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ENTRE A CERTEZA E A DÚVIDA: DESCARTES E O CETICISMO DE SEGUNDO GRAU

BETWEEN CERTAINTY AND DOUBT: DESCARTES AND THE SECOND-DEGREE SKEPTICISM

RESUMO

Este trabalho busca argumentar que a filosofia cartesiana é circunscrita invariavelmente pelos limites da razão humana. Para tanto, serão expostos trechos notáveis do corpus cartesiano a respeito da certeza, indicando que, em diferentes momentos de sua filosofia, é sempre possível distinguir que Descartes restringe o escopo de sua doutrina às capacidades do intelecto humano. Posteriormente, será necessário avaliar duas passagens cartesianas em que Richard Popkin se apoia para acusar Descartes de sustentar uma filosofia cética. Por fim, é defendido que essas passagens estão de acordo com o pensamento cartesiano e que, de modo algum, demonstram que o resultado do sistema construído por Descartes é um fracasso diante dos seus objetivos. Em conclusão, baseado na própria nomenclatura oferecida por Popkin, é estabelecido que Descartes sustenta um ceticismo de segundo grau, que é perene em sua filosofia e, como consequência, é evidenciado que Descartes não é um cético malgré lui como Popkin o acusa.

Palavras-chave:
Certeza; Verdade; Ceticismo; René Descartes

ABSTRACT

This work seeks to argue that Cartesian philosophy is invariably circumscribed by the limits of human reason. Therefore, remarkable excerpts from the Cartesian corpus regarding certainty will be exposed, indicating that at different moments in his philosophy, it is always possible to distinguish that Descartes restricts the scope of his doctrine to the capacities of the human intellect. Later, it will be necessary to evaluate two Cartesian passages that Richard Popkin relies on to accuse Descartes of holding a skeptical philosophy. Finally, it is defended that these passages are in accordance with Cartesian thought and that, nowise, they demonstrate that the result of the system built by Descartes is a failure in relation to its objectives. In conclusion, based on the nomenclature offered by Popkin himself, it is established that Descartes maintains a second-degree skepticism that is perennial in his philosophy and, as a consequence, it is evidenced that Descartes is not a skeptic malgré lui as he is accused by Popkin.

Keywords:
Certainty; Truth; Skepticism; Rene Descartes

Provavelmente, o aspecto mais fundamental do pensamento de René Descartes (1596-1650) é a procura incansável pela certeza, esta que teria como resultado a fundamentação de uma ciência certa e universal. Essa fundamentação, como se sabe, deveria ser realizada de forma definitiva e, portanto, Descartes entende ser necessária uma reestruturação completa de todas as opiniões e concepções científicas existentes até aquele momento, começando pelos seus fundamentos, tanto epistemológicos quanto metafísicos. Para tanto, Descartes recorre aos argumentos céticos como ponto de partida de seu pensamento, para que, utilizando-os como crivo, “já não possamos duvidar das coisas que, em seguida, se descubram verdadeiras” (Descartes, 2004, p. 19DESCARTES, R. (1641). “Meditações sobre Filosofia Primeira”. Trad. Fausto Castilho. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.; AT VII, p. 12). O procedimento metodológico é melhor descrito nas “Meditações sobre Filosofia Primeira”1 1 As “Meditationes de Prima Philosophia, in qua Dei existencia et animae immortalitas demonstratur” foram primeiramente publicadas no ano de 1641, em Paris. (2004) e, ali, a partir da observação das dúvidas céticas que o fazem rejeitar todas as suas antigas opiniões, Descartes estabelece uma série de verdades que ele acredita serem inquestionáveis, especialmente as certezas do cogito e da existência de Deus.

Entretanto, ainda que Descartes se mostrasse seguro da legitimidade dessas verdades, em diversos momentos elas foram contestadas por terceiros. O processo que levaria até essas verdades também foi objetado: segundo os opositores da filosofia cartesiana, a dúvida que Descartes acreditou o guiar às certezas estabeleceria, na verdade, o ceticismo. Por isso, esse modelo de fundamentação da verdade levantou inúmeras polêmicas desde a publicação do “Discurso do Método”2 2 O “Discours de la méthode pour bien conduire sa raison et chercher la vérité dans les sciences” foi a primeira obra publicada por Descartes, tendo sido impressa e divulgada no ano de 1637, em Paris. (1983), se intensificando com a publicação das “Meditações” e chegando até os debates contemporâneos sobre o pensamento cartesiano.

Com a publicação da “História do Ceticismo”3 3 A primeira edição da “História do Ceticismo” foi publicada em 1960. Já em 1979, Popkin publica uma edição estendida até Espinosa e, vinte e quatro anos depois, em 2003, uma terceira e última versão do livro é publicada: “The History of Scepticism: From Savonarola to Bayle”, esta que incorpora novos estudos sobre a influência do ceticismo em diversos autores e áreas do conhecimento. Utilizaremos a última versão, publicada em 2003, como referência. em 1960, Richard Popkin esclarece de forma surpreendente o quanto as dúvidas utilizadas por Descartes eram produtos de um contexto extremamente influenciado pelo ceticismo. É à vista disso, inclusive, que Popkin entende que a filosofia cartesiana tinha como principal objetivo refutar a corrente de pensamento cética (Popkin, 2003, pp. 143-157POPKIN, R. “The History of Scepticism: From Savonarola to Bayle”. Nova York: Oxford University Press, 2003.), mas, segundo Popkin, esse empreendimento de Descartes fracassa justamente por utilizar a dúvida como mecanismo para alcançar a certeza, já que tudo que fosse instituído em tal cenário também poderia ser derrubado pelos argumentos céticos. Nesse sentido, ao recorrer a duas passagens retiradas do conjunto de “Objeções e Respostas” anexadas às “Meditações”, Popkin (2003, pp. 158-173)POPKIN, R. “The History of Scepticism: From Savonarola to Bayle”. Nova York: Oxford University Press, 2003. afirma que, além de falhar em refutar o ceticismo, Descartes teria pessoalmente admitido a existência de um problema cético insolúvel dentro de sua filosofia. Portanto, Popkin acusa Descartes de ser um cético apesar dele mesmo (malgré lui), ou seja, um cético apesar de suas intenções dogmáticas. Devido a sua excelência e originalidade, a concepção de Popkin foi rapidamente difundida. Assim, o entendimento de que a filosofia cartesiana falhou frente a seus objetivos foi amplamente disseminada, influenciando grandes estudiosos de Descartes, como Edwin Curley e Harry Frankfurt. Assim, diante da influência da leitura de Popkin, que apresenta uma visão desfavorável em relação ao desfecho da filosofia cartesiana, entendemos ser necessário revisitar seus argumentos e propor uma interpretação distinta, esta que é mais favorável aos resultados de Descartes.

Consequentemente, este trabalho pretende evidenciar que Descartes reconhece os entraves colocados pela própria razão, esta que é a origem de seu sistema filosófico e científico, e, desse modo, argumentar que a filosofia cartesiana não se baseia em um dogmatismo intransigente. Por meio da ressignificação das pretensões de Descartes será viável evidenciar que seus resultados se conformam precisamente ao que foi previamente almejado por ele. Para isso, serão desenvolvidas três seções: a primeira pretende apresentar, a partir de passagens do corpus cartesiano, uma interpretação de Descartes que revela uma modéstia da sua parte, tanto em relação a sua razão quanto aos objetivos e resultados de seu empreendimento, já que reafirmam as restrições encontradas por ele ao desenvolver seu sistema filosófico; a segunda seção retomará a argumentação de Popkin, bem como as passagens do corpus cartesiano que o intérprete utiliza para fundamentar sua posição de que Descartes seria um cético apesar dele mesmo e, em oposição, será sugerida uma interpretação alternativa destas passagens; por fim, a terceira seção tem a intenção de comentar o corolário do que foi apresentado previamente, indicando que Descartes não pode ser considerado um dogmático radical e muito menos um cético malgré lui, já que sempre se porta como um filósofo compromissado com sua integridade intelectual e que está ciente das limitações do intelecto humano e, portanto, seus resultados refletem diretamente seu posicionamento moderado.

1. Descartes e um dogmatismo moderado

Os primeiros fragmentos escritos por Descartes conseguem demonstrar que o jovem, mesmo longe de se tornar o autor das “Meditações”, já mostra sua preocupação com o escopo da razão humana, questionando-se sobre os domínios que poderiam ser abordados por ele, um homem de razão limitada. Na passagem intitulada “Polybii Cosmopolitani Thesavrus mathematicus”, Descartes afirma ter encontrado um “tesouro” que conteria todos os meios para resolver as dificuldades da ciência e que, utilizando-os, não haveria nada mais que o espírito humano poderia contribuir para o alcance da solução de quaisquer problemas (AT X, p. 214).4 4 “Polybii Cosmopolitani Thesavrus mathematicus, in quo traduntur vera media ad omnes huius scientae difficultates resolvendas, demonstraturque circa illas ab humano ingenio nihil ultra posse praestari [...].” As passagens de Descartes utilizadas neste trabalho seguem a edição de referência editada por Ch. Adam e P. Tannery: Œuvres (abreviadas como AT, seguido do número do volume e da página). A ortografia dos textos foi modernizada. As passagens já traduzidas para o português serão referenciadas de acordo com a tradução da qual foram extraídas (conferir bibliografia) e estarão acompanhadas da sua localização em Œuvres. Quando necessário, as traduções serão realizadas de forma autônoma, seguindo o texto da edição de referência. Em seguida, encontramos o fragmento em que Descartes afirma que

limites determinados são impostos a todos os espíritos, e estes não podem os transcender. Se alguns, devido à imperfeição de seu engenho, não possam se servir de princípios para alcançá-las [as ciências], poderão, contudo, reconhecer o verdadeiro valor das ciências, o que lhes basta para fazer juízos verdadeiros sobre o valor das coisas.5 5 “Praescripti omnium ingeniis certi limites, quos transcendere non possunt. Si qui principiis ad inveniendum uti non possint ob ingenii defectum, poterunt tamen verum scientiarum pretium agnoscere, quod sufficit illis ad vera de rerum aestimatione judicia perserenda.” (AT X, p. 215)

Essas passagens, apesar de genéricas e superficiais, são uma indicação de que desde o início Descartes já está convicto da possibilidade de estabelecer uma ciência verdadeira, ainda que tenhamos um espírito limitado que determina nossas capacidades. Ademais, se observamos tais passagens tendo em vista outros excertos presentes na “Cogitationes Privatae”, escritos entre 1619 e 1621, é possível vislumbrar características importantes da gênese do pensamento cartesiano que fornecem uma estrutura para nossa argumentação. É claro que esses fragmentos revelam componentes rudimentares, o que é natural do pensamento juvenil de um filósofo. Em todo caso, não é insignificante a ocorrência de elementos no pensamento da juventude que vão perdurar durante as obras de maturidade de Descartes.

No mesmo sentido, durante as “Olympica”, Descartes reconhece que “o conhecimento humano de coisas naturais só se dá por semelhança com aquelas que caem sob os sentidos”6 6 “Cognitio hominis de rebus naturalibus, tantum per similitudinem eorum quae sub sensum cadunt [...]. (AT X, pp. 218-219). (AT X, pp. 218-219) e, assim, parece prenunciar toda a concepção cartesiana sobre o conhecimento sensível, já que afirma a possibilidade de conhecimento humano, mas limita o acesso da razão às coisas sensíveis. Esse acesso não ocorreria por uma conformidade exata entre o conhecimento compatível à mente humana e as coisas sensíveis, mas só é possível por meio de semelhança (similitudinem). As “Olympica”, dessa forma, sugerem aquilo que será propriamente defendido e desenvolvido na Sexta Meditação ao demonstrar a hesitação de Descartes perante a possibilidade de sentenciar a perfeição do conhecimento humano e sua correspondência concreta com aquilo que é adventício, inclusive já indicando a suspeita perene do filósofo em estabelecer os sentidos como uma fonte segura de conhecimento.

O conteúdo do primeiro sonho que Descartes teve na noite de 10 de novembro de 1619 – também parte das “Olympica” e que chegou até nós por meio da cópia de Baillet – também pode amparar uma reflexão intrigante sobre as aspirações de Descartes e as limitações da filosofia cartesiana, colaborando para a conclusão pretendida neste trabalho. Nota-se que, durante esse sonho, Descartes vaga de forma incerta pelas ruas quando sente um grande incômodo do lado direito do corpo e, por isso, busca refúgio na igreja de um colégio, onde iria para rezar (AT X, pp. 181-182). Porém, durante seu percurso, um vento muito forte empurra Descartes contra a igreja (AT X, p. 186). Existe aqui uma ambivalência, notada por Rodis-Lewis, tendo em vista a única citação direta da narração de Descartes conservada por Baillet: “a malo spiritu ad templum propellebar” (AT X, p. 186). Templum probellebar (contra a igreja), argumenta Rodis-Lewis, pode indicar um avanço ou um afastamento. Tendo em vista que Descartes considerou o vento como um mau espírito, então este vento queria o afastar de sua vontade inicial de se dirigir à igreja (Rodis-Lewis, 1995, pp. 129-130RODIS-LEWIS, G. “Les aspects religieux des Olympica”; In: F. Hallyn (ed.), 1995, pp. 127-140.; 1996, pp. 55-57RODIS-LEWIS, G. “Descartes: uma biografia”. Trad. Joana d’Ávila de Melo. Rio de Janeiro: Record, 1996.). Ao despertar, Descartes relata ter se arrependido de pecados graves, mesmo considerando que havia vivido de forma exímia até aquele momento. O que Rodis-Lewis julga, então, é que esse sonho de Descartes ocorre para o advertir de um pecado em intenção, sendo este o maior dos pecados para um cristão: querer se equipar com Deus.

Rodis-Lewis lembra, assim, do entusiasmo que precede os sonhos, já que Descartes afirma, no começo das “Olympica”, que no dia “10 de novembro de 1619, quando estava cheio de entusiasmo e descobria os fundamentos da ciência admirável7 7 “X. Novembris 1619, cum plenus forem enthousiasmo, et mirabilis scientiae fundamento reperirem”. (AT X, p. 179). Segundo a autora, existe nesse entusiasmo um sentido de poder, um “impulso exaltante” que expõe para Descartes a possibilidade de chegar ao cume da sapiência. A tentação de atingir a máxima sabedoria, entretanto, se antagoniza aos ideais cristãos da igreja na qual o filósofo queria voluntariamente se refugiar. Portanto, esse sonho revelaria a Descartes que o impulso entusiasmado que sentiu fez com que ele se esquecesse da crença e do temor a Deus e, por isso, ele se sente culpado e se compromete, a partir disso, a viver uma vida de forma imaculada (Rodis-Lewis, 1995, pp. 128-130RODIS-LEWIS, G. “Les aspects religieux des Olympica”; In: F. Hallyn (ed.), 1995, pp. 127-140.; AT X, pp. 180-181). Mais do que uma decisão moral, há aqui uma decisão epistemológica: em 1620, Descartes determina que as ciências se restrinjam às possibilidades humanas, já que percebe como é pecaminoso e impossível, epistemologicamente falando, rivalizar com Deus (Kambouchner, 2007, p. 366KAMBOUCHNER, D. “Geneviève Rodis-Lewis et la sagesse cartésienne”, Revue Philosophique de la France et de l’Étranger, 132/3, 2007, pp. 357-372. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-philosophique-2007-3-page-357.htm (Acessado em 06 de fevereiro de 2023).
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; Rodis-Lewis, 1996, p. 56RODIS-LEWIS, G. “Descartes: uma biografia”. Trad. Joana d’Ávila de Melo. Rio de Janeiro: Record, 1996.). Descartes, portanto, abdica das suas ambições inacreditáveis8 8 Na carta a Beeckman datada de 26 de março de 1619, ou seja, anterior à noite dos sonhos e da sua decisão moral, Descartes realmente admite possuir ambições inacreditáveis ou extraordinárias: “Incredibile quam ambitiosum” (AT X, p. 157). e circunscreve sua aspiração a um domínio mais razoável (Kambouchner, 2007, p. 365KAMBOUCHNER, D. “Geneviève Rodis-Lewis et la sagesse cartésienne”, Revue Philosophique de la France et de l’Étranger, 132/3, 2007, pp. 357-372. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-philosophique-2007-3-page-357.htm (Acessado em 06 de fevereiro de 2023).
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). A moderação cartesiana, dessa forma, já é referida por Kambouchner na medida em que o autor, seguindo os passos de Rodis-Lewis, indica que o cartesianismo determina qual é o grau de certeza acessível ao homem. Porém, Kambouchner se detém na interpretação de Rodis- Lewis a respeito dos textos de caráter moral de Descartes, argumentando que a mais alta sabedoria humana deveria se limitar a uma certeza moral (Kambouchner, 2007, pp. 360-361KAMBOUCHNER, D. “Geneviève Rodis-Lewis et la sagesse cartésienne”, Revue Philosophique de la France et de l’Étranger, 132/3, 2007, pp. 357-372. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-philosophique-2007-3-page-357.htm (Acessado em 06 de fevereiro de 2023).
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), o que é de fato proposto no artigo 205 da parte IV dos “Princípios da Filosofia” (AT VIII, p. 372). Aqui, em contrapartida, nos ocupamos majoritariamente de textos de cunho epistemológico, utilizando esse aspecto moral apenas como corroboração da hipótese da moderação cartesiana que pretendemos defender.

É possível determinar, então, que Descartes teria, desde 1620, a concepção dos limites da ciência almejada, levando em consideração tanto a infinitude do intelecto divino, o qual ele não poderia alcançar, quanto o reconhecimento de sua própria finitude e possibilidades de seu espírito. Em outras palavras, se Descartes fala em alcançar todo o conhecimento possível e conhecer o “verdadeiro valor das ciências” ele está se referindo ao escopo do conhecimento humano e não mais do que isso. Dentro dos fragmentos da juventude essa limitação pode ser entendida como mera banalidade, isto é, enquanto humanos somos limitados e finitos, logo, a ciência que alcançaríamos também segue essas determinações. Entretanto, essas considerações sobre o intelecto humano e a ciência a que Descartes se refere continuam ecoando nos escritos posteriores do filósofo e impactam diretamente nos resultados epistemológicos de sua filosofia.

As “Regras para Direção do Espírito”, na mesma perspectiva, têm como um de seus pontos principais a imprescindibilidade de cultivar espírito humano, i.e., a sabedoria universal, que contém em si todas as ciências (Descartes, 2002, p. 12DESCARTES, R. “Regras para a Direção do Espírito”. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002.; AT X, pp. 360-361). A Regra VIII afirma que a investigação do próprio intelecto conduz aos “verdadeiros instrumentos do saber e de todo o método” (Descartes, 2002, p. 50DESCARTES, R. “Regras para a Direção do Espírito”. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002.; AT X, p. 398). Como se sabe, o cogito não é fundamentado metafisicamente nas “Regras”, provavelmente porque não existe neste tratado o processo fundamental da dúvida que ocorre na Primeira Meditação que leva o meditador à segmentação total dos sentidos. Não obstante, encontramos no tratado abandonado a primazia da razão: a razão é estabelecida como o ponto de partida para determinar os domínios em que se pode investigara verdade, sendo a própria razão, assim, objeto de intuição. É só por meio do conhecimento da razão que se dão todos os outros conhecimentos possíveis. Nesse sentido, o próprio método tem origem nas faculdades da razão e garante, a quem utilizá-lo bem, “atingir o conhecimento verdadeiro de tudo o que será capaz da saber” (Descartes, 2002, p. 24DESCARTES, R. “Regras para a Direção do Espírito”. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002.; AT X, pp. 371-372, grifos nossos). É nítido que é a própria capacidade da razão que determina o que pode ou não ser conhecido. Aquilo que, porventura, escape do domínio da razão não é objeto de conhecimento e, consequentemente, não deve ser almejado, se tratando de uma investigação inútil e até prejudicial. A Regra VIII, inclusive, exige como passo importante da aplicação do método evitar tais investigações inúteis e, assim,

quem quer que tenha observado cuidadosamente as regras precedentes para resolver alguma dificuldade e seja, no entanto, obrigado [...] a deter-se em alguma parte, saberá então certamente que, apesar de toda a sua aplicação, nunca poderá encontrar a ciência que procura, e isso não por culpa do seu espírito, mas pelo impedimento procedente da natureza da própria dificuldade, ou pela sua condição de homem. (Descartes, 2002, p. 46DESCARTES, R. “Regras para a Direção do Espírito”. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002.; AT X, p. 393)

Como dito anteriormente, o método universal cartesiano é um produto da razão (bona mens ou universalis sapientia) e deve ser constantemente cultivado a fim de orientar os estudos em busca da verdade (AT X, p. 360). O método cartesiano é universal porque a razão é universal. A universalidade do método não é derivada da possibilidade de se conhecer, absolutamente falando, tudo aquilo que está contido no universo. O método é universal porque a razão está presente em todos os seres humanos e é sempre a mesma, independentemente do objeto sobre o qual se debruça. As ciências, dessa forma, são produtos diretos da razão humana e, portanto, dentro do domínio destas ciências, a razão é absolutamente e universalmente soberana. O texto de Descartes frisa que essa universalidade não significa que a razão é ilimitada, pelo contrário: é em consequência desses limites admitidos pelo filósofo que é necessário que a primeira investigação a ser feita pelo menos uma vez na vida (semel in vita) seja aquela sobre o conhecimento humano e sua extensão (AT X, p. 397). É exclusivamente dessa maneira que se torna possível determinar onde a investigação da verdade deve se deter, sem que tal bloqueio restrinja de modo inadequado as possibilidades da razão em encontrar a verdade acerca do que é compatível a ela.

O “Discurso do Método”, de modo análogo, também trata da razão como um instrumento universal que atua em diferentes circunstâncias (AT VI, p. 57). Mais do que isso, o título provisório da obra, que Descartes relata em carta a Mersenne um ano antes de sua publicação, revela que o objetivo era apresentar uma ciência universal que pudesse elevar a nossa própria natureza ao seu mais alto grau de perfeição.9 9 A carta é escrita em março de 1636 e o título pretendido era “Le projet d’une Science universelle qui puisse élever nôtre nature à son plus haut degré de perfection. Plus la Dioptrique, les Météores, & la Géométrie ; où les plus curieuses Matières que l’Auteur ait pu choisir, pour rendre preuve de la Science universelle qu’il propose, sont expliquées en telle sorte, que ceux mêmes qui n’ont point étudié les peuvent entendre” (AT I, p. 339). Ora, o mais alto grau de perfeição diz respeito à plenitude da própria razão, refinando e aprimorando todas as suas faculdades para que estas atuem da maneira mais perfeita e adequada, esgotando assim seu próprio potencial. A perfeição aqui diz respeito apenas à razão humana.

Consequentemente, é patente que Descartes se porta com muita cautela ao articular sobre as capacidades e os limites do conhecimento humano. O filósofo entende que a razão é o grande trunfo do ser humano para alcançar a verdade, o que não o impede de apontar seus defeitos e deficiências. O método estabelecido pela filosofia cartesiana, nesse sentido, não exime a razão de suas fraquezas, mas permite que ela consiga se salvaguardar de erros e operar conforme suas competências. A despeito de sua cautela, Descartes foi frequentemente lido e compreendido como um dogmático radical, que teria afirmado estar de posse de verdades absolutas e inquestionáveis, negando também quaisquer falhas encontradas em seu sistema filosófico. Alguns de seus sucessores diretos o culparam de sustentar um dogmatismo inflexível e inalcançável: o cético Pierre-Daniel Huet (1630-1721), por exemplo, acusa o filósofo de ser vaidoso, arrogante e movido por uma grande autoestima, características que o impediram de admitir que sua filosofia possuía uma série de incongruências (Huet, 1698, pp. 190-196HUET, P-D. “Censura philosophiae Cartesianae”. Paris: D. Horthemels, 1689.).

Essa concepção, mesmo encontrando barreiras com o passar dos anos e com novas pesquisas sobre a filosofia cartesiana, ainda persiste. A interpretação de Richard Popkin segue de muitas maneiras a acusação feita por Huet a Descartes: tanto Popkin quanto Huet entendem que a filosofia cartesiana é, ao fim e ao cabo, uma filosofia essencialmente cética. Enquanto Huet acredita que Descartes começa como um cético, mas termina como um dogmático, mesmo não tendo realmente acreditado no sucesso de sua doutrina, Popkin afirma que Descartes confia em sua posição dogmática, mas que o filósofo seria um cético apesar dele mesmo, já que sua filosofia não conseguiria de fato ultrapassar as dúvidas (Lennon, 2008, pp. 60-62LENNON, T. “The Plain Truth: Descartes, Huet, and Skepticism”. Leiden: Brill, 2008.). É sobre esta interpretação de Popkin, considerada por Lennon como uma “interpretação padrão” e que realmente tem sido bastante acolhida atualmente, que iremos nos debruçar na próxima seção.

2. Descartes: cético malgré lui?

Richard Popkin, ao situar a dúvida cartesiana no interior de uma crise cética que abalava o mundo moderno, abre novos caminhos de pesquisa e de interpretação, iluminando aspectos até então ininteligíveis acerca da história da filosofia moderna. Em relação à filosofia cartesiana, Popkin analisa a influência do ceticismo no pensamento de Descartes e afirma que o objetivo da filosofia cartesiana era refutar cabalmente o ceticismo; mas, na visão de Popkin, a tentativa de Descartes é fracassada, o que faz com que Descartes seja um cético apesar dele mesmo (malgré lui). Para sustentar sua leitura, Popkin busca respaldo em pensadores contemporâneos a Descartes que já acusavam a filosofia cartesiana de ser excessivamente devastadora. Além de retomar essas censuras anteriores, Popkin argumenta que ao ser confrontado a respeito de sua concepção de certeza, Descartes teria pessoalmente confessado que existiria em sua filosofia um problema cético que ele não seria capaz de resolver.

Durante as Segundas Objeções, quando o padre Marin Mersenne objeta que Deus poderia, absolutamente falando, mentir e enganar (AT VII, p. 125), Descartes retoma seu procedimento metodológico, afirmando a concepção do Deus veraz e evocando “aqui de novo o fundamento em que me parece possível apoiar toda a certeza humana” (Descartes, 1983, p. 160DESCARTES, R. “Discurso do método; Meditações; Objeções e respostas; As paixões da alma; Cartas”. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Abril Cultural (Os pensadores), 1983.; AT X, p. 144, grifos nossos). Assim, Descartes explica que

Primeiramente, tão logo pensamos claramente qualquer verdade somos naturalmente levados a crer nela. E, se tal crença for tão forte que jamais possamos alimentar qualquer razão de duvidar daquilo que acreditamos desta forma, nada mais há que procurar: temos, no tocante a isso, toda certeza que se possa desejar. Pois, o que nos importa, se talvez alguém fingir que mesmo aquilo, de cuja verdade nos sentimos tão fortemente persuadidos, parece falso aos olhos de Deus ou dos anjos, e que, portanto, em termos absolutos, é falso? Por que devemos ficar inquietos com essa falsidade absoluta, se não cremos nela de modo algum e se dela não temos a menor suspeita? Pois pressupomos uma crença ou uma persuasão tão firme que não possa ser suprimida; a qual, por conseguinte, é em tudo o mesmo que uma perfeitíssima certeza. Mas é realmente dubitável que tenhamos qualquer certeza dessa natureza, ou qualquer persuasão firme e imutável. (Descartes, 1983, p. 160DESCARTES, R. “Discurso do método; Meditações; Objeções e respostas; As paixões da alma; Cartas”. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Abril Cultural (Os pensadores), 1983.; AT X, pp. 144-145)

Popkin afirma que nessa passagem Descartes admite um grau de certeza muito menor do que aquele pretendido inicialmente: enquanto na Primeira Meditação o filósofo propõe que rejeitemos tudo o que poderíamos duvidar, mesmo que minimamente, nas Segundas Respostas Descartes confessa a possibilidade de que tudo o que percebemos de forma clara e distinta seja absolutamente falso. Mais do que isso, Descartes rejeitaria tal possibilidade como não sendo um problema (Popkin, 2003, pp. 166-167POPKIN, R. “The History of Scepticism: From Savonarola to Bayle”. Nova York: Oxford University Press, 2003.) e, por isso, na visão de Popkin, Descartes assente a uma posição cética, que se evidencia principalmente pela utilização de um vocabulário no âmbito da probabilidade que relativiza as verdades estabelecidas em sua filosofia.

Em seguida, Popkin apresenta a resposta ao que é nomeado por Descartes como a “objeção das objeções”, esta que também corroboraria a leitura do intérprete e que se encontra no Apêndice às Quintas Objeções e Respostas. Essa objeção se baseia na concepção de que a extensão matemática, fundamento de toda a física cartesiana, não corresponderia a nada de exterior à mente do filósofo, ou seja, se a extensão matemática é uma abstração de corpos físicos, então não seria nada mais que seu próprio pensamento, este que é o autor desta abstração, tornando toda a física cartesiana imaginária e fictícia (AT VII, p. 212). Diante da objeção, Descartes percebe que ela poderia ser generalizada ao pensamento de modo integral, minando qualquer pretensão de conhecimento humano. Ora, argumenta Descartes, se esse fosse o caso, deveríamos considerar como ficção tudo o que está sendo concebido pelo pensamento meramente por poder ser concebido pela razão. Logo, ele conclui que

se as coisas que podemos conceber devem ser consideradas falsas pelo simples fato de podermos concebê-las, que restará se não que devemos apenas receber como verdadeiras aquelas que não concebemos, e compor com elas nossa doutrina imitando os outros sem saber por que os imitamos, como procedem os macacos, e proferindo apenas palavras cujo sentido não entendemos, como fazem os papagaios? (Descartes, 1983, p. 210DESCARTES, R. “Discurso do método; Meditações; Objeções e respostas; As paixões da alma; Cartas”. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Abril Cultural (Os pensadores), 1983.; AT VII, p. 212)

Na perspectiva de Popkin essa resposta somente indica as consequências da aceitação do ceticismo, isto é, visto que qualquer concepção é meramente subjetiva e que todo o conhecimento humano não consegue transpor os limites do próprio pensamento, ao não conseguir responder à objeção, Descartes se junta aos céticos, fechando as portas à razão e afirmando que a única certeza possível é a certeza subjetiva (Popkin, 2003, pp. 168-169POPKIN, R. “The History of Scepticism: From Savonarola to Bayle”. Nova York: Oxford University Press, 2003.). Desse modo, a resposta dada por Descartes apenas discorreria sobre as implicações da “objeção das objeções”, ou seja, caso esta represente um cenário real não seria possível nenhuma verdade objetiva.

Apesar do apelo da argumentação de Popkin, é possível interpretar ambas as passagens acima como um reforço da preocupação de Descartes em delimitar o escopo de sua investigação levando em conta a finitude do conhecimento humano, admitindo seus defeitos e limitações e, assim, não rivalizar as capacidades ínfimas da razão humana ante as capacidades infinitas do intelecto divino. Consequentemente, longe de ser uma admissão de Descartes de um problema cético inerente a sua filosofia, teríamos a persistência da precaução do filósofo que já é bem estabelecida desde seus primeiros escritos e que permanece nas obras da maturidade.

É necessário, nesse momento, entender que, de fato, a tese do ceticismo não se equivale integralmente à determinação do escopo do intelecto humano. Entretanto, estamos tratando aqui do ceticismo moderno, este que tem seu pilar na dúvida e que encontra em Descartes um de seus maiores exemplos (Marcondes, 2019, pp. 142-145MARCONDES, D. “Raízes da dúvida: Ceticismo e Filosofia Moderna”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2019.). A noção moderna de dúvida cética tem como uma de suas características principais o questionamento da possibilidade de conhecimento e, nesse sentido, a dúvida cética reclama uma análise sobre as competências do próprio intelecto humano em conhecer. É no contexto da necessidade de avaliar qual o escopo do entendimento, justamente porque a dúvida cética está instaurada, que nossa interpretação encontra respaldo.

Portanto, é forçoso ressaltar como o exame do intelecto humano é primordial para a filosofia cartesiana. Esse exame encontra lugar nos escritos juvenis do filósofo, mas não é um elemento que desaparece. Pelo contrário, com a instauração da dúvida cartesiana é reiterada a necessidade de avaliar o escopo do entendimento humano, precisamente para identificar as capacidades do conhecimento dos seres humanos e qual domínio da verdade poderia ser almejado por eles. O final da Primeira Meditação é, possivelmente, o melhor exemplar desse percurso que Descartes percorre: depois de se despojar de todas as crenças de seu espírito por meio da dúvida, Descartes reafirma que se manterá “obstinadamente firme nessa meditação, de maneira que, se não estiver em meu poder conhecer algo verdadeiro, estará em mim pelo menos negar meu assentimento aos erros” (Descartes, 2004, p. 33DESCARTES, R. (1641). “Meditações sobre Filosofia Primeira”. Trad. Fausto Castilho. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.; AT VII, p. 23). Assim, é evidenciado aqui que o autor acredita que antes de afirmar conhecer verdadeiramente qualquer coisa que seja é necessário entender a natureza e a extensão da razão humana, já que existe a possibilidade de o entendimento humano ser incapaz de conhecer verdadeiramente qualquer coisa que seja, estando em seu alcance apenas a suspensão do juízo, este que é o caminho do cético. Desse modo, a aplicação da dúvida enquanto método que ocorre nas obras da maturidade não modifica a preocupação e moderação da juventude.

De qualquer modo, tendo em vista as verdades alcançadas nas “Meditações”, Descartes pode afirmar a capacidade do seu entendimento em atingir verdades claras e distintas, o que, no entanto, não acarreta que sua razão humana seja perfeita. Isso é concluído e explicitado na Sexta Meditação quando o filósofo confessa que mesmo seguindo expressamente os procedimentos para alcançar a verdade, sua natureza eventualmente se engana, principalmente em relação às coisas materiais. Descartes afirma já ter deixado claro “de modo suficiente, a razão que, não obstante a suprema bondade de Deus, meus juízos podem ser falsos” (Descartes, 2004, p. 179DESCARTES, R. (1641). “Meditações sobre Filosofia Primeira”. Trad. Fausto Castilho. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.; AT VII, p. 83) e, então, manifesta mais uma vez a falibilidade da razão humana dizendo que “nada pode ser aqui concluído senão que essa natureza [humana] não é onisciente, o que não admira, pois, sendo o homem coisa limitada, não lhe toca senão uma perfeição limitada” (Descartes, 2004, p. 181DESCARTES, R. (1641). “Meditações sobre Filosofia Primeira”. Trad. Fausto Castilho. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.; AT VII, p. 84). De modo análogo, nos “Princípios da Filosofia” Descartes também faz referência à necessidade da razão humana de se ater ao que é acessível a ela, o que deve ser realizado por meio de uma utilização completa e integral do entendimento (AT VIII, p. 5). Dessa forma, pode-se compreender que o filósofo aconselha que se deve buscar a verdade, mas se detendo apenas naquilo que pode ser alcançado pela razão humana.

Por esse ângulo, torna-se claro que nas passagens citadas e comentadas acima, pertencentes às Segundas e Quintas Objeções e Respostas, são mais um exemplo da preocupação cartesiana em explicitar que a busca pela verdade que ele almeja é circunscrita dentro dos limites da razão humana. O trecho das Segundas Respostas, particularmente, mostra que o filósofo pretende explicar os fundamentos da certeza humana (AT VII, p. 144) e o faz justamente porque é apenas este ponto que está sob seu controle e que é possível adquirir uma certeza indubitável. Se seu interlocutor procura uma certeza infalível, que garantiria que a certeza humana é inexoravelmente a certeza de Deus ou de qualquer outra entidade mais perfeita, então Descartes pode somente mostrar que tal pretensão foge ao escopo do que é proposto por sua filosofia, tanto epistemologicamente quanto moralmente.

Essa resposta fornecida por Descartes efetivamente o leva a admitir a possibilidade de uma falsidade absoluta de tudo aquilo que é considerado claro e distinto e, portanto, verdadeiro. Entretanto, disso não se segue o fracasso de sua filosofia, como acredita Popkin. Pelo contrário, considerando que esta é uma possibilidade que a razão humana não é capaz de encontrar fundamentos ou motivos para ser admitida, não sendo possível nem mesmo concebê-la distintamente, então, segundo Descartes, ela não é uma hipótese que pode contradizer sua certeza. Na concepção do filósofo, se é possível encontrar uma crença inquestionável, então, no que se refere à razão humana, “nada mais há que procurar: temos, no tocante a isso, toda certeza que se possa desejar” (Descartes, 1983, p. 160DESCARTES, R. “Discurso do método; Meditações; Objeções e respostas; As paixões da alma; Cartas”. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Abril Cultural (Os pensadores), 1983.; AT X, p. 145). Do mesmo modo, se enquanto humanos não é possível atingir uma “persuasão firme e imutável” (Descartes, 1983, p. 160DESCARTES, R. “Discurso do método; Meditações; Objeções e respostas; As paixões da alma; Cartas”. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Abril Cultural (Os pensadores), 1983.; AT X, p. 145), é justamente porque apenas Deus tem em si a característica da estabilidade e constância absolutas e, assim, enquanto humanos não seria nem mesmo sensato cobiçar tal tipo de persuasão. Como aponta Raul Landim, apesar de parecer paradoxal pensar que uma “perfeitíssima certeza” possa ser, absolutamente falando, falsa, este não é o caso, já que o texto não deixa margem a interpretações divergentes: a falsidade absoluta, ao não poder ser concebida, não configura uma razão de duvidar (Landim Filho, 1992, p. 119LANDIM FILHO, R. “Evidência e verdade no sistema cartesiano”. São Paulo: EdiçõesLoyola, 1992.). Assim, Landim afirma que “o determinante para o conhecimento humano seria a indubitabilidade, e não a verdade” (Landim Filho, 1992, pp. 119-120LANDIM FILHO, R. “Evidência e verdade no sistema cartesiano”. São Paulo: EdiçõesLoyola, 1992.). No mesmo sentido, Ethel Rocha conclui que “a mente finita não tem meios para acessar o que seria uma verdade ou uma falsidade absoluta” e, assim, Rocha argumenta que o que é percebido pela mente de forma clara e distinta é identificado enquanto sendo uma verdade inquestionável pela mente finita (Rocha, 2016, p. 42ROCHA, E. “Indiferença de Deus e o mundo dos humanos segundo Descartes”. Curitiba: Kotter Editorial, 2016.).

Seguindo o que é proposto por Descartes, é importante esclarecer a que se refere o conceito de absoluto na filosofia cartesiana e como este reflete em seu escopo. Como sabemos, para Descartes as coisas relativas ou absolutas não são imutáveis, pelo contrário, devem ser consideradas “sob o aspecto de sua utilidade possível para o nosso propósito, isto é, quando não consideramos sua natureza isoladamente, mas as comparamos entre si para as conhecer umas a partir das outras” (Descartes, 2002, p. 34DESCARTES, R. “Regras para a Direção do Espírito”. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002.; AT X, p. 381) e, assim, “há coisas, com efeito, que são, sem dúvidas alguma, sob um ponto de vista, mais absolutas do que outras, mas que, consideradas de outra maneira, são mais relativas” (Descartes, 2002, p. 34DESCARTES, R. “Regras para a Direção do Espírito”. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002.; AT X, p. 382). Consequentemente, de acordo com a percepção cartesiana, podemos avaliar a certeza como absoluta em relação a nós mesmos – seres humanos de intelecto finito – e a certeza absoluta em relação a qualquer entidade mais perfeita que nós. Em relação ao que é certo para os seres humanos a certeza é identificada enquanto absoluta quando é indubitável, i.e., temos uma “perfeitíssima certeza” quando não existe nenhum motivo para que possamos duvidar de seu conteúdo, em outras palavras, a certeza é absoluta porque não pode ser rejeitada por nenhum argumento concebível pelo próprio intelecto humano, este que é o único a que temos acesso. Entretanto, se o escopo dessa certeza transcende os limites da racionalidade humana e procura afirmar o que é absolutamente certo para Deus, então nos deparamos com um domínio que está obstruído pelos próprios limites da finitude de qualquer ser humano – não nos cabe conjecturar hipóteses sobre o que é certo ou não para Deus porque não temos acesso à epistemologia divina. Por isso, quando Mersenne diz que o que é certeza para nós poderia ser falso aos olhos de Deus, o que Descartes pode afirmar é que essa hipótese não deveria ser uma preocupação, já que ele, enquanto um ser humano, não pode supor o que se passa no intelecto divino, que é infinito e perfeito. Descartes está convencido de que a certeza divina é mais absoluta que a certeza humana, mas como ele não tem acesso à mesma certeza de que Deus dispõe, então ele não deve desmerecer o que é indubitável e absoluto para o seu espírito; como coloca as “Regras”, “certas coisas são por vezes realmente mais absolutas que outras sem, no entanto, serem ainda as mais absolutas de todas” (Descartes, 2002, p. 35DESCARTES, R. “Regras para a Direção do Espírito”. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002.; AT X, p. 382).

Da mesma maneira também é possível apresentar uma leitura distinta daquela oferecida por Popkin em relação à resposta cartesiana à “objeção das objeções” se esta for relacionada à Quinta Parte do “Discurso do Método”. No “Discurso” Descartes discorre sobre a composição dos homens e dos animais, entendendo que ao mesmo tempo que existem entre eles semelhanças corporais, a alma racional é apenas presente nos seres humanos, sendo um traço que permite uma distinção explícita entre os seres humanos e todos os outros animais irracionais (AT VI, p. 57). Segundo Descartes, seria possível reconhecer a diferença entre um autômato ou animal e o próprio ser humano tendo em vista dois critérios: primeiramente, diz Descartes, um autômato pode até proferir palavras, mas ele não poderia compor discursos ou sinais para revelar a outrem seus próprios pensamentos; além disso, seria possível distinguir a máquina do próprio ser humano porque, apesar de um autômato conseguir realizar ações tão bem quanto os verdadeiros seres humanos, muitas vezes até melhor, uma máquina estaria sempre agindo pela disposição de suas partes e nunca por algum conhecimento e, assim, suas falhas se dariam pela falta de conhecimento ou incapacidade de se adaptar às mais variadas ocorrências da vida (AT VI, p. 57). Portanto, toda a distinção entre animais (ou qualquer autômato) e os seres humanos é clara e se baseia na alma racional.

O que chama a atenção é que os animais a que Descartes se refere para exemplificar sua argumentação são justamente os mesmos invocados na resposta às “objeções das objeções”: papagaios e macacos. Os papagaios, mesmo comparados aos seres humanos mais estúpidos, ainda não conseguem compor discursos ou expressar pensamentos, embora possuam órgãos capazes de proferir palavras (AT VI, pp. 56-57). Isso também ocorre com os macacos que, ainda que sendo ensinados e conseguindo realizar movimentos e sons que possam ser considerados respostas, não se igualam à capacidade de aprendizado de uma criança. Por isso, Descartes diz que a natureza dos animais é completamente distinta da natureza humana, concluindo que “isso não testemunha apenas que os animais possuem menos razão do que os homens, mas que não possuem nenhuma razão” (Descartes, 1983, p. 61DESCARTES, R. “Discurso do método; Meditações; Objeções e respostas; As paixões da alma; Cartas”. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Abril Cultural (Os pensadores), 1983.; AT VI, p. 58).

No momento em que Descartes retoma o exemplo dos papagaios e dos macacos na ocasião do Apêndice às Quintas Objeções e Respostas, torna-se clara a sua intenção: para o filósofo é necessário enfatizar que, se o ser humano desprezar o que é concebido em sua mente apenas pelo simples fato de poder conceber pensamentos, então ele estaria renunciando àquilo que o faz diferente das máquinas e dos animais, isto é, sua própria razão. Abdicar da razão é negar o pensamento e a racionalidade e, em última instância, qualquer traço de humanidade. Dessa forma, seria necessário viver apenas como macacos ou papagaios que possuem órgãos que lhes permitem falar ou se movimentar, mas que não possuem pensamentos lógicos que se concatenam. Mesmo que a razão não seja perfeita, é ainda o que nos diferencia dos animais e nos coloca em um patamar acima, mais próximo de Deus. Consequentemente, a partir da comparação entre a Quinta Parte do “Discurso” e a resposta de Descartes à “objeção das objeções”, é razoável entender que o filósofo está nesta ocasião fazendo uma defesa da racionalidade humana e não, como entende Popkin, assumindo uma posição pirrônica de desconfiar completamente da razão e de suas capacidades (Popkin, 2003, p. 168POPKIN, R. “The History of Scepticism: From Savonarola to Bayle”. Nova York: Oxford University Press, 2003.).

3. Descartes e o ceticismo de segundo grau

Em um artigo publicado em 1992, Richard Popkin define um ceticismo fraco como aquele que enfatiza os limites do entendimento humano, fazendo com que a teologia tradicional se tornasse um absurdo, ou pelo menos do âmbito da superstição, mas salvaguardando o conhecimento em qualquer sentido significativo (Popkin, 2002, p. 289POPKIN, R. “The History of Scepticism: From Savonarola to Bayle”. Nova York: Oxford University Press, 2003.). Se essa é realmente a definição concebida por Popkin acerca de um ceticismo de segundo grau, ou pelo menos de um ceticismo mais fraco, é realmente difícil compreender como Descartes poderia ser visto por Popkin como um dogmático tão implacável, já que o corpus cartesiano nos apresenta tantas ressalvas acerca dos limites do entendimento humano e a sua incapacidade de discorrer sobre questões divinas e da fé a partir da razão. Nas “Regras”, Descartes defende que nada lhe parece mais inadequado

do que disputar audazmente sobre os segredos da natureza, a influência dos céus no nosso mundo inferior, a predição do futuro e coisas semelhantes, como muitos fazem, sem, no entanto, jamais ter inquirido se a razão humana pode fazer tais descobertas. (Descartes, 2002, p. 50DESCARTES, R. “Regras para a Direção do Espírito”. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002.; AT X, p. 398)

Para Descartes, no que diz respeito ao espírito humano são apenas as operações da intuição e da dedução que podem alcançar a ciência, definida como qualquer conhecimento certo e evidente (AT X, p. 362). Mesmo que existam outros meios adequados para o alcance do conhecimento, estes não são do âmbito da razão e, portanto, são inacessíveis aos seres humanos (AT X, p. 370). Muitos anos depois do abandono das “Regras”, em 1644, Descartes continua afirmando que seus escritos não tocam “nem de perto nem de longe a Teologia”.10 10 Ao Abade Piccot, em primeiro de abril de 1644: “Toutefois je ne sais point encore le sujet de mécontentement qu’il peut leur avoir donné; et je me console sur ce que mes écrits ne touchent, ni de près ni de loin, la Théologie, & que je ne crois pas qu’ils y puissent trouver aucun prétexte pour me blâmer ” (AT IV, pp. 103-104). Essa divisão é feita porque Descartes entende sua filosofia como sendo baseada puramente na razão e no que é percebido por ela de forma clara e distinta. Aquilo que é recebido pela fé, segundo o filósofo, é obscuro e confuso e, assim, não pode ser um ato da razão, já que esta não as compreende, mas é um ato da vontade que, pela revelação divina, percebe que é um conhecimento mais certo do que qualquer verdade alcançada pela luz natural (AT VII, p. 148; AT X, p. 370). A razão, nesse contexto, tem como encargo apenas acatar essas verdades oriundas da revelação, já que na concepção de Descartes a fé é compatível com a racionalidade.

Verifica-se, desse modo, que Descartes está bastante preocupado em afirmar que a luz natural do espírito humano não consegue abarcar de modo completo a essência divina. Como coloca Peretti, a linha interpretativa sobre a filosofia cartesiana aberta por Popkin é bastante negativa, sempre apontando para o fracasso de Descartes em sustentar seu pensamento. Entretanto, segundo Peretti, percebe-se “não um fracasso cartesiano, mas a afirmação cartesiana de uma consciência aguçada da nossa finitude. A verdade à qual somos capazes de aceder é da ordem das verdades criadas por Deus, que não é a da verdade absoluta, tal como ela é para Deus”.11 11 “Nous conclurons de façon plus indulgente non à un échec cartésien, mais à l’affirmation cartésienne d’une conscience aigüe de notre finitude. La vérité à laquelle nous sommes en mesure d’accéder est de l’ordre des vérités créées par Dieu qui n’est pas celui de la vérité absolue telle quelle est pour Dieu ” (Peretti, 2020, pp. 14-15). Como visto, a tese de Popkin sobre a posição cética de Descartes é baseada na concepção de que a refutação do ceticismo por meio de verdades absolutas era o projeto cartesiano, mas podemos entender que esse não é o caso: Descartes quer encontrar verdades indubitáveis tendo em vista a razão humana, o que é repetidamente afirmado em suas obras. A sua razão finita não seria capaz de chegar ao conhecimento absoluto do ponto de vista divino e Descartes ressalta essa determinação com frequência, o que não quer dizer que a razão não seja a melhor fonte de conhecimento para o ser humano.

Assim como Peretti (2020)PERETTI, F-X. “Descartes sceptique malgré lui?”, International Journal for the Studyof Skepticism, 2020, pp. 1-16. Disponível em: https://brill.com/downloadpdf/journals/skep/aop/article-10.1163-22105700-BJA10016/article-10.1163-22105700-BJA10016.xml (Acessado em 06 de fevereiro de 2023).
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, sugerimos aqui uma ressignificação da tese de Popkin por meio da confirmação de que Descartes admite a finitude do espírito humano, contrariando a hipótese de um dogmatismo irrestrito de sua parte. Todavia, Peretti se baseia na determinação do vínculo de Descartes com o ceticismo, afirmando que o filósofo teria como objetivo refutar o pensamento cético, porém, diferentemente do que considera Popkin, Peretti afirma que o sucesso ou o fracasso do filósofo se daria apenas em termos parciais, ou em “meio-tom”.12 12 Nesse sentido, Peretti afirma que “Alors que Richard Popkin conclut à un échec de Descartes dans son combat contre le scepticisme, nous défendrons, pour notre part, qu’il s’agit d’un échec ou d’un succès en demi-teinte, Descartes défendant tout à la fois que nous sommes capables de certitudes mais que notre esprit fini ne peut jamais être, absolument parlant, assuré que les choses sont entièrement hors de nos pensées telles que nous les concevons” (Peretti, 2020, p. 2). Distintamente, nossa tentativa aqui é demonstrar textualmente que o problema da limitação do entendimento humano é uma característica perene da filosofia cartesiana, que não aparece apenas quando o filósofo trata diretamente das dúvidas céticas ao ambicionar uma fundamentação permanente do conhecimento. Além disso, diversamente de Peretti, não concordamos que o conhecimento perfeito do próprio entendimento é impossível para Descartes (Peretti, 2020, p. 12PERETTI, F-X. “Descartes sceptique malgré lui?”, International Journal for the Studyof Skepticism, 2020, pp. 1-16. Disponível em: https://brill.com/downloadpdf/journals/skep/aop/article-10.1163-22105700-BJA10016/article-10.1163-22105700-BJA10016.xml (Acessado em 06 de fevereiro de 2023).
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), mas sim que é justamente a determinação acertada de seu escopo que permite a busca pela verdade e a minimização do erro.

Por meio da avalição dos escritos da juventude de Descartes que mostram sua cautela e moderação é possível encontrar uma interpretação mais consistente textualmente do que aquela fornecida por Popkin. As Segundas Respostas e a réplica à “objeção das objeções” não são passagens que devem ser entendidas como a admissão do fracasso da filosofia cartesiana pelo seu autor. Pelo contrário, nota-se que em ambas as ocorrências o que Descartes procura desesperadamente sublinhar é a sua perspectiva puramente humana do conhecimento que, apesar de conseguir verdades indubitáveis, não pode ter uma garantia infalível, esta que toca o âmbito do divino. A impossibilidade de questionar suas certezas não implica que estas serão infalíveis, isto porque, como Descartes argumenta na “Carta-Prefácio” à edição francesa dos “Princípios da Filosofia”, só Deus é perfeitamente sábio e só Ele possui o conhecimento perfeito da verdade de todas as coisas (AT IX-B, pp. 2-3).

É interessante verificar que em alguma medida a cautela cartesiana diante dos seus objetivos geralmente foi ressaltada, mesmo que sua filosofia fosse extensivamente considerada dogmática. Ferdinand Alquié, por exemplo, declara que Descartes está muito mais preocupado com a certeza do que com a verdade, i.e., mais do que saber que sabe, ele quer ter certeza de que ele mesmo não pode questionar suas convicções. Nesse sentido, o filósofo admite que existem verdades que não são adequadas ao espírito e, por conseguinte, que existem problemas que não podem ser resolvidos. Se o espírito humano não pode saber de tudo, então é necessária uma investigação preliminar sobre o próprio espírito e suas capacidades (Alquié, 2005, p. 21ALQUIÉ, F. “Leçons sur Descartes. Science et métaphysique chez Descartes”. Paris: La Table Ronde, 2005.). Da mesma forma, Guéroult (1953, p. 329)GUÉROULT, M. “Descartes selon l’ordre des raisons: l’âme et Dieu”. Albier Montaigne, 1953. entende que as “Regras” clamam a todo momento por uma fecundidade universal do entendimento, mas que esta não é afirmada ali, apenas é exposta sua indefinição e a necessidade de buscar por suas fronteiras. A partir dessa delimitação é que se pode encontrar sua finitude e, isto posto, determina-se que a luz natural a que Descartes (e qualquer outro ser humano) tem acesso é sempre humana e é só a partir dela que é possível buscar diligentemente pelo conhecimento. A busca pelo escopo do espírito humano e a delimitação do domínio da razão humana, ressaltadas por Alquié e Guéroult, são justamente os aspectos que garantem que Descartes não é um dogmático inflexível, mas um filósofo ponderado, que compreende a finitude de sua razão e que, portanto, admite que os resultados de sua filosofia estão circunscritos nos limites de sua capacidade.

Qualquer tipo de objeção que apontasse para o caráter apenas subjetivo desse tipo de certeza poderia ser refutado tendo em vista a universalidade da razão que é sempre uma e a mesma, distribuída de forma equitativa entre todos os seres humanos. A razão é, de fato, a medida do verdadeiro e do falso, entretanto, levando em conta que se trata de uma sabedoria universal, uma razão que é a mesma em todas as pessoas, então é possível sair do âmbito da subjetividade e afirmar a objetividade da certeza desta razão. Como Descartes estabelece uma transcendência divina total, criando um grande abismo entre o que é para os seres humanos e o que é para Deus (Gaukroger, 1999, pp. 261-262GAUKROGER, S. “Descartes: uma biografia intelectual”. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 1999.), quando ele se refere ao conhecimento sua atenção se volta integralmente às coisas criadas e às relações entre tais coisas. Deus, que é de outra ordem, figura nessas conexões apenas como a substância imutável, perfeita e criadora, esta que não depende de nada, mesmo que todas as suas criaturas dependam dela (AT VIII, pp. 15-16). Propondo uma leitura inovadora do papel da prova da existência de Deus e da teoria da criação das verdades eternas, Ethel Rocha (2016, pp. 18-19; p. 63)ROCHA, E. “Indiferença de Deus e o mundo dos humanos segundo Descartes”. Curitiba: Kotter Editorial, 2016. afirma que os seres humanos, em razão de sua natureza, podem conhecer o mundo, mas não necessariamente o que de fato foi criado por Deus. A existência de Deus, nesse contexto, não legitima o conhecimento absoluto para os seres humanos, isto é, “não garante que os homens conheçam o mundo tal como ele é criado por Deus, mas apenas o ‘mundo’ cognoscível através dos princípios da razão” (Rocha, 2016, pp. 20-21ROCHA, E. “Indiferença de Deus e o mundo dos humanos segundo Descartes”. Curitiba: Kotter Editorial, 2016.). Apesar de Rocha considerar de modo minucioso a teoria da criação das verdades eternas e o papel de Deus no sistema cartesiano, temas que fogem do nosso escopo, as conclusões da autora se assemelham ao que evidenciamos aqui, ou seja, que o conhecimento racional na filosofia de Descartes é delimitado pela estrutura da razão humana e que não é possível estabelecer o que é a verdade absoluta, i.e., a verdade do ponto de vista divino.

O reconhecimento cartesiano da dessemelhança desmedida entre o ser humano e Deus faz com que sua filosofia orbite apenas em torno da razão humana. Enquanto muitos de seus leitores entenderam suas ambições como exageradas e inatingíveis, Descartes se defende ao alegar que enquanto estiver falando do ponto de vista de sua própria razão, aceitando os seus limites e utilizando suas faculdades da maneira mais perfeita a fim de evitar o erro, então ele conseguiria, de fato, chegar a tudo que é capaz de saber. Como argumenta Ethel Rocha, Descartes utiliza a prova da existência de Deus para legitimar as ideias claras e distintas como fonte de verdade, o que não quer dizer que elas correspondam a um conhecimento absoluto (Rocha 2016, p. 20ROCHA, E. “Indiferença de Deus e o mundo dos humanos segundo Descartes”. Curitiba: Kotter Editorial, 2016.). Nesse sentido, o propósito da filosofia cartesiana pode ser considerado absoluto apenas em relação ao domínio do conhecimento humano, não mais e não menos. O último parágrafo das suas “Meditações sobre Filosofia Primeira” expressa rigorosamente essa característica do pensamento cartesiano quando o filósofo diz que “é preciso confessar que a vida humana, no que se refere às coisas particulares, está frequentemente sujeita a erros e que se deve reconhecer a fraqueza de nossa natureza (naturae nostra infirmitas est agnoscenda)” (Descartes, 2004, p. 193DESCARTES, R. (1641). “Meditações sobre Filosofia Primeira”. Trad. Fausto Castilho. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.; AT VII, p. 95).

4. Considerações finais

O artigo aqui apresentado não almeja esgotar todas as passagens do corpus cartesiano que tratam da certeza e da verdade, mas apresentar trechos que podem sustentar que Descartes demonstra no decorrer de variados escritos uma grande preocupação com as limitações do entendimento, esquivando-se assim do domínio da teologia, relegado à fé. Portanto, tendo em vista a definição oferecida por Popkin, Descartes sustentaria um ceticismo fraco, ou ceticismo de segundo grau. Descartes, de modo recorrente, deixa claro que está lidando com o conhecimento humano e, por conseguinte, com as possibilidades e limitações da razão. Do mesmo modo que os seres humanos não conseguirão atingir a certeza divina, que é perfeita e incompreensível, também não é possível exterminá-la e viver sem seu uso, tal comportamento faria com que o ser humano abandonasse sua própria essência enquanto ser racional.

A partir dos trechos supracitados, entende-se que é possível defender uma interpretação da filosofia cartesiana que é muito mais clara e menos controversa do que aquela pretendida por Popkin. Isso porque, ao exibir os próprios textos cartesianos, revela-se um posicionamento mais básico e substancial de Descartes e, assim, aquelas passagens das Objeções e Respostas, que têm caráter reativo, são consideradas enquanto tal, devendo ser aclaradas pelos textos primários. Aquilo de que Popkin se vale para demonstrar o fracasso da filosofia cartesiana é evidenciado como sendo apenas passagens coerentes com o todo do pensamento do filósofo que, pelo menos em relação aos limites da razão humana, permanece sempre o mesmo.

  • 1
    As “Meditationes de Prima Philosophia, in qua Dei existencia et animae immortalitas demonstratur” foram primeiramente publicadas no ano de 1641, em Paris.
  • 2
    O “Discours de la méthode pour bien conduire sa raison et chercher la vérité dans les sciences” foi a primeira obra publicada por Descartes, tendo sido impressa e divulgada no ano de 1637, em Paris.
  • 3
    A primeira edição da “História do Ceticismo” foi publicada em 1960. Já em 1979, Popkin publica uma edição estendida até Espinosa e, vinte e quatro anos depois, em 2003, uma terceira e última versão do livro é publicada: “The History of Scepticism: From Savonarola to Bayle”, esta que incorpora novos estudos sobre a influência do ceticismo em diversos autores e áreas do conhecimento. Utilizaremos a última versão, publicada em 2003, como referência.
  • 4
    “Polybii Cosmopolitani Thesavrus mathematicus, in quo traduntur vera media ad omnes huius scientae difficultates resolvendas, demonstraturque circa illas ab humano ingenio nihil ultra posse praestari [...].” As passagens de Descartes utilizadas neste trabalho seguem a edição de referência editada por Ch. Adam e P. Tannery: Œuvres (abreviadas como AT, seguido do número do volume e da página). A ortografia dos textos foi modernizada. As passagens já traduzidas para o português serão referenciadas de acordo com a tradução da qual foram extraídas (conferir bibliografia) e estarão acompanhadas da sua localização em Œuvres. Quando necessário, as traduções serão realizadas de forma autônoma, seguindo o texto da edição de referência.
  • 5
    “Praescripti omnium ingeniis certi limites, quos transcendere non possunt. Si qui principiis ad inveniendum uti non possint ob ingenii defectum, poterunt tamen verum scientiarum pretium agnoscere, quod sufficit illis ad vera de rerum aestimatione judicia perserenda.”
  • 6
    “Cognitio hominis de rebus naturalibus, tantum per similitudinem eorum quae sub sensum cadunt [...]. (AT X, pp. 218-219).
  • 7
    X. Novembris 1619, cum plenus forem enthousiasmo, et mirabilis scientiae fundamento reperirem”.
  • 8
    Na carta a Beeckman datada de 26 de março de 1619, ou seja, anterior à noite dos sonhos e da sua decisão moral, Descartes realmente admite possuir ambições inacreditáveis ou extraordinárias: “Incredibile quam ambitiosum” (AT X, p. 157).
  • 9
    A carta é escrita em março de 1636 e o título pretendido era “Le projet d’une Science universelle qui puisse élever nôtre nature à son plus haut degré de perfection. Plus la Dioptrique, les Météores, & la Géométrie ; où les plus curieuses Matières que l’Auteur ait pu choisir, pour rendre preuve de la Science universelle qu’il propose, sont expliquées en telle sorte, que ceux mêmes qui n’ont point étudié les peuvent entendre” (AT I, p. 339).
  • 10
    Ao Abade Piccot, em primeiro de abril de 1644: “Toutefois je ne sais point encore le sujet de mécontentement qu’il peut leur avoir donné; et je me console sur ce que mes écrits ne touchent, ni de près ni de loin, la Théologie, & que je ne crois pas qu’ils y puissent trouver aucun prétexte pour me blâmer ” (AT IV, pp. 103-104).
  • 11
    “Nous conclurons de façon plus indulgente non à un échec cartésien, mais à l’affirmation cartésienne d’une conscience aigüe de notre finitude. La vérité à laquelle nous sommes en mesure d’accéder est de l’ordre des vérités créées par Dieu qui n’est pas celui de la vérité absolue telle quelle est pour Dieu ” (Peretti, 2020, pp. 14-15).
  • 12
    Nesse sentido, Peretti afirma que “Alors que Richard Popkin conclut à un échec de Descartes dans son combat contre le scepticisme, nous défendrons, pour notre part, qu’il s’agit d’un échec ou d’un succès en demi-teinte, Descartes défendant tout à la fois que nous sommes capables de certitudes mais que notre esprit fini ne peut jamais être, absolument parlant, assuré que les choses sont entièrement hors de nos pensées telles que nous les concevons” (Peretti, 2020, p. 2).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2022
  • Aceito
    02 Fev 2023
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