RESUMO
Apesar da recorrência documental, os incêndios contam com uma atenção difusa na historiografia. Sobretudo, aqueles que devastaram os espaços urbanos do Regnum Italicum entre 880 e 1080. Quando não naturalizam ocorrências desse tipo como fatalidades ou acidentes, as explicações vigentes os fazem figurar como casos de uma suposta desordem feudal, amplamente revista por historiadores. Quando se trata de compreender a história da calamidade das chamas urbanas, há muito por ser feito. Este artigo busca contribuir para esse empenho. Partindo da documentação diplomática e cronística, analisamos a significação e a maneira como tais referências são acionadas na composição dos registros escritos: os incêndios surgem como uma ação social e multidimensional. Além disso, buscamos explicar as mudanças associadas à natureza dessa prática. A hipótese de trabalho é de que o aparecimento documental dos incêndios pertencia a uma temporalidade política.
Palavras-chave:
incêndios; espaços urbanos; história política
ABSTRACT
Despite their documentary reoccurrence, fires have received sparse attention in historiography. Above all those which devastated the urban spaces of Regnum Italicum between 880 and 1080. When they do not naturalize occurrences of this type as fatalities or accidents, the explanations in force make them appear as cases of supposed feudal disorder, widely revised by historians. In relation to understanding the history of the calamity of urban fires, much needs to be done. This article seeks to contribute to this undertaking. Starting from diplomatic and chronicle documentation, we analyze their meaning and the way these references are used in the composition of the written records: fires emerge as a social and multidimensional action. Moreover, we seek to explain the changes associated with the nature of this practice. The hypothesis of this paper is that the documentary appearance of the fires belongs to a political temporality.
Keywords:
fires; urban spaces; political history
Nem guerras, nem revoltas. Os incêndios eram o mais frequente tormento da vida urbana no Regnum Italicum. É tarefa ingrata partir em busca de uma única cidade poupada pelo fogo. Entre 880 e 1080 elas estiveram constantemente entregues ao apetite das chamas. A certa altura, a documentação parece vencer pela insistência do vocabulário, levando até o leitor mais crítico a cogitar que os medievais tinham razão ao tratar aqueles acontecimentos como castigos que antecediam o julgamento final. Como um quinto cavaleiro apocalíptico, o incêndio agia ao feitio da peste ou da fome: vagando mundo afora, retornava de tempos em tempos e expurgava justos e pecadores num tomento derradeiro, como insistiam os textos do século X (DD K I / DD H I / DD O I, 1884DD K I / DD H I / DD O I: Diplomata Konrad I, Heinrich I und Otto I. Ed. Societas Aperiendis Fontibus. MGH, 1884., p.225, 355, 377-379, 378, 532, 590).
Mas episódios assim chamam atenção não só pela recorrência. O impacto acarretado sobre as relações sociais era imediato e prolongava-se para além da destruição material. Uma vez aberta a cortina de fumaça e revelados os esqueletos enegrecidos de casas e edifícios, não era preciso esperar muito para a área atingida se tornar palco da mobilização de imperadores, reis, bispos e aristocratas. Como veremos a seguir, as medidas por eles proclamadas faziam mais do que reparar os danos e reconstruir a paisagem: elas convertiam a devastação em uma ocasião para alterar e expandir não só a topografia urbana, mas as práticas sociais até então vigentes.
Embora deixassem marcas frequentes e extensas no tecido da vida social, os incêndios não atraíram uma atenção detida por parte dos historiadores. Não encontramos um único estudo a respeito de sua incidência no Regnum Italicum entre os séculos IX e XI. Talvez o leitor pense se tratar de um recorte muito específico, assaz minúsculo para que essa ausência fosse sentida como lacuna relevante. É preciso lembrar: o reino em questão compreendia uma das áreas mais urbanizadas do Ocidente. Há décadas sociólogos e historiadores o enxergam como a peça-chave de grandes transformações: da "reabertura do Mar Mediterrâneo", da "vanguarda do movimento comunal", da "difusão do capitalismo mercantil" (Nicholas, 2014NICHOLAS, David. The Growth of the Medieval City: From Late Antiquity to the Early Fourteenth century. New York: Routledge, 2014., p.54-168; Holton, 2013HOLTON, R. J. Cities, Capitalism and Civilization. London: Allen & Unwin, 2013., p.33-115). Se considerarmos a frequência com que as cidades do reino eram enxameadas pelo fogo, a ausência de pesquisas se faz sentir como um angustiante ponto cego do conhecimento histórico.
Quando se sai em busca de estudos que ajudem a compor um quadro explicativo, vem a constatação: não é que os incêndios sejam ignorados. As menções a eles estão por toda parte - desde obras gerais (Borst, 1990BORST, Arno. Forme di vita nel Medioevo. Napoli: Guida, 1990., p.634; Eco, 2010ECO, Umberto (Ed.) Il Medioevo: barbari, cristiani, musulmani. Milano: Encyclomedia, 2010., p.269-273) a artigos especializados (Ewert, 2007EWERT, Ulf Christian. Water, public hygiene and fire control in medieval towns: facing collective goods problems while ensuring the quality of life. Historical Social Research, v.32, n.4, p.222-251, 2007., p.222-251). No entanto, quando não passa disso - de alusões passageiras -, a atenção que recebem é difusa. Afinal, a atitude mais comum é a de embaralhá-los dentro da categoria de "desastres naturais", fazendo-os figurar ao lado de terremotos, enchentes e secas. Relacionados assim, como item de uma lista de fenômenos cuja eclosão não pressupõe a ação humana, eles se tornam um dado, quase um fenômeno ecológico. Por isso, em estudos como os de Jean-Pierre Leguay (2005)LEGUAY, Jean-Pierre. Les catastrophes au Moyen Age. Paris: Éd. Jean-Paul Gisserot, 2005. e Steven Epstein (2012)EPSTEIN, Steven. The Medieval Discovery of Nature. Cambridge: Cambridge University Press, 2012., os incêndios compõem o ambiente que contorna a vida urbana, rodeando-a de desafios e fatalidades. Eles fazem parte do pano de fundo do cotidiano, misturados à paisagem hostil que homens e mulheres colonizavam pacientemente, manejando as soluções técnicas abrigadas nas dobras de mentalidades mágicas e escatológicas. Por isso, concluiu Johan Goudsblom (1992)GOUDSBLOM, Johan. Fire and Civilization. London: Penguin, 1992., o embate entre as sociedades pré-industriais e o fogo teria sido etapa essencial do processo civilizador que distinguiu o Ocidente no controle do mundo físico e o dispôs nos trilhos da hegemonia global.
Quando são trazidos para o primeiro plano e fixados pelos autores no centro da trama histórica, os incêndios são acontecimentos de um realismo inquestionável. Quando Thomas Madden (1991/1992MADDEN, Thomas F. The fires of the Fourth Crusade in Constantinople, 1203-1204: a damage assessment. Byzantinische Zeitschrift, v.84/85, p.72-93, 1991/1992., p.72-93) se propôs a analisar como os cruzados de 1203 transformaram Constantinopla num inferno à beira-mar, esclareceu desde as primeiras linhas: o objetivo consistia em oferecer uma descrição mais precisa da calamidade. O estudo era uma chance para levar o leitor a percorrer a rota da propagação do fogo, da deflagração até as estimativas dos efeitos sobre a densidade populacional. Uma postura semelhante foi adotada por Philippe Goldman (1987)GOLDMAN, Philippe. 1487, la vieille ville en flammes: cinquième centenaire du grand incendie de Bourges. Bourges: Université Populaire, 1987. e Christine Felicelli (2002)FELICELLI, Christine. Le feu, la ville et le roi: l'incendie de la ville de Bourges en 1252. Histoire urbaine, v.5, n.1, p.105-134, 2002. a respeito das devastações de Bourges em 1252 e 1487. Neste caso, o empenho recai, fundamentalmente, na abordagem quantitativa, de modo que os números conjuguem a dimensão da tragédia e das reações para repará-la.
Estudos desse tipo têm a nítida vantagem de enxergar o incêndio como uma ocorrência aberta a novas indagações. Thomas Madden, por exemplo, demonstra o quanto o tema tem a dizer ao saber histórico explorando a hipótese de a calamidade ocorrida em Constantinopla não ter sido mero acidente ou fatalidade, mas uma arguta "estratégia pirotécnica de conquista" (Madden, 1991/1992MADDEN, Thomas F. The fires of the Fourth Crusade in Constantinople, 1203-1204: a damage assessment. Byzantinische Zeitschrift, v.84/85, p.72-93, 1991/1992., p.72). Colocando a questão sob este ângulo, o autor proporciona uma redescoberta do assunto: nos damos conta de que um incêndio pode ser um fenômeno tão complexo quanto uma prática religiosa ou um indicador econômico.
Mas, ao menos num aspecto, a vantagem se faz controversa. Justamente por apresentar tais episódios como desfechos terríveis de relações sociais, abordagens como essa fazem o tema refletir a imagem de uma época que teria naufragado na desordem e brutalidade. Nessa perspectiva, os incêndios são uma modalidade da violência que, onipresente, teria sufocado a vida social há mil anos. Afinal, o que mais esperar de um período em que viver "pela espada e pelo fogo" era a sina diária imposta pela "crueldade e atrocidade da guerra medieval" - conforme as palavras escolhidas por Sean McGlynn (2014)McGLYNN, Sean. By Sword and Fire: cruelty and atrocity in Medieval Warfare. London: Orion Publishing Group, 2014. para estampar um célebre estudo?
Há mais de 20 anos, trajetórias de pesquisa, como as de Stephen White (2003______. Tenth Century Courts and the Perils of Structuralist History. In: BROWN, Warren; GÓRECKI, Piotr (Ed.) Conflict in Medieval Europe: Changing Perspectives on Society and Culture. London: Ashgate Press, 2003. p.37-68., p.37-68; 2005WHITE, Stephen. Feuding and Peacemaking in Eleventh Century France. Aldershot: Ashgate, 2005.) e Dominique Barthélemy (1997BARTHÉLEMY, Dominique. La mutation de l'an mil a-t-elle eu lieu?Paris: Fayard, 1997.; 2009______. The serf, the knight, and the historian. Ithaca, NC: Cornell University Press, 2009.), têm demonstrado o quanto essa ênfase a respeito da violência medieval foi exacerbada por pressupostos contemporâneos. Isto de tal modo que não seria desmedido qualificar tal ênfase como "mistificada". É preciso, portanto, desafiar esse enquadramento e buscar uma nova perspectiva. Eis o que pretendemos fazer neste artigo. A documentação a respeito dos casos de incêndio no Regnum Italicum entre os séculos IX e XI contém elementos que ultrapassam ambas as caracterizações dominantes: tanto aquelas que os emolduram como "desastres naturais" quanto estas que os inserem no rol de "consequências de uma violência feudal desordenada". Não só isso! Acreditamos haver indícios suficientes para defender esta hipótese: a recorrência documental acerca dos incêndios urbanos consiste em uma estratégia de legitimação de novas prerrogativas políticas, notadamente da ascensão do poder episcopal como cofundador da ordem pública.
Dedilhado o propósito que dá forma às páginas a seguir, passemos à argumentação.
O INCÊNDIO, NÊMESIS DA ORDEM PÚBLICA (880-960)
Não se sabe ao certo quando ocorreu. Mas, em algum momento do ano de 894, as ruas de Mântua arderam num fogaréu a céu aberto. Apanhadas entre os muros da antiga cidade, as labaredas varreram as vielas e tomaram o rumo da igreja. O bispo Eginulfo (?-896?) nada pôde fazer. Quando o calor cedeu, veio a certeza do desastre. O fogo fizera mais do que chamuscar paredes e tetos: ele reduziu a cinzas os registros eclesiásticos. Os documentos e as cartas que diferentes reis e algumas linhagens locais haviam mandado redigir como memória das doações concedidas ao clero estavam perdidos, consumidos pela combustão infernal. Sem testemunhos escritos, o patrimônio clerical estava em risco. Desarmados da autoridade da palavra grafada, os prelados estavam vulneráveis, expostos a contestações e apropriações sacadas subitamente em nome de um dos incontáveis costumes locais. Para impedir que os bens fossem tomados ou invadidos, o rei Berengário I (850?-924) emitiu novo documento, confirmando as posses vinculadas ao bispado de Mântua (D BI, 1930D BI: I diplomi di Berengario I. Ed. Luigi Schiaparelli. Roma: Istituto Storico Italiano, 1930., p.41-46).
A medida, todavia, era mais que uma restauração. Berengário não se limitou a tentar preservar as posses da destruição. Ele conferiu a Eginulfo o exercício de novas prerrogativas. Os primeiros itens da lista de benesses eram as taxações públicas do toloneum e do ripacitum: autorizações de cobranças sobre as vias terrestres e fluviais. A partir de então, o bispo poderia exigir pagamentos de qualquer vivalma que perambulasse pelas estradas locais ou atracasse no porto da cidade. O texto prossegue, abarrotando as mãos sacerdotais de privilégios: a ilha Revere, a tributação sobre os mercados anuais, a cunhagem da moeda. Porém, um privilégio chama atenção. Ciente de que as novas concessões poderiam fomentar disputas - ao ponto de envolver juízes investidos de "funções públicas" (publicae functionae) -, Berengário conferiu ao bispo e sucessores a garantia de defender seus bens e direitos mediante uma inquirição de homens da região. Bastava reunir alguns indivíduos idôneos e conseguir que jurassem a respeito da retidão do que era reclamado pelo eclesiástico. Os testemunhos assim obtidos seriam a própria verdade sobre o assunto (rei veritas) e esta não poderia ser negada por poder judiciário algum (iudiciare potestatis), pouco importava se duque, marquês ou conde (D BI, 1930D BI: I diplomi di Berengario I. Ed. Luigi Schiaparelli. Roma: Istituto Storico Italiano, 1930., p.44-45).
Era a inquisitio. Conceder essa prerrogativa era uma medida recorrente nos episódios de incêndio no Reino Itálico. Ela reaparece com certa insistência. Após Piacenza flamejar, em 931, um diploma foi emitido para lembrar que a igreja local gozava daquele privilégio havia 50 anos, quando fora concedido por Carlos III (839-888) (D ULBAII, 1924D ULBAII: I diplomi di Ugo e di Lotario di Berengario II e di Adalberto. Ed. Luigi Schiaparelli. Roma: Istituto Storico Italiano, 1924., p.79-81; DD CIII, 1937DD CIII: Diplomata Karl III. Ed. Philippe Kehr. MGH, 1937., p.67). Em 920, o mesmo Berengário que socorrera Mântua assegurou-a ao bispo de Parma: após se inteirar da notícia de que um flagelo divino transformara as paróquias locais em fornalha ao ar livre, ele determinou que a Igreja parmense conservasse e defendesse os bens reivindicados por seu pastor mediante a inquirição (D BI, 1930D BI: I diplomi di Berengario I. Ed. Luigi Schiaparelli. Roma: Istituto Storico Italiano, 1930., p.336-338; Affò, 1792AFFÒ, Ireneo. Storia dela Città di Parma. Parma: Stamperia Carmignani, 1792. v.2., p.322-333; Drei, 1924DREI, Giovanni (Ed.) Le carte degli Archivi Parmensi dei sec. X-XI. Parma: Officina Grafica Freschino, 1924. v.1., p.55-56). O episódio se repete mais de 20 anos depois. A inquisitio é novamente concedida ao prelado parmense. Desta vez, pelos reis Hugo (880-947) e Lotário (925?-950) - pai e filho, corregentes. Não era mera confirmação da doação de um predecessor, mas uma nova concessão. A razão para isso parecer ter sido simples: no ano de 943, a cidade voltou a crepitar (D ULBAII, 1924D ULBAII: I diplomi di Ugo e di Lotario di Berengario II e di Adalberto. Ed. Luigi Schiaparelli. Roma: Istituto Storico Italiano, 1924., p.216-219). Cada incêndio exigia uma concessão. Diante de uma ocorrência como aquela a voz encarregada de manter a res publica deveria agir, criar, fundar: não somente perpetuar o que já existia.
A leitura da documentação avança e, com ela, a impressão de que tais casos revelam um padrão. Os incêndios provocavam respostas recorrentes. Sim, de fato havia um padrão. Mas, cautela! Ele é menos óbvio do que se insinua à primeira vista. Não se trata da inquisitio em si. Afinal, nem todos os episódios de destruição pelas chamas acarretavam sua concessão. Quando os magiares atearam fogo em Aquileia, no ano de 904, Berengário atendeu às súplicas da rainha e do patriarca, confirmando todas as posses da Igreja local - sem qualquer menção ao privilégio da inquirição (D BI, 1930D BI: I diplomi di Berengario I. Ed. Luigi Schiaparelli. Roma: Istituto Storico Italiano, 1930., p.143-145). O mesmo se deu com o mosteiro da Santa Ressurreição, em Piacenza. Embora contasse com a intercessão da rainha Bertilha (860?-915), o abade não obteve aquela prerrogativa quando o monarca confirmou a posse do patrimônio que havia sido devastado pelos ataques magiares (D BI, 1930D BI: I diplomi di Berengario I. Ed. Luigi Schiaparelli. Roma: Istituto Storico Italiano, 1930., p.155-158).
Mas a concessão nem sempre seguia um episódio de incêndio. Em 888, o mesmo rei garantiu ao abade de Bobbio: bastava amealhar o "testemunho de homens idôneos" (idoneos homines quorum testimonium) para defender suas possessões de toda violência - inclusive do próprio bispo (D BI, 1930D BI: I diplomi di Berengario I. Ed. Luigi Schiaparelli. Roma: Istituto Storico Italiano, 1930., p.5). Em momento algum a decisão é atribuída ao fato de o mosteiro ter sido tomado por chamas. A ausência também é notada nas decisões de Carlos III. Entre 879 e 882, ele depositou a inquisitio em mãos eclesiásticas ao menos nove vezes: em nenhuma a devastação pelo fogo foi mencionada como motivo (DD CIII, 1869, p.18-19, 33-36, 51-64, 67-68, 72-79, 90-92). O mesmo se passou com o abade de Santa Maria di Gazo, mosteiro situado na diocese de Verona, em 890; com o bispo de Módena, 8 anos depois (D BI, 1930D BI: I diplomi di Berengario I. Ed. Luigi Schiaparelli. Roma: Istituto Storico Italiano, 1930., p.31-33, 72-74); o superior monástico de São Pedro in Cielo d'Oro, em Pávia, em 929; e, a partir de 947, em relação à defesa das terras vinculadas à igreja de São João Domnarum, localizada também em Pávia (D ULBAII, 1924D ULBAII: I diplomi di Ugo e di Lotario di Berengario II e di Adalberto. Ed. Luigi Schiaparelli. Roma: Istituto Storico Italiano, 1924., p.54-63, 242-247). Ao receber a prerrogativa em questão, nenhum deles foi evocado como vítima de uma queimada inclemente.
Mas, então, que padrão há naqueles casos? A resposta surge à medida que indagamos o efeito da inquisitio, indo além de sua descrição. Retornemos a ela, pois é o fio condutor para uma constatação decisiva. Ao concedê-la, a figura reinante investia a autoridade eclesiástica de uma faculdade judiciária: descobrir e provar a verdade sobre um litígio. Até então esse era um papel cabível a juízes palacianos, os aristocratas a quem o monarca delegava a jurisdictio, isto é, o poder de "dizer a justiça". Dessa maneira, bispos e abades eram reposicionados na ordem política do Reino Itálico, assumindo uma maior margem de interferência nas práticas de governo da res publica - assim os documentos se referem ao reino. A concessão integrava o vasto rol de medidas que formavam o processo de ascensão dos agentes eclesiásticos sobre os espaços governamentais seculares. Embora tal ascensão estivesse arraigada no tempo, com raízes cravadas desde a Antiguidade Tardia, considera-se que sua concretização decorreu, sobretudo, das transformações da era carolíngia (Tabacco, 2000TABACCO, Giovanni. Dai re ai Signori: forme di trasmissione del potere nel Medioevo. Torino: Bollati Boringhieri, 2000., p.1566; D'Acunto, 2002D'ACUNTO, Nicolangelo. Nostrum Italicum Regnum: aspetti della politica italiana di Ottone III. Milano: Vita e Pensiero, 2002., p.119-158; Althoff, 2004ALTHOFF, Gerd. Family, Friends and Followers: political and social bonds in Early Medieval Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2004., p.65-101; Leyser, 1982LEYSER, Karl. Medieval Germany and its neighbours: 900-1250. London: The Hambledon Press, 1982., p.69-102; Reuter, 2011REUTER, Timothy. A Europe of bishops: the age of Wulfsan of York and Buchard of Worms. In: KORNTGEN, Ludger; WASSENHOVEN, Dominil (Ed.) Patterns of Episcopal Power: bishops in Tenth and Eleventh Century Western Europe. Berlin: De Gruyer, 2011. p.17-38., p.17-38). Conclui-se que "há tempos historiadores comentam a respeito da relação especial que existia entre bispos e governantes, uma relação de controle, cooperação e confiança que atingiria seu zênite sob os reis Otônidas do século X" (Gilsdorf, 2014, p.126).
Os termos escolhidos nesta citação são cruciais: "uma relação de controle, cooperação e confiança". Devem ser realçados, pois são emblemáticos da interpretação que partilhamos, a de que tal ascensão se dava através da autoridade monárquica, não à sua revelia ou como fenômeno paralelo, concorrente. Tratava-se de um vínculo de fortalecimento mútuo, não de uma transferência de atribuições que, levada adiante, acabaria por esvaziar a voz régia de qualquer poder efetivo. É precipitado considerar tais relações como atos de uma política decadente, que desmoronava sob os golpes das "forças feudais" encarnadas como magnatas da terra. A vinculação de mais agentes à condução das funções judiciárias não deve ser vista como uma "des-centralização", como se "des-fizesse" uma correta ordem das coisas. Uma concessão como a da prerrogativa de inquirição não torna a figura monárquica dispensável. Ao contrário, a voz coroada tinha a condição de fundamento das ações decisórias reafirmada. Ao conceder uma garantia como aquela, o rei não a subtraía de sua autoridade, como se renunciasse a ela e a depositasse por inteiro em mãos alheias: ele a convertia numa extensão de competências das quais só ele poderia dispor - e pelas quais respondia como juiz último. A doação régia não transferia o poder público. Ela antes o prolongava.
Vista sob este prisma, a inquisitio torna-se um indicador fundamental. Consideremos os impactos da prática, não apenas o gesto em si: ela proporcionava a afirmação e a expansão da autoridade pública. Esse aspecto acompanha todos os relatos de incêndio que encontramos. Ele se faz presente mesmo quando o direito à inquirição não é mencionado. É caso de Pádua, em 912. Após ter sido arruinada pelas chamas ateadas pelos "pagãos invasores" - os magiares -, o bispo Síbico (?-920?) recebeu de Berengário a confirmação do patrimônio reclamado para a igreja local. Isso sem receber o direito de recorrer ao testemunho de homens locais como prova judiciária. Mas não era tudo. O paduano recebeu algo mais: a autorização para iniciar a construção de castelos (sua adquirere potuerint terram castella aedificare), todos diretamente submetidos ao controle episcopal para sustentar a defesa contra novos ataques (D BI, 1930D BI: I diplomi di Berengario I. Ed. Luigi Schiaparelli. Roma: Istituto Storico Italiano, 1930., p.220-222). Nos séculos IX e X, um castelo era mais do que um enclave territorial ou um bastião de defesa: era o eixo de um reordenamento jurídico da vida em seu entorno, processo que ficou conhecido como incastellamento. Uma fortaleza era o centro do qual emanava uma nova malha de relações de controle, tributação e proteção (Toubert, 1973TOUBERT, Pierre. Les Structures du Latium Médiéval. Roma: B.E.F.A.R., 1973. 2v.). Nesse sentido, a prerrogativa da edificação dos castelos e a inquisitio são intercambiáveis. Ou seja, em seu fundamento, elas cumpriam a mesma função: ir além da restauração e ampliar o exercício das funções públicas.
Em 904, no caso mencionado de Aquileia, a ausência da prerrogativa da inquirição foi sanada pela doação de extenso patrimônio nas localidades de Cormons e Cividale. Nesta última, o patriarca recebeu o controle sobre a chamada porta de São Pedro, a entrada citadina que era "reconhecida como pertencente à parte pública e régia" (prout publice et regie parti pertinuisse perpenditur) (D BI, 1930D BI: I diplomi di Berengario I. Ed. Luigi Schiaparelli. Roma: Istituto Storico Italiano, 1930., p.143-145). Quase duas décadas depois, quando foi a vez de a cidade arder sob um ataque magiar, Berengário agiu de maneira semelhante. Embora prosseguisse sem conceder a inquisitio, ele assegurou ao patriarca Frederico (?922) a posse de um castelo em Pozzuolo, no interior rural de Cividale. Enaltecida como dádiva imperial, a fortaleza trazia consigo "extensões e pertences, junto aos poderes judiciários, discricionais e proprietários legítimos no raio de uma milha" (suis apendiciis et pertinentiis simul cum iudiciariis et districtionibus atque proprietaribus ... in circuitu ipsius Castelli ex omni parte quantum extenditur ad spatium unius milliarii legitimi) (D BI, 1930D BI: I diplomi di Berengario I. Ed. Luigi Schiaparelli. Roma: Istituto Storico Italiano, 1930., p.349).
Esse é o padrão. As referências a incêndios são seguidas de perto por medidas que vão além da reparação da destruição. Elas surgem como ocasiões trágicas que o poder monárquico transformou em mobilizações de expansão da ordem pública. Tais referências escritas eram estratégias de enunciação da eficiência de governo. O que leva à conclusão: entre os séculos IX e X, incendium é um vocábulo político. Afirmá-lo não significa reduzir seu aparecimento textual à condição de metáfora. "Incêndio" e "incendiar" não podem ser considerados variações de uma convenção linguística, de uma ideia acionada por uma ordem do discurso e nada mais. Mas implica, isto sim, reconhecer tais termos como multidimensionais: no instante em que enunciam uma tragédia material eles dizem algo mais. Sua significação não se esgota na referência a uma calamidade, mas comunica, simultaneamente, predicados outros. Como o elo de um universo linguístico dinâmico, não como ideia cristalizada (Kleinhenz, 1976KLEINHENZ, Christopher. Medieval Manuscripts and Textual Criticism. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 1976.), a noção de incêndio punha muito jogo. Ela era vasta o suficiente para abarcar uma constelação de implicações que, nós, leitores do século XXI, dividimos como assuntos diferenciados: políticos, culturais ou econômicos. Como nome cabível a uma experiência humana, os incêndios eram uma calamidade insaciável, que abocanhava mais e mais desdobramentos da - e sobre a - vida social.
Arrisca-se ao reducionismo quem os aproxima de um "desastre natural" - como faz uma parcela da historiografia, mencionada no início deste artigo. Trata-se de um vocábulo que diz mais do que isso. Seu registro pressupunha relações eminentemente políticas. Contudo, se as elites do Regnum Italicum mencionavam-no com assustadora frequência, não era em razão de uma desordem feudal, como se as chamas fossem parte das ondas de impacto causadas por explosões de violência desregrada, irracional - como termina por fazer a outra perspectiva de estudos, discutida nas páginas iniciais. Entre 880 e 960, os incêndios inflamavam a autoridade régia, provocando-a a reafirmar a presença da governança. Ao consumir estruturas materiais, eles chamuscavam algo menos palpável, mas igualmente real: o sentimento de seguridade, a eficácia da proteção, o senso de obediência. Por isso não bastava reocupar espaços, substituir bens e reerguer edificações. Era necessário renovar o modo de vida que repousava sobre tais coisas. Desdobrar as regras, multiplicar as leis, somar outros meios de resposta - essas eram as maiores urgências deixadas pela fúria das chamas. Nas cidades do Regnum Italicum, os incêndios eram vividos como ocorrências de fortalecimento e expansão da res publica.
AS CHAMAS COMO OVELHAS PASTOREADAS PELO BISPO (960-1030)
Após os otônidas, o fogo urbano se volta contra os monarcas do Reino itálico. O papel de redentores da calamidade segue o destino do sangue de Oto I (912-973). Enquanto o último de seus parentes era entregue ao pesado sono dos mortos, os incêndios surgem nas narrativas documentais como ameaças aos novos governantes. Após subirem ao trono com Conrado II (990?-1039), em 1024, os sálios já não surgem como aqueles que despontam após a tragédia derramando garantias de ordem. Eles são descritos no centro das catástrofes, encurralados como os demais citadinos, com suas coroas reluzindo à aproximação das chamas.
A imagem passou a rondar a figura do primeiro nome da dinastia, o próprio Conrado. Em 1037, durante sua segunda expedição à península, o Imperador dos romanos e rei itálico se dirigiu à cidade de Parma, onde assistiria às celebrações de Natal conduzidas pelo bispo Hugo. Acolher tão augusto hóspede era uma distinção extraordinária para o prelado - e um fardo quase insuportável para a cidade. Os parmenses se viram repentinamente obrigados a oferecer abrigo e alimentos para uma multidão de homens armados. Pois antes de cruzar os Alpes, o soberano convocou seus vassalos e exigiu o cumprimento das obrigações militares. Eles deveriam reunir tantos guerreiros quanto pudessem e escoltá-lo pela península. Quando surgiu na passagem do gélido norte, Conrado era seguido por uma coluna militar extensa o suficiente para combater rebeldes cristãos e rivais sarracenos por mais de um ano. E, naquele mês de dezembro, essa massa humana convergiu para Parma. Apinhada de gente, a cidade transbordou tensões. Segundo Wipo (995?-1048?), capelão imperial, no dia seguinte às missas natalinas, um tumulto estourou entre teutônicos e parmenses. Como fagulha em palheiro seco, as agressões descambaram para uma luta generalizada, com os citadinos avançando sobre o exército com espadas em punho e archotes rabiscando o ar. O sangue derramado foi como combustível para as chamas. Seguiu-se um incêndio, que consumiu grande parte da cidade (Wipo, Gesta Chuonradi II imperatoris, 1915WIPO. Gesta Chuonradi II imperatoris. MGH SS. rer. Germ. 61, 1915., p.57).
Quando a destruição finalmente cessou, o imperador não distribuiu benesses. Agiu em sentido oposto. Ultrajado, Conrado foi inclemente. Logo após o incêndio, ele ordenou que os muros da cidade fossem colocados abaixo: que a ruína de Parma demonstrasse às cidades vizinhas o preço a ser pago pela presunção de acuar o monarca (Wipo, Gesta Chuonradi II imperatoris, 1915WIPO. Gesta Chuonradi II imperatoris. MGH SS. rer. Germ. 61, 1915., p.57). Eis aí algo a ser notado com atenção redobrada. A derrubada da amurada era uma punição política. Afinal, o cinturão de pedra marcava a identidade citadina e, naquela época, tornava-se um poderoso símbolo de governo: ele delimitava a extensão de um conjunto demográfico cada vez mais ciente de suas particularidades. Era o limite visível de uma unidade política emergente. Era a borda que retinha interesses e valores específicos, e que, distintos do entorno rural, seriam razão para leis e costumes diferenciados. No caso de Parma, o papel dos muros como símbolo de uma consciência citadina era, provavelmente, realçado pela antiguidade da construção, pois os paredões pareciam estar ali há mais tempo do que a memória: eram anteriores ao próprio nascimento de Cristo (Gonella, 2008GONELLA, Giacomo. The history of Early Medieval towns of north and central Italy: the contribution of archaeological evidence. Oxford: Archaeopress, 2008., p.17). Ao reduzir os muros a destroços, Conrado buscou diminuir, drasticamente, o lugar cabível a Parma na ordem pública imperial. A nudez material era um despojamento jurídico. Afinal, ao desfigurá-la como zona fortificada, ele fazia desaparecer os limites que a demarcavam como detentora de uma jurisdição própria (Fichtenau, 1984FICHTENAU, Heinrich. Living in the Tenth Century: mentalities and social orders. Chicago: University of Chicago Press, 1984., p.202).
É preciso esclarecer. Não sugerimos que a medida foi tomada em resposta ao incêndio. Isso seria uma extrapolação das evidências. O relato de Wipo é claro: a presunção parmense era a seditio, a sublevação, não o recurso ao fogo em si. Não obstante, a narrativa reforça a argumentação sustentada até aqui. Um incêndio urbano raramente surge como acontecimento natural ou fatalidade, mas como parte de um episódio político. Sua história tem mais a ver com lutas sociais e conflitos pela hegemonia do que com inundações fluviais ou terremotos.
Mais do que isso. As chamas urbanas eram agora a maneira de agir do inimigo interno. A compreensão acerca de sua origem modificava-se, numa transformação decisiva. Durante as primeiras décadas do século XI, diplomas e crônicas reescreveram a natureza do pior mal urbano. Antes, quando citadas, as causas provinham de fora da Cristandade. A artimanha maléfica dos ataques pagãos provocava o fogo. Ao se alastrar pelas ruas e mercados urbanos, o incêndio era uma fronteira entre os mundos cristão e não-cristão: a destruição provocada por ele era um vislumbre da vida sem a fé cristã, as leis da Igreja, a autoridade santa.
Porém, entre as décadas de 1010 e 1030, a caracterização se desloca. A modificação é sutil, mas crucial. Uma maneira específica de enunciar a eclosão daquele infortúnio salta ao primeiro plano e se impõe às demais. Agora, a violência pagã já não é a principal razão por trás das chamas. Já não é a ausência da fé no verdadeiro Deus que gera aquele calor diabólico. Quando uma cidade ardia, clareando o céu noturno como uma gigantesca pira, a certeza que despontava era outra: as fagulhas foram acesas por um cristão caído em perdição. O flagelo era uma materialização da traição. Aquele sopro de destruição era a marca dos desviantes, do modo de agir daqueles que semeavam a divisão entre os cristãos. Como Conrado demonstrou ao punir Parma, o incêndio urbano era o mal decorrente da sublevação.
Essa maneira de explicá-lo não era inédita. Ela já existia séculos antes. Mas, agora, ela assumia a dianteira frente às demais. Sua recorrência é sensível. Ela domina, por exemplo, o amplo espectro documental orientado para condenar a figura de Arduino (955-1014), marquês de Ivrea. Em 1002, ao saber que uma febre invencível tomara a vida do jovem Oto III (980-1002), uma parcela da aristocracia norte-peninsular jurou obedecer ao marquês como monarca itálico. Uma manobra arriscada. Quando se reuniram em Pávia e aclamaram o novo rei, os magnatas buscavam impedir que a coroa fosse novamente depositada sobre a testa de um teutônico. Caso fossem bem-sucedidos, eles colocariam fim a quatro décadas de hegemonia otônida. A decisão, todavia, não era unânime. Uma parcela não menos poderosa dos senhores locais - formada, sobretudo, por arcebispos e bispos - assumiu a resistência em nome de Henrique II (973-1024), que reclamava a coroa italiana desde o outro lado dos Alpes (Adaboldo, Vita Heinrici II Imperatoris, 1849ADABOLDO. Vita Heinrici II Imperatoris. MGH, SS 4, 1849., 687; Dietmar de Merseburgo. Chronicon, 1935DIETMAR DE MERSEBURGO. Chronicon. MGH SS rer. Germ. N. S. 9, 1935., 280-282; Castagneti, 1990CASTAGNETI, André. Il Veneto nell'alto medioevo. Verona: Libreria Universitaria, 1990., p.132).
A disputa pela coroa de ferro se arrastaria por uma década. Henrique foi coroado em 1004 e, embora tenha infligido derrotas aos rivais, não alcançou uma vitória que calasse as reivindicações do marquês. Primeiro a ser coroado, Arduino efetivamente governou como rei: conferiu privilégios, assegurou imunidades, ditou a justiça (DD H II, 1903, 699-713). A disputa foi longa e equilibrada. No entanto, os registros imperiais foram tomados por outra maneira de lembrá-la. Sua redação ocorreu comprometida com outra memória. A de que, desde o primeiro instante, a ilegitimidade do senhor de Ivrea era evidente e sonora como um scandalum. Afinal, ele propagava a chaga maldita: era Arduino quem ateava fogo em igrejas. Quando confirmou o patrimônio detido pelo bispo de Vercelli, em 1014, a chancelaria imperial listou os incêndios ao lado das rapinas como males perpetrados pelo marquês (quia iuncti Ardoino invasore regni nostri ipsam Eusebianam ecclesiam rapinis et incendiis confuderunt) (DD HII, 1930, p.408). Mais do que consumir ou destruir, incendiar significava roubar, espoliar, invadir: as chamas possuíam as propriedades da usurpação. O fogo era uma medida de ilegitimidade, a prova de que Arduino agia contra a fé e a paz. E não percamos de vista: a resistência ao senhor de Ivrea era sustentada, principalmente, por bispos e arcebispos. Sua busca pela coroa de ferro não era uma vanglória mundana. Mas um atentado direto contra a autoridade pastoral, um desvio dos rumos da santa religião: tal associação era um requisito para fazer dele um incendiário.
Escrevendo entre 1013 e 1018, o bispo Dietmar de Merseburg (975-1018) retocou as linhas dessa memória com um raciocínio afiado. Arduino era o fruto maldito de uma terra encharcada pela traição. No coração do Regnum Italicum, a usurpação era conduta comum. "As qualidades do ar e dos habitantes daquele lugar diferem das nossas", advertia o teutônico pouco antes de arrematar: "há muitas conspirações em Roma e na Lombardia. Pouca afeição é oferecida aos que aí vêm e tudo que um hóspede requer deve ser comprado, sendo a traição parte disso. Muitos morrem aí envenenados" (Dietmar de Merseburgo. Chronicon, 1935DIETMAR DE MERSEBURGO. Chronicon. MGH SS rer. Germ. N. S. 9, 1935., p.401). Não era acidental que o chão habitado por usurpadores fosse reiteradamente enegrecido por cinzas. Os incêndios alimentavam-se mais da deslealdade que da madeira seca. Sua ocorrência era um ardil destinado a corromper a correta ordem da res publica cristã. Por isso, o marquês o aplicou como expediente comum - assim lembrava Conrado II mesmo sem jamais ter enfrentado Arduino. Em 1026, por exemplo, quando puniu o bispo de Vicenza, ele cravou: confiscava as terras de um sacerdote que, "tendo esquecido o juramento prestado a Henrique, se ligou a Arduino e à sua tentativa de diminuir a dignidade imperial, cometendo, com ele, saques e incêndios contra as igrejas e os fiéis a Deus" (oblitus promisse fidei Ardoino regni sui invasori, ... associatus est suamque imperialem e dignitatem diminuere conatus est, cum quo pariter predas et incendia in ecclesias dei fidelesque suos palam exercuit) (DD KIII, 1930, p.63).
Ardileza dos desviantes, ímpeto sorrateiro dos apóstatas. Assim os diplomas imperiais passavam a definir os incêndios: uma ação infame produzida pela corrupção da integridade cristã. Um malfeito interno, que brotava em meio aos crentes como cizânia. Para fazer cessar a fonte que o alimentava não bastava mais erguer defesas contra os ataques pagãos: era preciso passar em revista a conduta dos fiéis e encontrar as almas perdidas que sucumbiam à sanha dos delitos. Pois um incêndio era isto acima de tudo: uma injúria à fé e uma infração às leis cristãs. Em 1030, quando conferiu o controle sobre o porto de Cremona ao bispo local, o imperador assegurou: o privilégio seria respeitado mesmo que os registros escritos fossem destruídos por algum "incêndio, latrocínio ou algo desta qualidade" (incendio latrocinio sive quolibet ingenio) (DD KII, 1909, p.197-198, 213-214). Eis a qualidade das chamas, esta era sua natureza: uma transgressão jurídica. Em data incerta, Conrado se dirigiu aos cremonenses. Ditou outro diploma, cujas linhas ecoavam a ordem: que pagassem ao bispo o dinheiro devido em razão "dos incêndios e saques cometidos contra aqueles castelos" (incendio et preda quam fecistis super illius castella) mantidos pelo prelado conforme a vontade imperial. Em seguida, o texto saiu à caça da fonte daqueles delitos. Como seus predecessores, Conrado ampliou as atribuições judiciárias locais: o dignitário poderia julgar os homicidas e ladrões descobertos dentro da cidade, desde que conduzidos à sua presença pela fé correta e julgados legalmente (DD KII, 1909, p.349).
Caberia ao bispo desentocar homicidas e ladrões, os autores dos incêndios.
A GRAMÁTICA DO TEMPO: A MUDANÇA NO SIGNIFICADO DOS INCÊNDIOS URBANOS (1030-1080)
A partir da década de 1030, o fogo que se apodera da paisagem urbana é convertido em delito cometido por cristãos e num atentado doméstico contra a autoridade legítima. O que explica a mudança? Por que ela ocorre?
Diante da ausência de pesquisas, provavelmente, uma das primeiras respostas a cruzar a mente do leitor seria retornar aos argumentos consagrados por Marc Bloch. Em 1939, ano em que trouxe a público a obra Sociedade feudal, o autor francês propôs a adoção de uma nova cronologia para explicar o passado. Era preciso notar, insistia ele, que as relações sociais desenhavam duas fases distintas no tempo, duas "idades feudais". Estendendo-se do século X à primeira metade do século XI, a primeira delas se distinguia, precisamente, como uma fase de recuo das invasões. A Cristandade testemunhava as décadas derradeiras de um histórico de agressões externas que perdurava por séculos. Godos, saxões, hunos, lombardos, muçulmanos e normandos: os invasores se sucediam no tempo e o Ocidente seguia como presa. Essa realidade, porém, chegava ao fim. No caso do Reino Itálico, à medida que os magiares cessavam os ataques, os citadinos se davam conta de sofrer as "últimas invasões" (Bloch, 1994BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1994., p.29-31). Os rumores da cristianização dos invasores fortaleceram a certeza geral: as hordas que rasgavam a linha do horizonte trazendo a destruição no lombo dos cavalos já não retornariam. Sob essa visão, as peças se juntam, insinuando a resposta para nosso tema: o fim das invasões exigia outra causa para a ocorrência dos incêndios. Se as cidades continuavam a queimar mesmo quando as cavalgadas pagãs eram cada vez mais raras, a combustão era causada internamente, brotava do próprio convívio cristão. A mudança, portanto, seria um dos ensinamentos deixados pela "primeira idade feudal".
As agressões externas saem de cena, entram as "desordens feudais" (Bloch, 1994BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1994., p.62-82). Convencidos da periodização proposta por Bloch, muitos estudiosos chegariam a uma conclusão capital: havia muito em jogo naquele punhado de décadas designado "primeira idade feudal". Muito mais, aliás, do que as mudanças protagonizadas pela aristocracia - foco d'A sociedade feudal. Foi Georges Duby que, em 1953, fez soar o alerta: ainda que se lamente esse excessivo apego ao modo de vida de uma minúscula elite, era preciso reconhecer que o faro historiográfico havia colocado Bloch na direção correta. Era, de fato, um novo tipo de sociedade que surgia na passagem dos séculos X e XI. Em pouco tempo, os fundamentos da vida coletiva foram modificados: das relações de parentesco às de exploração material, das maneiras de sentir e pensar às de ocupar o solo e colher, tudo teria sido drasticamente alterado (Duby, 1953______. La société aux XIe et XIIe siècles dans la région mâconnaise. Paris: Armand Colin, 1953.; 1973DUBY, Georges. Guerriers et paysans, VIIe XIIe sièclesParis: Gallimard, 1973.). Ocorrendo em larga escala, as transformações rompiam com tradições, quebravam longas cadeias de costumes, sepultavam práticas ancestrais. Faziam jus àquilo que os historiadores entendiam como "rupturas". E tudo acontecia muito rápido. As mudanças se impuseram em compasso acelerado e traumático, desencaixando valores e realidade, borrando a linha entre o aceitável e o condenável. Em poucas décadas, as terras ocidentais teriam sido tomadas por uma agitada mutação social (Albertoni, 2015ALBERTONI, Giuseppe. Vassalli, feudi, feudalesimo. Roma: Carocci, 2015., p.43-64). Os efeitos colaterais podiam ser sentidos por toda parte: fragmentação política, colapso da separação entre o bem público e os interesses privados, explosões incontroláveis da violência e - por que não? - multiplicação dos incêndios urbanos.
Há uma grande chance de que a modificação no significado social dos incêndios fosse considerada um capítulo da crise associada a essa suposta "mutação feudal". Ações assim, vivenciadas pelos medievais como flagelos divinos, eram os efeitos colaterais de um amplo reajuste social. A deflagração do fogo teria sido uma maneira de reagir à percepção de que o mundo conhecido pelos olhos dos antepassados era perdido, e outro, de traços ainda confusos, ascendia por meio do convívio turbulento. Fortalecida desde a década de 1970 (Bonnassie, 1975-1976BONNASSIE, Pierre. La Catalogne du milieu du Xe siècle à la fin du XIe siècle: croissance et mutations d'une société. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 1975-1976. 2v.; Fossier, 1982FOSSIER, Robert. Enfance de l'Europe. Paris: Presses Universitaires de France, 1982. 2v.; Bois, 1989BOIS, Guy. La mutation de l'an mil. Paris: Fayard, 1989.; Poly; Bournazel, 1998POLY, Jean-Pierre; BOURNAZEL, Eric (Dir.) Les féodalités. Paris: PUF, 1998.), essa maneira de explicar o passado medieval segue atual, não obstante as críticas levantadas contra ela (Barthélemy; White, 1996______.; WHITE, Stephen. The Feudal Revolution. Past and Present, v.152, p.196-223, 1996., p.196-223; Reuter; Wickham, 1997REUTER, Timothy; WICKHAM, Chris. Debate: The Feudal Revolution: III. Past and Present, v.155, p.177-208, 1997., p.177-208; Barthélemy, 2009______. The serf, the knight, and the historian. Ithaca, NC: Cornell University Press, 2009., p.1-11).
Nossa proposta explicativa segue uma direção distinta. Como procuramos demonstrar até aqui, as referências aos incêndios integravam um vocabulário político e eram empregadas para enunciar, fundamentalmente, transformações de cunho jurisdicional. Ao longo do século X, tais menções integravam as medidas para legitimar a expansão da ordem pública, o que ocorria, sobretudo, pela atribuição de novas prerrogativas aos bispos. O apogeu dessas medidas ocorreu entre as décadas de 960 e 1000, quando a vinculação dos bispos ao governo tornou-se um pilar dos governos de Oto I, II e III (D'Acunto, 2002D'ACUNTO, Nicolangelo. Nostrum Italicum Regnum: aspetti della politica italiana di Ottone III. Milano: Vita e Pensiero, 2002., p.119-158; Leyser, 1982LEYSER, Karl. Medieval Germany and its neighbours: 900-1250. London: The Hambledon Press, 1982., p.69-102; Reuter, 2011REUTER, Timothy. A Europe of bishops: the age of Wulfsan of York and Buchard of Worms. In: KORNTGEN, Ludger; WASSENHOVEN, Dominil (Ed.) Patterns of Episcopal Power: bishops in Tenth and Eleventh Century Western Europe. Berlin: De Gruyer, 2011. p.17-38., p.17-38).
Tendo transcorrido por décadas, o fortalecimento da posição pública clerical estava plenamente estabelecido quando o século XI raiou. Isso permitiu aos prelados estabelecer uma nova fase nesse processo: absorver o exercício dessas prerrogativas públicas no interior de sua posição religiosa. Ou seja, incorporar o governo urbano a uma concepção pastoral do poder. A partir das décadas de 1010 a 1030, os prelados do Reino Itálico concluíram a metamorfose: atrelaram as funções legitimamente recebidas na res publica ao cuidado das almas. Já não a conduziam segundo uma lógica transmitida pelo rei. Lidavam com os assuntos jurisdicionais de maneira propriamente sacramental, adequada aos fundamentos do ofício episcopal. Por isso os incêndios passaram a figurar entre os desvios perpetrados contra os assuntos do altar e se tornaram uma prática decorrente da corrupção da identidade cristã. Era como se os incêndios passassem a ser uma das muitas ovelhas desgarradas do rebanho local.
A mudança documental era efeito da culminância de uma tradição de governo. Não o indicador de uma crise política ou um calamitoso estado de coisas decorrente de uma anarquia feudal. Era o sinal de que os dignitários do Regnum Italicum tomavam plena posse do lugar legitimamente atribuído a eles desde fins do século IX. Continuidade é a palavra-chave dessa realidade. Neste caso, não há lugar para rupturas, mutações ou revoluções feudais. Após os otônidas, o poder episcopal do norte peninsular reage aos incêndios como se encarasse uma ocorrência que consumia a obediência espiritual mais do que estruturas materiais. Ao longo do século XI, a desolação pelo fogo devastava uma jurisdição especificamente episcopal. Que, décadas atrás, se encontrava em formação. Agora, era o bispo quem respondia pelo dever de fortalecer e expandir a ordem pública abalada por uma calamidade como aquela.
Assim fizeram os bispos de Parma. Após Conrado II ordenar a demolição da couraça de pedra que envolvia a cidade, o prelado local, Hugo (?-1040?), iniciou a construção de um novo palácio. Afirmar que a medida pôs em prática a expansão da jurisdição episcopal é algo certo desde o chão, fundamentado em razões topográficas: após o fogo ateado pelos citadinos contra as tropas imperiais, o sacerdote decidiu mover a sede da autoridade eclesiástica para fora das áreas até então guarnecidas no interior das muralhas. Parma era a única sé do norte italiano na qual o palácio reservado às audiências do senhor bispo estaria fora dos muros da cidade (Miller, 2000MILLER, Maureen. The Bishop's Palace: architecture and authority in Medieval Italy. Ithaca and London: Cornell University Press, 2000., p.97-98, 142). Não parece mera coincidência que essa decisão tenha sido tomada após o registro do incêndio de 1037. O palácio encarnava o exercício dos poderes públicos do bispo: era um local frequentado não somente por clérigos, mas por ministeriales, vassalos, mercadores. Os poderes que daí emanavam se traduziam em uma hegemonia sobre o espaço urbano, por meio do controle do districtus, a área atrelada à taxação citadina. Conforme lembrou Roberto Greci (2007GRECI, Roberto. Palazzi, sedi ecclesiastiche, castelli: ubicazioni, funzioni, interferenze (secoli IX-XIII). In: QUINTAVALLE, Arturo Carlo (Org.) Medioevo: la Chiesa e il Palazzo. Milano: Electra, 2007. p.116-122., p.120), tais palácios eram sedes regulares da administração da justiça e se impunham como decretos lavrados em pedra da imponência da figura eclesiástica frente aos interesses citadinos (Albini, 2005ALBINI, Giuliana. Vescovo, comune: il governo della città tra XI e XIII secolo. In: GRECI, Roberto (Org.) Il governo del vescovo: chiesa, città, territorio nel Medioevo parmense. Parma: Monte Università Parma Ed., 2005. p.67-86., p.69). Instalada em um novo sítio, esticando a autoridade urbana para além das fronteiras conhecidas, a construção era a resposta episcopal para a ampliação da ordem política urbana, de sua projeção para novos domínios - tal como exigia a percepção partilhada entre as elites acerca dos incêndios.
A resposta se repetiria quase 20 anos depois. Em algum momento entre 1055 e 1058 - as evidências não são precisas -, outro bispo parmense, chamado Cádalo (1010?-1072), iniciou a construção de uma nova basílica. Levado para uma área externa aos antigos muros urbanos, tal como o palácio episcopal, o novo edifício formava uma citadela, cravando novo polo de poder sobre uma cidade em expansão demográfica e econômica (Fava, 2006FAVA, Massimo. Im complesso episcopale parmense tra tarda antichità e medeioevo: dalla basilica paleocristiana alla cattedrale romanica. In: DAMIANI, Giovanna (Org.) Viverei l medioevo: Parma al tempo della Cattedrale. Milano: Silvana Ed., 2006. p.71-88., p.74; Guenza, 2005GUENZA, Massimo. Pastori e Signori: la grande potenza dei vescovi permanesi. In: GRECI, Roberto (Org.) Il governo del vescovo: chiesa, città, territorio nel Medioevo parmense. Parma: Monte Università Parma Ed., 2005. p.47-65., p.60). Como no caso anterior, a edificação é associada a outro incêndio. Tal como antes, a causa da segunda calamidade era a desobediência, a revolta. Mas, desta vez, a faísca surgiu da insubordinação da carne. Ao menos assim o cardeal Pedro Damião (1007-1073?) dizia ter ocorrido. Tendo vivido em Parma, Damião associava o novo incêndio a um padre, certo Teuzolino (?-1055?). Um clérigo de voz belíssima, de um timbre angelical - um anjo caído na vida dissoluta. Seu cadáver teria sido encontrado junto ao da amante, cobertos de cinzas. O cardeal não teve dúvidas. O fim trágico que se abateu sobre eles não era acidente ou um desfecho aleatório. Ter o corpo calcinado apenas consumava a luxúria que já ardia nas carnes daqueles pecadores: "então, o calor da libido provocou o fogo da combustão" (sic nimirum flamma libidinis ignem meruit combustionis) (Pedro Damião, Epistolas, 1988PEDRO DAMIÃO. Epistolas. MGH Briefe, 1988., p.321). A centelha que desperta a fúria do fogo era a desobediência, tanto mais inflamável quando provinha do clérigo que havia se desviado do ideal de vida apostólico.
Os incêndios eram o mal a ser exorcizado pelo prelado local. Pois cada palmo de chão capturado pelas chamas era sentido como terreno subtraído, acima de tudo, à voz episcopal. À medida que as colunas de fumaça serpenteavam no ar, a autoridade do bispo se esfarelava, como se fosse ela reduzida a cinzas. Aquela calamidade era vivenciada como uma chaga que ameaçava, diretamente, a cabeça da hierarquia local. Ideia que poderia gerar outro raciocínio: se esta última pendia, fragilizada, era sinal de que aquela havia ocorrido. Um bispo legítimo e as chamas urbanas não ocupavam o mesmo espaço. Por isso, quando dois cardeais chegaram a Milão para restabelecer a obediência ao mandatário do bispado, trataram de combater incêndios. Era agosto de 1067. Mainardo (?-1073), bispo de Silva Cândida, e João Minuto (?-1090?), presbítero de Santa Maria in Trastevere, eram figuras graúdas no interior da cúpula romana, ocupantes de posições de prestígio, com acesso regular ao pontífice Alexandre II (?-1073). Sua escolha para a missão milanesa indicava a gravidade da situação.
A cidade vivia convulsionada pelo enfrentamento entre grupos urbanos e o alto clero. Por mais de uma década uma multidão parecera permanentemente reunida em praças, mercados e igrejas milanesas. Homens de armas, mercadores e pobres se acotovelavam para ouvir os sermões entoados por padres de posição modesta, mas de verve implacável. Vozes ressoavam do interior da própria hierarquia clerical, trovejando aos quatro ventos: os fiéis daquele lugar estavam entregues a pastores dissolutos. As mãos que tocavam o santíssimo corpo de Cristo na Eucaristia eram imundas e indignas, já que contaminadas pelo sexo. Pois os sacerdotes não acatavam o celibato. Quando não eram abertamente casados, mantinham concubinas. Tudo isso ocorria - acusavam os pregadores - com a anuência do arcebispo, Guido de Velate (?-1071), cuja permissão era comprada a peso de ouro. Com o corpo clerical infectado desde a cabeça, todos os membros estavam expostos à contaminação dos piores vícios: as missas eram conduzidas por usurários, simoníacos, devassos (André de Strumi. Vita Sancti Arialdi. 1934ANDRÉ DE STRUMI. Vita Sancti Arialdi. MGH 30/2, 1934., p.1051-1053; Arnulfo. Gesta archiepiscoporum Mediolanensium. 1848ARNULFO. Gesta archiepiscoporum Mediolanensium. MGH SS 8, 1848., p.17; Landolfo. Historia Mediolanensis. 1848LANDOLFO. Historia Mediolanensis. MGH 8, 1848., p.76). Pela boca dos pregadores, o prestigioso clero ambrosiano encontrava uma oposição renhida, que ficaria conhecida como Pataria.
As pregações patarinas eram seguidas por um chamamento à resistência. Pastoreado por raposas, só restava ao rebanho milanês selar um pacto: todos se recusariam a receber qualquer sacramento, sequer compareceriam aos ofícios divinos. Pois uma vez tocada por tais homens, a hóstia não passava de "esterco de cães", a igreja preenchida por tal presença era tão santa quanto um "presépio de asnos" (Arnulfo. Gesta archiepiscoporum Mediolanensium. 1848ARNULFO. Gesta archiepiscoporum Mediolanensium. MGH SS 8, 1848., p.19). Os templos esvaziaram. Os dízimos secaram. E era só o princípio da escalada das atribulações. Os sermões patarinos falavam em resistir "até o sangue", proclamando o emprego da força como dever do bom cristão: "maldito quem retém a sua espada do sangue" - asseguravam os pregadores, evocando a justiça do velho testamento (André de Strumi. Vita Sancti Arialdi. 1934ANDRÉ DE STRUMI. Vita Sancti Arialdi. MGH 30/2, 1934., p.1056-1057). Foi uma questão de semanas para as esposas e as concubinas clericais serem atacadas. Durante as investidas, o patrimônio conspurcado pelo convívio pecaminoso não foi poupado: casas e bens clericais foram depredados. Escaramuças e ataques se tornaram mais recorrentes. Traumatizados, os aliados do arcebispo se lembrariam da cidade como um atoleiro de sangue. "Dizer o que mais?", lamuriavam, "nossos citadinos foram enfeitiçados e, como uma tremenda tempestade marinha ou um relâmpago fulminante, saíram às ruas atacando e matando pessoas imprevidentes". Em suas lembranças, Milão caíra refém de uma turba enfurecida, que estourou porta afora "como cães famintos ladrando torpemente: eles saqueavam a casa dos sacerdotes, que alçavam os olhos aos céus, abatidos como ovelhas diante de lobos" (Landolfo. Historia Mediolanensis. 1848LANDOLFO. Historia Mediolanensis. MGH 8, 1848., p.80-81).
Os conflitos prosseguiram por anos a fio. Concílios foram convocados a legislar sobre a discórdia milanesa. Excomunhões foram disparadas, enquanto missões enviadas pelo papa se revezavam sem pôr um fim à luta. Quando despachou os cardeais Mainardo e João Minuto, Alexandre II agia no rastro de uma guinada no curso dos eventos. Em meados de 1066, o líder patarino um padre de retórica tempestuosa, chamado Arialdo (1010?-1066) -, foi capturado e morto por cavaleiros associados ao arcebispo. Quando se deu conta de que a notícia deixara a cidade em ponto de ebulição, Guido de Velate fugiu, deixando para trás uma situação até então inédita: de repente, os dois lados em disputa estavam privados de lideranças. Então os enviados de Roma chegaram. Aparentemente, o pontífice buscava agarrar uma oportunidade para conferir o bispado a um novo prelado. Mas antes seria preciso restabelecer a autoridade do cargo - corroída a ponto de continuar desmoronando mesmo após a debandada de Guido. Eis a missão dos cardeais. A terceira envolvendo homens do clero papal.
E então aparecem as referências aos incêndios. No dia 1º de agosto de 1067, Mainardo e João Minuto promulgaram novas constitutiones para a Igreja milanesa. Passando em revista uma memória do conflito, o manuscrito terminava por dispor as provisões que deveriam reger a vida do clero local. A lista incluía a subordinação às decisões romanas como cláusula pétrea, proibia a prática do sacerdócio a quem havia pagado pela ordenação e àqueles que mantinham mulheres junto a si, repelia a sujeição eclesiástica a julgamentos laicos. Por fim, exigia-se que fosse entregue ao arcebispo quem cometera "formas de violência" como "incêndios, depredações, derramamentos de sangue e muitas outras injustiças" (incendia, depraedationes, sanguinum effusiones, multasque iniustas violentias fecerunt) (Mansi, 1961MANSI, Johannes (Ed.) Sacrorum Conciliorum. Graz: Akademische Druck, 1961. v.19., p.948). Apesar de emergir com aparente naturalidade nessa lista de transgressões, a referência aos incêndios intriga. Por mais de 10 anos, os milaneses respiraram conflitos. As crônicas patarinas ou antipatarinas - falam em espadas em punho, envenenamentos, espoliações, batalhas campais, mutilações e até mesmo a ocultação de cadáveres (André de Strumi. Vita Sancti Arialdi. 1934ANDRÉ DE STRUMI. Vita Sancti Arialdi. MGH 30/2, 1934., p.1054, 1066-1068; Arnulfo. Gesta archiepiscoporum Mediolanensium. 1848ARNULFO. Gesta archiepiscoporum Mediolanensium. MGH SS 8, 1848., p.17, 23; Landolfo. Historia Mediolanensis. 1848LANDOLFO. Historia Mediolanensis. MGH 8, 1848., p.11, 80-81, 95, 97). Já os incêndios não contavam com o mesmo relevo. Eles surgem com clareza precisamente aqui, no documento lavrado pelos emissários pontifícios para restaurar a ordem pública e fortalecer a autoridade episcopal. Não era uma coincidência. Como vimos, mencioná-los era uma exigência prática do vocabulário de afirmação de uma jurisdição e, em especial, a do bispo.
A menção ocorreria uma segunda vez. Reencontraremos as chamas urbanas em 1075, em um episódio singular. Antes que o mês de março findasse, uma das lideranças patarinas remanescentes, um laico chamado Erlembaldo (?-1075), deu a ordem: era preciso ir até as igrejas e apreender o óleo de oliveira conhecido como "crisma". A Páscoa se aproximava. Em poucos dias os bispos sufragâneos cumpririam o costume de verter aquele óleo para consagrar as pias batismais durante os ritos da Paixão do Salvador. Eles deviam ser impedidos. Já que a igreja local não possuía arcebispo - a posição estava oficialmente vaga -, o óleo não teria sido abençoado pela autoridade devida e não seria, portanto, verdadeiramente sagrado. O líquido não ungiria as pias para o batismo, pois era um engodo, uma fraude. Assim foi feito. Mas não só. Seguindo ordens de Erlembaldo, certo Liprando (?-1075?), um padre local, tomou o lugar dos bispos e se pôs a batizar os fiéis.
Nesse ponto encontramos o protesto do cronista Arnulfo, adversário dos patarinos: a conduta era uma "violência" que, "somada ao rancor vivo deixado pelo incêndio da cidade, ofendeu profundamente a muitos citadinos" (quidem violentia recenti iuncta civitatis incensae memoriae quamplurimos offendit graviter cives. Arnulfo. Gesta archiepiscoporum Mediolanensium. 1848ARNULFO. Gesta archiepiscoporum Mediolanensium. MGH SS 8, 1848., p.24). É preciso ser enfático: o incêndio era lembrado no contexto de um episódio em que prerrogativas sacramentais, pertencentes exclusivamente ao episcopado, eram usurpadas sob ordens laicas. Nos arriscamos a dizer que o emprego do termo era uma tentativa de sensibilizar a respeito do ultraje cometido contra o bispado, mais do que uma indicação da extensão da destruição material deixada pelas chamas. Ali estava um tema capaz de chocar, pois agravava a acusação de que os patarinos faziam mais do que conspurcar uma tradição: o fogo era prova do quanto lesavam a autoridade eclesiástica.
Os incêndios não são pano de fundo da história. Sua ocorrência na vida em sociedade vai além da destruição que as memórias coletivas tentam exorcizar, reduzindo-os a eclosões acidentais ou fatalidades ambientais. Tampouco estavam presos ao tempo da guerra, como se fossem, sempre e em toda parte, o rastro deixado por conquistas, batalhas e ataques. Entre 880 e 1080, as elites do Regnum Italicum registraram a devastação insaciável para dar sentido aos rumos da governança, fazendo do fogo indomável, simultaneamente, causa e testemunha da ascensão pública dos bispos. À luz de sua vivência, os incêndios tinham razões políticas para devorar os espaços urbanos.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Set 2016 -
Data do Fascículo
May-Aug 2016
Histórico
-
Recebido
14 Mar 2016 -
Aceito
01 Maio 2016