Sindrome do intestino irritável pós-COVID-19: uma revisão integrativa

RESUMO

Introdução:

a persistência de sintomas a longo prazo da COVID-19 representa um novo desafio à comunidade médico-científica, é a condição denominada COVID-19 longo. A Síndrome do Intestino Irritável (SII) é um dos Distúrbios da Interação Intestino Cérebro mais comuns e seu desenvolvimento pós-infecção já é validado. Segundo os critérios de Roma IV, caracteriza-se por presença de dor abdominal recorrente, em média, pelo menos 1 dia por semana nos últimos 3 meses com início dos sintomas pelo menos 6 meses antes do diagnóstico, associada a 2 ou mais fatores: relacionada à defecação e/ou associada com mudança na frequência das fezes e/ou associada com mudança na forma das fezes. Este estudo teve como objetivo revisar dados acerca de SII pós-COVID-19.

Métodos:

trata-se de uma Revisão Integrativa de estudos publicados entre 1º de janeiro de 2020 a 30 de abril de 2023, que apresentassem dados acerca de SII com a doença COVID-19 previamente diagnosticada. Utilizou-se a base de dados PubMed, os descritores foram “Irritable bowel syndrome” AND “COVID-19”; a lista de referência dos artigos também foi recuperada.

Resultados:

oito estudos foram revisados, observou-se que 0,6% a 11,6% pacientes cursaram com SII de novo após um período mínimo de 6 meses da infecção. Os fatores de risco foram sexo feminino, gravidade da COVID-19, presença de sintomas gastrointestinais de fase aguda e depressão/ansiedade.

Conclusão:

os resultados obtidos permitem crer que a COVID-19 pode estar associada ao surgimento de SII de novo. São necessários outros estudos para investigar seus efeitos a longo prazo e espectros clínicos..

Palavras-chave:
Síndrome do Intestino Irritável; COVID-19; SARS-CoV-2

ABSTRACT

Introduction:

the persistence of long-term symptoms of COVID-19 represents a new challenge for the medical-scientific community, it is the condition called long-term COVID-19. Irritable Bowel Syndrome (IBS) is one of the most common Disorders of the Gut-Brain Interaction and its post-infection development is already validated. According to the Rome IV criteria, it is characterized by the presence of recurrent abdominal pain, on average, at least 1 day a week in the last 3 months with onset of symptoms at least 6 months before diagnosis, associated with 2 or more factors: related to defecation and/or associated with change in stool frequency and/or associated with change in stool form. This study aimed to review data on post-COVID-19 IBS.

Methods:

this is an integrative review of studies published between January 1, 2020 and April 30, 2023, which presented data on IBS with previously diagnosed COVID-19 disease. The PubMed database was used, the descriptors were “Irritable bowel syndrome” AND “COVID-19”; the reference list of the articles was also retrieved.

Results:

eight studies were reviewed, it was observed that 0.6% to 11.6% of patients had IBS again after a minimum period of 6 months of infection. Risk factors were female gender, severity of COVID-19, presence of acute-phase gastrointestinal symptoms, and depression/anxiety.

Conclusion:

the results obtained suggest that COVID-19 may be associated with the emergence of de novo IBS. Further studies are needed to investigate its long-term effects and clinical spectra.

Palavras-chave:
Irritable Bowel Syndrome; COVID-19; SARS-CoV-2

INTRODUÇÃO

Após o surto inicial na cidade de Wuhan na China no final do ano de 2019¹, a doença COVID-19 excedeu fronteiras e tornou-se um grande desafio para as autoridades e equipes de saúde mundiais. A princípio, acreditava-se que o vírus SARS-CoV-2 limitava-se apenas ao trato respiratório², mas não foi necessário muito tempo até as primeiras descrições de manifestações extrapulmonares. Cerca de metade dos pacientes ainda no epicentro da pandemia já relatava um ou mais sintomas digestivos, tais como anorexia, diarreia, vômitos e dor abdominal, durante a fase aguda da infecção³.

Além da elevada morbimortalidade em todo o mundo, um novo espectro clínico dessa doença vem sendo debatido pela comunidade médico-científica⁴, percebeu-se que uma parcela de pacientes sobreviventes pode cursar com sequelas a longo prazo, sejam elas pulmonares, hematológicas, cardiovasculares, endócrinas, dermatológicas, neuropsiquiátricas, renais ou gastrointestinais^4,5. É a condição atualmente definida como “COVID-19 longo”, caracterizada pela persistência ou desenvolvimento de sintomas após a infecção aguda que não podem ser explicados por um diagnóstico alternativo^4-6. Qualquer paciente pode desenvolver COVID-19 longo e os sintomas são variáveis em gravidade, temporalidade e sistema acometido^4,6.

Curiosamente, observou-se que pacientes com diagnóstico prévio de COVID-19 apresentam maior risco de desenvolver SII (Síndrome do Intestino Irritável) quando comparados a indivíduos não infectados⁷. A SII, por sua vez, é um dos Distúrbios da Interação Intestino-Cérebro (DIIC), antes denominados de Distúrbios Gastrointestinais Funcionais (DGIF)⁸, atualmente o diagnóstico é baseado nos critérios de Roma IV⁸. Eles estão relacionados a qualquer combinação de distúrbios de motilidade, hipersensibilidade visceral, disfunção de mucosa e imune, microbiota intestinal alterada e processamento alterado do sistema nervoso central e resultam em custos globais significativos de saúde e prejuízos substanciais à qualidade de vida⁹.

A SII pós-infecção (SII-PI) já é reconhecida na literatura e pode desenvolver-se em cerca de 10% dos pacientes após uma enterite infecciosa¹⁰. Os mecanismos fisiopatológicos que levariam a COVID-19 desencadear posteriormente uma SII ainda são pouco compreendidos. Já se sabe que os enterócitos expressam receptores da enzima conversora de angiotensina (ECA-2), receptor utilizado pelo vírus para adentrar nas células humanas¹¹, o que já explicaria seu determinado tropismo intestinal. Outras justificativas incluem o aumento da permeabilidade intestinal, estado hiperinflamatório crônico e alterações da microbiota intestinal^12,13, condizentes ao que já se conhece sobre SII-PI⁹.

Graças ao número elevado de evidências acerca da COVID-19 e o surgimento de vacinas, o índice de mortalidade foi reduzido mundialmente. No entanto, os efeitos a longo prazo da COVID-19 são um desafio atual da assistência à saúde e ainda são pouco conhecidos.

OBJETIVO

Sabendo disso e do impacto da SII na qualidade de vida de um indivíduo, este estudo tem como objetivo revisar dados acerca de SII pós-COVID-19.

MÉTODOS

Este estudo se configura como uma Revisão Integrativa delineada conforme as etapas de: identificação do problema com elaboração de questão norteadora, pesquisa na literatura, avaliação e análise dos dados e apresentação da revisão com seus resultados e limitações¹⁴. Desenvolvimento de Síndrome do Intestino Irritável pós-COVID-19: é possível?

A busca primária foi realizada na base de dados PubMed, os descritores utilizados foram “Irritable bowel syndrome” AND “COVID-19”, disponíveis no MeSH e DeCS. A lista de referência dos artigos encontrados também foi recuperada manualmente à procura de estudos adicionais relevantes.

Critérios de elegibilidade

Foram eleitos estudos inéditos prospectivos ou retrospectivos, de braço único ou comparativos, unicêntricos ou multicêntricos, publicados entre 1º de janeiro de 2020 a 30 de abril de 2023, de língua inglesa, que apresentassem dados acerca de Síndrome do Intestino Irritável com a doença COVID-19 previamente diagnosticada em pacientes adultos, com o diagnóstico de SII necessariamente de acordo com os critérios de Roma IV e a COVID-19 confirmada laboratorialmente, independentemente da presença ou ausência de sintomas.

O diagnóstico de SII conforme os critérios de Roma IV requer: presença de dor abdominal recorrente, em média, pelo menos 1 dia por semana nos últimos 3 meses com início dos sintomas pelo menos 6 meses antes do diagnóstico, associada a 2 ou mais dos seguintes critérios: relacionada à defecação e/ou associada com mudança na frequência das fezes e/ou associada com mudança na forma das fezes⁸.

Um período mínimo de 6 meses de acompanhamento de toda a amostra estudada e um intervalo de pelo menos 6 meses entre o diagnóstico de COVID-19 e a entrevista com os pacientes também foi necessário para a inclusão.

Relatos e séries de casos, cartas, pré-publicações, revisões, estudos sem texto completo disponível e estudos com pacientes já diagnosticados com SII anterior à infecção por SARS-CoV-2, que relatassem apenas piora de sintomas e não um diagnóstico de SII de novo ou que utilizaram Critérios de Roma anteriores (III ou II) foram excluídos. Estudos com abordagem de SII concomitante à pandemia da COVID-19 sem necessariamente associá-la à infecção viral também foram descartados.

Inicialmente, foram identificados 86 estudos. Após a leitura dos títulos e resumos, excluiu-se 72 deles. Dos 14 eleitos para leitura integral, excluiu-se 7 e 1 foi resgatado da lista de referências. A amostra final para construção da revisão foi composta por 8 estudos. (Figura 1).

Figura 1
Fluxograma do processo de seleção dos estudos.

RESULTADOS

Os oito estudos incluídos foram organizados conforme a ordem de publicação - do mais antigo ao mais recente, eles datam de março de 2022 a março de 2023, extraímos os dados gerais relacionados ao delineamento (Tabela 1) e seus principais resultados. Todos os autores referiram que os pacientes positivos para COVID-19 foram testados laboratorialmente.

Tabela 1
Características gerais dos estudos incluídos.

Estudo / 1º Autor	Mês/Ano	Desenho do estudo	Tempo (meses)	Nº de casos/controles	Frequência de SII casos/controles
E1 / Ghoshal et al.15	Mar, 2022	Caso-controle, prospectivo	6	280 / 264	20 (7,1 %) / 1 (0,38%)
E2 / Vélez et al.16	Jun, 2022	Coorte, prospectivo, longitudinal	6	200 / -	21 (10,5%) / -
E3 / Austhof et al.17	Jul, 2022	Coorte prospectivo, longitudinal	6	1475 (apenas 49 preencheram a pesquisa do Roma IV) / -	5 (10,2) / -
E4 / Nazarewska et al.12	Nov, 2022	Longitudinal, prospectivo	6	257 / -	15 (5,8%) / -
E5 / Farsi et al.18	Dez, 2022	Tranversal, prospectivo	6	233 / -	27 (11,6%) / -
E6 / Marasco et al.19	Dez, 2022	Caso-controle, prospectivo	6 12	548 / 224 435 / 188	3 (0,6%) / 2 (0,9%) 14 (3,2%) / 1 (0,3 %)
E7 / Siyal et al.20	Jan, 2023	Longitudinal, prospectivo	6	303 / -	32 (10,6%) / -
E8 / Golla et al.21	Mar, 2023	Coorte, prospectivo	6	320 / 320 (grupo A) e 280 (grupo B)	NR / 0 grupo A e B

• E: estudo / Casos: pacientes com diagnóstico prévio de COVID-19 / Controles: pacientes sem diagnóstico de COVID-19 / Tempo: seguimento ou intervalo entre diagnóstico de COVID e pesquisa / NR: não relatado.

O primeiro estudo (E1)¹⁵ teve como objetivo avaliar prospectivamente a frequência e o espectro de DGIFs (Distúrbios Gastrointestinais Funcionais) entre 280 pacientes pós-COVID-19 e 264 controles saudáveis e os fatores de risco envolvidos. Eles utilizaram os critérios de Roma III, a princípio, e posteriormente comparou os resultados ao IV, por isso foi incluído. Pacientes com história prévia de DGIF, histórico de cirurgia abdominal, doença psiquiátrica grave, DII (doença inflamatória intestinal), câncer gastrointestinal e com COVID-19 crítico foram excluídos. Os pacientes com COVID-19 eram comparáveis com os controles saudáveis em idade e gênero. Eles foram acompanhados fisicamente ou por telefone em 1, 3 e 6 meses.

Viu-se que aos 6 meses de acompanhamento 15 pacientes com COVID-19 desenvolveram SII 15 (5,3%), 6 (2,1%) DNI (dispepsia não investigada) e 5 (1,8%) sobreposição de SII-DNI, somente um controle saudável desenvolveu SII aos 6 meses (p<0,05 para todos, exceto sobreposição SII-DNI). Desses 15 pacientes com apenas SII diagnosticados pelos critérios de Roma III, 14 (93%) preencheram os critérios de Roma IV. De todos os 20 pacientes com SII (incluindo 5 com sobreposição), 12 (60%) tinham predominância de diarreia, 4 (20%) tinham predominância de constipação e os outros 4 (20%) tinham SII não classificada. Dos 280 pacientes com COVID-19, 164 (58,6%) eram sintomáticos e 116 (41,4%) assintomáticos. Aos 6 meses, esses pacientes sintomáticos desenvolveram DGIF com mais frequência (SII 13/164 [7,8%] vs. 2/116 [1,7%]; p=0,03; DNI 6/164 [3,7%] vs. 0/116 [0%]; p=0,05; e sobreposição SII-DNI 5/164 [3%] vs. 0/116 [0%]; p=0,07). Além disso, a presença de sintomas gastrointestinais durante a linha de base da COVID-19 foi mais frequentemente associada ao desenvolvimento de DGIF também durante o acompanhamento de 6 meses¹⁵.

O segundo (E2)¹⁶ incluiu pacientes diagnosticados com COVID-19, ambulatoriais, que foram submetidos a uma determinada triagem padrão de sintomas gastrointestinais específica da instituição durante abril a setembro de 2020. Estes pacientes foram avaliados por telefone após 6 meses do diagnóstico de COVID-19 por meio dos critérios de Roma IV em busca de DF (dispepsia funcional) e SII pós-infecciosos. Pacientes que relataram sintomas semelhantes antes da infecção ou condições orgânicas que explicassem os sintomas gastrointestinais foram excluídos. Dentre os 200 pacientes da amostra, 79 (39,5%) desenvolveram novos distúrbios dispépticos e intestinais crônicos pós-COVID-19, sendo 58 destes DF, 2 SII apenas e 19 com DF e SII associados. Após o ajuste multivariado, o sexo feminino e uma história de depressão ou ansiedade foram vistos como fatores de risco independentes para a incidência de DF e SII, já a presença de sintomas gastrointestinais ao diagnóstico de COVID-19 não foi relacionada a queixas gastrointestinais pós-COVID-19¹⁶.

O E3¹⁷ buscou examinar a associação entre a presença de sintomas gastrointestinais durante a infecção pelo SARS-CoV-2 e a persistência de sintomas gastrointestinais (≥45 dias), bem como o desenvolvimento SII-PI. Austhof et al.¹⁷ definiu dois grupos de participantes: um grupo que apresentou sintomas gastrointestinais durante a infecção aguda e outro grupo que não apresentou sintomas gastrointestinais durante a infecção aguda. Os sintomas gastrointestinais foram definidos como diarreia, náuseas ou vômitos. Os dados foram adquiridos por meio de pesquisas on-line autorrelatadas, aqueles que relataram sintomas gastrointestinais durante a fase aguda foram solicitados a preencherem o questionário de diagnóstico de Roma IV para SII em 6 semanas, 3 e 6 meses após a conclusão da primeira pesquisa. Participantes que relataram condições gastrointestinais prévias como a própria SII, DII, doença de Crohn ou colite ulcerativa, diarreia crônica, constipação crônica, dispepsia ou doença do refluxo foram excluídos.

Dos 1475 pacientes da amostra, 33,8% (n=499) apresentaram sintomas gastrointestinais durante a infecção aguda. Casos com sintomas gastrointestinais agudos tiveram uma chance de sintomas gastrointestinais persistentes 4 vezes maior do que casos sem sintomas gastrointestinais agudos (OR 4,29, IC 95% 2,45-7,53) mesmo após ajuste para idade, sexo e estresse. Apenas 49 pacientes completaram a escala de Roma IV, 5 destes (10,2%) atenderam ao diagnóstico para SII-PI. No geral, a SII-PI foi relatada em média 6,2 meses da infecção aguda¹⁷.

O quarto estudo (E4)¹² foi uma avaliação prospectiva entre pacientes previamente hospitalizados por COVID-19 a fim de determinar a prevalência de SII-PI e seus fatores de risco. Os critérios de Roma IV foram aplicados imediatamente após a alta hospitalar e após 3 e 6 meses de seguimento. Um total de 257 pacientes que necessitaram de hospitalização foram incluídos, dentre eles 146 (56,8%) relataram sintomas gastrointestinais durante a fase aguda da COVID-19. Sintomas gastrointestinais (dor abdominal com diarreia ou constipação) que não preencheram os critérios de duração dos sintomas para SII foram relatados em 28 (10,6%), 58 (22,3%) e 70 (26,9%) pacientes na alta hospitalar, e após 3 e 6 meses de seguimento, respectivamente. Aos 6 meses, 15 participantes (5,8%) preencheram os critérios para SII, nenhum possuía história prévia à COVID-19. Os autores também aplicaram os critérios de Roma IV modificados²² e a taxa de SII após 6 meses aumentou para 26,9%. Não foi encontrada correlação entre sintomas gastrointestinais durante a COVID-19, comorbidades e tratamento utilizado durante o internamento.

O E5¹⁸ investigou a incidência de SII e sua correlação com o estado de estresse em pacientes diagnosticados com COVID-19 entre novembro de 2020 e fevereiro de 2021. Pacientes com COVID-19 assintomáticos, internados em UTI em estado crítico, com doenças neurológicas e distúrbios gastrointestinais não foram incluídos na análise. A amostra foi composta por 233 pacientes, após um período mínimo de 6 meses da infecção foram submetidos a questionários de estresse e critérios de Roma IV. A taxa de SII foi de 11,6% e sua proporção foi maior em mulheres e pessoas com 40 anos ou mais. Já os sintomas de depressão e ansiedade foram descritos por 27,4% e 36,9% pacientes, respectivamente. Não houve diferença significativa entre os participantes em termos de gravidade da COVID-19, IMC, tabagismo e histórico médico. A chance de depressão e ansiedade foram maiores em pacientes com COVID-19 com sintomas de SII, mas não foi estatisticamente significativa.

O E6¹⁹ trata-se de um estudo multicêntrico e controlado que avaliou a presença de sintomas gastrointestinais, ansiedade e depressão em pacientes com e sem COVID-19 na admissão hospitalar e após 1, 6 e 12 meses após o internamento. O desfecho primário foi a incidência de SII pós-COVID-19, conforme os critérios de Roma IV. O estudo foi realizado em 36 centros de 14 países, o recrutamento ocorreu de maio a outubro de 2020. Dados de 883 pacientes (614 COVID-19 e 269 controles) foram usados para avaliações iniciais, as avaliações de acompanhamento foram concluídas por 772 pacientes (548 COVID-19 e 224 controles) em 6 meses e por 623 pacientes (435 COVID-19 e 188 controles) em 12 meses.

Aos 6 meses apenas 3 pacientes COVID-19-positivos atenderam aos critérios de SII, não houve significância estatística (p=0,587). No acompanhamento de 12 meses, em comparação com os controles, os pacientes com COVID-19 apresentaram taxas significativamente mais altas de SII (0,5% vs 3,2%, p=0,045). Dentre os 14 pacientes com COVID-19 que desenvolveram SII, 4 (28,6%) relataram SII-C (SII com constipação predominante), 7 (50%) SII-D (SII com diarreia predominante), 1 (7,1%) SII-M (SII com hábitos mistos) e 2 (14,3%) SII-U (SII não classificada). O diagnóstico prévio de COVID-19 foi fator preditivo para a ocorrência de SII em toda coorte (OR = 10,686). O risco de SII entre os casos de COVID-19 foi maior entre pacientes com histórico de alergias, ingestão crônica de inibidores de bomba de prótons e dispneia na hospitalização. Os pacientes com COVID-19 também apresentaram níveis mais altos de depressão e ansiedade aos 6 e 12 meses após a hospitalização¹⁹.

O sétimo (E7)²⁰ teve como objetivo avaliar a incidência de SII em pacientes pós-COVID-19 e os fatores predisponentes. Aqueles com história de SII anterior à infecção, DII, colite, doença celíaca, neoplasia gastrointestinal, doença psiquiátrica grave e quaisquer outras condições que pudessem simular sintomas de SII foram excluídos. Um total de 303 pacientes foram incluídos no estudo e foram acompanhados prospectivamente. Aos que apresentaram sintomas semelhantes à SII solicitou-se fazer acompanhamento nas clínicas gastrointestinais em 1, 3 e 6 meses, onde realizaram investigações laboratoriais quando pertinentes e os de 45 anos ou mais foram submetidos à colonoscopia. No seguimento de 6 meses, 32 (10,6%) pacientes preencheram os critérios de Roma IV para SII. Dentre eles, 17 (53,13%) tinham SII-D, 10 (31,25%) tinham SII-C e 5 (15,62%) tinham SII-M. Vinte e quatro (75%) pacientes eram do sexo feminino. Foram considerados fatores de risco independentes para SII pós-COVID-19: necessidade de oxigênio durante a internação (p=0,016), sintomas gastrointestinais concomitantes durante a infecção (p<0,001) sexo feminino (p<0,001) e altos níveis de procalcitonina (p=0,017) durante o internamento.

O oitavo e último estudo incluído (E8)²¹ estudou prospectivamente a frequência, espectro e fatores de risco para DGIFs após o diagnóstico de COVID-19 em comparação a controles não infectados. O estudo foi conduzido de abril de 2021 a janeiro de 2022, o acompanhamento foi realizado pessoalmente ou por telefone durante 1, 3 e 6 meses, utilizando um questionário conforme os critérios de Roma IV. Casos e controles com DII, doença psiquiátrica grave, neoplasia gastrointestinal, histórico de cirurgias abdominais ou em terapia imunossupressora foram excluídos. Foram incluídos 320 casos com COVID-19 e 2 grupos de controle: grupo A = 320 cônjuges/familiares saudáveis compartilhando os mesmos fatores dietéticos e ambientais e grupo B = 280 controles saudáveis com sorologia negativa para COVID-19. Os autores relatam que aos 3 meses 8 (2,5%) dos pacientes tiveram sintomas consistentes com SII e 2 (0,6%) SII-DF, assim como outros DGIF. A taxa, de fato, de SII aos 6 meses não foi especificada, mas viu-se que os DGIFs no geral estiveram presentes em cerca de 7% dos pacientes COVID-19 analisados. Nenhum dos controles saudáveis desenvolveu DGIF em até 6 meses de acompanhamento (p<0,01). COVID-19 moderado-grave e a presença de sintomas gastrointestinais durante a fase aguda da infecção e em 1 mês foram preditores para o desenvolvimento de DGIF (p<0,01).

DISCUSSÃO

A sintomatologia pós-COVID-19 é complexa e heterogênea e ainda não há consenso para a definição de COVID longo. César Fernández de las Peñas propôs uma definição que considera a linha do tempo em que os sintomas aparecem e/ou desaparecem e a natureza dos sintomas: “COVID longo deve ser usado para definir a presença, em geral, de qualquer sintoma pós-COVID após superar a infecção por SARSCoV-2 e consistirá em dois estágios: 1) sequelas pós-agudas da infecção por SARS-CoV-2” (PASC, do inglês) ou pós-COVID agudo - da semana 5 à semana 12 após o início dos sintomas e 2) pós-COVID crônico - duração superior a 12 semanas.” Ele também pontua sobre a necessidade de determinar o padrão (flutuante ou persistente) e a natureza de cada sintoma específico²³. O Instituto Nacional de Saúde e Excelência Clínica (NICE) define COVID longo como os sintomas que continuam ou se desenvolvem após a infecção aguda por SARS-CoV-2 e que não podem ser explicados por um diagnóstico alternativo; ele inclui 1) COVID-19 sintomático em curso - de 4 a 12 semanas após a infecção e 2) síndrome pós-COVID-19 - além de 12 semanas⁴. Já a definição dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA o descreve COVID longo como sequelas que se estendem além de 4 semanas após a infecção inicial⁴.

A SII-PI não é nenhuma novidade científica, sua primeira descrição formal foi publicada em 1962 por Chaudhary e Truelove²⁴. Uma revisão sistemática recente de 45 estudos, incluindo 21.421 indivíduos com enterite acompanhados por 3 meses a 10 anos, encontrou uma prevalência combinada de SII de 10,1% em 12 meses após uma enterite infecciosa²⁵.

A taxa de SII pós-COVID-19 entre os oito estudos incluídos variou de 0,6%19 a 11,6%¹⁸. Alguns estudos teceram críticas aos critérios de Roma IV em virtude de sua baixa sensibilidade. Em 2022, a Fundação Roma propôs uma modificação dos critérios para a prática clínica, onde um diagnóstico de DGIF ainda pode ser feito se 1) a natureza dos sintomas corresponder aos critérios diagnósticos de DGIF do Roma IV e 2) os sintomas forem incômodos interferindo na qualidade de vida. Sendo assim, uma frequência mais baixa e uma duração mais curta (8 semanas ou mais) do que as exigidas pelos critérios tradicionais são permitidas, desde que haja confiança clínica de que outros diagnósticos foram suficientemente descartados²². No E4¹² a taxa de SII pós-COVID-19 aumentou de 5,8% para 26,9% aos 6 meses. Entretanto, para fins de pesquisa os critérios de Roma IV padrão precisam ser seguidos²².

No geral, sexo feminino, enterite clinicamente grave, uso de antibióticos durante o tratamento e sofrimento psicológico estão associados a um maior risco de SII-PI²⁵. Os resultados acerca dos fatores de risco para COVID-19 longo são bastante conflitantes, alguns autores já defendem que qualquer paciente pode desenvolvê-la, independentemente da gravidade da infecção e do tratamento recebido⁴.

Em três estudos (E1¹⁵, E5¹⁸, E7²⁰) o sexo feminino esteve mais associado ao desenvolvimento de SII pós-COVID-19.

Em relação à gravidade da COVID-19, enquanto no E8²¹ COVID-19 moderado-grave foi associado ao desenvolvimento de DGIF (p<0,01) o E5¹⁸ não identificou diferença significativa entre os participantes em termos de gravidade da COVID-19, mas não houve comparação com controles. A gravidade da COVID-19 ainda não foi validada como um preditor independente para SII-PI, mas o estudo de Yamamoto et al. identificou que mais pacientes com SII apresentaram COVID-19 grave (exigindo internação em UTI) do que aqueles sem SII²⁶. Diferenças das amostras estudadas impossibilitam uma análise geral fidedigna, E2¹⁶, por exemplo, incluiu apenas pacientes ambulatoriais com a justificativa de que eles poderiam ter uma avaliação mais clara acerca da presença ou ausência de sintomas gastrointestinais durante a infecção.

Um outro fator importante que vem sendo pesquisado é se a presença de sintomas gastrointestinais durante a fase aguda da infecção por SARS-CoV-2 pode predispor o desenvolvimento de distúrbios gastrointestinais a longo prazo. No E3, Austhof e colegas perceberam que os casos com sintomas gastrointestinais agudos durante a COVID-19 tiveram uma chance de sintomas gastrointestinais persistentes 4 vezes maior do que aqueles sem sintomas gastrointestinais agudos¹⁷. Três autores (E1¹⁵, E7²⁰, E8²¹) evidenciaram a presença de sintomas gastrointestinais na fase aguda como preditores para SII, já nos estudos E2¹⁶, E4¹² não houve correlação. Vale salientar que a maioria dos estudos incluídos foram baseados em autorrelatos, sendo necessário que os pacientes fossem capazes de relembrar seus sintomas de fase aguda.

Fatores psicológicos também foram avaliados por alguns e devem ser considerados em virtude do impacto trazido pela pandemia da COVID-19 ao estilo de vida, principalmente nas primeiras ondas¹³. Mesmo com uma atuação viral específica confirmada, eles podem ter contribuído até mesmo como fatores agravantes. História de depressão ou ansiedade foram vistos como fatores de risco independentes para a incidência de SII em E2¹⁶, também estiveram presentes em 27,4% e 36,9% de pacientes do E5¹⁸, respectivamente e os pacientes com COVID-19 do E6¹⁹ também apresentaram níveis mais altos de depressão e ansiedade aos 6 e 12 meses após o internamento.

Acredita-se que não existem mecanismos fisiopatológicos únicos para SII-PI em si, mas sim uma interação entre fatores centrais e periféricos, incluindo alterações na microbiota intestinal, disfunção epitelial e imune, inflamação da mucosa e mecanismos neuromotores¹⁰.

O SARS-CoV-2 utiliza o receptor ECA-2 para adentrar nas células humanas, amplamente expresso nas células do trato gastrointestinal¹¹. A infecção desencadeia um dano citotóxico direto, induzindo à apoptose e aumento da permeabilidade intestinal^13,19. O aumento da permeabilidade é considerado um evento precoce associado à ativação imune de baixo grau, que pode estar presente em pacientes com SII-PI¹⁰.

Postula-se, também, que o estado hiperinflamatório presente na fase aguda da COVID-19 pode persistir e contribuir para o surgimento de sintomas a longo prazo, sobretudo SII-PI^13,19. O sistema imune inato foi descrito como alterado na mucosa intestinal de pacientes com SII-PI¹⁰. Recentemente, notou-se que pacientes com COVID-19 longo podem apresentar células imunes inatas altamente ativas e uma expressão elevada de interferons tipo I e III até mesmo 8 meses após a infecção²⁷.

Um outro fator desencadeante defendido é a alteração da microbiota intestinal pós-COVID-19¹³, com aumento de bactérias oportunistas e diminuição de comensais úteis¹². Indivíduos que desenvolveram SII podem ter sido incapazes de superar a disbiose pós-infecciosa¹⁰. Por fim, componentes psicológicos como estresse, ansiedade e depressão também são pontuados como predisponentes à SII pós-COVID-19¹³.

Aplicabilidade

O fato do COVID-19 longo ser uma condição ainda pouco difundida e bastante recente torna este estudo ainda mais relevante, pois fornece evidências adicionais acerca da problemática. Um ponto positivo é que os estudos incluídos foram baseados nos critérios de Roma IV e mesmo aquele que inicialmente utilizou o III posteriormente comparou os resultados¹⁵. É digno de nota, ainda, que a inclusão apenas de estudos originais acaba por fornecer maiores noções acerca da incidência e fatores de risco associados.

Apesar de uma amostra pequena quando comparada a outros estudos, nossos critérios foram bastante rígidos em busca da presença de SII com início de novo. Durante a busca, muitos manuscritos traziam pacientes já diagnosticados previamente com SII e pontuavam a COVID-19 apenas como um fator de piora de sintomas, alguns deles, inclusive, foram incluídos em determinadas revisões; já outros referiam aumento da taxa de SII durante a pandemia sem necessariamente estar associada ao diagnóstico laboratorial positivo, o que poderia, erroneamente, subestimar ou superestimar a real taxa de SII-PI.

Limitações

Nossa revisão não é isenta de limitações. Não revisamos os estudos sistematicamente e análises multivariadas não foram realizadas. Além disso, por ser um desafio novo aos sistemas de saúde e à comunidade científica, os estudos são bastante heterogêneos no que se refere à metodologia e, consequentemente, isso afeta os resultados. Nem todos os fatores de risco foram avaliados igualmente dentre os estudos e poucos trouxeram grupos controle. A presença de depressão e ansiedade, fatores predisponentes conhecidos para SII, também podem ter sido causa do desenvolvimento da síndrome nestes pacientes e não podem ser descartados. Em grande parte deles as entrevistas foram realizadas por telefone e questionários on-line, dessa forma, o autorrelato abre espaço para viés de memória e aumento de subjetividade.

CONCLUSÃO

Os resultados obtidos por esta revisão permitem crer que a COVID-19 pode estar associada ao surgimento de SII de novo, contudo, são necessários estudos maiores, prospectivos e controlados para investigar os efeitos a longo prazo da COVID-19, a fisiopatologia subjacente e o manejo apropriado.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  20 Nov 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  09 Jul 2023
• Aceito
  29 Set 2023