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O universo categorial do método em Marx: notas para o debate* * Parte das reflexões contidas neste artigo foram originalmente objeto do trabalho final da disciplina “O método em Marx”, formulado com base na escolha de um dos temas tratados no curso. O referido trabalho foi incorporado ao primeiro capítulo da tese de doutoramento da autora, defendida na PUC-SP, em maio de 2019. Para esta publicação, o texto foi revisto e ampliado, com a finalidade de se adequar às exigências da publicação.

The categorical universe of method in Marx: notes for the debate

Resumo:

O artigo estabelece diálogo com leitores interessados na compreensão das categorias do método em Marx, como formulação autêntica da reprodução da realidade. As reflexões foram sistematizadas a partir da disciplina “O método em Marx”, cursada no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-SP. Conclui-se que a compreensão das categorias contidas no pensamento de Marx é essencial para o desenvolvimento da concepção histórico-materialista no processo de investigação.

Palavras-chave:
Marx; Método; Categorias

Abstract:

The articlelays down dialogue with readers interested in understanding of the categories of the method in Marx, whilst formulation authentic reproduction of actuality. The reflections they were systematized from of discipline “The method in Marx”, studied at Program of Post-graduates in Service Social from the PUC-SP. Conclude what a comprehension of the categories contained of thinking in Marx are essential on deployment of a historical-materialist conception in the research process.

Keywords:
Marx; Method; Categories

1. Introdução

O artigo estrutura-se para expor as categorias apresentadas no método de Marx, considerando o debate realizado na disciplina “O método em Marx”1 1 O curso foi ministrado pela professora Maria Lucia Silva Barroco, a quem agradecemos imensamente pelo rico debate, conduzido de forma acessível, o que possibilitou que novos caminhos fossem percorridos na trilha do conhecimento. , cursada no segundo semestre de 2014, no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. Sabe-se das dificuldades de apreensão da teoria de Marx, especialmente sobre a questão do método. O acesso à determinada obra ou a alguns de seus fragmentos não é a certeza da sapiência da perspectiva teórica-metodológica desse extraordinário autor. A sua vasta produção é reveladora do longo e profícuo caminho intelectual, conforme anotou Netto (2009NETTO, J. P. Introdução ao método na teoria social. In: CFESS/ABEPSS. Serviço Social: direitos e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009.): o método de Marx: uma longa elaboração teórica. Dessa maneira, o curso teve por objetivo apresentar os fundamentos e os pressupostos ontológicos da concepção teórico-metodológica do pensamento de Marx. Foi estruturado em aulas expositivas, tendo por base leituras centrais de Marx2 2 Destacam-se os extratos de Marx (Cf. Netto, 2012): Para a Crítica da filosofia do direito de Hegel: introdução; Sobre a Questão Judaica (Emancipação política e emancipação humana); Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844 (Trabalho alienado, propriedade privada e comunismo); Sobre a filosofia da miséria e carta a P. Annenkov; Elementos fundantes de uma concepção materialista e teses sobre Feuerbach; Introdução (à Crítica da Economia Política); Prefácio (à Crítica da Economia Política); Miséria da filosofia (Cap. II. A metafísica da economia política). para a compreensão de seu método de investigação. Dessa maneira, foi possível reconstruir o objeto da disciplina com a finalidade de auxiliar mestrandos e doutorandos de distintas áreas do conhecimento à capacitação teórico-metodológica de pesquisa, de forma histórico-dialética e crítica da realidade. O percurso possibilitou, entre muitas contribuições à formação em Serviço Social, uma atenta reflexão sobre a categoria fundante e as categorias centrais do pensamento de Marx, como importante chave heurística de aproximação à questão do método e que, aqui, aparece de forma sistematizada com a finalidade de explicitar os fundamentos ontológicos que permitiu a clara distinção entre o “artista e o simples borra-botas”, conforme anotou Coutinho (2010COUTINHO, C. N. Apresentação. LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.), referindo-se a uma formulação de Gramsci:

Dois escritores podem representar (expressar) o mesmo momento histórico-social, mas um pode ser artista e o outro simples borra-botas. Esgotar a questão limitando-se a descrever o que ambos representam ou expressam socialmente, isto é, resumindo, mais ou menos bem, as características de um determinado momento histórico, significa nem sequer aflorar o problema artístico (Gramsci, 2020 apud Coutinho, 2011, p. 8)3 3 Coutinho (2010) refere-se a: GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 6, 2020, p. 64-65. .

Sublinha-se com essa citação que, em Marx, existe, a nosso juízo, uma autêntica concepção histórico-materialista de reprodução ideal da realidade concreta e que manifesta a unidade dialética entre teoria e método, conforme anotaram Marx e Engels (1977MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã [I - Feuerbach]. São Paulo: Editorial Grijaldo, 1977., p. 12):

A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não-realidade do pensamento isolado da práxis - é uma questão puramente escolástica.

É nessa direção que é possível afirmar que, em Marx, não existem conceitos, como fórmulas, para entender a questão do método, o qual não é um conjunto de prescrições normativas de aplicação da realidade tal como parece em clássicos das ciências sociais, com conceitos predefinidos para manipular determinado objeto de forma fixa e imutável. Esse rito não é possível de ser encontrado em Marx, conforme anotou, na resposta à filosofia da miséria do sr. Proudhon: “Os economistas nos explicam como se produz essas relações dadas, mas não nos explicam como se produzem essas relações, isto é, o movimento histórico que as engendra” (Marx, 2009MARX, K. Miséria da filosofia: resposta à filosofia da miséria, do Sr. Proudhon. São Paulo: Expressão Popular, 2009., p. 120-121).

O pressuposto lógico e histórico é de que os conceitos expressam categorias ontológicas, que são “formas de modos de ser, determinações de existência, frequentemente aspectos isolados dessa sociedade determinada” (Marx, 2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 261). As categorias têm radicalidade humana e podem se tornar determinado conceito, à medida que a sociedade define, do ponto de vista científico, se “sua existência é anterior ao momento em que se começa a falar dela como tal” (Id.), mas, antes de tudo, é necessário que tenha existência concreta - produto da ação humana -, o que revela o caráter radicalmente ontológico-social dessa teoria.

É nessa direção que aparecem, em Marx, a práxis, como categoria fundante de seu pensamento, e a totalidade, a contradição e a mediação como categorias centrais.

O artigo foi concebido para oferecer ao leitor elementos básicos para explorar a fundamentação histórico-materialista do método em Marx. Para esse diálogo, buscou-se, além de artigos de Marx, autores marxistas que discorrem sobre o tema, considerando o percurso da disciplina cursada.

Por fim, este artigo está estruturado em três seções: 1) As categorias simples e concretas em Marx; 2) Pressupostos ontológico-sociais: práxis, trabalho e objetivação em Marx; 3). As categorias do método em Marx: práxis, totalidade, contradição e mediação; além da conclusão e das referências.

2. As categorias simples e concretas em Marx

As categorias em Marx são de natureza simples e concretas. Caracterizam-se de simples aquelas que têm baixa complexidade social. Já as concretas apresentam maior complexidade histórica, justamente por expressar as relações sociais de produção e reprodução.

[...] as categorias simples são a expressão de relações nas quais o concreto pouco desenvolvido pode ter se realizado sem haver estabelecido ainda a relação ou o relacionamento mais complexo, que se acha expresso mentalmente na categoria mais concreta, enquanto o concreto mais desenvolvido conserva a mesma categoria como uma relação subordinada (Marx, 2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 256).

Considera-se que uma categoria simples, por exemplo, como: trabalho, divisão do trabalho e cooperação, expressam distintas formas de organização e de reprodução do ser social na história. É dessa maneira que:

o trabalho parece ser uma categoria muito simples. E também a representação do trabalho nesse sentido geral - como trabalho em geral é muito antiga. Entretanto, concebido [....] nessa simplicidade, o “trabalho” é uma categoria tão moderna como o são as relações que engendram essa abstração (Marx, 2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 257).

Por esse motivo, é falsa a ideia de que uma mesma categoria simples, por exemplo, como trabalho, se reproduza da mesma maneira em todas as formas sociais constituídas pelo gênero humano, por isso que, para Marx (2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.), na sociedade burguesa:

o trabalho se converte não só como categoria, mas na efetividade, em um meio de produzir riqueza em geral, deixando, como determinação, de se confundir com o indivíduo em sua particularidade. Esse estado de coisas se encontra mais desenvolvido na forma de existência mais moderna da sociedade burguesa (Marx, 2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 259).

Importante enfatizar que as categorias simples e complexas ao longo da história dos homens assumem no “curso do pensamento abstrato que se eleva do mais simples ao complexo corresponde ao processo histórico efetivo” (Id., p. 256) e a possibilidade de sua elucidação situa-se dialeticamente na história, nas determinações e nas mediações próprias da esfera humano-social.

Para Marx, à medida que os homens avançam no desenvolvimento das forças produtivas com o crescente domínio da natureza, modificam-se as relações sociais de produção, os hábitos, os costumes, a cultura, a arte etc., assim como os instrumentos e as formas de compreender a vida material e social.

Os mesmos homens que estabeleceram as relações sociais de acordo com a sua produtividade material produzem, também, os princípios, as ideias, as categorias de acordo com as suas relações sociais. Assim, essas ideias, essas categorias são tão pouco eternas quanto as relações que exprimem. Elas são produtos históricos e transitórios (Marx, 2009MARX, K. Miséria da filosofia: resposta à filosofia da miséria, do Sr. Proudhon. São Paulo: Expressão Popular, 2009., p. 126).

Como produtos históricos e transitórios do ser social, considera-se que, somente no desenvolvimento da sociedade burguesa, é possível se erguer um “núcleo racional” (a expressão é de Pontes, 1997PONTES, R. Mediação e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1997.) de conhecimento sempre aproximativo, parcial da realidade4 4 Netto (2009), ao tratar da exposição do método de Marx, elucida: “[...] o método não é um conjunto de regras formais que se ‘aplicam’ a um objeto que foi recortado para uma investigação determinada nem, menos ainda, um conjunto de regras que o sujeito que pesquisa escolhe, conforme a sua vontade, para ‘enquadrar’ o seu objeto de investigação. Recordemos a passagem de Lênin que citamos: Marx não nos entregou uma Lógica, deu-nos a lógica d´O capital. Isto quer dizer que Marx não nos apresentou o que ‘pensava’ do capital: ele nos descobriu a estrutura e a dinâmica reais do capital; não lhe ‘atribuiu’ ou ‘imputou’ uma lógica: extraiu da efetividade do movimento do capital a sua (própria, imanente ao capital) lógica - numa palavra, deu-nos a teoria do capital: a reprodução ideal do seu movimento real. E para operar esta reprodução, ele tratou de ser fiel ao objeto: é a estrutura e a dinâmica do objeto que comandam os procedimentos do pesquisador. O método implica, pois, para Marx, uma determinada posição (perspectiva) do sujeito que pesquisa: aquela em que se põe o pesquisador para, na sua relação com o objeto, extrair dele as suas múltiplas determinações” (Netto, 2009, p. 688-689). , não sendo um conhecimento absoluto e imutável. O próprio Marx (2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 259) considerou que a sociedade burguesa, sendo a organização histórica mais desenvolvida e diferenciada da produção social, constitui a possibilidade do autêntico movimento de revelação da realidade concreta, por isso a assertiva do autor:

A própria sociedade burguesa é apenas uma forma opositiva do desenvolvimento, certas relações pertencentes a formas anteriores nela poderão ser novamente encontradas quando completamente atrofiadas, ou mesmo disfarçadas. [...] em toda ciência histórica e social em geral é preciso ter sempre em conta, a propósito do curso das categorias econômicas, que o sujeito, nesse caso, a sociedade burguesa moderna, está dada tanto na realidade efetiva como no cérebro [...] (Marx, 2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 260-261).

É nessa direção que Marx, na Introdução de 1857 (Grundrisse) apresenta as categorias simples e concretas ou complexas (Cf. Marx, 2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.) como importante referência de seu método dialético, portanto significativo legado para hoje conhecermos, refletirmos e objetivarmos uma transformação na realidade.

Trata-se de uma importante ferramenta de construção do conhecimento científico que supõe, como lembra Netto (2009NETTO, J. P. Introdução ao método na teoria social. In: CFESS/ABEPSS. Serviço Social: direitos e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009.), o conhecimento do objeto em sua existência real, tal como ele é, no movimento efetivo da realidade.

As categorias simples são, para Marx (2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.), a manifestação do pensamento em que este ainda não apreendeu toda a riqueza das relações sociais em suas múltiplas determinações, e o concreto apresenta-se, ainda, pouco desenvolvido, porque as categorias simples estão subsumidas às categorias concretas ou complexas, inclusive existentes (categorias simples) em outras formas de sociedade, uma vez que a concreta ou a complexa conservam-se em sociedades menos avançadas (Cf. Marx, 2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.). Portanto, é nas categorias concretas que as determinações e as mediações com a totalidade podem ser reveladas, uma vez que a sociedade é uma totalidade, sendo possível por meio delas assimilar mentalmente e captar com profundidade.

O que, por outro lado, não é tarefa fácil, na sociabilidade burguesa e frente às distintas abordagens teórico-prática e ideopolítica que emergem no campo do conhecimento, além de sua inevitável articulação, no seu interior, com os projetos de sociedade como expressão da luta de classes, composta de diferentes abordagens teórico-metodológicas e que articulam respostas que são resultantes da teleologia humana.

Para Marx, o método de conhecimento do real que consiste “em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado” (Marx, 2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 255).

3. Pressupostos ontológico-sociais: práxis, trabalho e objetivação em Marx

Para Marx, o homem é um ser prático e social: um ser social que necessita crescentemente se objetivar para viver e se manter. Nesse passo, foi necessário se desligar e se diferenciar de outros seres da natureza, erguendo-se e impondo uma ação transformadora na natureza, conquistando capacidades humanas-genéricas (por meio de um sistema de mediações por ele construído) por meio do processo de trabalho como modelo da práxis, são elas: sociabilidade, consciência, universalidade e liberdade.

Com efeito, estamos afirmando que, do ponto de vista ontológico-social5 5 Lukács fala amplamente do significado ontológico da teleologia do trabalho, sublinha que as objetivações do ser social são resultado de um processo histórico e dialético que se manifesta na práxis social, a partir do ser natural. Considera que esse desenvolvimento “começa com um salto, com o pôr teleológico do trabalho, não podendo ter nenhuma analogia na natureza [...] A forma da posição teleológica enquanto transformação material da realidade é, em termos ontológicos, algo radicalmente novo” (Lukács, 1979, p. 17). , o trabalho é a mediação posta entre o homem e a natureza, e a síntese entre a teleologia humana6 6 Cabe destacar que “o trabalho é uma atividade projetada, teleologicamente direcionada, ou seja: conduzida a partir do fim proposto pelo sujeito. Entretanto, se essa prefiguração (ou, no dizer de Lukács, essa prévia ideação) é indispensável à efetivação do trabalho, ela em absoluto o realiza: a realização do trabalho só se dá quando essa prefiguração ideal se objetiva, isto é, quando a matéria natural, pela ação material do sujeito, é transformada. O trabalho implica, pois, um movimento indissociável em dois planos: num plano subjetivo (pois a prefiguração se processa no âmbito do sujeito) e num plano objetivo (que resulta na transformação material da natureza); assim, a realização do trabalho constitui uma objetivação do sujeito que o efetua” (Netto; Braz, 2006, p. 32). e a transformação material da natureza. O trabalho é a mediação fundante do próprio processo de criação do homem7 7 Notas de aula. Curso: O Método em Marx. Professora Maria Lucia Barroco. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. PUC-SP, 2o semestre/2014. , que contém todas as determinações fundamentais da práxis.

O que nos leva a conceber que “[...] o homem faz sua história com sua práxis e nela, e com ela, cria-se a si mesmo, produz-se a si mesmo” (Vázquez, 2007VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2007., p. 404). A práxis8 8 Kosík (2002) ressalta que a práxis é a esfera do ser humano, na sua essência e universalidade, é a própria revelação do homem como ser que cria e compreende a realidade. O que o autor chama de segredo do homem como ser autocriativo. “A práxis é ativa, é a atividade que produz historicamente - quer dizer, que se renova continuamente e se constitui praticamente -, unidade do homem e do mundo, da matéria e do espírito, de sujeito e objeto, do produto e da produtividade. Como a realidade humano-social é criada pela práxis, a história se apresenta como um produto prático no curso do qual o humano se distingue do não-humano: o que é humano e o que não é humano não são predeterminados; são determinados na história mediante uma diferenciação prática” (Kosík, 2002, p. 222). Netto e Braz (2006) destacam que a práxis, ao ter no trabalho o seu modelo que suponha todas as objetivações humanas, é mais do que o trabalho. Para os autores, nesse debate, é necessário destacar dois elementos: 1) “deve-se distinguir entre formas de práxis voltadas para o controle e a exploração da natureza e formas voltadas para influir no comportamento e na ação dos homens. No primeiro caso, que é o do trabalho, o homem é o sujeito, a natureza e o objeto; no segundo, trata-se de relações de sujeito a sujeito, daquelas formas de práxis em que o homem atua sobre si mesmo (como na práxis educativa e na práxis política)”; 2) “os produtos e obras resultantes da práxis podem objetivar-se materialmente e/ou idealmente: no caso do trabalho, sua objetivação é necessariamente algo material; mas há objetivações (por exemplo, os valores éticos) que se realizam sem operar transformações numa estrutura material qualquer” (Netto; Braz, 2006, p. 43-44). é a categoria que tem por modelo mais primário, concreto e elementar o trabalho. Aqui ela é concebida como a totalidade concreta das objetivações (Entäusserung)9 9 Para Lukács (1979, p. 43-44), “a objetividade é uma propriedade primário-ontológica de todo ente, afirma-se em consequência que o originário é sempre uma totalidade dinâmica, uma unidade de complexidade e processualidade” (grifo nosso). Para Netto; Braz (2006): “Quanto mais rico o ser social, tanto mais diversificadas e complexas são as suas objetivações. O trabalho, porém, não só permanece como a objetivação fundamental e necessária do ser social - permanece, ainda, como o que se poderia chamar de modelo das objetivações do ser social, uma vez que todas elas supõem as características constitutivas do trabalho” (p. 43). do ser social10 10 Cabe destacar que “o surgimento do ser social foi resultado de um processo mensurável numa escala de milhares de anos. Através dele, uma espécie natural, sem deixar de participar da natureza, transformou-se, através do trabalho, em algo diverso da natureza - mas essa transformação deveu-se à sua própria atividade, o trabalho: foi mediante o trabalho que os membros dessa espécie se tornaram seres que, a partir de uma base natural (seu corpo, suas pulsões, seu metabolismo etc.), desenvolveram características e traços que os distinguem da natureza. Trata-se do processo no qual, mediante o trabalho, os homens produziram-se a si mesmos (isto é, se autoproduziram como resultado de sua própria atividade), tornando-se - para além de seres naturais - seres sociais” (Netto; Braz, 2006, p. 43-44). Lukács (1979, p. 19), sublinha que o “ser social - em seu conjunto e em cada um do seu processo singular - pressupõe o ser da natureza inorgânica e orgânica. Não se pode considerar o ser social como independente do ser da natureza, como antíteses que se excluem, o que é feito por grande parte da filosofia burguesa”. , atividade criadora e transformadora, que não se esgota no trabalho, mas sim tem nele a sua instância privilegiada, seu núcleo de concretude, porque transforma o homem, originalmente um ser natural, de qualidade específica, em ser prático e social - ser social cuja ação é teleológica, intencional, consciente, dotada de liberdade para escolher entre as alternativas por ele construídas, universalizar-se e socializar-se.

Essas características prático-sociais do homem representam o resultado das objetivações que são por ele alcançadas. Por assim dizer, a objetivação é a própria práxis, como categoria mais abrangente, que envolve todas as objetividades humanas.

[...] Marx [...] atribui uma prioridade ontológica ao trabalho humano, atividade material nascida com a intervenção dos instrumentos de trabalho que medeiam o intercâmbio dos homens com a natureza e dos homens entre si. E como esses instrumentos não se encontram prontos na natureza, o homem se vê obrigado a, cada vez mais, fabricá-los: inicia-se, assim, o interminável processo de transformação do ambiente natural e humano, a incessante criação de mediações postas pelo processo de trabalho (Frederico, 1995FREDERICO, C. O jovem Marx: as origens da ontologia do ser social. São Paulo: Cortez, 1995., p. 174).

A objetivação, como categoria, é a condição prática e social sem a qual o homem não existiria, não se transformaria, nem se concretizaria como tal. A constituição e o processamento da sociedade expressam o próprio desenvolvimento do sistema de objetivações do ser social. O ser social, quanto mais se desenvolve, mais ricas e complexas tornam-se as suas objetivações. Frederico (1995FREDERICO, C. O jovem Marx: as origens da ontologia do ser social. São Paulo: Cortez, 1995.) destaca que são mudanças profundas e irreversíveis que o ser social provoca tanto na natureza como no mundo.

No processo de objetivação do ser social, está posta a relação orgânica e visceral entre teleologia humana (posição teleológica) e causalidades.

Para Lukács (2018LUKÁCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Revista Temas de Ciências Humanas, 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.giovannialves.org/Bases_Luk%E1cs.pdf . Acesso em: 14 abr. 2018.
http://www.giovannialves.org/Bases_Luk%E...
), a posição teleológica é uma particularidade do ser social, é um modo de pôr consciente, realizado pelo sujeito, modificando processos e objetos e que precisam ser pensadas sempre na relação com as causalidades.

O trabalho introduz no ser a unitária inter-relação, dualisticamente fundada, entre teleologia e causalidade; antes de seu surgimento havia na natureza apenas processos causais. [...] O modelo do pôr teleológico modificador da realidade torna-se, assim, fundamento ontológico de toda práxis social [...] (Lukács, 2010LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010., p. 44-45).

Destaca-se o papel ativo da consciência nas objetivações humanas. O ser social constrói alternativas e abre possibilidades de escolha entre elas. Por isso considerou Lukács (2018LUKÁCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Revista Temas de Ciências Humanas, 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.giovannialves.org/Bases_Luk%E1cs.pdf . Acesso em: 14 abr. 2018.
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, s/p.) que: “quando se diz que a consciência reflete a realidade e, sobre essa base, torna possível intervir nessa realidade para modificá-la, quer-se dizer que a consciência tem um real poder no plano do ser [...]”.

O ser social, ao agir intencionalmente, estabelece determinadas finalidades antecipando na consciência o projeto a ser perseguido, construindo infinitas objetivações. Nesse movimento, insere na realidade novas teleologias e causalidades.

A teleologia humana expressa capacidade do ser social de projetar e estabelecer objetivos, metas e fins, o que supõe sempre um projeto. Uma antecipação ideal que tem sempre um propósito, o que é percorrido por determinados valores que o expliquem e o legitimem socialmente. Portanto, que justifiquem as escolhas e os meios a serem utilizados para atingir determinada finalidade. Assim, a teleologia humana sendo a capacidade de projetar e construir um projeto que é colocado pela consciência, o que só existe no ser social, na sua relação com o mundo material, enfim, uma categoria que só se processa pela crescente transformação das causalidades.

As causalidades podem ser definidas como sendo tudo aquilo que o ser social se confronta na história. O que está no seu ambiente externo podendo ser tanto elementos da natureza ou aqueles por ele criado e que se impõe ao homem como força exterior quando for necessário transformar algo por seu projeto teleológico. A causalidade, como proposição elementar e fundamental, serve de base para o processamento e a realização das objetivações humanas, simultaneamente gerando novas causalidades, o que é determinado pela crescente alteração das suas bases naturais e sociais.

Nesses termos, a objetivação é a síntese entre teleologia e causalidade, desencadeadas pelo trabalho. É nessa direção que Lukács (1979LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979., p. 5) considera que:

o homem torna-se um ser que dá respostas precisamente na medida em que - paralelamente ao desenvolvimento social e em proporção crescente - ele se generaliza, transformando em perguntas seus próprios carecimentos e suas possibilidades de satisfazê-los; e quando, em sua resposta ao carecimento que a provoca, funda e enriquece a própria atividade com tais mediações bastantes articuladas. De modo que não apenas a responde, mas também a pergunta é um produto imediato da consciência que guia a atividade.

O ser social coloca crescentemente no seu habitat (que é a própria sociedade) um conjunto de infinitas objetivações que são duradouras (Netto; Braz, 2006NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006.), como a arte, a política, a ética, a filosofia, a religião, a justiça etc.; objetivações que não existiam na natureza e que ele, no seu processo crescente de socialidade e de domínio frente à natureza, constrói.

Nesse campo, entre as infinitas objetivações do ser social, estão as relações sociais de produção e reprodução que, por excelência, tecem a vida em sociedade e definem a produção social.

É importante destacar que a produção social é, para Marx, uma atividade social que envolve tanto as condições materiais de existência humana como, simultaneamente, um tipo determinado de relação social, de natureza histórica e transitória, que se modifica a cada etapa de desenvolvimento dos meios materiais de produção, constituindo o traço distintivo de uma sociedade para outra. Por isso, considera Marx as relações sociais de produção como produto da práxis, uma objetivação, uma totalidade.

A sociedade, na condição de produto do homem, pressupõe, na perspectiva marxiana, concebê-lo como o ser que se autoconstrói e que faz a sua história. Não como resultado de um ato isolado, mas sim como produto da interação com outros homens. Marx (2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 238) destaca que “o homem é [...] um zoonpolitikon, não só animal social, mas animal que só pode isolar-se em sociedade. A produção do indivíduo isolado fora da sociedade - uma raridade [...]”.

A sociedade como produto da ação do homem expressa uma totalidade complexa. Não é demais ressaltar que as objetivações do ser social estão visceralmente ligadas à consciência, à intencionalidade e à liberdade11 11 “A liberdade, bem como sua possibilidade, não é algo dado por natureza, não é um dom do ‘alto’ e nem sequer uma parte integrante - de origem misteriosa - do ser humano. É o produto da própria atividade humana, que decerto sempre atinge concretamente alguma coisa diferente daquilo que se propusera, mas que nas suas consequências dilata - objetivamente e de modo contínuo - o espaço no qual a liberdade se torna possível” (Lukács, 2018, p. 17). como capacidades conquistadas pelo homem. E, quanto mais o ser social se desenvolve, as suas objetivações tornam-se mais diversificadas no seu processo de desenvolvimento.

Netto e Braz (Id., p. 44) elucidam: “da práxis não resultam somente produtos, obras e valores que permitem aos homens se reconhecerem como autoprodutores e criativos”. É necessário que existam condições histórico-sociais para que as objetivações humanas sejam possíveis de serem reconhecidas como criação do próprio homem e não apareçam como distorções do real ou se apresentem ao ser social como relações entre coisas.

Nessa linha de argumentação, destaca-se a conhecida colocação de Marx (2002MARX, K. O 18 Brumário e Cartas a Kuglmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002., p. 21): “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.

Nesses termos, o trabalho configura-se como essência e realidade humana, que estão na existência real, concreta, do homem (Vázquez, 2007VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2007.); na sociedade capitalista se realiza pelo trabalho alienado, produzindo também uma essência alienada do ser social, movido na história pela contradição imanente “[...] de sua perda e de sua conquista […] rumo à sua verdadeira realidade humana” (Vázquez, 2007VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2007., p. 404). O que não está dado no plano imediato deve ser apreendido pelo homem como resultado da sua ação na história.

4. As categorias do método em Marx: práxis, totalidade, contradição e mediação

Para desvendar a sociedade capitalista, Marx parte da forma como os homens produzem a vida material e suas relações sociais de produção, elucidando uma categoria fundante no seu pensamento, a práxis.

A práxis como categoria fundante do pensamento de Marx expõe a qualidade própria, peculiar do ser social, mostra-se como uma categoria concreta, na qual existem as determinações e as mediações com a totalidade concreta, uma vez que expõe o grau de complexidade crescente do ser social.

Essa categoria expressa as objetivações do ser social ao longo da história como expressão das respostas crescentes que os homens constroem aos problemas diários que o interpelam -, núcleo de constituição e realização do ser social.

[...] a categoria de práxis permite a Marx compreender que, se cada objetivação humana é um ato teleológico, nem por isto há uma teleologia na história: a história é um campo aberto de possibilidade entre a liberdade concreta de cada sujeito e a necessidade e a legalidade objetiva que decorrem da interação das suas objetivações, que, efetivadas, desencadeiam processos que transcendem os sujeitos. A historicidade que Marx apreende na sociedade é-lhe imanente: resulta de que a sociedade é o processo global das objetivações sociais, sua produção e reprodução, suas interações (Netto, 1994NETTO, J. P. Razão, ontologia e práxis. Revista Serviço Social & Sociedade, n. 44, São Paulo: Cortez, 1994., p. 37).

O que faz com que as objetivações humanas sejam totalidades de menor complexidade que se interpõem, entrelaçando-se, e sejam determinações históricas, frutos e resultados da própria realidade objetiva que as engendra. O que está sendo dito é que se trata de “um sistema histórico-concreto de relações entre totalidades” (Netto, 1994NETTO, J. P. Razão, ontologia e práxis. Revista Serviço Social & Sociedade, n. 44, São Paulo: Cortez, 1994., p. 38), que move e dinamiza a vida cotidiana e sua estrutura. É dessa explicitação que outras totalidades de menor complexidade são constituídas, como o Estado, a Igreja, a família, as profissões, a escola, as classes etc.

A totalidade é uma categoria teórica, abstrata (Marx, 2009MARX, K. Miséria da filosofia: resposta à filosofia da miséria, do Sr. Proudhon. São Paulo: Expressão Popular, 2009.), reflexiva de desvendamento da essência de um determinado objeto, na sua particularidade e universalidade; está intrinsecamente articulada ao real, perpassando todas as instâncias da cotidianidade de sua dimensão heterogênea até sua homogeneidade.

A totalidade como categoria é impregnada de história, de movimento e expõe, como lembram Marx e Engels (1977MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã [I - Feuerbach]. São Paulo: Editorial Grijaldo, 1977.), a realidade como produto da práxis, em que está articulado o real pensado - o concreto pensado - recriando o concreto (a realidade) por meio do pensamento como processo de síntese (Marx, 2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.) para descobrir as determinações que estão no real, no momento presente, que também são produto da ação passada dos homens, mas não de forma alguma linear, a-histórica, mas sim em níveis sempre mais complexos.

Assim, o Estado, a Igreja, a família, a escola etc. - uma totalidade de menor complexidade - são formas históricas determinadas fundamentais à reprodução da sociedade, não se reproduzindo da mesma forma. Cada uma tem o seu próprio movimento, sua dinamicidade, seus ritos, formas, modos de ser e de aparecer na realidade concreta. Assim, não são fatos isolados e com movimentos autônomos.

Esta reprodução reflexiva do real se constitui numa complexa tarefa da razão humana, não sendo absolutamente um mecanismo automático. Para tal suceder é indispensável ao sujeito cognoscente uma incorporação das objetivações humanas, ou seja, é fundamental uma riqueza de conhecimentos de amplas esferas do saber humano. Isto pressupõe um brutal esforço da razão humana. Daí porque o método dialético exprime o caminho metodológico através de aproximações sucessivas, que significa uma sempre tendencial busca da totalidade, sem, todavia, alcançá-la como no “saber absoluto” hegeliano [...], em virtude da extrema complexidade das totalidades constitutivas da totalidade social concreta (Pontes, 1997PONTES, R. Mediação e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1997., p. 71-72).

Compreender esse pressuposto, conforme destaca Pontes (1997PONTES, R. Mediação e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1997.), exige expor os elementos formadores ou constitutivos da totalidade concreta, que é a sociedade capitalista. A totalidade é acompanhada de duas outras categorias centrais: negatividade e mediação, expressão do mesmo e do único processo que a engendra. Por isso, considera Netto (1994NETTO, J. P. Razão, ontologia e práxis. Revista Serviço Social & Sociedade, n. 44, São Paulo: Cortez, 1994. p. 38):

A totalidade concreta é dinamizada pela negatividade que atravessa os complexos de complexos que a constituem. O movimento de todas as instâncias do ser social resulta de serem elas constelações de forças cujo equilíbrio dinâmico (que lhe confere formas), rompe-se, do interior, por aqueles vetores que operam no sentido da desestruturação da forma por aqueles vetores que operam no sentido da desestruturação da forma estabelecida. Assim, a totalidade concreta só é dinâmica enquanto portadora de uma negatividade imanente que a processualiza - uma totalidade sem negatividade é uma totalidade morta. Mas a historicidade não se conforma num movimento unilinear: em cada totalidade constitutiva da totalidade social concreta, a negatividade que a dinamiza refrata-se de acordo com as suas particularidades - a negatividade realiza-se no marco de um sistema de mediações que responde, no movimento da totalidade social concreta, pelo desenvolvimento desigual das suas totalidades constitutivas através de mediações - uma totalidade imediata é uma totalidade amorfa, inestruturada.

O autor considera que o que dá forma à totalidade são as contradições (a negatividade) imanentes ao processo social e o que lhe dá movimento são as mediações, formando entre si uma relação de unidade na diversidade “[...]uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade” (Marx, 2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 253), a partir da ação recíproca de afirmação ou negação de uma determinada forma social.

Trata-se de uma relação visceral, amplamente interligada, interdependente da totalidade social, expressão simultânea das características peculiares de cada dimensão constitutiva. O que atravessa um sistema de mediações, construído pelo ser social, para responder às necessidades históricas, conforme anotou Marx (2004, p. 16):

[...] não é o maior ou menor grau de desenvolvimento dos antagonismos sociais oriundos das leis naturais da produção capitalista, mas estas leis naturais, estas tendências que operam e se impõem com férrea necessidade.

São leis históricas e tendenciais próprias da sociedade capitalista que expõem a legalidade do ser social (Pontes, 1997PONTES, R. Mediação e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1997.), o que para esse autor está imbricado na totalidade “[...] oculta pela névoa caótica da empiria” (Id., p. 75), do cotidiano, desprendida da particularidade, ou do campo de mediações. Por isso, para Pontes, a categoria mediação tem uma centralidade no núcleo categorial do método de Marx.

Para Netto (1989NETTO, J. P. Para a crítica da vida cotidiana. In: NETTO, J. P.; FALÇÃO, M. C. Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo: Cortez, 1989.):

a centralidade reside na sua estrutura ontológica da realidade e na sua reprodução pela razão teórica - só ela permite viabilizar a dinâmica da totalidade concreta. Na estrutura da realidade, é através do sistema de mediações que o movimento dialético se realiza: os processos ontológicos se desenvolvem, estruturas parciais emergem, se consolidam, entram em colapso etc. Na reconstrução do movimento da totalidade concreta, é a categoria da mediação que assegura a alternativa da “síntese das múltiplas determinações”, ou seja, a elevação do abstrato ao concreto - mais exatamente, assegurando a apreensão da processualidade que os fatos empíricos (abstratos) não sinalizam diretamente (Id., p. 81-82).

Nesses termos, Lukács (1979LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.) concebe não existir nenhum objeto (ou melhor, nenhuma objetivação) que não seja fruto das mediações humanas. Acrescenta ainda que a mediação é uma categoria de natureza ontológica e objetiva (e reflexiva), existindo na realidade independente do sujeito cognoscente.

A mediação como síntese categorial (síntese de determinações) é portadora de alto dinamismo e articulação no processo de construção do conhecimento teórico.

Conclusão

É conhecida a colocação de Marx (2017MARX, K. Posfácio da segunda edição. In: MARX, K. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 90), ao apresentar a fundamentação histórico-materialista do seu método, ao afirmar que convém diferenciar:

o modo de exposição segundo a sua forma, do modo de investigação. A investigação tem de se apropriar da matéria [Stoff] em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento do real.

Essa forma de expor o seu método revela a sua crítica e ruptura com a dialética hegeliana, destacando a sua radicalmente e a diferença em relação a seus fundamentos e à forma do pensamento ao se apropriar do objeto. Para Marx (2017MARX, K. Posfácio da segunda edição. In: MARX, K. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2017.), o objeto tem objetividade sócio-histórica em que o “ideal não mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem” (p. 90). Trata-se, assim de uma objetividade sócio-histórica, que só existe no gênero humano para conhecer e desvelar o tempo presente.

Lukács considera que, em Marx, existe uma verdadeira ontologia do ser social, cuja determinação central é o cariz revolucionário, ante as outras abordagens teórico-filosófico-políticas da realidade, que o diferenciou de toda ciência nova da sociedade burguesa. O que possibilitou ao homem explicar, de forma coerente, lógica e inteligente, os fenômenos desencadeados na realidade pela ação concreta e efetiva do próprio homem, por meio da ciência e da razão, da consciência filosófica, na qual o pensamento que concebe é o próprio homem (Marx, 2012MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.) como autor de sua existência na história.

Referências

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  • FREDERICO, C. O jovem Marx: as origens da ontologia do ser social. São Paulo: Cortez, 1995.
  • KOSIK, K. Dialética do concreto 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
  • LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.
  • LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
  • LUKÁCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Revista Temas de Ciências Humanas, 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.giovannialves.org/Bases_Luk%E1cs.pdf Acesso em: 14 abr. 2018.
    » http://www.giovannialves.org/Bases_Luk%E1cs.pdf
  • MARX, K. Introdução [à Crítica da Economia Política]. In: NETTO, José Paulo (org.). O leitor de Marx Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
  • MARX, K. O 18 Brumário e Cartas a Kuglmann Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
  • MARX, K. Miséria da filosofia: resposta à filosofia da miséria, do Sr. Proudhon. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
  • MARX, K. Posfácio da segunda edição. In: MARX, K. O Capital Livro I. São Paulo: Boitempo, 2017.
  • MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã [I - Feuerbach]. São Paulo: Editorial Grijaldo, 1977.
  • NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006.
  • NETTO, J. P. Razão, ontologia e práxis. Revista Serviço Social & Sociedade, n. 44, São Paulo: Cortez, 1994.
  • NETTO, J. P. Introdução ao método na teoria social. In: CFESS/ABEPSS. Serviço Social: direitos e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009.
  • NETTO, J. P. Para a crítica da vida cotidiana. In: NETTO, J. P.; FALÇÃO, M. C. Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo: Cortez, 1989.
  • PONTES, R. Mediação e Serviço Social São Paulo: Cortez, 1997.
  • VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da práxis São Paulo: Expressão Popular, 2007.
  • *
    Parte das reflexões contidas neste artigo foram originalmente objeto do trabalho final da disciplina “O método em Marx”, formulado com base na escolha de um dos temas tratados no curso. O referido trabalho foi incorporado ao primeiro capítulo da tese de doutoramento da autora, defendida na PUC-SP, em maio de 2019. Para esta publicação, o texto foi revisto e ampliado, com a finalidade de se adequar às exigências da publicação.
  • 1
    O curso foi ministrado pela professora Maria Lucia Silva Barroco, a quem agradecemos imensamente pelo rico debate, conduzido de forma acessível, o que possibilitou que novos caminhos fossem percorridos na trilha do conhecimento.
  • 2
    Destacam-se os extratos de Marx (Cf. Netto, 2012): Para a Crítica da filosofia do direito de Hegel: introdução; Sobre a Questão Judaica (Emancipação política e emancipação humana); Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844 (Trabalho alienado, propriedade privada e comunismo); Sobre a filosofia da miséria e carta a P. Annenkov; Elementos fundantes de uma concepção materialista e teses sobre Feuerbach; Introdução (à Crítica da Economia Política); Prefácio (à Crítica da Economia Política); Miséria da filosofia (Cap. II. A metafísica da economia política).
  • 3
    Coutinho (2010COUTINHO, C. N. Apresentação. LUKÁCS, G. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.) refere-se a: GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 6, 2020, p. 64-65.
  • 4
    Netto (2009NETTO, J. P. Introdução ao método na teoria social. In: CFESS/ABEPSS. Serviço Social: direitos e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009.), ao tratar da exposição do método de Marx, elucida: “[...] o método não é um conjunto de regras formais que se ‘aplicam’ a um objeto que foi recortado para uma investigação determinada nem, menos ainda, um conjunto de regras que o sujeito que pesquisa escolhe, conforme a sua vontade, para ‘enquadrar’ o seu objeto de investigação. Recordemos a passagem de Lênin que citamos: Marx não nos entregou uma Lógica, deu-nos a lógica d´O capital. Isto quer dizer que Marx não nos apresentou o que ‘pensava’ do capital: ele nos descobriu a estrutura e a dinâmica reais do capital; não lhe ‘atribuiu’ ou ‘imputou’ uma lógica: extraiu da efetividade do movimento do capital a sua (própria, imanente ao capital) lógica - numa palavra, deu-nos a teoria do capital: a reprodução ideal do seu movimento real. E para operar esta reprodução, ele tratou de ser fiel ao objeto: é a estrutura e a dinâmica do objeto que comandam os procedimentos do pesquisador. O método implica, pois, para Marx, uma determinada posição (perspectiva) do sujeito que pesquisa: aquela em que se põe o pesquisador para, na sua relação com o objeto, extrair dele as suas múltiplas determinações” (Netto, 2009NETTO, J. P. Introdução ao método na teoria social. In: CFESS/ABEPSS. Serviço Social: direitos e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009., p. 688-689).
  • 5
    Lukács fala amplamente do significado ontológico da teleologia do trabalho, sublinha que as objetivações do ser social são resultado de um processo histórico e dialético que se manifesta na práxis social, a partir do ser natural. Considera que esse desenvolvimento “começa com um salto, com o pôr teleológico do trabalho, não podendo ter nenhuma analogia na natureza [...] A forma da posição teleológica enquanto transformação material da realidade é, em termos ontológicos, algo radicalmente novo” (Lukács, 1979LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979., p. 17).
  • 6
    Cabe destacar que “o trabalho é uma atividade projetada, teleologicamente direcionada, ou seja: conduzida a partir do fim proposto pelo sujeito. Entretanto, se essa prefiguração (ou, no dizer de Lukács, essa prévia ideação) é indispensável à efetivação do trabalho, ela em absoluto o realiza: a realização do trabalho só se dá quando essa prefiguração ideal se objetiva, isto é, quando a matéria natural, pela ação material do sujeito, é transformada. O trabalho implica, pois, um movimento indissociável em dois planos: num plano subjetivo (pois a prefiguração se processa no âmbito do sujeito) e num plano objetivo (que resulta na transformação material da natureza); assim, a realização do trabalho constitui uma objetivação do sujeito que o efetua” (Netto; Braz, 2006NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006., p. 32).
  • 7
    Notas de aula. Curso: O Método em Marx. Professora Maria Lucia Barroco. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. PUC-SP, 2o semestre/2014.
  • 8
    Kosík (2002KOSIK, K. Dialética do concreto. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.) ressalta que a práxis é a esfera do ser humano, na sua essência e universalidade, é a própria revelação do homem como ser que cria e compreende a realidade. O que o autor chama de segredo do homem como ser autocriativo. “A práxis é ativa, é a atividade que produz historicamente - quer dizer, que se renova continuamente e se constitui praticamente -, unidade do homem e do mundo, da matéria e do espírito, de sujeito e objeto, do produto e da produtividade. Como a realidade humano-social é criada pela práxis, a história se apresenta como um produto prático no curso do qual o humano se distingue do não-humano: o que é humano e o que não é humano não são predeterminados; são determinados na história mediante uma diferenciação prática” (Kosík, 2002KOSIK, K. Dialética do concreto. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002., p. 222). Netto e Braz (2006NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006.) destacam que a práxis, ao ter no trabalho o seu modelo que suponha todas as objetivações humanas, é mais do que o trabalho. Para os autores, nesse debate, é necessário destacar dois elementos: 1) “deve-se distinguir entre formas de práxis voltadas para o controle e a exploração da natureza e formas voltadas para influir no comportamento e na ação dos homens. No primeiro caso, que é o do trabalho, o homem é o sujeito, a natureza e o objeto; no segundo, trata-se de relações de sujeito a sujeito, daquelas formas de práxis em que o homem atua sobre si mesmo (como na práxis educativa e na práxis política)”; 2) “os produtos e obras resultantes da práxis podem objetivar-se materialmente e/ou idealmente: no caso do trabalho, sua objetivação é necessariamente algo material; mas há objetivações (por exemplo, os valores éticos) que se realizam sem operar transformações numa estrutura material qualquer” (Netto; Braz, 2006NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006., p. 43-44).
  • 9
    Para Lukács (1979LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979., p. 43-44), “a objetividade é uma propriedade primário-ontológica de todo ente, afirma-se em consequência que o originário é sempre uma totalidade dinâmica, uma unidade de complexidade e processualidade” (grifo nosso). Para Netto; Braz (2006NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006.): “Quanto mais rico o ser social, tanto mais diversificadas e complexas são as suas objetivações. O trabalho, porém, não só permanece como a objetivação fundamental e necessária do ser social - permanece, ainda, como o que se poderia chamar de modelo das objetivações do ser social, uma vez que todas elas supõem as características constitutivas do trabalho” (p. 43).
  • 10
    Cabe destacar que “o surgimento do ser social foi resultado de um processo mensurável numa escala de milhares de anos. Através dele, uma espécie natural, sem deixar de participar da natureza, transformou-se, através do trabalho, em algo diverso da natureza - mas essa transformação deveu-se à sua própria atividade, o trabalho: foi mediante o trabalho que os membros dessa espécie se tornaram seres que, a partir de uma base natural (seu corpo, suas pulsões, seu metabolismo etc.), desenvolveram características e traços que os distinguem da natureza. Trata-se do processo no qual, mediante o trabalho, os homens produziram-se a si mesmos (isto é, se autoproduziram como resultado de sua própria atividade), tornando-se - para além de seres naturais - seres sociais” (Netto; Braz, 2006NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006., p. 43-44). Lukács (1979LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979., p. 19), sublinha que o “ser social - em seu conjunto e em cada um do seu processo singular - pressupõe o ser da natureza inorgânica e orgânica. Não se pode considerar o ser social como independente do ser da natureza, como antíteses que se excluem, o que é feito por grande parte da filosofia burguesa”.
  • 11
    “A liberdade, bem como sua possibilidade, não é algo dado por natureza, não é um dom do ‘alto’ e nem sequer uma parte integrante - de origem misteriosa - do ser humano. É o produto da própria atividade humana, que decerto sempre atinge concretamente alguma coisa diferente daquilo que se propusera, mas que nas suas consequências dilata - objetivamente e de modo contínuo - o espaço no qual a liberdade se torna possível” (Lukács, 2018LUKÁCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Revista Temas de Ciências Humanas, 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.giovannialves.org/Bases_Luk%E1cs.pdf . Acesso em: 14 abr. 2018.
    http://www.giovannialves.org/Bases_Luk%E...
    , p. 17).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2023
  • Aceito
    26 Out 2023
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