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Revelações da crise: moeda fiduciária e as relações Tesouro/Banco Central

Revelations of the crisis: fiat currency and the Treasury-Central Bank relations

Resumo

The current crisis shed a new light on issues that, previously, were not perceived as serious or important. It highlighted the close ties between fiat currency and government bonds denominated in it or, in other words, the relationship between Treasury and Central Bank. Two ill-conceived views of the "new consensus" on money that had turned into taboos were put in evidence. The first, derived from the quantitative theory, concerns the rejection of unsterilized monetary expansion; the second, directly related to the neoliberal ideology, prohibits or imposes strict limits on the role of central banks in the financing of public debts.

monetary policy; quantitative easing; debt monetization


monetary policy; quantitative easing; debt monetization

Revelações da crise: moeda fiduciária e as relações Tesouro/Banco Central

Revelations of the crisis: fiat currency and the Treasury-Central Bank relations

Maryse Farhi

Professora do Instituto de Economia da Unicamp. E-mail: maryse.farhi@gmail.com

ABSTRACT

The current crisis shed a new light on issues that, previously, were not perceived as serious or important. It highlighted the close ties between fiat currency and government bonds denominated in it or, in other words, the relationship between Treasury and Central Bank. Two ill-conceived views of the "new consensus" on money that had turned into taboos were put in evidence. The first, derived from the quantitative theory, concerns the rejection of unsterilized monetary expansion; the second, directly related to the neoliberal ideology, prohibits or imposes strict limits on the role of central banks in the financing of public debts.

Keywords: monetary policy; quantitative easing; debt monetization.

JEL Classification: E580.

INTRODUÇÃO

A grave crise financeira iniciada em meados de 2007 no segmento de crédito imobiliário nos EUA adquiriu contornos sistêmicos após a falência do banco de investimentos Lehman Brothers em setembro de 2008. Ela vem se prolongando desde então, provocando acentuada deterioração das condições macroeconômicas. A esperada recuperação econômica mostrou-se anêmica, devido às políticas macroeconômicas contracionistas na Europa e à necessidade das instituições financeiras e das famílias nas economias desenvolvidas de prosseguir no processo de redução de suas dívidas.

Crises dessa magnitude têm o poder de trazer à tona disfunções econômicas que passam praticamente despercebidas nos períodos de bonança ou jogar nova luz sobre questões que, anteriormente, não eram percebidas como sendo graves ou importantes. Assim, a crise evidenciou a estreita vinculação entre a moeda fiduciária e os títulos da dívida pública nela denominados, ou, em outras palavras, as relações entre Tesouro e Banco Central.

Essa vinculação contraria frontalmente as diretrizes das políticas macroeconômicas recomendadas pelo mainstream econômico. Antes da crise, elas decorriam do "novo consenso", fruto da convergência entre as correntes novoclássica e novokeynesiana em torno da crença de que, de um lado, a economia de mercado seria capaz de levar à estabilidade macroeconômica e de que, de outro lado, as políticas econômicas seriam ineficientes porque antecipadas pelos agentes. Esta crença encontrou respaldo político nos governos de R. Reagan e de M. Thatcher. A crise evidenciou o equívoco de duas visões desse "novo consenso" sobre a moeda que se transformaram em verdadeiros tabus. A primeira, oriunda da visão de Fisher (1911) e Von Mises (1912) da teoria quantitativista, diz respeito à rejeição de emissões não esterilizadas de moeda; a segunda, diretamente relacionada ao ideário neoliberal1 1 Esse termo é muito mais empregado na análise política, já que inexiste uma escola de pensamento econômico que se autointitule neoliberal, mas sua utilização impõe-se na discussão da relação entre Estados e mercados, já que permeou o conjunto das decisões políticas que deram origem ao contexto da crise. A partir desta perspectiva, o Estado deve pautar sua atuação com o fim de criar e proteger a ordem competitiva. A competição é realmente o princípio central do neoliberalismo. Qualquer restrição sobre a concorrência, qualquer posição protegida, qualquer "privilégio" obtido é, segundo a perspectiva neoliberal, economicamente ineficiente e deve ser combatida (Hayek, 1960; Von Mises, 1940). , proíbe ou impõe estritos limites à atuação dos bancos centrais no financiamento das dívidas públicas.

O primeiro tabu foi rompido após a crise. Inicialmente, os bancos centrais das economias desenvolvidas reduziram as taxas básicas de juros para níveis próximos de zero. Mas, a partir de início de 2011, os limites impostos à política fiscal, seja por opção por uma política de austeridade (Europa), seja em função da perda de maioria do governo no Congresso (Estados Unidos), levaram as autoridades monetárias a recorrer a políticas monetárias "não tradicionais" para impedir que as economias entrassem numa espiral deflacionista. Ditas de afrouxamento quantitativo (quantitative easing ou QE), essas políticas monetárias consistiram em emissão de moeda, através da aquisição de ativos nos Estados Unidos e Inglaterra ou de empréstimos aos bancos no caso da zona do euro.

O objetivo dessas políticas monetárias era de estimular a economia, por intermédio da redução das taxas de juros de longo prazo dos títulos públicos, além de permitir que os investidores privados, que detinham esses títulos, os transformem em dinheiro. Assim, os QEs têm muito pouco a ver com o financiamento do Estado. Suas bases teóricas residem em Milton Friedman, principal economista da corrente monetarista, que argumentava que a Grande Depressão tinha sido, principalmente, causada pela contração monetária, resultante de políticas errôneas do Fed e de uma prolongada crise do sistema bancário. Tornou-se famosa sua afirmação que "a deflação de preços pode ser combatida lançando-se dinheiro de um helicóptero" (Friedman, 1969).

Mesmo que os QEs tenham suscitado diversas previsões, não realizadas até o momento, de repique inflacionário, o simples anúncio dessas emissões maciças de moeda foi recebido com aplausos pelos mercados financeiros. Entretanto, a ruptura desse tabu teve resultados macroeconômicos pouco expressivos, com a notável exceção do aumento dos preços dos ativos. A elevada preferência pela liquidez dos agentes fez com que a moeda emitida ficasse estacionada nas contas reserva dos bancos junto aos bancos centrais, não irrigando a economia. Tornou-se evidente que, para restaurar um crescimento sustentado, a adoção simultânea de uma política fiscal expansionista seria necessária.

O segundo tabu tem se mostrado mais resistente, embora seja o epicentro de discussões que pareciam descartadas há muito tempo, centradas na interação da política monetária com a fiscal. Nelas, a crença de que a monetização do déficit orçamentário é intolerável passa a ser questionada, partindo da constatação de que a simples emissão de quantidades cada vez maiores de dinheiro novo não leva, necessariamente, ao crescimento da economia. Diante disso, a pergunta mais importante é: qual é a melhor maneira de injetar esse dinheiro na economia, a fim de aumentar a demanda agregada?

Grande parte das sugestões centra-se no financiamento direto do Estado pela emissão monetária, através da aquisição dos títulos públicos no mercado primário, ao contrário do que vem sendo feito nos QEs, em que as compras desses títulos se dão exclusivamente no mercado secundário. Dessa maneira, a emissão monetária permitiria uma política fiscal visando ao aumento da demanda agregada, ao mesmo tempo em que manteria as taxas de juros baixas.

A persistência desse tabu remonta à adoção, após a ruptura do sistema de Bretton Woods, quando o ideário neoliberal se impôs, de medidas destinadas a limitar o papel do Estado. Dentre essas medidas, encontra-se a proibição ou a imposição de estritos limites ao financiamento das dívidas públicas pelas autoridades monetárias, adotada num período em que as economias desenvolvidas enfrentavam um período de baixo crescimento e elevada inflação, conhecido como "estagflação". Em função dela, os Estados tiveram de se dirigir, exclusivamente, aos mercados de capitais para obter os recursos monetários de que necessitam2 2 Esse movimento faz parte da segunda etapa da mundialização financeira, descrita por Chesnais (1996, pp. 24-25) como a da desregulamentação e da liberalização financeiras, em que "a formação dos mercados de debêntures liberalizados respondeu às necessidades ou satisfez os interesses de dois importantes grupos de agentes: os governos e os grandes fundos de centralização da poupança". Para o autor, que cita um relatório do FMI (1994), "os mercados de títulos públicos tornaram-se a espinha dorsal dos mercados internacionalizados que negociam títulos portadores de juros". .

Este artigo se propõe a discutir esses dois tabus, no contexto da crise e de seu desenrolar. Ele está dividido em três seções, além desta introdução. A primeira discute a evolução histórica da relação Tesouro e Banco Central; a segunda aborda o quantitative easing e seus resultados. A terceira seção apresenta, à guisa de conclusão, o debate atual sobre a emissão de moeda para o financiamento público como mecanismo anticíclico necessário à retomada do crescimento econômico, caminho mais seguro e mais rápido de saída da crise.

AS RELAÇÕES TESOURO-BANCO CENTRAL

Empréstimos da autoridade monetária ao governo tiveram marcada importância ao longo da história e constituíram a principal razão do surgimento dos bancos centrais. Assim, em 1694, na vigência do padrão-ouro e num contexto em que as finanças públicas estavam muito deterioradas por uma guerra contra a França, foi criado o Banco da Inglaterra (Bank of England, BOE)3 3 Informações disponíveis no site do BOE, em http://www.bankofengland.co.uk/about/Pages/history/default.aspx. , considerado o protótipo dos modernos bancos centrais. No momento de sua criação, o BOE era um banco privado com um capital constituído pelos títulos públicos representativos desse empréstimo e os acionistas eram os que tinham aderido ao empréstimo.

Dessa forma, seu nascimento esteve intimamente ligado à sua função de banco do governo, gerenciando os recursos públicos e fazendo empréstimos ao Estado. Mas, como todo o seu capital era constituído de títulos públicos, para realizar seus negócios, o banco teve de emitir notas bancárias (bank notes, ou papel-moeda) que passaram a circular como moeda no reino. Os empréstimos do BOE ao Estado ampliaram-se, bem como seu capital, donde o fato dele ter recebido a denominação de public exchequer (erário público)4 4 No século XVIII, o BOE agregou as funções de banco dos outros bancos e, um século depois, tornou-se emprestador de última instância. .

Mas esses empréstimos sempre tiveram caráter excepcional ou extraordinário. Com efeito, no padrão-ouro, a política fiscal inglesa manteve-se conservadora, com baixos níveis de dívida e déficits públicos, tornando desnecessário o recurso a amplos financiamentos do BOE. Mesmo durante a Grande Depressão, após a desvalorização da libra em setembro de 1931, a Inglaterra permaneceu circunscrita a essa política fiscal conservadora. O BOE só veio a se tornar um banco público em 1946, após a Segunda Guerra Mundial e só foi proibido de financiar o governo, em fevereiro de 1992, pelo artigo 101º do Tratado de Maastricht (que o Reino Unido deve respeitar, mesmo sem ser membro da zona do euro).

Nos Estados Unidos, no século XIX, o presidente Lincoln emitiu papel-moeda, denominado greenback5 5 Atualmente, na linguagem corriqueira, greenback tornou-se sinônimo de dólar. , para financiar a vitória da União na Guerra Civil. O Federal Reserve só foi criado em 1913, após três frustradas tentativas de implantação de um banco central. Sua criação esteve diretamente relacionada aos sucessivos pânicos bancários que tinham tido lugar nas décadas anteriores6 6 Ver A History of Central Banking in the United States, Federal Reserve of Minneapolis. Disponível em: http://www.minneapolisfed.org/community_education/student/centralbankhistory/bank.cfm. . A partir de 1935, na terceira fase da Grande Depressão, o Fed dedicou-se à manutenção de um mercado "ordenado" para os títulos do governo. "Ordenado" passou a significar um padrão quase fixo de taxas de juros em várias classes de títulos do governo. Quando as taxas tendiam a subir e seu preço de mercado a cair, o Comitê Federal de Mercado Aberto (FOMC) intervinha através da compra, no mercado secundário, de títulos em volumes suficientes para manter as taxas próximas ao nível acordado com o Tesouro.

O resultado foi um financiamento sem precedentes do déficit público, mas que revelou-se muito modesto diante ao que ocorreu na Segunda Guerra Mundial. Nessa época, as autoridades do Tesouro obtiveram a manutenção, pelo Fed, das taxas de juros dos títulos públicos em níveis extremamente reduzidos7 7 Na Segunda Guerra Mundial, o Tesouro determinou um padrão de taxas de juros em três tipos de títulos públicos: 0,35% para os títulos de 90 dias, 0,87% para os de um ano e 2,5% para os títulos de mais longo prazo. . Os gastos de financiamento da guerra geraram fortes aumentos na massa monetária dos Estados Unidos. De novembro de 1941 a agosto de 1945, o agregado M2 (que inclui depósitos à vista, papel-moeda em poder do público e ativos financeiros altamente líquidos como os títulos públicos) cresceu 102% por cento, contra uma inflação acumulada de 63%. Sem a intervenção da autoridade monetária, a venda de títulos pelo Tesouro para financiar os déficits do governo levaria seus preços a cair e suas taxas de rendimento a subir. Para cumprir o compromisso de manter as taxas de juros baixas, o Fed comprou esses títulos no mercado aberto e criou o dinheiro para pagá-los (Melzer, 2002).

Por decisão do presidente Harry Truman e de seu secretário do Tesouro, John Snyder, preocupados com o elevado desemprego e temerosos de um retorno da depressão, esse arranjo foi mantido, com pequenas alterações, após o fim da guerra, apesar da preocupação com a inflação dos dirigentes do Fed. Em março de 1951, após ásperas disputas, interveio o Acordo Tesouro-Fed (Treasury-Fed Accord) que eliminou a obrigação do Fed de monetizar a dívida do Tesouro a uma taxa fixa (Hetzel & Leach, 2001). Mas, como assinalado em Cintra (1998): "Até a gestão de Paul Volcker no Federal Reserve, o Tesouro podia, em determinadas circunstâncias, ter acesso direto aos recursos nele disponíveis. Entretanto, esse mecanismo foi considerado responsável por uma criação monetária indesejável que poderia comprometer as metas de controle quantitativo dos agregados monetários. Foi então suprimido em 1981".

Na atualidade, como banco do governo ou seu agente financeiro, o Fed processa uma variedade de transações financeiras, envolvendo trilhões de dólares. O Tesouro dos EUA mantém uma conta-corrente com o Fed, pela qual transitam os depósitos recebidos de impostos federais e os pagamentos do governo. Essa conta pode ficar negativa por um curto espaço de tempo, como ocorreu em finais de 2011, quando o teto de emissão de dívida pública foi atingido e a maioria republicana no Congresso dificultou sua elevação.

Cabe ressaltar que o Fed sempre conservou a possibilidade legal de intervir no mercado secundário de títulos públicos de todos os prazos. A atuação da autoridade monetária nos mercados de títulos públicos de curto prazo faz parte da política monetária "normal". Mas sua intervenção nos mercados de títulos de longo prazo era pouco corrente. Essa possibilidade foi utilizada pontualmente, em períodos em que uma recessão ameaçava agravar-se. Assim, por exemplo, em 1961, o Fed realizou vendas de títulos de curto prazo e compras dos de longo prazo (operação twist). Uma operação semelhante foi utilizada de meados de 2011 a meados de 2012.

Ao iniciar-se a década de 1970, tornou-se patente a erosão do padrão monetário acordado em Bretton Woods (Mazzuchelli, 2008). A crise desse padrão abriu espaço para a consolidação do ideário neoliberal. Ainda na primeira metade da década, num contexto de inflação elevada e baixo crescimento econômico, vários países adotaram leis proibindo o financiamento da dívida pública por seus bancos centrais. Assim, em 1973, a França adotou a Lei 73-7 de reforma do banco central em que constava tal proibição. Essa lei foi ab-rogada em 1993 para ser substituída pelo Tratado de Maastricht.

A partir de então, as operações de open market das autoridades monetárias concentraram-se nos títulos de curtíssimo prazo. A taxa de juros desses títulos - designada pelo "novo consenso macroeconômico" como "taxa básica" - passou a ser determinada por essas operações e tornou-se o principal instrumento de política monetária8 8 A política monetária quantitativista revelou-se pouco eficiente contra a inflação, em função da introdução de inovações financeiras que tornaram os agregados monetários instáveis. Diante desse insucesso, a matriz analítica neoliberal aderiu às diretrizes de políticas macroeconômicas recomendadas pela convergência entre as correntes novoclássica e novokeynesiana em torno da crença de que, no longo prazo, as políticas macroeconômicas são ineficientes e a economia tende ao equilíbrio (Lucas & Sargent, 1978). No curto prazo, admitem que a política monetária, via fixação da taxa de juros, seria a responsável por levar o produto efetivo a convergir para o produto potencial, assegurando o equilíbrio da economia (Taylor, 1993; Clarida et all, 1998, 2000). Tal convergência passou a ser conhecida pelo nome de "novo consenso macroeconômico". . As operações com os títulos de prazos mais longos que podiam ser considerados como financiamento do Estado - quando a autoridade monetária comprava os títulos no mercado secundário, injetando dinheiro na economia - foram deixadas de lado. Mesmo nos países que não transformaram a proibição do financiamento da dívida pública em lei, os bancos centrais passaram a atuar da mesma forma que os demais.

Esses mesmos princípios guiaram a criação, em 1º de junho de 1998, do Banco Central Europeu. Por exigência da Alemanha, no quadro institucional definido pelo Tratado de Maastricht, o único objetivo do BCE é a estabilidade dos preços. Em consequência, contrariamente a outros bancos centrais de países desenvolvidos, o BCE não é designado explicitamente como emprestador de última instância. A crise mostrou que essa função assume a maior importância no caso de moedas absolutamente fiduciárias, como no sistema monetário contemporâneo. Esse caráter fiduciário repousa na confiança dos agentes na continuidade da utilização de uma moeda sem lastro. Um dos mais importantes fundamentos dessa confiança é a certeza, mesmo difusa, de que, se necessário, a autoridade monetária emitirá moeda para suprir as necessidades da economia e/ou para permitir ao Estado cumprir suas obrigações financeiras.

Os investidores assumiram que estava implícito que, se fosse necessário, o BCE agiria como emprestador de última instância e assumiram imensas posições em ativos denominados em euro, consagrando essa moeda como a segunda moeda reserva do mundo. O pânico desencadeou-se quando se deram conta de que essa expectativa estava longe de corresponder à atuação do BCE.

Os governos nacionais dos países-membros da zona do euro pouco podiam fazer9 9 Deve ser assinalado que, embora os membros da zona do euro tenham concordado em seguir orientações gerais comuns, todos os pacotes de assistência foram desenvolvidos, financiados e geridos pelas autoridades nacionais. . Com a união monetária, os bancos centrais nacionais perderam tanto a atribuição de formular e executar a política monetária, quanto a de emitir moeda e executar a política cambial (Scheller, 2006). "Essencialmente, o euro é uma moeda estrangeira para todos os países da Zona Euro. Ele impõe taxas de câmbio rígidas, independentemente da sua condição e das realidades subjacentes, e priva-os de autonomia monetária. Neste sentido, as funções hoje do euro se assemelham muito ao papel do dólar para a Argentina entre 1991 e 2001, quando a taxa de câmbio foi fixada pela própria Constituição em um peso por dólar" (Aglietta, 2012).

Desconsiderados pelo mainstream macroeconômico, empréstimos dos bancos centrais aos governos vinham recebendo pouca atenção na literatura econômica, especialmente desde o início da década de 1990. Naquela época, os estudos abordavam essencialmente a dimensão comparativa entre os países das implicações macroeconômicas e institucionais do financiamento do banco central ao governo. Leone (1991) pesquisou as restrições legais aos empréstimos do banco central para o governo em mais de 100 países e explorou suas consequências macroeconômicas em um grupo de 44 países desenvolvidos e em desenvolvimento. Outros estudos abordaram a base institucional para empréstimos do banco central ao governo e seu impacto na independência dos bancos centrais. Cottarelli (1993) examinou o modelo apropriado para restringir empréstimos do banco central ao governo no momento da elaboração da legislação que criou o BCE e que limitou sua capacidade de fornecer crédito para os governos. De um perspectiva mais acadêmica, Grilli et al. (1991) e Cukierman (1998) incorporaram restrições sobre empréstimos do banco central para o governo em seus respectivos índices de independência do banco central.

Mais recentemente, a discussão das regras que regem os empréstimos do banco central ao governo foi retomada como parte de um projeto de boas práticas para a governança dos bancos centrais (BIS, 2009). A recomendação básica foi a generalização das restrições ao financiamento do banco central ao governo, estabelecendo-as explicitamente, para não perturbar o objetivo dos bancos centrais de preservar a estabilidade dos preços. Nos dois últimos anos, textos do FMI (Jácome et al., 2012) e do Federal Reserve (Thornthon, 2010) foram consagrados à discussão desse tema.

Seria de esperar que esses textos mais recentes abordassem a questão de outro ângulo, em função da crise e das políticas monetárias não tradicionais que os bancos centrais adotaram após as taxas de juros se aproximarem do marco zero10 10 Jácome et al. (2012) tomam a precaução de alertar que seu texto não aborda o apoio financeiro dos bancos centrais ao Estado em períodos de crise. . Mas, fiéis às abordagens anteriores, as principais conclusões desses estudos são: (i) na maioria dos países avançados, bem como nos emergentes que adotaram o regime de câmbio flutuante, os bancos centrais estão proibidos de financiar as despesas do governo; (ii) em diversos países emergentes o financiamento de curto prazo é permitido, com o fim de suavizar as flutuações das receitas fiscais. Os termos e as condições desses empréstimos são estabelecidos por lei, de forma a limitar seu montante a uma pequena proporção anual das receitas do governo. Tais empréstimos são concedidos a taxas de juros de mercado, com vencimento no mesmo ano fiscal; e (iii), na grande maioria dos países, o financiamento de outras áreas do Estado, tais como governos provinciais e empresas públicas, está expressamente proibido.

QUANTITATIVE EASING

Apesar da proclamada unanimidade na inserção nas leis dos limites impostos à atuação dos bancos centrais no financiamento dos governos, existem importantes diferenças nos textos de lei e em suas interpretações, levando alguns bancos centrais a terem maior flexibilidade. A partir de 2010, após terem reduzido as taxas básicas de juros a níveis próximos de zero, o Federal Reserve (Fed) e o Banco da Inglaterra praticaram políticas monetárias "não tradicionais". Conhecidas como "afrouxamento quantitativo" (quantitative easing ou QE), elas consistem em operações de compra nos mercados secundários de grandes volumes de títulos públicos de longo prazo, que, segundo Moessner e Turner (2012), "eles normalmente evitariam". Já o Banco Central Europeu tem uma visão claramente mais restritiva que as autoridades monetárias das demais economias desenvolvidas. O artigo 101 do Tratado de Maastricht11 11 Esse artigo passou a ser o artigo 123 da Versão Consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. proíbe que ele conceda créditos a qualquer instituição, autoridade ou entidade do setor público da Comunidade ou dos Estados-membros, excetuando as instituições de crédito público, bem como compras no mercado primário de títulos de dívida emitidos por elas. O artigo 21 do Protocolo 4, intitulado Estatuto do Sistema de bancos centrais e do Banco Central Europeu12 12 Documento disponível no Jornal Oficial da União Europeia, em http://www.ecb.int/ecb/legal/pdf/c_08320100330pt_ecb_statute.pdf , diz que "é proibida a concessão de créditos sob a forma de descobertos ou sob qualquer outra forma, pelo BCE ou pelos bancos centrais nacionais, em benefício de instituições, órgãos ou organismos da União, governos centrais, autoridades regionais, locais ou outras autoridades públicas, outros organismos do setor público ou a empresas públicas dos Estados-membros; é igualmente proibida a compra direta de títulos de dívida a essas entidades, pelo BCE ou pelos bancos centrais nacionais"13 13 Esta mesma clausula foi retomada no Tratado de Lisboa, artigo 123. .

Entretanto, não há proibição explícita dessas compras no mercado secundário. Sob a presidência de Jean Claude Trichet, o BCE adquiriu, entre maio a julho de 201014 14 Enquanto a Grécia possuía grau de investimentos, os seus títulos serviam de colateral nos empréstimos realizados pelos bancos junto ao BCE para obtenção de liquidez. Com o rebaixamento da classificação de risco soberano para grau especulativo, esses títulos deixaram de ser elegíveis para servir de colateral nas operações de refinanciamento. Mas, as consecutivas reduções nas classificações de risco dos outros países dos GIIPS levaram o BCE a voltar a aceitar seus títulos como garantia de empréstimos aos bancos. , € 60,1 bilhões de dívida soberana em poder dos bancos. Esse tipo de operação foi criticado pelo então presidente do Bundesbank, Axel Weber, que alertava para os efeitos inflacionários dessa ação de socorro indireto aos países da periferia do euro. No início de agosto de 2011, com o aprofundamento da crise e as primeiras indicações de contágio da Espanha e da Itália, o BCE retomou e ampliou o programa de compra de bônus soberanos no mercado secundário, realizando, nos quatro meses seguintes, a aquisição de € 143,2 bilhões. Mas, em setembro de 2011, um alto dirigente do BCE, Jünger Stack, representante da Alemanha, demitiu-se em protesto contra essas aquisições, tornando mais difícil seu prosseguimento.

Ante as pressões da Alemanha, e para reafirmar seu compromisso com a ortodoxia monetária, o novo presidente do BCE, Mario Draghi, afirmou, no dia 8 de dezembro de 2011, que as compras do BCE de títulos públicos no mercado secundário eram limitadas e temporárias, reiterando que a instituição não podia atuar fora de seu mandato de manter a estabilidade dos preços. Assim, mesmo num contexto de crise, não se verificava o necessário consenso para que o BCE atuasse de forma mais flexível.

Com o fim de injetar dinheiro na economia, a autoridade monetária europeia teve, então, de lançar mão das chamadas "operações de refinanciamento de longo prazo" (Long-term Refinancing Operations, LTRO), nas quais emprestou dinheiro aos bancos com taxas de juros de 1% ao ano por um prazo de três anos. A primeira rodada foi realizada em 21 de dezembro de 2011, quando 523 bancos tomaram € 489 bilhões, a segunda em 28 de fevereiro de 2012, com empréstimos de € 529 bilhões a 800 bancos. Com essas operações, os ativos no balanço do BCE registraram significativo aumento (para € 3 trilhões), ultrapassando os do balanço do Fed no mesmo período (US$ 2,9 trilhões)15 15 Os ativos desses bancos centrais já equivalem a 20% de seus respectivos PIBs, quando, em 2007, só representavam cerca de 5%. . Através deles, vários países em dificuldades ressuscitaram o mecanismo de financiamento de suas dívidas através de empréstimos bancários ou da compra de seus títulos pelos bancos nacionais, vigente antes da ruptura dos acordos de Bretton Woods. Com recursos emprestados pelo Banco Central Europeu (BCE), os bancos, inclusive aqueles com balanços fragilizados, adquiriram esses títulos, aceitos como garantia pela autoridade monetária. Com ou sem pacotes de resgate aprovados, países como Grécia, Irlanda, Itália, Portugal e Espanha passaram a depender dos empréstimos bancários, para mantê-los funcionando, num momento em que os investidores privados não tinham certeza sobre a sua solvência.

É significativa a diferença de qualidade entre os ativos dos dois bancos centrais mais importantes do mundo, oriunda de diferenças na flexibilidade da atuação da autoridade monetária, mas também de distintos objetivos determinados por conjunturas diferentes. O Fed comprou títulos públicos de longo prazo (títulos vinculados a hipotecas e títulos públicos), enquanto o BCE buscava atenuar as pressões dos mercados nos financiamentos das dívidas públicas. Mas, ao invés de fazê-lo adquirindo títulos públicos, a falta de flexibilidade do BCE levou-o a conceder empréstimos aos bancos. Em algum momento, tais empréstimos terão de ser ressarcidos, mas, enquanto isso não ocorre, o BCE estará exposto ao risco de crédito desses bancos. No caso de Federal Reserve, de acordo com as normas contábeis do FMI, os títulos públicos adquiridos e presentes em seus ativos fazem parte da dívida pública bruta, mas eles claramente constituem uma redução na dívida pública líquida. Assim, os títulos públicos de longo prazo que constavam em seu balanço no final de 2012, no valor de US$ 1,8 trilhão, eram equivalentes a 11% do total da dívida pública no mesmo período. Em decorrência, uma dívida bruta de 100,8% do PIB passou a ser de 89,7% do PIB em termos líquidos.

Ambas as formas de afrouxamento quantitativo apresentam um importante problema em comum que tem impedido que essas políticas monetárias atinjam seus objetivos. A maior parte do dinheiro emitido está sendo mantido pelos bancos em contas reserva junto às autoridades monetárias, enquanto outra parte, com menor volume, foi utilizada pelos bancos para comprar os títulos emitidos pelos governos rendendo juros bem mais elevados. Para tentar reverter essa situação e possibilitar a entrada do dinheiro novo na economia pela via do crédito, em julho de 2012 o BCE decidiu reduzir a zero os juros que pagava aos depósitos nas contas reserva dos bancos de, na expectativa que uma fatia mais substancial dos empréstimos do BCE passasse a irrigar os mercados de crédito, de títulos públicos e de ativos. Mas, um ano mais tarde, o crédito bancário europeu continua entravado pela alta preferência pela liquidez dos bancos.

No primeiro semestre de 2012, a deterioração da situação econômica na zona do euro e o baixo crescimento dos EUA fizer que a discussão da necessidade de novos afrouxamentos quantitativos voltasse à tona. Há anos, políticos e investidores vinham se perguntando o que aconteceria se um país de grande porte da zona do euro, tal como a Espanha ou a Itália, não conseguisse tomar empréstimos em grandes quantidades, já que os mecanismos de resgate europeus seriam absolutamente insuficientes para fazer frente a essa situação. No primeiro semestre de 2012, essa temida ocorrência se fez presente, fazendo pairar ameaças concretas sobre a capacidade desses países de refinanciarem suas dívidas, mas, igualmente, sobre a dos mecanismos de resgate europeus, cujos fundos poderiam ser insuficientes para lidar com a situação.

A situação foi agravando-se ao longo do ano. As taxas de juros demandadas pelos investidores para os títulos da Espanha e, em menor medida, da Itália, elevaram-se para níveis próximos aos que tinham sido considerados insustentáveis nos casos da Grécia, Irlanda e Portugal. Na Espanha, a situação foi agravada, no plano fiscal, pelas dificuldades financeiras das regiões - relativamente autônomas em relação ao governo central - e por uma crise bancária, em função do estouro da bolha imobiliária. Essa conjunção levou a acentuada fuga de capitais do país, agravando ainda mais a situação dos bancos. Mas o governo espanhol, que tem adotado medidas impopulares de redução de gastos e aumento dos impostos, resistiu a formalizar um pedido de resgate, temeroso da imposição de medidas ainda mais drásticas de ajuste fiscal.

As percepções tornaram-se cada vez mais negativas sobre as perspectivas da zona do euro e sobre a continuidade da moeda em si. Em 26 de julho de 2012, o presidente do BCE, Mario Draghi, anunciou que o conselho de diretores do BCE decidira, de forma unânime, "fazer tudo o que fosse necessário para preservar a zona do euro"16 16 Íntegra do discurso disponível em: http://www.ecb.int/press/key/date/2012/html/sp120726.en.html. . A proposta do BCE centrava-se na compra de títulos públicos dos países sob os quais paira a desconfiança dos mercados. A imprensa especializada rapidamente alcunhou essa proposta de "grande bazka". Procurando justificar essa nova abordagem do ponto de vista da ortodoxia econômica, Draghi acrescentou que, "na medida em que o tamanho do spread soberano dificulta o funcionamento do canal de transmissão da política monetária, ele enquadra-se no nosso mandato". Ao afirmar "acreditem em mim, temos meios suficientes para isso", o presidente do BCE também advertiu que era "inútil especular contra o euro", porque é uma moeda "irreversível".

As reações dos mercados financeiros foram de extremo alívio, desencadeando forte alta nas bolsas de valores e, mais importante, queda nas taxas de juros dos títulos públicos espanhóis e italianos, que perduraram até meados de 2013. Tais reações, relativamente duradouras, reforçam a interpretação de que a emissão monetária para financiar as dívidas públicas e/ou para assegurar o reembolso dos títulos emitidos pelos devedores soberanos está na base da confiança dos investidores.

Entretanto, a proclamada unanimidade em torno de novas medidas do BCE durou pouco. A principal oposição veio do Banco Central alemão, cujo presidente, Jens Weidmann, apontou o perigo do "financiamento do BCE transformar-se num vício, comparável às drogas" (Reiermann et al., 2012). O ministro das finanças alemão, Wolfgang Schaeuble, também atacou o BCE, afirmando que a "política monetária não pode resolver os problemas fiscais" e "falsos incentivos" devem ser evitados na crise do euro. Ademais, Schaeuble sugeriu que a União Europeia poderá se tornar "irrelevante" se não conseguir se unir (Koukoulas, 2012).

Após a reunião do comitê diretor do BCE de 06/09/2012, Draghi detalhou as medidas que acabaram sendo oficialmente adotadas, com um voto contrário, presumidamente da Alemanha, recebendo o nome de Outright Monetary Transactions (OMT) ou transações monetárias diretas17 17 Íntegra disponível em: http://www.telegraph.co.uk/finance/financialcrisis/9525451/Mario-Draghispeech-the-full-text.html. . Desenhado para ser executado no mercado secundário, o programa compreende compras de títulos de até três anos dos países que pedirem resgate e aceitarem as condições impostas, para lidar com distorções do mercado de títulos e temores "infundados" de investidores sobre a sobrevivência do euro. Os títulos que forem adquiridos pelo BCE não terão prioridade de reembolso (senioridade), equiparando-os aos que estão nas carteiras privadas. O fundo permanente de resgate europeu (European Stability Fund, ESF) que, após o voto favorável da Corte Constitucional alemã, foi lançado em outubro de 2012, também poderá participar nessas compras. Ademais, o presidente do BCE declarou que as compras de títulos serão, teoricamente, ilimitadas.

Com um anúncio desse tipo, Mario Draghi busca obter credibilidade, o que significaria menor necessidade de dinheiro novo, devido aos temores do mercado de enfrentar a autoridade monetária, ao contrário de intervenções limitadas que têm seus limites testados, ao longo de certo tempo. Essa estratégia pode ser comparada à acumulação de um arsenal nuclear, para o fim de dissuasão e não o de desencadear uma guerra de exterminação.

Entretanto existe uma contradição entre esse aspecto do programa e o anúncio de que as compras serão "esterilizadas", retirando a mesma quantidade de moeda emitida para essas compras de títulos "de outro lugar no sistema financeiro europeu". Donde a constatação de que existe um limite para essas compras, dado pelo atual balanço do BCE. Na prática, isso significa que o BCE deverá reduzir os empréstimos aos bancos feitos no LTRO, de forma a não emitir mais dinheiro novo. Para alguns analistas, a esterilização é principalmente destinada a aplacar as críticas feitas pelo Banco Central alemão.

Em setembro de 2012 foi a vez de Ben Bernanke anunciar novo programa que tem sido chamado de quantitative easing 3 (QE3)18 18 Íntegra disponível em: http://www.telegraph.co.uk/finance/economics/9541838/Fed-launches-QE3-the-full-statement.html. . Contrariamente ao BCE, que submeteu suas compras às condicionalidades dos pedidos de resgate, o Fed propõe-se a adquirir US$ 40 bilhões de dólares por mês em títulos lastreados em hipotecas, além de US$ 45 bilhões de títulos públicos. Em nome do mandato dual da autoridade monetária americana de perseguir o crescimento econômico e a estabilidade de preços, essas compras se estenderão pelo tempo necessário para que "o nível de desemprego ceda significativamente". Ademais, o presidente do Fed comprometeu-se a manter os juros baixos até, ao menos, meados de 2015.

Os mercados financeiros reagiram, novamente, com alívio e entusiasmo às decisões das duas autoridades monetárias, apesar da existência de dúvidas sobre sua eficiência. As maiores dúvidas dizem respeito ao BCE. Para beneficiar a Espanha e a Itália, a implantação de seu programa depende de um pedido de resgate desses dois países e de sua aceitação das draconianas condições impostas pela troika (BCE, FMI e Comissão Europeia). Quanto ao Fed, seu primeiro objetivo parece ter sido atingido: os preços de vários ativos subiram, beneficiando diretamente os investidores. De acordo com a declaração de Ben Bernanke: "Uma das principais preocupações das empresas é que não há demanda suficiente. Se as pessoas sentem que a sua situação financeira é melhor porque seus ativos se valorizam, elas estão mais dispostos a sair e gastar, o que vai prover a demanda que as empresas precisam, a fim de estarem dispostas a contratar e a investir" (Kesarios, 2012). Essa descrição corresponde ao chamado canal de riqueza de transmissão da política monetária. Mas, para que ele possa ter o efeito desejado, é necessário que essa melhora nos preços seja percebida como um ganho permanente, o que ainda está longe de ser o caso. Mais importante ainda, o QE3 pode ser insuficiente para compensar os efeitos negativos esperados da restrição fiscal em 2013.

Em ambos os casos, a maior parte dos analistas concorda que tais programas podem ser úteis para ganhar tempo e evitar maior degradação da situação. Mas esses mesmos analistas apontam que essas políticas monetárias pouco podem fazer para restaurar um crescimento sustentado. Para isso seria necessário que houvesse a adoção simultânea de uma política fiscal expansionista.

Em dezembro de 2012, eleições gerais no Japão deram uma esmagadora vitória ao Partido Liberal Democrático, de oposição, cuja campanha foi centrada na necessidade de acentuar fortemente o caráter anticíclico das políticas monetária e fiscal. Shinzo Abe, novo primeiro-ministro, anunciou um programa, apelidado de "abenomics", que contém uma meta de inflação de 2%, contrastando com a deflação que vem se arrastando por vários anos, e despesas fiscais e emissão monetária muito mais intensas do que anteriormente. Após a posse do novo governo, a primeira reunião do Banco do Japão, sob nova presidência, em abril de 2013, definiu compras de ativos no valor US$ 75 bilhões por mês, com uma meta total de US$ 1,4 trilhão. Esse é um movimento enorme, considerando que o Japão tem cerca de um terço do PIB americano. A vitória da oposição levou, em poucos meses, a uma desvalorização de 12% da taxa de câmbio do iene e à alta nos preços das ações, em particular das empresas exportadoras.

A desvalorização do iene japonês foi mais significativa do que as registradas em relação às moedas dos demais países que adotaram o afrouxamento quantitativo. Essa desvalorização faz parte do programa antideflação do governo japonês, mas, no caso, só poderá ter impacto positivo inscrevendo-se no quadro das desvalorizações competitivas, descritas seja como "guerra cambial", seja como "efeito colateral" do excesso de liquidez. Não há dúvidas de que os resultados dessa política serão atentamente acompanhados e poderão influir nas medidas anticíclicas nas demais economias avançadas.

CONCLUSÃO: UM DEBATE EM CURSO: EMISSÃO MONETÁRIA

Num contexto em que a emissão monetária passou a ser vigorosamente aplaudida pelos mercados, renasceu a discussão sobre o destino dessas emissões para que permitam o financiamento dos déficits públicos e, por conseguinte, a utilização de uma política fiscal visando à retomada econômica. Já em agosto de 2012, um editorial do Financial Times (2012) indicava a decepção generalizada com as políticas de "afrouxamento quantitativo" (QE) aplicadas nos EUA, Inglaterra e na zona do euro sem prova substancial de sucesso. Nele, a baixa demanda dos consumidores e a aversão ao risco são identificadas como as principais fontes da tendência deflacionária em muitos países, apesar da queda das taxas de juros de médio e longo prazos. Indica, igualmente, que as políticas de "austeridade fiscal" estão provando ser contraproducentes, elevando os déficits fiscais e a dívida pública em função da contração econômica e consequente redução das receitas fiscais. Em seu lugar, o Financial Times deposita esperanças no fato de que "opções mais radicais que envolvem monetização direta de gastos estão finalmente sendo discutidas". Em outras palavras, a atuação isolada da política monetária é impotente diante da extensão e da profundidade da crise atual.

Uma política fiscal agressiva seria necessária, mas o tamanho das dívidas públicas impede sua implantação. Resta a solução de uma atuação conjunta das políticas fiscal e monetária, com esta última financiando a primeira, ao invés dos mercados de títulos públicos. Este desenvolvimento levanta a perspectiva de que as visões ortodoxas, consideradas políticas adequadas no passado, passaram a não ser mais relevantes para as circunstâncias econômicas atuais e devem, finalmente, ser descartadas.

Poszar e McCulley (2012, p. 2) diagnosticam a fase atual da economia dos EUA e as de quase todos os outros países desenvolvidos como estando mergulhadas numa armadilha da liquidez, definida como uma circunstância de desalavancagem no setor privado, devido aos severos danos causados pela crise em seus balanços. "Em uma armadilha da liquidez, os espíritos animais do setor privado não podem ser revividos por uma redução nas taxas de juros porque não há demanda por crédito. Isto significa que efetivamente a política monetária convencional não funciona em uma armadilha de liquidez." Nessa situação, os autores apontam que "em uma armadilha da liquidez, o papel do banco central se transforma de cuidar para que o governo não tome empréstimos demais para um que almeja ajudá-lo a tomar emprestado e investir, visando manter as taxas de juro de longo prazo baixas através da monetização da dívida, com o objetivo de eliminar os riscos de deflação e de depressão" (p. 4). Essa ideia desafia a ortodoxia que acredita que imprimir dinheiro é inflacionário. Mas isso não é verdade em uma armadilha de liquidez. É

improvável que o dinheiro impresso se torne inflacionário até depois que o setor privado tenha terminado sua desalavancagem e esteja procurando obter fundos novamente. Para reforçar sua análise, eles se baseiam em um discurso feito em 2003 no Banco Central do Japão por Ben Bernanke, antes de assumir a presidência do Fed: "O papel de um banco central independente é diferente em ambientes inflacionistas e deflacionistas. Diante da inflação, frequentemente associada ao excessivo endividamento público e à monetização da dívida pública, a virtude da independência do Banco Central é sua capacidade de dizer 'não' ao governo. No entanto, em uma armadilha de liquidez, é improvável que o excesso de empréstimos do governo e a criação de moeda constituam um problema. Numa armadilha de liquidez, uma cooperação entre as autoridades monetárias e fiscais é tão consistente com a independência do Banco Central quanto qualquer cooperação entre duas nações independentes em busca de um objetivo comum é consistente com o princípio da soberania nacional" (p.4).

Dessa forma, as recentes sugestões de financiamento público pelos bancos centrais se diferenciam do afrouxamento quantitativo que vem sendo praticado no que tange ao destino da nova moeda criada. Wood (2012) aponta que existem duas opções na política de "monetização de gastos". A primeira, associada aos QEs, é uma pura operação de distribuição "a partir de um helicóptero" do dinheiro novo criado pelo banco central para ser depositado em contas bancárias privadas. A constatação é que essa moeda não adentra o circuito financeiro, não volta a irrigar os canais de crédito. Pelo contrário, ela vem sendo mantida pelos bancos, por precaução, junto à autoridade monetária. Na segunda opção, a criação de dinheiro novo serve para financiar diretamente o déficit público. A primeira não faz nada para resolver o problema da "dívida pública", em contraste, a segunda oferece possibilidades de estímulo fiscal sem, segundo o autor, necessariamente implicar em aumento da dívida pública. Nessa segunda opção, o estímulo fiscal pode ser substancial e eficaz, já que o dinheiro novo seria transmitido através dos canais de política fiscal para onde fosse mais necessário e onde as propensões marginais a consumir e a gastar fossem maiores.

Para ser eficiente do ponto de vista do crescimento econômico, a emissão monetária para aquisição de títulos públicos nos mercados secundários implica volumes de moeda muito maiores do que se ela ocorresse no mercado primário. Com efeito, mercados secundários negociam os estoques em mãos de investidores privados, enquanto no mercado primário somente são ofertados os títulos necessários ao financiamento do déficit público ou à rolagem dos títulos que estão vencendo. Se a autoridade monetária emitisse moeda para pagamento dos títulos vencendo, o impacto na dívida pública da atuação conjunta das autoridades fiscais e monetárias no mercado primário se limitaria à diferença entre os resgates e o déficit público.

Cabe ressaltar que o tabu erigido em torno da questão, originado das ideias neoliberais, será extremamente difícil de ser ultrapassado. Mas, nesses tempos em que a austeridade fiscal extremada da Europa (que vem sendo comparada a prescrever um regime de forte restrição calórica a um anoréxico) tem provocado recessão, miséria e desesperança, a discussão em torno da importância da atuação conjunta das políticas monetária e fiscal para a saída da crise reveste-se de urgência.

Submetido: 15/ julho/2013

Aprovado: 28/agosto/2013.

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  • 1
    Esse termo é muito mais empregado na análise política, já que inexiste uma escola de pensamento econômico que se autointitule neoliberal, mas sua utilização impõe-se na discussão da relação entre Estados e mercados, já que permeou o conjunto das decisões políticas que deram origem ao contexto da crise. A partir desta perspectiva, o Estado deve pautar sua atuação com o fim de criar e proteger a ordem competitiva. A competição é realmente o princípio central do neoliberalismo. Qualquer restrição sobre a concorrência, qualquer posição protegida, qualquer "privilégio" obtido é, segundo a perspectiva neoliberal, economicamente ineficiente e deve ser combatida (Hayek, 1960; Von Mises, 1940).
  • 2
    Esse movimento faz parte da segunda etapa da mundialização financeira, descrita por Chesnais (1996, pp. 24-25) como a da desregulamentação e da liberalização financeiras, em que "a formação dos mercados de debêntures liberalizados respondeu às necessidades ou satisfez os interesses de dois importantes grupos de agentes: os governos e os grandes fundos de centralização da poupança". Para o autor, que cita um relatório do FMI (1994), "os mercados de títulos públicos tornaram-se a espinha dorsal dos mercados internacionalizados que negociam títulos portadores de juros".
  • 3
    Informações disponíveis no site do BOE, em
  • 4
    No século XVIII, o BOE agregou as funções de banco dos outros bancos e, um século depois, tornou-se emprestador de última instância.
  • 5
    Atualmente, na linguagem corriqueira,
    greenback tornou-se sinônimo de dólar.
  • 6
    Ver A History of Central Banking in the United States, Federal Reserve of Minneapolis. Disponível em:
  • 7
    Na Segunda Guerra Mundial, o Tesouro determinou um padrão de taxas de juros em três tipos de títulos públicos: 0,35% para os títulos de 90 dias, 0,87% para os de um ano e 2,5% para os títulos de mais longo prazo.
  • 8
    A política monetária quantitativista revelou-se pouco eficiente contra a inflação, em função da introdução de inovações financeiras que tornaram os agregados monetários instáveis. Diante desse insucesso, a matriz analítica neoliberal aderiu às diretrizes de políticas macroeconômicas recomendadas pela convergência entre as correntes novoclássica e novokeynesiana em torno da crença de que, no longo prazo, as políticas macroeconômicas são ineficientes e a economia tende ao equilíbrio (Lucas & Sargent, 1978). No curto prazo, admitem que a política monetária, via fixação da taxa de juros, seria a responsável por levar o produto efetivo a convergir para o produto potencial, assegurando o equilíbrio da economia (Taylor, 1993; Clarida et all, 1998, 2000). Tal convergência passou a ser conhecida pelo nome de "novo consenso macroeconômico".
  • 9
    Deve ser assinalado que, embora os membros da zona do euro tenham concordado em seguir orientações gerais comuns, todos os pacotes de assistência foram desenvolvidos, financiados e geridos pelas autoridades nacionais.
  • 10
    Jácome et al. (2012) tomam a precaução de alertar que seu texto não aborda o apoio financeiro dos bancos centrais ao Estado em períodos de crise.
  • 11
    Esse artigo passou a ser o artigo 123 da Versão Consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
  • 12
    Documento disponível no Jornal Oficial da União Europeia, em
  • 13
    Esta mesma clausula foi retomada no Tratado de Lisboa, artigo 123.
  • 14
    Enquanto a Grécia possuía grau de investimentos, os seus títulos serviam de colateral nos empréstimos realizados pelos bancos junto ao BCE para obtenção de liquidez. Com o rebaixamento da classificação de risco soberano para grau especulativo, esses títulos deixaram de ser elegíveis para servir de colateral nas operações de refinanciamento. Mas, as consecutivas reduções nas classificações de risco dos outros países dos GIIPS levaram o BCE a voltar a aceitar seus títulos como garantia de empréstimos aos bancos.
  • 15
    Os ativos desses bancos centrais já equivalem a 20% de seus respectivos PIBs, quando, em 2007, só representavam cerca de 5%.
  • 16
    Íntegra do discurso disponível em:
  • 17
    Íntegra disponível em:
  • 18
    Íntegra disponível em:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Recebido
      15 Jul 2013
    • Aceito
      28 Ago 2013
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