).

O paciente com transtorno mental necessita estar incluído na sociedade para se sentir verdadeiramente valorizado e com o seu lado emocional e afetivo supridos, não deixando de lado a sua participação no trabalho e no lazer. O autor diz ainda que essas ações devem ser concretizadas como um todo, sendo necessário manter uma relação entre família, paciente e profissionais com a visão da construção da prática de saúde humanizada (1616. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde Mental / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. – Brasília : Ministério da Saúde, 2015. 548 p. : il. (Caderno HumanizaSUS ; v. 5).).

Outra perspectiva é que a comunidade também se inquieta com a realidade de descaso destinada às pessoas em sofrimento psíquico. A percepção que se tem é que esses indivíduos se tornam esquecidos e marginalizados pela sociedade. Segundo Albatroz: “Existe muito preconceito da sociedade, mas, ao mesmo tempo, elas querem uma real solução, desejam que alguém se preocupe com essas pessoas”.

A comunidade não conhece bem seus direitos, mas vivencia na sua realidade os principais problemas, limitações, desesperos, tendo em vista que o doente se torna um fator limitante no cotidiano das pessoas envolvidas. Se houvesse ferramentas as quais servissem de suporte para minimizar o impacto da doença, seria uma possibilidade de ressignificar a saúde mental no contexto social, o que facilitaria nas estratégias de enfrentamento da doença.

Conclusão

Pelo fato de estar inserido na comunidade, o agente comunitário de saúde consegue perceber de forma mais apurada como tal grupo social trata a pessoa com algum sofrimento mental.

A rejeição da pessoa que adoeceu é observada como uma reação bastante comum, acompanhada do preconceito e discriminação, marginalizando-a da sociedade. O indivíduo não é mais reconhecido pelo nome, em algumas circunstâncias, perde sua identidade por não desenvolver mais suas atividades normais, e, ao deixar de contribuir, torna-se insignificante para a sociedade. Seus desejos não são mais considerados, perdendo até mesmo o direito de exercer a sua cidadania. Em alguns casos, a família acolhe e cuida bem, porém isso está geralmente associado a um nível social mais elevado da família que acolhe e cuida.

Portanto, faz-se necessário produzir arranjos organizacionais do sistema de saúde, buscando diminuir a fragmentação do processo de trabalho, valorizando o cuidado interdisciplinar e considerando os usuários nos seus contextos, na sua família e na sua comunidade, para que possa ser construído um projeto terapêutico adequado e contínuo.

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    Pesquisa financiada pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnologico (FUNCAP). É resultado de dissertação de mestrado intitulada Saúde Mental na Voz do Agente Comunitário de Saúde, apresentada na Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2015
  • Aceito
    14 Nov 2015
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