Acessibilidade / Reportar erro

Nina Gorgus: Le Magicien des vitrines. Le muséologue Georges Henri-Rivière

BIBLIOGRAFIA

Nina Gorgus. Le Magicien des vitrines. Le muséologue Georges Henri-Rivière1 1 . Nina Gorgus, Le Magicien des vitrines. Le muséologue Georges Henri-Rivière (Traduzido do alemão por Marie-Anne Coadou. Prefácio de Isac Chiva et Michel Colarde-le). Paris: Editions de la Maison des Sciences de l'Homme, 2003, 416 páginas, com 80 ilustrações em pb e 14 a cores. 38 euros. O original é de 1999, com o título Der Zauberer der Vitrinen: zur Museologie Georges Henri Rivières.

Resenha por Heliana Angotti-Salgueiro

Titular da Cadeira Brasileira em Ciências Sociais Sérgio Buarque de Holanda, associada à Maison des Sciences de l'Homme em Paris, e pesquisadora da The Getty Foundation. E-mail: <angotti@usp.br>

A cena cultural e museológica do período entreguerras e, posteriormente, a fase da Ocupação alemã e da memória de Vichy, na França, vêm sendo objeto de várias publicações nos últimos decênios ligadas a disciplinas que conversam entre si e sob a autoria, além dos franceses, de pesquisadores americanos e alemães, entre outros. Os estudos das biografias intelectuais inscritas em redes de relações contextuais ou ligadas às instituições dominam as abordagens sobre homens cuja história ultrapassa as fronteiras francesas. Dentre esses estudos, destaca-se o da trajetória de Georges Henri-Rivière, enfocando seu papel como museólogo a partir dos anos 1930, sob o belo e adequado título "o mágico das vitrines". O interesse por Rivière e pela sua criação, o Musée des Arts et Traditions Populaires, afirma-se especialmente depois do fechamento deste, em junho de 2005, acompanhado da promessa da mudança das coleções, sob um outro olhar, para um dito Musée des civilisations de l'Europe et de la Méditerranée, e em outro lugar, longe de Paris: Marselha. A polêmica continua ativa em torno do que será este novo museu e quando virá à luz ... se vier.

Mas Nina Gorgus, autora do Magicien des vitrines, não trata da polêmica e, o que é mais paradoxal, um dos autores do prefácio é Colardelle, conservador responsável pelo fechamento e transferência do Musée des Arts et Traditions Populaires, e contrário aos métodos museográficos de Rivière. (Abro um parêntese para observar o quanto foi lamentada no meio intelectual outra transferência, a das coleções do Musée de l'Homme para o Musée des Arts Premiers, cuja concepção também mudou radicalmente, e o quanto essas transferências revelam-se desastrosas, sobretudo para a pesquisa, pois o material fica inacessível durante anos.)

A gestação do museu das ATP (conhecido cognome do Musée des Arts et Traditions Populaires) "foi lenta e dolorosa e seu declínio rápido e conflitante" (cf. Martine Segalen, em obra recente citada adiante). Principal combate da carreira de Rivière, do final dos anos 1930 a 1970, quando finalmente ganha sede própria no Bois de Boulogne, o museu entra em crise no final dos anos 1980, por falta de apoio financeiro da direção dos museus franceses, além de receber poucos visitantes e sua museografia ser considerada "arcaica" desde então.

O livro de Nina Gorgus - originalmente uma tese de doutorado defendida em 1997, na Alemanha, resultado inscrito em um trabalho mais amplo de colaboração científica entre intelectuais franceses e alemães, afirmada em colóquios, estágios e publicações - sintetiza algumas idéias sobre a época, já avançadas em livros que o precedem, a respeito das redes de relações em torno de política e cultura, belas artes e artes populares, identidade e nação, patrimônio e museus. A riqueza de dados sobrepõe-se a uma reflexão pouco pessoal e teoricamente comedida, costurada de citações, diante da escassez de fontes diretas; a autora traz, porém, informações preciosas sobre seu polêmico biografado, ligando-o às vicissitudes da história da museologia na passagem do folclore à etnografia e, depois, à antropologia social.

O percurso desse personagem plural vale uma discussão por uma série de razões: GHR para os íntimos, dandy carismático mas trabalhador incansável, portador de uma concepção de folclore que marcou época, é uma referência quando se trata de "etnomuseologia". Rivière foi o inventor dos museus regionais, dos "museus de sociedade", e mais tarde dos "ecomuseus" provinciais. Burguês mundano na juventude, quando foi músico antes de tudo - organista, pianista de concerto e amador de jazz -, homem do mundo, pois viajante infatigável, professor na École du Louvre, mas partidário do trabalho de campo como base da pesquisa ("observação participante"), acusado de "colabô" e oportunista, pois tudo fez para manter seu museu durante o governo de Vichy. A partir do final dos anos 1940 esteve na direção do ICOM (International Counci of Museums), organização internacional de museus, e, a partir de 1965, passou a ser conselheiro permanente.

Georges Henri-Rivière emerge no grupo do Museu de Etnografia do Trocadero, remodelado para a Exposição Internacional das Artes e Técnicas da Vida Moderna, em 1937. Ligado à vanguarda cultural parisiense dos anos vinte e ao surrealismo, aluno de Alfred Métraux, próximo aos etnólogos Michel Leiris e Marcel Griaule, entre outros, é contratado como assistente do diretor, (o americanista Paul Rivet), daquele que se tornaria o Musée de l'Homme. O projeto da equipe entusiasta visava a "revolucionar" a apresentação de objetos utilitários de "civilizações", inseri-los no seu contexto social e funcional, reconhecendo o homem atrás dos objetos. O local, "nacional e popular", reunido à cultura do cotidiano seriam as bases da concepção do "museu-laboratório" de Rivière, para quem um museu deveria ser um lugar de mediação entre a ciência e o grande público.

O livro trata longamente de fatos desta importante fase do final dos anos 1930, quando Rivière desenvolve seu conceito sobre o Museu das Províncias e do Folclore, museu da "França em miniatura" - para os quais uma das referências era o famoso museu ao ar livre Nordiska, em Skansen, perto de Stockholm, visitado por ele. Rivière viajou muito, conheceu vários museus, desde os americanos - que "colocavam no mesmo plano o prazer e a educação" - aos europeus - voltados para a etnologia e as coleções regionais -, antes de criar o seu memorável Musée des Arts et Traditions Populaires. A autora destaca que Rivière se impressionou também com os museus da União Soviética, malgrado o caráter propagandista do regime e sua mensagem ideológica. Assim, foi capaz de combinar fragmentos procedentes da museologia de vários países, tornando-se logo um expert requisitado nos debates da área, então na ordem do dia.

Também do espírito do tempo é a voga de revalorização da cultura local e regional, o que Anne-Marie Thiesse chama de "vulgarização folclórica", quando grupos de diferentes tendências políticas se servem do regionalismo para construir as identidades locais, usando-o ainda como uma estratégia para vencer a crise econômica e social que dominava a França: a "cultura popular", o patrimônio folclórico e sua entrada nos museus são as bandeiras do governo do Front Populaire, que durou de 1936 a 1938 (cf. p. 97 e ss). Mas nem o regionalismo nem o folclore acabaram sendo unanimemente vistos com bons olhos por todos, pois foram utilizados por diferentes tendências. A revisão oficial do conceito de folclore, por exemplo, foi retardada pela Segunda Guerra, predominando a consideração da cultura rural como guardiã da identidade nacional, o que valeu o apoio do regime de Vichy ao museu dos ATP - atente-se para o fato de que o regionalismo francês é uma questão complexa, pois ele nasce nos meios da esquerda e é depois utilizado pela direita, por Pétain. Enquanto os ATP, na ala oeste do Palais de Chaillot, passam de "vitrine do povo no tempo do Front Populaire a reduto das tradições sustentado pela Confédération paysanne sob Vichy", contribuindo para os estudos de identidade nacional a serviço da Ocupação, no Museu do Homem se formava o primeiro grupo da Resistência.

Voltando a 1937, algumas exposições no âmbito do famoso Congresso Internacional de Folclore são descritas no livro, mostrando a associação interdisciplinar da etnologia e da geografia (refiro-me à exposição La maison rurale en France, organizada de forma didática, exemplar para a época, por Albert Demangeon); conhecem-se, também, posições de historiadores dos Annales, como Marc Bloch e Lucien Febvre, e levantamentos dos folcloristas de vários países, que confirmam o efetivo caráter internacional do evento, ponto de encontro da comunidade científica de ponta da época.

Le magicien des vitrines compõe-se de doze capítulos, com subtítulos claros e indicativos da seqüência mesma da trajetória do trabalho de GHR, com imagens bem escolhidas para reiterar seu percurso, tecendo as redes de relações, nomes e idéias. Temas que entremeiam sua vida, como A Paris dos anos 20, entre música, Arte e etnologia, O museu de Etnografia do Trocadero, O debate museológico no entreguerras, 1937 - a voga do popular, etc. devem atiçar a curiosidade do historiador. Entre os capítulos, destaco o VII, pois este trata da museografia do "fio de Nylon", invenção de Rivière, que significava suspender os objetos como elementos de um sistema de signos dentro de vitrines nas chamadas "galerias culturais", onde a informação se completava com fotos, legendas e textos, tudo em "harmonia de cheios, vazios e cores" (p. 171 ) -poucos objetos, poucos textos e apresentação expressiva, como destaca a autora. Rivière indicava cinco funções interligadas para direcionar um museu: "coletar, conservar, estudar, expor, animar" - este devia funcionar como "lugar de comunicação, centro de educação e de pesquisa" (p. 192).

Entre os Anexos, uma biografia cronológica informa, em apenas duas páginas, os momentos fortes da carreira de Rivière, seguida da lista das exposições que organizou antes de 1948, como diretor dos ATP em vários locais, e, a partir dos anos 1950, no Palais de Chaillot. Inclui-se uma útil bibliografia dos seus artigos e o aparato acadêmico das fontes inéditas, rica bibliografia, índice de nomes e créditos fotográficos. O livro foi editado de forma cuidada pela Maison des Sciences de l'Homme, editora que vem fazendo traduções de trabalhos excepcionais em história e ciências sociais, associados à literatura2 2 . Destaco, entre a traduções do alemão, La Capitale des signes, Paris et son discours (Der Mythos von Paris), de Karlheinz Stierle, com prefácio de Jean Starobinski, editado pela MSH em 2001. e a outros campos do conhecimento, confirmando a importância das abordagens interdisciplinares.

E, como se não bastassem tantas informações interessantes que o livro oferece sobre a história cultural e a museologia francesas, destaco algumas que nos conduzem direta ou indiretamente a figuras e a momentos da nossa história:

  • Há uma foto de Marcel Gautherot (p. 1 06), que mais tarde fará carreira no Brasil, retratando a importante exposição de Albert Demangeon em 1937 (apuramos que Gautherot esteve envolvido com a museografia da época, já que trabalhava como arquiteto-decorador no Museu do Homem e participou ativamente da exposição de 1937 ao lado de fotógrafos como Pierre Verger); há outra foto, de Gautherot, da mesma exposição, abrindo as pranchas do interessante volume Travaux du I.er Congres International de Folklore (publicado em 1938 pelos ATP), congresso de cujo comitê de organização Rivet e Rivière participaram, e que reuniu os maiores intelectuais da época ligados ao assunto; inclui, por exemplo, duas comunicações de Nicanor Miranda - Loisirs ouvriers dans la ville de São Paulo-Brésil, e Etudes cartographiques des tabous alimentaires et des danses populaires -, que, como se sabe, trabalhava com Mario de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo, representando o Brasil nesse congresso do folclore; suas comunicações se inscrevem no que chamamos hoje de cultura imaterial;

  • Paul Rivet, com quem Rivière trabalhou, refugia-se no Brasil em 1940 e viaja pela América do Sul;

  • Rivière dirigiu, em 1958, no Rio de Janeiro, o terceiro seminário internacional do ICOM - O papel dos museus na Educação.

Estas são estórias a aprofundar, ligadas à nossa história, que ganha em não ser vista isoladamente.

Com a biografia intelectual de Rivière, aprende-se muito sobre as transformações da etnologia, sobre os bastidores (nem sempre róseos e inocentes) das políticas públicas culturais ao nascer da nova ciência da museologia, quando se afirma "o papel dos museus na vida moderna" (ver o célebre artigo de René Huyghe, na Revue des deux mondes, em 1937), bem como sobre a evolução de conceitos museográficos.

Assim, o livro Le Magicien des vitrines assinala as dificuldades por que passou o museu das ATP, pois, uma vez ligado à Réunion des musées nationaux, não melhorou de situação financeira, ao contrário - os preconceitos e a mentalidade dos conservadores e historiadores da arte quanto à hierarquia e ao tipo de coleção de um museu da cultura material e arte popular mantiveram-se ao longo do tempo, culminando no seu fechamento em 2005 (a que já fizemos referência). A história dos ATP é muito bem analisada em um outro livro - em contraponto com a visão alemã de Nina Gorgus - de autoria de Martine Segalen, que dirigiu o museu na sua lenta agonia, a partir de 1989.

Compreende-se o naufrágio de museus como o ATP no âmbito de uma política cultural de um Estado-nação empenhado na construção de uma identidade apoiada em "obras-primas" de prestígio internacional e reconhecidas nos anais da história da arte pelos seus valores estéticos; Estado este pouco interessado em objetos de cunho folclórico inscritos na cultura material, cujo valor é documentário, histórico ou sociológico. Pela biografia de Rivière, compreende-se o caráter etnográfico dos objetos, a noção de museu como instrumento educativo, a importância da institucionalização de museus no período en-treguerras, a progressiva estruturação dos mesmos e a profissionalização dos seus quadros.

O interesse deste livro completa-se (ou pode se fazer acompanhar) com outros sobre o período, que indico ao leitor:

  • COURCY, Stéphanie. La vie culturelle sous l'Occupation. Paris: Perrin, 2005.

  • FAURE, Christian. Le projet culturel de Vichy: folklore et révolution nationale 1940-1944. Pref. Pascal Ory. Lyon: Presses universitaires de Lyon et Paris; Ed. du CNRS, 1989.

  • LEBOVICS, Herman. La "vrai" France: les enjeux de l'identité culturelle, 1900-1945. Paris: Belin, 1995 (o original é em inglês americano, de 1992).

  • BETZ, Albrecht; MARTENS, Stefan (org.). Les intellectuels et l'Occupation 1940-1944. Collaborer, partir, résister. Paris: Les éditions Autrement, 2004 (Collection Mémoires).

  • ORY, Pascal. La Belle illusion. Culture et politique sous le signe du Front Populaire, 1935-1938. Paris: Plon, 1994.

  • SEGALEN, Martine. La vie d'un musée. 1937-2005. Paris: Stock, 2005.

  • THIESSE, Anne-Marie. Écrire la France. Le mouvement littéraire régionaliste de la langue française entre la Belle Époque et la Libération. Paris: PUF; Ed. de la MSH, 1997.

Bibliografia apresentada em 7/2006. Aprovada em 8/2006.

  • 1
    . Nina Gorgus,
    Le Magicien des vitrines. Le muséologue Georges Henri-Rivière (Traduzido do alemão por Marie-Anne Coadou. Prefácio de Isac Chiva et Michel Colarde-le). Paris: Editions de la Maison des Sciences de l'Homme, 2003, 416 páginas, com 80 ilustrações em pb e 14 a cores. 38 euros. O original é de 1999, com o título
    Der Zauberer der Vitrinen: zur Museologie Georges Henri Rivières.
  • 2
    . Destaco, entre a traduções do alemão, La
    Capitale des signes, Paris et son discours (Der Mythos von Paris), de Karlheinz Stierle, com prefácio de Jean Starobinski, editado pela MSH em 2001.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Ago 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
    Museu Paulista, Universidade de São Paulo Rua Brigadeiro Jordão, 149 - Ipiranga, CEP 04210-000, São Paulo - SP/Brasil, Tel.: (55 11) 2065-6641 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: anaismp@usp.br