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Dependência e política social no Brasil: reflexões sobre os desafios do Serviço Social* * Este artigo foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Código de financiamento 001.

Addiction and social policy in Brazil: reflections on the challenges of Social Work

Resumo:

Objetivamos realizar uma reflexão sobre os desafios enfrentados para a materialização da política social no Brasil. Embasamo-nos nas leituras de Rui Mauro Marini e Florestan Fernandes quanto ao entendimento da formação econômico-social brasileira. Em nossos resultados, destacamos que a condição dependente, com presença da autocracia burguesa, imprime a manutenção da superexploração da força de trabalho e o aviltamento das políticas sociais em detrimento da acumulação capitalista.

Palavras-chave:
Formação Econômico-Social; Capitalismo Dependente; Política Social; Seguridade Social; Serviço Social

Abstract:

We aim to carry out a reflection on the challenges faced for the materialization of social policy in Brazil. We base ourselves on the readings of Rui Mauro Marini and Florestan Fernandes in understanding the Brazilian socio-economic formation. In our results, we highlight that the dependent condition, with the presence of bourgeois autocracy, diminishes the maintenance of the super-exploitation of the work force, and in the debasement of social policy to the detriment of capitalist accumulation.

Keywords:
Economic-Social Training; Dependent Capitalism; Social Policy; Social Security

1. Introdução

A reflexão em torno das políticas sociais no Brasil, bem como da atuação do Serviço Social no enfrentamento das expressões da “questão social” requisita a necessidade de entendimento da formação econômico-social brasileira. Isso implica uma análise concebida no marco da totalidade, que entenda fatores endógenos e exógenos dessa formação, numa dialética da dependência que permite apontar contradições inerentes à impossibilidade de materialização das políticas sociais, no Brasil, e que abarque a essência dos dínamos que promovem essa impossibilidade. A partir dessa lógica, autores como Ruy Mauro Marini nos aportam nessa reflexão. Marini é considerado um dos formuladores da Teoria Marxista da Dependência (TMD), junto à Vânia Bambirra e a Theotônio dos Santos. Neste artigo nos centraremos na contribuição de Marini para entender a formação econômico-social brasileira, demonstrando que a dependência e o subdesenvolvimento são traços congênitos de nossa formação. De modo semelhante, consideramos as observações de Florestan Fernandes ao explicar os dínamos da conformação das classes sociais no Brasil, a constituição da autocracia burguesa, como fenômeno de nossa formação, e a condição dependente do Estado brasileiro, uma vez que nos auxilia na interpretação de nossa problemática de investigação.

Reconhecemos a relação entre Serviço Social e Política Social, ao passo que as políticas sociais carregam características contraditórias que representam, de um lado, lutas conquistadas pelas classes trabalhadoras, de outro, mecanismos de manutenção do status quo da ordem burguesa de expropriação e reprodução do trabalho nos marcos do capitalismo. As políticas sociais no contexto brasileiro são direitos conquistados pelas classes trabalhadoras, mas não as emancipam da lógica capitalista de apropriação privada dos meios de produção. É na elaboração, implementação, execução e avaliação das políticas sociais que o Serviço Social encontra mediação para a efetivação dos direitos sociais e coadunam com o projeto de sociedade que atenda aos interesses da classe trabalhadora com base em sua prática assentada no projeto ético-político.

Tendo em consideração essa lógica e entendendo que o trabalho do Assistente Social brasileiro se dá num contexto determinado pela dependência, superexploração da força de trabalho e subdesenvolvimento, este estudo objetiva realizar uma reflexão sobre os desafios enfrentados para a materialização da política social no Brasil. Metodologicamente nos embasamos nas leituras de Ruy Mauro Marini e Florestan Fernandes quanto ao entendimento da formação econômico-social brasileira, por haver possibilidade de diálogo entre as formulações desses dois autores ao se dedicarem à investigação da explicação do caráter dependente e subdesenvolvido de nossa formação. Também realizamos um diálogo com autores do Serviço Social que apresentam um viés crítico ao capitalismo, no qual abordam elaborações sobre a correlação entre política social e apropriação do fundo público no marco das contradições e conflitos entre capital e trabalho. Salientamos que, do ponto de vista de método, nos ancoramos na dialética marxiana, na qual buscamos apreender a totalidade e a complexidade do problema investigado. Sem incorrermos em afirmações repousadas no fatalismo, compreendemos as múltiplas determinações sociais e entendemos que os homens fazem a sua própria história, não como desejam, mas sob condições concretas, das quais estão circunstancialmente inseridos (Marx, 2003MARX, K. O 18 brumário de Luiz Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2003.).

Além dessa introdução e das considerações finais, este artigo apresenta três seções principais: 1. as categorias de formação econômico-social e modo de produção capitalista para o entendimento das especificidades da dependência brasileira; 2. o fundo público como espaço de disputa para a manutenção da reprodução capitalista - retomamos a categoria de superexploração da força de trabalho para o entendimento da peculiaridade de nossa formação; 3. o debate sobre como, no capitalismo dependente, as políticas sociais sofrem um processo de assistencialização devido aos limites postos pelos interesses capitalistas no fundo público a partir do desmonte da Seguridade Social estabelecida na Constituição Federal de 1988.

2. A formação econômico-social dependente do Brasil

Um modo de produção pode ser compreendido como a relação dialética entre as forças produtivas (conjugação entre meios de produção e força de trabalho) e as relações sociais de produção, forma pela qual determinada sociedade se organiza na produção material da vida, mediante a divisão em classes sociais, apropriação do excedente e posse sobre os meios de produção. Na história humana, não houve apenas o capitalismo, mas sim distintos modos de produção, como o escravista, o asiático e o feudal. Em cada um desses modos, as relações entre as forças produtivas e as relações sociais de produção se efetivaram com as devidas especificidades (Marx, 1985MARX, K. Formações econômicas pré-capitalistas . 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.). No capitalismo, a divisão da sociedade entre possuidores dos meios de produção e de suas frações de classe, e trabalhadores desprovidos desses meios condiciona o processo de exploração e opressão de classe, que se estabelece de forma distinta em cada formação econômico-social. Metodologicamente, podemos considerar a formação econômico-social como uma realidade concreta formada com base em combinações de modos de produção hegemonizados por uma delas, como nos lembra Marx:

Em todas as formas de sociedade se encontra uma produção determinada, superior a todas as demais, e cuja situação aponta sua posição e sua influência sobre as outras. É uma iluminação universal em que atuam todas as cores, e às quais modifica em sua particularidade. É um éter especial, que determina o peso específico de todas as coisas às quais põe em relevo (Marx, 2008MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 286).

O capitalismo, por ser o primeiro modo de produção global, não se materializa da mesma forma em todos os lugares, havendo processos de desenvolvimento desigual e de desenvolvimento combinado que produzem particularidades. Por esse motivo, entendemos que a categoria de formação econômico-social é importante por fornecer a compreensão de que, no plano concreto, não é possível entender o capitalismo a partir de uma visão unilateral dos fatores exógenos ou endógenos dos fenômenos que ocorrem, por exemplo, no Brasil, uma vez que nossa formação econômico-social apresenta dínamos que historicamente foram moldando um capitalismo distinto do que ocorre em países centrais, como Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha. Um dos elementos que está na origem dessa formação diz respeito ao processo da colonização latino-americana imbricado na escravidão, no racismo estrutural e no patriarcado. No caso brasileiro, distintas tradições teóricas chamaram atenção para esse fato, a exemplo de Mário Pedrosa e Lívio Xavier (1931PEDROSA, M. X. A.; XAVIER, L. B. Esboço de uma Análise da Situação Econômica e Social do Brasil. La Lulle de Classes. n. 28/29. 1931. Disponível em: Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/abramo/1990/contracorrente/09.htm#tr1 . Acesso em: 19 jan. 2022.
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), Caio Prado Júnior (1987PRADO JÚNIOR, C. A revolução brasileira. 7. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.), Celso Furtado (2020FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.) e Florestan Fernandes (2020FERNANDES, F. A revolução burguesa: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.). No âmbito da TMD, chamamos atenção para o pensamento de Theotônio dos Santos (1993DOS SANTOS, T. Evolução histórica do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1993.), Ruy Mauro Marini (2005MARINI, R. M. Dialética da Dependência. In: TRASPADINI, R; STEDILE, J. P. (orgs.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005, p. 137- 180.) e Vânia Bambirra (2019BAMBIRRA, V. O Capitalismo dependente Latino-Americano. 4. ed. Florianópolis: Editora Insular, 2019.). A formação do capitalismo brasileiro se deu a partir de dínamos internos e externos, originando particularidades nacionais e formas de atuação política das classes dominantes em estreita relação com o Estado (Fernandes, 2020FERNANDES, F. A revolução burguesa: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.). O padrão de consolidação do tipo de revolução burguesa, que se processou no Estado brasileiro por meio da consolidação da industrialização dependente das tecnologias das nações centrais, criou laços com o capital externo, implicando a conjunção de interesses com base na dependência das classes possuidora sob bases políticas internas autocráticas.

A consolidação do capitalismo monopolista no Brasil envolveu não apenas a dependência econômica, mas também a fragilidade do regime liberal burguês, em razão da condição de difícil consolidação e das transformações modernizadoras que ocorrem sempre pelo alto, necessitando da composição estatal blindada aos trabalhadores e grupos subalternos (Marini, 2010MARINI, R. M. A crise do desenvolvimentismo. In: CASTELO, R. (org.). Encruzilhadas da América Latina no século XX. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2010. p. 103- 118.; Fernandes, 2020FERNANDES, F. A revolução burguesa: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.). Esse processo implica, na América Latina, um capitalismo sui generis, que tem na dependência um elemento basilar. Segundo Marini (2005MARINI, R. M. Dialética da Dependência. In: TRASPADINI, R; STEDILE, J. P. (orgs.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005, p. 137- 180.), apenas a partir da totalidade é que percebemos a inserção dependente brasileira na divisão internacional do trabalho, compreendendo o subdesenvolvimento não como uma etapa, mas como fenômeno inerente à nossa formação econômico-social.

O desenvolvimento da indústria dos países centrais exigiu da América Latina a disponibilidade de produtos agrícolas para alimentar a força de trabalho e as sociedades que iniciaram os processos de estabelecimento do capitalismo, implicando a troca desigual em termos de produtos primários e manufaturados, e na manutenção de práticas que envolveram o aumento da mais-valia relativa em tais formações (Marini, 2005MARINI, R. M. Dialética da Dependência. In: TRASPADINI, R; STEDILE, J. P. (orgs.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005, p. 137- 180.). Mesmo com a consolidação do capitalismo monopolista em formações, como a brasileira, e as tentativas de implementação de políticas, como a substituição de importações, veremos que esses processos se deram com participação do capital estrangeiro e pela associação entre a burguesia interna e a estrangeira, mediante empréstimos e transferência de malhas produtivas, não implicando a superação do subdesenvolvimento como apregoavam as teses da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), mas sim no aprofundando da dependência (Marini, 2010MARINI, R. M. A crise do desenvolvimentismo. In: CASTELO, R. (org.). Encruzilhadas da América Latina no século XX. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2010. p. 103- 118.). As teses desenvolvimentistas, que muitas vezes tendem a aparecer com roupagem neodesenvolvimentista na contemporaneidade, e colocam a expansão industrial e o desenvolvimento do bem-estar como elementos sincrônicos, esquecem que, no período das ditaduras militares latino-americanas, houve expansão capitalista, mantendo o elo dependente com as nações centrais, sem lograr o bem-estar às classes trabalhadoras, ao contrário, a opressão e a exploração de classe se aprofundaram com mortes e torturas, numa dominação de classe aberta e em defesa do capitalismo (Fontes, 2010FONTES, V. Prefácio. In: CASTELO, R. (org.). Encruzilhadas da América Latina no século XX. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2010. p. 13- 30.).

No caso brasileiro, apenas com a promulgação da Constituição Federal de 1988 é que visualizamos, institucionalmente, o estabelecimento da Seguridade Social em razão da atuação conjunta do Estado e da sociedade para assegurar os direitos relativos à Saúde, à Previdência e à Assistência Social. A implantação desses direitos sociais no Brasil não ocorreu ausentes de contradições, uma vez que a transição lenta e gradual para uma democracia liberal burguesa na periferia do capitalismo implicou arranjos políticos para a manutenção da autocracia das classes dominantes materializada na década de 1990 pelos auspícios do neoliberalismo, que, na América Latina, era inaugurado pela ditadura militar chilena (1973-1990).

A resposta neoliberal ao plano econômico pode ser lida como uma saída para a queda tendencial da taxa de lucro (Marx, 2017MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro 3: O processo de circulação do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.) no plano internacional, mas também em razão da debilidade da experiência comunista internacional com a restauração capitalista na China, no final da década de 1970 e, na extinta União Soviética, na década de 1990 (Mercatante, 2020MERCATANTE, E. Os contornos do capitalismo na China. Ideias de esquerda, 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.esquerdadiario.com.br/Os-contornos-do-capitalismo-na-China . Acesso em: 11 jul. 2023.
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). Esse processo internacional implicou a recomposição dos padrões de acumulação do capital, que, diante da crise da década de 1970, fomentou um novo consenso globalizador de abertura dos mercados ao fluxo monetário (Anderson, 1995ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: ANDERSON, P. et al. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 9-23, 1995.) com a retirada de direitos trabalhistas e das políticas sociais nos países centrais. Na América Latina, especialmente no Brasil, a Seguridade Social é formulada nesse bojo contraditório, no período de implementação das políticas neoliberais. Essa especificidade já apresenta sua materialização no governo Collor e, posteriormente, nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC) (Granemann, 2011GRANEMANN, S. Fundações estatais: projeto de estado do capital. In: BRAVO, M. I. S.; MENEZES, J. S. (orgs). Saúde na atualidade: por um sistema único de saúde estatal, universal, gratuito e de qualidade. Rio de Janeiro: Rede Sirius, 2011, p. 50- 56. Disponível em: Disponível em: http://www.adufrj.org.br/wp-content/uploads/2013/03/Revista_cadernos_de_Saude_PAGINA.pdf . Acesso em: 11 jul. 2023.
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).

No plano da Seguridade Social, essa contradição entre o ensejo de implementar políticas sociais, ao mesmo tempo que o neoliberalismo se torna hegemônico, implica políticas assistencialistas e residuais, manuseadas sob a ótica gerencialista e influenciadas pela financeirização do fundo público e pelo pagamento de juros e serviços da dívida pública brasileira. Nesse continuum, em razão dos desdobramentos das políticas de austeridade fiscal, as metas de inflação, o câmbio flutuante e as privatizações resultaram na incapacidade de efetivação plena das políticas sociais, pressionadas pela diminuição dos gastos públicos e pelos interesses das frações burguesas no Brasil (Paiva; Ouriques, 2006PAIVA, B. A. de; OURIQUES, N. D. Uma perspectiva latino-americana para as políticas sociais: quão distante está o horizonte? Revista Katálysis, v. 9, n. 2, p. 166-175, jul. 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/j/rk/a/GLKVhgxtxXMX7QQWzysmhdK/abstract/?lang=pt# . Acesso em: 26 abr. 2023.
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). Mesmo diante dos governos petistas e da tentativa de estabelecer um desenvolvimento possível no marco do neoliberalismo, esse panorama não é modificado, uma vez que as políticas realizadas por esses governos na roupagem neodesenvolvimentista, com mescla social-liberal, não tinham como objetivo romper com a dependência e o subdesenvolvimento (Castelo, 2010CASTELO, R. Apresentação. In: CASTELO, R. (org.). Encruzilhadas da América Latina no século XX. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2010. p. 21-34.).

Nesse sentido, mesmo com as políticas de transferência direta de renda, governos, como o do Partido dos Trabalhadores (PT), ao tentarem imprimir uma conciliação de classes possível no marco da dependência e do neoliberalismo, não conseguiram redirecionar o fundo público brasileiro para a efetivação das políticas sociais, implicando a debilidade delas para o enfrentamento das expressões da “questão social”1 1 A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre proletariado e burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e repressão (Iamamoto; Carvalho, 1983, p. 77). , ainda que tenha realizado programas assistenciais que oportunizaram arrefecer as lutas de classes, pelos menos até os impactos da crise econômica mundial de 2008, que exigiu ainda mais do fundo público o atendimento aos interesses da fração rentista da burguesia nacional e estrangeira, implicando em si elementos da luta de classes, entendidos não em patamar estruturalista, mas dialético, derivado dos movimentos contraditórios do próprio transformismo sofrido pelo PT (Coelho, 2016COELHO, E. Uma esquerda para o capital. Crise do Marxismo e Mudanças nos Projetos Políticos dos Grupos Dirigentes do PT (1979-1998). Germinal: marxismo e educação em debate, v. 8, n. 1, p. 273-273, 2016. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/18056 . Acesso em: 29 out. 2023.
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; Santana, 2018SANTANA, L. A. Transformismo e o sistema da dívida pública brasileira nas definições programáticas do partido dos trabalhadores e no governo Lula (2003-2010). 2018. 267 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Centro de Humanidades, Universidade Federal de Campina Grande, Paraíba, Brasil, 2018. Disponível em: Disponível em: http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/jspui/handle/riufcg/2190 . Acesso em: 29 out. 2023.
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), os quais se materializam em exemplos, como a contrarreforma da previdência realizada em 2003 (Marques; Mendes, 2004MARQUES, R. M.; MENDES, Á. O governo Lula e a contra-reforma previdenciária. São Paulo em Perspectiva, v. 18, n. 3, p. 3- 15, jul. 2004. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/j/spp/a/gXhgfrs34fbSjpnKz465BYH/# . Acesso em: 29 out. 2023.
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) e a manutenção do subfinanciamento do SUS e a Desvinculação de Receitas da União (DRU) (Mendes; Carnut, 2020MENDES, A.; CARNUT, L. Capital, estado, crise e a saúde pública brasileira: golpe e desfinanciamento. SER Social, [S. l.], v. 22, n. 46, p. 9- 32, 2020. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/25260 . Acesso em: 29 out. 2023.
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), elementos que impactam na plenitude dos recursos do fundo público, reflexão que podemos observar no tópico a seguir.

3. O fundo público e a superexploração da força de trabalho

O fundo público é uma categoria central para a compreensão do modus operandi da fase contemporânea do capitalismo dependente brasileiro. Num contexto de crise capitalista, é evidente a centralidade do fundo público pari passu ao amortecimento dos efeitos deletérios da crise, rotando contrariamente a queda tendencial da taxa de lucro, numa configuração de blocos de hegemonia política frente à instabilidade econômica e a políticas permanentes na disputa por sua formação e destinação (Behring, 2012; 2016BEHRING, E. R. Fundo público: um debate estratégico e necessário. In: Anais do XV Encontro Nacional de Pesquisadores de Serviço Social, 2016, dez. 9. p. 1-12. São Paulo: USP Ribeirão Preto.).

Fundamentando e adensando o debate sobre a categoria com base na crítica marxista da economia política, Behring (2016BEHRING, E. R. Fundo público: um debate estratégico e necessário. In: Anais do XV Encontro Nacional de Pesquisadores de Serviço Social, 2016, dez. 9. p. 1-12. São Paulo: USP Ribeirão Preto.) mostra que o fundo público é a expressão da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção. O Estado, nesse caso, é disputado para assegurar as condições de reprodução capitalista e administrar a crise do capital mediante seu aparato repressor. Historicamente, o fundo público exerceu função ativa nas políticas macroeconômicas na construção do Estado Social num contexto de pós-Segunda Guerra Mundial nos países centrais. A funcionalidade das políticas sociais reside na expansão do mercado de consumo, o que viabilizou o compromisso de pleno emprego e proteção social nos países de capitalismo central entre 1945 e 1975, comparecendo como financiador da reprodução da força de trabalho e de políticas anticíclicas nos períodos de refração econômica (Salvador, 2010SALVADOR, E. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.).

Na particularidade brasileira, o fundo público obteve outros contornos devido à especificidade de nossa formação econômico-social dependente, a construção tardia de uma sociedade fundada no trabalho assalariado e o processo de industrialização insuficiente para assegurar a utilização plena da força de trabalho, reproduzindo ocupações precárias, delineiam as características próprias das economias latino-americanas. Nesse bojo, a conquista por uma Seguridade Social somente a partir da Constituição Federal de 1988, apesar de obter um orçamento constituído por contribuições sociais exclusivas, defronta-se com limites impostos pelo neoliberalismo.

Além de representar setores candidatos à privatização, “graças à sua enorme capacidade de produzir acumulação de capital na área financeira e na ampliação do mercado de capitais, sobretudo o de seguros privados” (Salvador, 2010SALVADOR, E. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010., p. 28), a Seguridade Social brasileira é um dos alvos principais de apropriação e destinação ao superávit primário em detrimento da utilização de recursos nessas políticas sociais, a fim de valorar e acumular capital vinculado à dívida pública.

Segundo Mendes (2014MENDES, A. O fundo público e os impasses do financiamento da saúde universal brasileira . Saúde Soc. São Paulo, v. 23, n. 4, p.1183-1197, 2014., p. 1185), “o padrão de dominação, acumulação e distribuição capitalista brasileiro ao longo do século XX difere daquele dos países capitalistas centrais, realizando-se por meio de trajetória histórica de concentração de renda”, com maior intervenção econômica do Estado na reprodução do capital em detrimento de investimento na reprodução da força de trabalho. Contudo, a criação do fundo público materializado no Orçamento da Seguridade Social (OSS) passa a representar uma capacidade de alteração nesse padrão de financiamento para proteção social, fundado na reprodução da força de trabalho e articulado com as políticas sociais, como aspectos estruturais do capitalismo (Mendes, 2014MENDES, A. O fundo público e os impasses do financiamento da saúde universal brasileira . Saúde Soc. São Paulo, v. 23, n. 4, p.1183-1197, 2014.). Para Oliveira (1998), o fundo público é carregado a se portar como um antivalor, no sentido de que a produção do excedente social assume outras formas necessárias à sua lógica de expansão. Desse modo, considera-se que o fundo público não é apenas a expressão dos recursos estatais canalizados para financiar a acumulação capitalista, mas também funciona como um antivalor “que por não buscar valorizar-se per se, pois não é capital, ao juntar ao capital, sustenta o processo de valorização do valor” (Oliveira, 1998, p. 53). Nessa mesma perspectiva, Mendes (2014MENDES, A. O fundo público e os impasses do financiamento da saúde universal brasileira . Saúde Soc. São Paulo, v. 23, n. 4, p.1183-1197, 2014.) aponta que:

[...] ainda que Oliveira (1998b) não se refira à situação brasileira, restringindo-se em especial ao novo momento de desenvolvimento do WS [Welfare State] e à sua economia política sob o domínio da social-democracia, contribui de modo relevante para o entendimento do novo período de acumulação capitalista no país, no qual também reforça o fundo público com esse sentido de “antivalor”, por meio da instituição do OSS (Mendes, 2014MENDES, A. O fundo público e os impasses do financiamento da saúde universal brasileira . Saúde Soc. São Paulo, v. 23, n. 4, p.1183-1197, 2014., p. 1.188).

Behring e Boschetti (2006) reconhecem a importância do fundo público como mecanismo de financiamento para a reprodução do capitalismo, mas não reconhecem nele a presença de antivalor, que, em suas considerações, participa direta e indiretamente do ciclo de produção e reprodução do valor. Essas autoras sustentam que, mesmo que ele não gere diretamente a mais-valia, atua na apropriação de parcela de mais-valia produzida pelos trabalhadores, sustentando, assim, um processo dialético à reprodução da força de trabalho e à acumulação capitalista, socializando os custos produtivos e acelerando a realização de mais-valia. Corroborando com a tese das autoras supracitadas, Salvador (2010SALVADOR, E. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.) compreende o fundo público como participante direto da reprodução geral do capital por meio de subsídios, negociações de títulos e garantias de condições de financiamento de investimentos capitalistas. Para ele, o fundo público é formado com base na mais-valia produzida socialmente.

Desse modo, ao considerarmos que as classes trabalhadoras produzem de fato a riqueza social, elas se veem expropriadas, de modo a garantir os interesses dos setores dominantes da sociedade brasileira e da burguesia internacional. Portanto, a economia capitalista dependente brasileira organizou-se por meio da expropriação dos trabalhadores, exaurindo suas capacidades física, psíquica, emocional e cognitiva. Isso é acentuado nos anos de 1970, com o acirramento da competição pelo mercado mundial, o que gerou profundas transformações nos processos produtivos com o Toyotismo e a precarização do trabalho. Logo, o trabalho é uma categoria central na sociedade, e as condições de vida em que estão submetidas a classe trabalhadora, das determinações históricas e sociais aliadas às condições de trabalho, incidirão diretamente no modo de adoecer e morrer. A superexploração da força de trabalho é uma categoria fundamental da dependência latino-americana, estruturada em jornadas de trabalho mais extensas e níveis salariais abaixo das economias dominantes (Marini, 2000MARINI, R. M. Dialética da dependência: problemas e categorias, uma visão histórica. Petrópolis: Vozes, 2000.). Essa categoria apresenta três pressupostos intrínsecos: prolongamento da jornada de trabalho, intensificação do trabalho na jornada e redução do salário abaixo do valor da força de trabalho.

A superexploração da força de trabalho não se resume à elevação da produtividade ou ao aumento e à intensificação da jornada, pois constitui uma categoria inédita por ancorar no sistema de acumulação das economias dependentes, tendo como materialidade o tecido social latino-americano (Marini, 2000MARINI, R. M. Dialética da dependência: problemas e categorias, uma visão histórica. Petrópolis: Vozes, 2000.). Não se trata de falta de desenvolvimento, ao passo que o desenvolvimento e o subdesenvolvimento não são processos desvinculados, nem um continuum separado pelo tempo e superável por políticas econômicas capitalistas. A industrialização em si, sem a ruptura com as estruturas socioeconômicas dominantes, não leva à superação das mazelas das formações econômico-sociais dependentes, mas produz formas renovadas da dependência. A condição econômico-social da América Latina não se dá pela falta de capitalismo, sendo uma maneira particular no qual o capitalismo se reproduz, nas quais as classes dominantes procuram compensar sua desvantagem na competição intercapitalista com a superexploração da força de trabalho (Luce, 2018LUCE, M. S. Teoria Marxista da dependência. São Paulo: Expressão Popular, 2018.). Por conseguinte, a política social brasileira transcorreu sob um longo processo de conflitos e embates, no que tange ao financiamento, não fugindo à regra de valoração do capital em detrimento das demandas da classe trabalhadora, como se conforma esse cenário é o que veremos a seguir.

4. A fragilização das políticas sociais e os rebatimentos para a reprodução das classes trabalhadoras

O capitalismo produz riquezas na mesma proporção que reafirma a iniquidade, cuja base material, pautada na lei geral da acumulação, nos informa que as expressões da “questão social” são insuprimíveis desse movimento, as quais ganham proporção política na organização e mobilização das classes trabalhadoras. Todavia, destaca-se a particularidade de nossa formação econômico-social dependente, na qual encontramos a autocracia burguesa e o aparelho institucional governamental, num contexto marcado pela superexploração da força de trabalho, patriarcado e racismo, em que esses aspectos são determinações dificultadoras da organização política das classes trabalhadoras.

Tratar da forma como o Estado passou a intervir sobre as expressões da “questão social” de modo político é evidenciar o momento de desenvolvimento imperialista mundial, com impactos particulares no contexto brasileiro, cujas necessidades de reprodução do ciclo do capital, atreladas às reivindicações das classes trabalhadoras, promoveram respostas que se materializaram em políticas sociais, as quais tiveram as suas primeiras manifestações ligadas aos direitos trabalhistas e previdenciários nas décadas de 1930 e 1940. Dessa época até o final da década de 1980, houve alguns avanços no que se refere ao acesso a determinadas políticas sociais, mas, na perspectiva do seguro social, da benesse e da caridade; não à toa a política de assistência até o momento coevo convive com manifestações da lógica assistencialista, paternalista e clientelista, que configuravam as práticas assistenciais anteriores à CF/1988. Desse modo, a Constituição pós-processo de redemocratização inaugura momento no trato do social: a consolidação da concepção de Seguridade Social como um sistema híbrido, mesclando os modelos beveridgiano e bismarckiano2 2 O modelo beveridgiano apresenta como premissa de financiamento a participação do fundo público e a condução e gestão pelo Estado. No modelo bismarckiano, temos um seguro social constituído com base na contribuição dos empregados e empregadores. , o que compreende um conjunto articulado de ações públicas e da sociedade civil, destinada a assegurar o direito à Previdência, à Saúde e à Assistência Social (Brasil, 1991BRASIL. Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991. Diário Oficial da União, 1996. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8212rep.htm . Acesso em: 18 jul. 2023.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
).

Todavia, a proteção social reduzida à ideia de Seguridade Social ficou comprometida, como observamos na seção anterior, uma vez que sua implementação e execução já estavam diante do ideário neoliberal, cujos impactos mais expressivos foram a não efetivação integral do estabelecido na Carta Magna. Portanto, ao observar a trajetória das políticas sociais brasileiras, que estão para além da Seguridade Social (saúde, previdência Social e assistência social) estabelecida na Carta Magna de 1988, tendo em vista que ela representa uma parcela dessas políticas, constata-se que nunca se vivenciou uma proteção social plena, cuja conquista mais significativa, no que se refere aos direitos e serviços sociais, se deu pela CF/1988, atribuindo ao Estado deveres no âmbito social e dedicando aos cidadãos a possibilidade de melhores condições de existência, por meio dos salários indiretos, dos produtos de concessão e da conquista, eis a face contraditória das políticas sociais, tão necessárias à reprodução da força de trabalho, bem como à ordem capitalista.

Tratava-se de uma ambiência desfavorável à expansão das políticas sociais, tendo em vista a crise estrutural que se alastrava mundialmente. Sobre ela, Mészáros (2002MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002., p. 794) afirma que “crises de intensidade e duração variadas são o modo natural de existência do capital: são maneiras de progredir para além de suas barreiras imediatas e, desse modo, estender com dinamismo cruel sua esfera de operação e dominação”. Portanto, trata-se de uma crise global, a qual expressa a incontrolabilidade e irreformabilidade do capital. Dessa forma, expansão e acumulação são as forças motrizes do capitalismo, acarretando necessidade de respostas do próprio sistema à situação apontada. Assim, a mundialização e financeirização do capital, a reestruturação produtiva e o neoliberalismo são os imperativos que passam a reger as relações sociais desde a década de 1970 e, particularmente, no contexto brasileiro na década de 1990 (Yazbek, 2001YAZBEK, M. C. Pobreza e exclusão social: Expressões da questão social no Brasil. Temporalis: Revista da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social - Ano 2, n. 3 (jan./jun. 2001). Brasília: ABEPSS, Grafline, 2001, p. 33-40.).

Outrossim, esse movimento de mundialização financeirizada trouxe impactos sobre a seguridade social brasileira, a qual passou por um processo de desmonte das políticas sociais com a privatização e mercantilização das políticas de saúde e previdência, época em que ocorre uma ênfase na assistência social, assumindo um caráter compensatório (Mota, 2008MOTA, A. E. O mito da assistência social: ensaios sobre Estado, política e sociedade. São Paulo: Cortez, 2008.). Ora, se com a CF/1988 a seguridade mesclava universalidade e seletividade, distributividade e redistributividade, gratuidade e contributividade, centralização e descentralização (Boschetti, 2000BOSCHETTI, I. As políticas brasileiras de seguridade social: Assistência Social. In: Capacitação em Serviço Social e Política Social. Módulo 3, Brasília, CFESS / ABPESS / CEAD / NED / UnB, 2000.), com a contrarreforma do Estado, na década seguinte, embora nunca tenha sido implementada na totalidade, desmontam-se as premissas da Seguridade pela implantação de medidas privatizantes caudatárias do ideário neoliberal (Mota, 1995MOTA, A. E. Cultura da crise e seguridade social: Um estudo sobre as tendências de previdência e assistência social brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo: Cortez, 1995.).

Interligada a isso, ocorre a refilantropização da “questão social” (Yazbek, 2004YAZBEK, M. C. As ambiguidades da Assistência Social brasileira após dez anos de LOAS. Revista Serviço Social & Sociedade. n. 77. São Paulo: Cortez, 2004.), que resgata um velho traço da nossa formação econômico-social dependente: as práticas de caridade, chamando novos sujeitos sociais para a intervenção, a exemplo das “empresas parceiras” e organizações não governamentais. Sob o tripé da parceria, solidariedade e voluntariado, o Estado compartilha a responsabilidade de prover os direitos sociais, onerando a sociedade civil. Assim, a política de Assistência Social, a qual é setorial, passa a enfrentar as manifestações de desigualdade, segmentada, restritiva e focalizada. Perante o consenso de Washington, enseja-se o desfinanciamento das políticas sociais, bem como se denota a presença dos organismos multilaterais internacionais, configurando-se como influências externas, que incidem internamente nas políticas sociais. O ajuste fiscal implementado para reduzir o orçamento às políticas sociais, a saber, a Emenda Constitucional n. 95/2016, trouxe como ônus a impossibilidade de expansão e materialização plena dessas políticas, fragilizando a perspectiva da universalidade presente na CF/88.

À vista disso, expõe-se o fato de que os indivíduos, em sua maioria, não recebem salários que deem conta de garantir a sua reprodução; os salários indiretos, por sua vez, estão desfinanciados e reduzidos, colocando-os na condição de superexploração da força de trabalho e do fundo de consumo, cuja condição, que é particularidade da formação econômico-social brasileira, passa a ser agudizada na contemporaneidade e reafirma a necessidade de organização e mobilização social, pois é por meio das lutas populares que obteremos respostas plausíveis e tangíveis não só nesse sistema, mas, sobretudo para além dele. É nessa ambiência que o Serviço Social mantém o seu significado social como atividade necessária à reprodução do sistema e da força de trabalho, pois intervém sobre as manifestações da “questão social” na perspectiva de viabilizar os direitos das classes trabalhadoras por meio das políticas sociais, ou seja, embora os Assistentes Sociais sejam necessários nessa conjuntura, as condições objetivas para desempenhar o trabalho e garantir a sua própria existência estão comprometidas pelas tendências recentes conduzidas pela financeirização, colocando-os, também por isso, mas, sobretudo pela própria relação capital/trabalho e como ela se engendra na particularidade brasileira, na condição de trabalhadores precarizados.

5. Considerações finais

Compreender a realidade brasileira a partir dos fundamentos teórico-metodológicos da teoria marxista é uma tarefa fundamental para o Serviço Social como área de conhecimento e exercício profissional. A produção de uma teoria social crítica, que abarque o movimento contraditório do conflito entre capital e trabalho, fornece ao Assistente Social maior discernimento para a intervenção na realidade, não sendo, portanto, um mero aplicador e reprodutor das políticas sociais. Essa dinâmica perpassa a necessidade de compreensão da formação econômico-social brasileira fundamentada nos elementos históricos, sociais, políticos, culturais e econômicos, os quais engendram expressões da questão típicas do Brasil.

A partir dessa dimensão, podemos compreender que autores, como Ruy Mauro Marini e Florestan Fernandes, são profícuos porque pensaram a América Latina sob uma perspectiva crítica, indo à raiz dos problemas sociais e do subdesenvolvimento engendrado pelo desenvolvimento desigual que perpassa a região. Nesse processo, categorias, como a superexploração da força de trabalho, norteiam o trabalho do Assistente Social por estarem conectadas, apoiadas no marco da totalidade, com as expressões da questão social em países como o Brasil, o que recoloca o debate para além da aplicabilidade do marco legal que rege as políticas sociais, mas também quanto ao entendimento de que a materialização dessas políticas enfrenta processos contraditórios a partir da disputa do fundo público pelas frações da burguesia, em especial a rentista, que mediante o fenômeno da financeirização encontra nesse fundo um espaço para acumulação capitalista perante o pagamento de juros e serviços da dívida pública.

Tendo em vista essa dinâmica, se as expressões da questão social surgem ao assistente social em termos da aparência, em seu âmbito singular, na essência estão vinculados à sociabilidade capitalista, à exploração e à opressão de classes, que, como observamos, se traduz em precarização do trabalho, desmonte estatal e aparato autocrático burguês sobre as classes trabalhadoras. Tendo em vista essa reflexão, entendemos que as contrarreformas sofridas pelas políticas sociais e, em destaque, o tripé da seguridade social, só são transponíveis com a própria superação da condição dependente e subdesenvolvida, numa lógica de suplantação do capitalismo.

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  • YAZBEK, M. C. As ambiguidades da Assistência Social brasileira após dez anos de LOAS. Revista Serviço Social & Sociedade n. 77. São Paulo: Cortez, 2004.
  • *
    Este artigo foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Código de financiamento 001.
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    A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre proletariado e burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e repressão (Iamamoto; Carvalho, 1983IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1983., p. 77).
  • 2
    O modelo beveridgiano apresenta como premissa de financiamento a participação do fundo público e a condução e gestão pelo Estado. No modelo bismarckiano, temos um seguro social constituído com base na contribuição dos empregados e empregadores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Set 2023
  • Aceito
    28 Out 2023
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