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Ruth Cardoso

HOMENAGEM

Ruth Cardoso

José Arthur Giannotti

Escolheu viver na claridade, entre os holofotes da vida política e a noite da rotina doméstica. Somente nesse intervalo poderia combinar a determinação de sua vontade e a doçura de seus gestos. Quando estudante, muitos queriam namorar aquela araraquarense bonita e estudiosa, e foi Fernando Henrique quem venceu a disputa. Casaram-se muito cedo, mas, a despeito de passarem juntos quase sessenta anos, nenhum deles perdeu o gosto por suas identidades. Pelo contrário, cada um fez seu próprio caminho, sempre mais largo para que o outro pudesse nele encontrar estâncias de diferenças, de diálogo e de abrigo.

Logo no início da carreira pública de Fernando Henrique, quando este recebeu seu primeiro título da Legião de Honra do Governo Francês, quando cumprimentei o casal, ela me falou: "Não venha me dizer que atrás de um grande homem sempre há uma grande mulher". O sentido era claro: "estou contente e solidária, mas não abro mão de meu próprio caminho." E assim os dois se enriqueceram mutuamente.

De repente ela morre. Que se calem as dores íntimas nas sombras da intimidade. Mas seu velório na Sala São Paulo e depois seu enterro no Cemitério da Consolação fundiram numa única tristeza amigos íntimos e distantes, admiradores e surpreendidos, colaboradores e adversários. Era como se estivéssemos nos anos setenta, todos nós nos fundindo na perda da amiga, nos solidarizando diante dos mistérios da morte, anulando naquele momento nossas diferenças políticas. São elas tão radicalmente distintas como as pensamos hoje em dia? A confraternização pública não sugere a possibilidade de novas alianças?

Ruth não poderia antever que sua morte se tornasse um fato político. Nunca se furtou a desempenhar o papel público que lhe cabia, no início como professora e pesquisadora. Trabalhou no Departamento de Antropologia da USP até 1964, quando acompanhou o marido no exílio no Chile, sua segunda pátria, como costumava dizer. Permanece na Universidade depois do expurgo de 68, funda o Cebrap, mas somente vem nele trabalhar como pesquisadora em 85, depois que Fernando Henrique dele se ausenta para se entregar inteiramente à política. Aliás, era quase uma regra nessa instituição não contratar marido e mulher. Passa então a dirigir pesquisas, formar alunos, participar de sua administração; somente a abandona quando se vê na obrigação de ir a Brasília para cumprir com dignidade e muita discrição seu papel de primeira-dama.

Sempre tomou distância do jogo político propriamente dito. Quantas vezes sorria diante do bajulador que lhe imputava um enorme poder no governo de FHC? Sabia que tem poder aquele que se lança nas aventuras da luta, no jogo dos convencimentos, das dissuasões e das partilhas. Tudo isso ela acompanhava distante, abrigada no seu próprio refúgio, a Comunidade Solidária.

A substituição da Legião Brasileira de Assistência pela Comunidade Solidária foi uma tentativa de estabelecer uma nova relação do Estado com as comunidades carentes. Em primeiro lugar, a nova instituição nunca foi um organismo de Estado, apenas paralelo a ele, de um lado, alinhavando doadores e recursos estatais, de outro, necessidades e necessitados que se manifestavam expondo as possíveis soluções de suas carências. Desse modo, a intervenção sempre tentou partir de soluções que já estavam sendo armadas do seio das próprias comunidades carentes. A medida da carência não era o Estado, mas a própria comunidade. Basta apontar para essa diferença programática para que se perceba como os modos de intervenção da Comunidade Solidária foram totalmente diferentes daqueles da Bolsa Família, por exemplo. Esta doa, aquela ajudava a crescer.

A diferença na concepção do Estado e da própria democracia se mostra no fenômeno social em que a morte de Ruth Cardoso se converteu. "Um exemplo para o Brasil", gritou alguém no momento em que o caixão descia ao túmulo. Exemplo de cordialidade que sabe, porém, marcar suas diferenças; exemplo de espírito que se torna público pelo que faz à luz do dia. Insistente na demarcação da regras sem transformar, contudo, a diferença em ressentimento.

Cabe não deixar escapar essa exemplaridade, não permitir que essa dobra, que hoje se instala na consciência nacional, venha a ser inteiramente alisada, melada, pelo "lulismo", devorador de qualquer alteridade. Cabe aprofundar essa brecha para uma nova política, impedir que seja absorvida na indiferença do espetáculo cotidiano.

Sim, somos todos amigos, temos memórias em comum, mas os projetos comuns seguem atualmente caminhos diferentes. Não é por isso que deixaremos de ser amigos, mas nem por isso deixaremos de marcar nossas diferenças como adversários. Não entendemos da mesma maneira o que o Estado, a legalidade e a democracia devem ser. Mas também só poderemos captar nossa identidade política se o adversário nos olhar de modo enviesado. Um depende do outro, sem se confundir.

Este texto reelabora trechos publicados na revista "Pesquisa", da Fapesp, e em documento interno do PSDB.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2009
  • Data do Fascículo
    Jul 2008
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