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Sobre Carl G. Jung

About Carl G. Jung

Resumos

O presente texto trata-se de uma resenha sobre o livro "Jung", de Anthony Stevens.

Educação Médica; Psicologia Médica; Medicina


This is a book review of "Jung", by Anthony Stevens.

Medical Education; Medical Psychology; Medicine


RESENHA

Sobre Carl G. Jung

About Carl G. Jung

Rodrigo Siqueira-Batista

Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, MG; Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ; Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ; Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rodrigo Siqueira Batista Universidade Federal de Viçosa Campus de Viçosa Avenida Peter Henry Rolfs, s/n Campus Universitário Viçosa - MG CEP: 36570-900 E-mail: rsiqueirabatista@yahoo.com.br

RESUMO

O presente texto trata-se de uma resenha sobre o livro "Jung", de Anthony Stevens.

Palavras-chave: Educação Médica; Psicologia Médica; Medicina.

ABSTRACT

This is a book review of "Jung", by Anthony Stevens.

Keywords: Medical Education; Medical Psychology; Medicine.

O homem, como podemos perceber ao refletirmos um instante, nunca percebe plenamente uma coisa ou a entende por completo. Ele pode ver, ouvir, tocar e provar. Mas a que distância pode ver, quão acuradamente consegue ouvir, o quanto lhe significa aquilo que toca e o que prova, tudo isso depende do número e da capacidade dos seus sentidos.

(CARL GUSTAV JUNG, O Homem e Seus Símbolos)

A medicina, desde seus primórdios - no Ocidente - com Hipócrates de Cós, se constituiu como ciência humana, na medida em que o homem/a mulher são o cerne de seu saber-fazer. A relevância pedagógica dessa afirmação encontra-se explicitada em díspares textos contemporâneos da área de educação médica, com destaque para as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (DCN)1, documento que, em diferentes artigos, acena para tal perspectiva:

Os conteúdos essenciais para o Curso de Graduação em Medicina [...] devem contemplar: [...] IV - compreensão e domínio da propedêutica médica - capacidade de realizar história clínica, exame físico, conhecimento fisiopatológico dos sinais e sintomas; capacidade reflexiva e compreensão ética, psicológica e humanística da relação médico-paciente1 (p.3).

O reconhecimento do papel decisivo que a "compreensão ética, psicológica e humanística da relação médico-paciente" tem para a formação e para o trabalho do médico pode ser comentado a partir das concepções teóricas de um dos mais importantes autores do século XX, Carl Gustav Jung, médico suíço que ratificou a relevância da pessoa - e de sua história - como cerne da prática clínica:

[...] o doente tem uma história que não é contada e que, em geral, ninguém conhece. Para mim, a verdadeira terapia só começa depois de examinada a história pessoal. Esta representa o segredo do paciente, segredo que o desesperou. Ao mesmo tempo, encerra a chave do tratamento. É, pois, indispensável que o médico saiba descobri-la. Ele deve propor perguntas que digam respeito ao homem em sua totalidade e não se limitar apenas aos sintomas2 (p.110).

É precisamente nesse domínio que adquire destacada significância o livro Jung (Figura 1)3, de Anthony Stevens - psiquiatra e analista junguiano inglês - , publicado pela L&PM, em 2012. A obra apresenta, ao longo de seus oito capítulos, relevantes elementos da vida e da trajetória intelectual de Jung, enfatizando distintos aspectos de seu pensamento.


O primeiro capítulo - Jung e sua psicologia - apresenta elementos da vida do psiquiatra, destacando sua infância na Suíça ("as origens"), os anos de estudo, a relação com Freud e o casamento, além de trazer uma exposição preliminar de alguns conceitos que serão aprofundados, posteriormente, na obra.

Na sequência estão três capítulos importantes - Arquétipos e inconsciente coletivo (cap. 2), Os estágios da vida (cap. 3) e Tipos psicológicos (cap. 4) - , os quais apresentam conceitos-chave da psicologia junguiana, podendo-se mencionar as concepções de (i) arquétipo, entendido como "centros neuropsíquicos inatos com a capacidade de originar, controlar e mediar as características típicas de todos os seres humanos"3 (p.60); (ii) inconsciente coletivo, o qual diz respeito "a herança psíquica comum a todos nós"3 (p.60) e que contém "a herança arquetípica inteira de um indivíduo"3 (p. 61); (iii) sincronicidade, caracterizada como uma "coincidência no tempo de dois ou mais eventos causalmente desvinculados, que têm o mesmo significado ou significado semelhante (OC VIII, § 849)"3 (p.71); (iv) Si-mesmo, "tanto arquiteto como construtor da estrutura dinâmica que dá suporte a nossa existência psíquica durante toda a vida"3 (p.74); (v) tipos psicológicos, baseados no pressuposto de que as pessoas têm "o mesmo aparato psicológico usado para perceber o que acontece dentro e fora de si mesmas" e que "diferem-se pela forma como cada uma utiliza esse aparato de maneira típica", ponderando que "esse modo típico de apercepção e responsividade é o que a psicologia chama de tipo"3 (p. 99).

O capítulo 5 - Sonhos - discute a relevância dos sonhos na psicologia de Jung, enfatizando a influência de Freud e, igualmente, os pontos de dissenso entre ambos os autores. Desse modo, Stevens apresenta os quatro tópicos centrais da teoria dos sonhos de Jung: "(1) os sonhos são eventos naturais e espontâneos; (2) Os sonhos são tanto intencionais como compensatórios, no sentido de servirem para promover o equilíbrio e a individuação da personalidade; (3) Os símbolos dos sonhos são símbolos verdadeiros, não visões, e possuem uma função transcendente; (4) O poder terapêutico dos sonhos é mais bem servido pelas técnicas de amplificação e imaginação ativa do que pela interpretação baseada na livre associação"3 (p.118-119). Ao final, pondera sobre o contexto arquetípico dos sonhos.

A abordagem terapêutica na psicologia analítica é o mote do sexto capítulo, intitulado Terapia. Esse texto é particularmente fecundo para o contexto da educação médica, pois apresenta uma série de aspectos relativos ao encontro entre analista e enfermo - enfatizando-se "(1) a abordagem da doença mental; (2) a atitude em relação aos pacientes; (3) os princípios e as técnicas defendidas no tratamento; (4) as visões sobre o papel do terapeuta"3 (p.134) - , mas, especialmente, elucida as concepções junguianas aplicáveis à relação médico-paciente e ao cuidado em saúde. De fato, Jung defendia, por exemplo, que "os diagnósticos clínicos são importantes pelo fato de proporcionarem uma certa orientação, embora não ajudem o paciente. O ponto decisivo é a questão da 'história' do doente, pois revela o fundo humano, o sofrimento humano e somente aí pode intervir a terapia do médico"2 (p.115), visão que poderia ser encontrada, perfeitamente, em um tratado de semiologia médica e que está absolutamente concorde com a "compreensão dos determinantes sociais, culturais, comportamentais, psicológicos, ecológicos, éticos e legais, nos níveis individual e coletivo, do processo saúde-doença" expressa nas DCN1 (p.3), na medida em que tais determinantes são os elos da história do doente. Ademais, sobre o trabalho de Jung como médico e psicoterapeuta, Stevens comenta que "muitos pacientes que consultaram Jung testemunharam a cordialidade, a ternura e a cortesia com a qual ele os recebia. Seu senso de humor sempre em evidência impedia que parecesse pomposo ou arrogante, e ele nunca tentou disfarçar sua falibilidade como ser humano" (p. 140)3 - , o que traz aspectos úteis para a prática clínica e para a educação médica.

No capítulo 7 - O suposto antissemitismo de Jung - , o autor aborda o espinhoso tema das relações entre Jung e o nazismo, baseado especialmente em duas alegações: "(1) que Jung havia publicado artigos argumentando que havia diferenças entre a psicologia de judeus e arianos; e (2) que se tornou presidente da Sociedade Médica de Psicoterapia (predominantemente alemã) em 1933" (p. 155). Após analisar, de modo detido, cada um desses aspectos, agregando argumentos contrários à ideia do antissemitismo de Jung - como, por exemplo, que "a injustiça das acusações contra Jung foi condenada pelos judeus que o conheciam melhor"3 (p.162) - , Stevens propõe conclusão semelhante àquela apresentada pelo próprio Jung:

Qualquer pessoa que tenha lido qualquer um dos meus livros deve ter a clareza de que nunca fui simpatizante do nazismo e nunca fui antissemita, e nenhuma citação errônea, tradução ruim ou recomposição do que escrevi pode alterar o registro do meu verdadeiro ponto de vista. (p. 1934, citado por Stevens na p. 1643)

No oitavo e último capítulo - Conclusão - , Stevens apresenta críticas à psicologia analítica de Jung - mencionando-se que "a academia o condenou [Jung] como não científico"3 (p.170) - , abordando igualmente alguns de seus desdobramentos na cultura contemporânea. Encerram o livro sugestões de leituras complementares, abrangendo obras de Jung e de seus comentadores e biógrafos.

Carl Gustav Jung era um homem "estranho e incomum" 3 (p.171), dotado de grande erudição e autor de uma obra prolífica e original, a qual abrange, na edição brasileira, 18 volumes organizados em 35 livros5. A extensão e a complexidade de seu trabalho podem ser, em muitos casos, importantes obstáculos para o leitor neófito, não familiarizado com os conceitos e o vocabulário do autor. Nesse aspecto, apresentar uma "introdução concisa"3 (p.9) ao pensamento de Jung - "como esse livro pretende ser"3 (p.9) - é provavelmente o grande mérito do texto de Anthony Stevens, que traz uma visão panorâmica sobre as principais ideias do médico suíço, algumas das quais, como se tentou brevemente comentar, poderão ser úteis para pensar-agir em termos da formação médica.

Recebido em: 10/03/2014

Aprovado em: 10/06/2014

  • 1
    Brasil. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Resolução CNE/ CES Nº. 4, Brasília, 7 de novembro, 2001.
  • 2. Jung CG. Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1988.
  • 3. Stevens A. Jung. Porto Alegre: L± 2012.
  • 4. Jung CG. C. G. Jung speaking. Londres: Thames & Hudson; 1978.
  • 5. Jung CG. Obras completas. Petrópolis: Vozes; 2011.
  • Endereço para correspondência:
    Rodrigo Siqueira Batista
    Universidade Federal de Viçosa Campus de Viçosa
    Avenida Peter Henry Rolfs, s/n
    Campus Universitário Viçosa - MG
    CEP: 36570-900
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Recebido
      10 Mar 2014
    • Aceito
      10 Jun 2014
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