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Chamem a polícia? As ruas da cidade e a governamentalidade policial em Lisboa, c.1870-1910

Call the Police? City Streets and Police Governmentality in Lisbon, c.1870-1910

RESUMO

Este trabalho analisa o delinear de racionalidades de atuação na principal força policial de Lisboa entre o final do século XIX e o início do século XX. Com base nas ordens de serviço diárias e nas estatísticas policiais, examinamos esta conceptualização como uma encruzilhada de lutas entre um ideal construído e as práticas concretas, descortinando uma instituição a pensar-se a si própria. Mais do que impor uma ordem, o trabalho conclui que a polícia engendrou uma governamentalidade assente em práticas racionalizadas e no desenvolvimento de uma expectativa social em torno da intervenção policial.

Palavras-Chave:
Polícia; Cidade; Governamentalidade; Lisboa

ABSTRACT

This work examines the outlining of operational rationalities in the main police force in Lisbon between the end of the 19th century and the beginning of the 20th century. Based on daily service orders and police statistics, the article investigates the conceptualization of police work as a conflict between a constructed ideal and concrete practices, thus revealing a self-reflexive institution. More than imposing order from above, the work concludes that the police engendered governmentality based on rationalized practices and in the development of a social expectation around police intervention.

Keywords:
Police; City; Governmentality; Lisbon

Sempre que um guarda de polícia saía da sua esquadra e se dirigia para as ruas da cidade, ele encarnava um papel delineado por políticos e juristas e colocado em prática por uma variedade de atores de diferentes instituições estatais1 1 O lugar onde os serviços da polícia se encontravam “aquartelados” ganhou em Portugal a designação de “esquadra de polícia”. A Polícia Civil de Lisboa, principal objeto deste trabalho, era uma força policial fundada em 1867, composta de homens, muitas vezes recrutados nas zonas rurais do país, que deviam saber ler e escrever e que assinavam um contrato de trabalho de, no mínimo, cinco anos, para executar tarefas para as quais recebiam um salário (Gonçalves, 2014, pp. 135-150). A cidade ainda tinha outra força policial, militar, a Guarda Municipal, fundada em 1834, que intervinha sobretudo em situações de manutenção da ordem pública. . No final do século XIX, policiar as ruas de uma cidade era uma atividade com ampla discricionariedade individual: o guarda tinha de estabelecer o que, do seu ponto de vista, deveria ser objeto de uma ação e como esta deveria ser levada a cabo. Lidar com essa discricionariedade foi uma missão que ministros, governadores civis, comissários de polícia e chefes de esquadra tiveram que encarar enquanto concebiam o lugar da polícia na sociedade.

As rotinas policiais estruturavam-se em torno de um espaço e de uma práxis: o patrulhamento das ruas. A patrulha policial tem sido um objeto historiográfico esquivo. Por um lado, a atenção dos historiadores sobre a polícia tem estado centrada mais nos momentos quentes de manutenção da ordem pública e do uso da violência física por parte dos policiais (Palacios Cerezales, 2011PALACIOS CEREZALES, Diego. Portugal à Coronhada: protesto popular e ordem pública nos séculos XIX e XX. Lisboa: Tinta-da-China, 2011.). Por outro lado, quando o foco é a patrulha, o objetivo mais comum é usar a ação policial como janela para o quotidiano urbano, normalmente com fontes empíricas não produzidas pela polícia, como a imprensa (Anderson, 2013ANDERSON, Peter K. Streetlife in Victorian London: The Constable and the Crowd. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013.; Bretas, 1997BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na Cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro, 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.). Raramente uma prática que incluía ações tão diversas como perseguir ladrões, separar uma confrontação física, prender prostitutas, impedir a presença de mendigos na rua ou simplesmente caminhar tem sido estudada com o foco na instituição a pensar-se a si própria.

Este viés analítico implica olhar para o forjar da atividade policial, os gestos e os objetos que a constituem. Sugere também compreender como a autoridade é engendrada a partir de dentro da própria polícia. O que a polícia devia fazer e o que efetivamente fazia pode então ser reduzido à contínua tensão entre as elucubrações de governantes e lideranças policiais e as ações de policiais nas ruas, mediadas por organizações cada vez mais complexas. O conceito de governamentalidade, elaborado pelo filósofo Michel Foucault (1998FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 13ª Ed. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998., pp. 277-293), tem sido apropriado com proveito por uma historiografia interessada em discutir o desenvolvimento de uma “governamentalidade liberal” durante o século XIX (Joyce, 2003JOYCE, Patrick. The Rule of Freedom: Liberalism and the Modern City. London: Verso, 2003. , p. 2). Governamentalidade remete aqui para as formas por meio das quais aqueles que governam colocam questões sobre as razões, a justificação, os meios e os fins desse governo, os problemas, os objetivos e as ambições que os guiam. Nesta perspectiva, as tecnologias de governo devem ser analisadas como “strategies, techniques and procedures through which different authorities seek to enact programmes of government” (Rose, 1996ROSE, Nickolas. Governing “advanced” liberal democracies. In: BARRY, Andrew; OSBORNE, Thomas; ROSE, Nikolas (Eds.). Foucault and Political Reason: Liberalism, Neo-Liberalism and Rationalities of Government. Abingdon: Routledge, 1996. pp. 37-64. , pp. 41-42).

Mas para compreender as estratégias, técnicas e os procedimentos engendrados dentro da polícia é importante evitar um olhar centrado apenas nas lideranças policiais. A par das estatísticas policiais, a principal fonte deste trabalho são as ordens de serviço diárias da Polícia, uma fonte que combina uma visão do ideal de polícia concebida internamente com as práticas concretas na rua. As ordens de serviço eram um documento elaborado diariamente pelo Comissário Geral, distribuído e lido por todos os homens da força policial antes de entrarem no serviço. As ordens continham não apenas os serviços que deveriam ser feitos, mas também discursos em torno de como o policiamento vinha sendo feito e o que deveria ser mudado, expondo assim uma encruzilhada de lutas entre o ideal construído e as práticas concretas. As estatísticas publicadas pela Polícia serão encaradas não como um indicador de aumento ou decréscimo da criminalidade, mas como uma forma de representação do trabalho policial.

Lisboa sempre foi uma notável exceção na paisagem urbana portuguesa. Em 1900, quando tinha cerca de 356.000 habitantes, tinha mais do dobro da população da segunda cidade do país, o Porto, então com 167.000 habitantes. Entre 1870 e 1910, Lisboa registrou elevados índices de crescimento populacional e territorial. Inversamente, a importância de Lisboa na hierarquia urbana europeia diminuiu (Hohenberg; Lees, 1995HOHENBERG, Paul; LEES, Lynn Hollen. The Making of Urban Europe 1000-1994. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1995., p. 227). No entanto, apesar da “perda do estatuto de metrópole”, a capital portuguesa conseguiu reinventar-se na segunda metade do século como polo industrial e de serviços (O’Flanagan, 2008O’FLANAGAN, Patrick. Port Cities of Atlantic Iberia, c.1500-1900. Aldershot: Ashgate Publishing Ltd., 2008., p. 129).

A PATRULHA E AS DINÂMICAS DO MANDATO POLICIAL

Patrulhar dia e noite as ruas da cidade era a base do serviço policial. No caso de Lisboa, o dia era dividido em “quartos de serviço”, cada qual com a duração de quatro ou seis horas, dependendo se o serviço era feito de dia ou de noite. Este sistema obrigava os policiais a entrarem e saírem do serviço muitas vezes e colocava-os na dependência dos seus colegas: um policial apenas podia sair quando o colega do turno seguinte chegasse. O guarda tinha de caminhar por um percurso mais ou menos pré-definido, um trabalho percebido como penoso. Numa obra publicada por um jornalista, que misturava reportagens reais com a ficcionalização da vida de um policial, o personagem principal expressa o seu agrado por ter sido colocado a guardar a porta de um ministro, mesmo sendo obrigado a passear o seu cachorro: “Temos de aturar algumas coisas, é verdade, mas estou livre de ter de andar à chuva e ao vento, noites ao relento, correndo o risco de rasgar a farda e levar um tiro na barriga. Mal por mal eu prefiro a canseira de passear o cachorro.” (Noronha, 1919NORONHA, Eduardo. Diário de um polícia. Lisboa: Guimarães Editores, 1919., p. 19).

Uma patrulha policial podia ser preenchida pelo mais completo tédio ou pela agitação de lidar com uma ocorrência, uma ocasião que colocava os policiais num processo de constante tomada de decisões. José Monteiro estava entre os primeiros homens recrutados para a Polícia Civil de Lisboa, no final do ano de 1867. Algum tempo depois, no início de maio de 1869, no entanto, ele foi despedido, acusado de ter roubado um relógio de prata de um homem detido numa esquadra do centro de Lisboa. Numa petição que endereçou ao Ministro do Reino em que pedia a sua readmissão, Monteiro descreveu os eventos que conduziram à sua demissão. Monteiro estava de serviço com um colega no quarto das 17 às 21 no Cais do Sodré, uma zona portuária e boêmia da cidade. Perto das 20h30, “um cocheiro que naquele local transitava no seu trem, os preveniu que à esquina do Hotel Central se achava um homem bastante embriagado, e junto dele existiam alguns indivíduos suspeitos”. Imediatamente, os dois policiais dirigiram-se até ao homem embriagado e perguntaram onde ele vivia. O colega de Monteiro, no entanto, reconheceu o homem, era seu vizinho. Neste momento, Monteiro pensou que o homem havia sido roubado, e depois de o outro policial o ter revistado, encontram nele “80rs, um portamala com uns papéis e um relógio de prata com correia de metal presa a uma casa do colete”. Depois de devolverem os pertences ao homem, perguntaram-lhe se ele conseguia ir para casa. Perante a resposta afirmativa, mandaram-no para casa. Os dois policiais decidiram, contudo, manter um olho no homem, seguindo-o a certa distância. Como o homem seguiu uma direção diferente da sua casa, Monteiro disse ao seu colega “que [já que] o embriagado [era] seu vizinho melhor seria que ele o encaminhasse”. Entretanto, um caixeiro de uma taberna próxima pediu ajuda para lidar com “quatro ingleses que ali se achavam, também embriagados”. José Monteiro então acompanhou o caixeiro e enquanto tentava fazer com que os ingleses deixassem a taberna surgiu o seu colega, que “havia abandonado o primeiro embriagado”. Quando, quinze minutos depois, conseguiram retirar os ingleses, encontraram “caído à porta doutra taberna, o primeiro embriagado”. Neste momento surgiu o guarda que iria render Monteiro, que aconselhou Monteiro e o outro policial a levarem o homem embriagado para a esquadra, uma vez que já iam para lá para marcar o fim do seu quarto. Na esquadra, o embriagado foi de novo revistado, mas agora, segundo Monteiro, só lhe encontraram os 80rs. Monteiro começou a discutir com o seu colega sobre o paradeiro dos outros pertences, e aparentemente o cabo da guarda, o policial dos policiais, ouviu a discussão e denunciou Monteiro. A petição de Monteiro deixa de ser tão minuciosa neste momento: ficamos sabendo apenas que ele foi suspenso e, pouco tempo depois, despedido.

Monteiro não foi readmitido, mas a narrativa da última meia hora de uma patrulha mostra-nos como os policiais eram rotineiramente confrontados com problemas para os quais tinham de encontrar uma solução possível e, assim, interpretar o mandato de que tinham sido incumbidos. Um indivíduo a dormir numa praça da cidade tanto podia ser um mendigo que tinha de ser removido como um bêbado que corria o risco de ser roubado, e, por isso, necessitava de proteção e acompanhamento. Vemos aqui como definir o que fazia a polícia era, até um certo grau, uma decisão tomada na rua pelo próprio policial. A lei era um guia para abordar uma realidade que se apresentava multifacetada. O desafio do historiador não é tanto analisar todas as decisões dos policiais nas ruas, mas perceber como elas resultavam de processos políticos e de disciplina interna, integrando-as num quadro mais amplo. Se a polícia deve ser vista como um agente civilizador da sociedade, não podemos esquecer que os primeiros a serem civilizados eram os próprios policiais. O que devia então desencadear a ação de um guarda? Perseguir um ladrão ou separar um confronto físico eram situações que, sem muita dúvida, deveriam levar um policial a intervir. No entanto, a criação da Polícia Civil no final da década de 1860 tinha tido como racionalidade política aumentar a capacidade de intervenção do Estado na resposta às demandas e expectativas da população, para assim legitimar a polícia (Gonçalves, 2014GONÇALVES, Gonçalo Rocha. Police Reform and the Transnational Circulation of Police Models: The Portuguese Case in the 1860s. Crime, Histoire & Sociétés/ Crime, History & Societies, v. 18, n. 1, pp. 5-29, 2014., pp. 25-26).

As ordens de serviço mostram uma política interna de encarar, de forma ampla, as ocorrências em que um policial deveria intervir. No início de julho de 1882, por exemplo, foi recomendado que “nunca se deixe de prestar auxílio da polícia a qualquer pessoa que o requisite não só às esquadras como aos agentes de polícia que se acharem nas ruas”. E mesmo que “o reclamante não possa logo explicar qual o objecto desse auxílio, por ser o pedido feito em nome d’outra pessoa, ainda assim deve ser prestado o auxílio pedido, e somente quando a polícia tenha plena certeza de que o pedido é ilegal e não de sua competência é que deve obstar-se de a prestar” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 1, 1882ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 1. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT218 NP081, Ordem Serviço, N. 183, 02/07/1882, N. 1. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1882.). Poucos dias depois, um guarda foi punido com dois “quartos de serviço” extra por não ter prestado o auxílio que lhe demandara um indivíduo na esquadra. Quinze anos depois, numa ordem com o título de “Queixas e Participações”, os chefes de esquadra eram instruídos a “facilit[ar]em tanto quanto seja possível o recebimento […] as queixas que da parte do público lhe sejam entregues enviando-as diariamente à secretaria e que sempre que os queixosos não saibam escrever lhe tomem as declarações e as enviem em participação” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 2, 1897ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 2. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT231 NP093, Ordem Serviço, N. 141, 22/05/1897, N. 6. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT. 1897.). A obrigação do guarda de polícia de intervir em situações que não envolviam crimes foi rotineiramente reafirmada no interior da força policial. Em 1898, uma “ordem permanente” apontava que: “Quando um guarda, em qualquer situação que se acha presencie algum facto ou alguma discussão que possa originar conflito, deve acercar-se prontamente, porque muitas vezes basta simplesmente a sua presença para evitar o prosseguimento desagradável da ocorrência” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 3, 1898ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 3. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT233 NP095, Ordem Serviço, N. 150, 30/05/1898, N. 1. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1898.). Embora a profissionalização da polícia passasse por uma afirmação da especialização da instituição no combate ao crime, as ordens internas da Polícia Civil de Lisboa mostram uma expectativa de que o agente policial atuasse de forma ampla no quotidiano da cidade.

O guarda de polícia surgia nas ruas da cidade como um verdadeiro mediador de conflitos. No início de março de 1881, as ruas de Lisboa estavam em polvorosa com os protestos contra o Tratado de Lourenço Marques, assinado com a Grã-Bretanha. Alguns dias depois, o Comandante da Guarda Municipal escreveu um extenso relatório para o Ministro do Reino, relatando os distúrbios. Uma das ocorrências tinha acontecido às oito da noite do dia 14, quando uma força de cavalaria tinha sido informada de que cerca de duzentas pessoas estavam aglomeradas numa rua da Baixa, supostamente a darem vivas à República. No entanto, quando lá chegaram, encontraram tudo em sossego. Mais tarde, chegou a informação de que a aglomeração não tivera motivações políticas, mas “fora ocasionada por questão entre um vendilhão de vinagre e o merceeiro” (Ministério do Reino, 1881MINISTÉRIO DO REINO. Correspondência Recebida; Fundo Ministério do Reino, Mç. 4966, Lº 31, N. 195. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1881.). Um guarda da polícia já tinha sido inclusive chamado ao local e “aconselhado o merceeiro a que fechasse o estabelecimento, [o mesmo] não quis anuir, o que só fez às 9 ½ depois da numerosa reunião de povo”. Nesta ocasião, o guarda é representado como alguém chamado a intervir e que aconselha o merceeiro a fechar as portas para evitar uma escalada do conflito.

O apito que todos os policiais deveriam portar era usado para demandar dos citadinos obediência às suas ordens ou chamar ajuda de colegas, mas o apito que os habitantes da cidade também tinham servia para chamar ajuda em caso de necessidade. O simples eco do som de um apito devia levar um guarda a intervir. Em outubro de 1880, um guarda foi castigado porque “ouviu toques de apito e não fez caso algum de comparecer no local donde eles vinham” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 4, 1880ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 4. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT218 NP081, Ordem Serviço, N. 292, 18/10/1880, N. 1. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1880.). “Chamar a polícia” tornou-se um gesto no qual se encontrava inscrita a expectativa de que a ajuda viria, uma expectativa solidificada como um “effect of police encounters over time” (Proença Júnior; Muniz, 2006PROENÇA JÚNIOR, Domício; MUNIZ, Jacqueline. “Stop or I’ll Call the Police!”: The Idea of Police, Or the Effects of Police Encounters Over Time. The British Journal of Criminology, v. 46, n. 2, pp. 234-257, 2006., p. 242). Distribuída de forma sistemática pelo espaço urbano, a polícia começou a ocorrer ao chamados que a população lhe fazia.

A reflexão interna sobre os contornos do mandato policial tomava a forma de “ordens permanentes”. Em novembro de 1884, o Comissário Geral nomeou uma série de ocorrências na ocasião das quais a força policial devia agir “com toda a eficácia”. Dois desses aspectos ocupavam quase toda a ordem. Em primeiro lugar, as posturas municipais sobre os maus tratos de animais, colocando sob especial vigilância os cocheiros e carroceiros da cidade, “exercendo-se todo o rigor tanto com uns como com outros, dentro da esfera da legalidade”. Em segundo lugar, a atenção da polícia deveria ser dirigida para que o “transeunte” pudesse circular nas ruas da cidade em segurança. O policial deveria proteger aqueles que circulavam no espaço público de forma ordeira, “não se consentindo por modo algum que o mendigo entre nas lojas pedindo, ou incomode os transeuntes nas ruas com insistências”, os guardas “não consentirão por modo algum que [...] persigam os transeuntes para lhes venderem bilhetes de loteria”, e as prostitutas deviam ser proibidas de “convers[are]m das janelas ou provo[car]em os transeuntes” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 5, 1884ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 5. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT219 NP084, Ordem Serviço, N. 317, 12/11/1884, N. 1. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1884.).

Uma década e meia depois, em 1898, outra ordem permanente estabelecia as prioridades que deveriam guiar a ação dos policiais. Ganhar a confiança do “público” contra os que ameaçavam vidas e propriedade estava no topo das prioridades da polícia, definindo aqueles que deveriam ser protegidos e aqueles cujos comportamentos desordeiros deveriam ser reprimidos. Os policiais deviam “diligenciar que só os maus receiem a polícia, e que a sua luta permanente com estes em prol do bem-estar e da ordem social tenham sempre o apoio moral e material de todas as pessoas boas e honradas” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 3, 1898ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 3. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT233 NP095, Ordem Serviço, N. 150, 30/05/1898, N. 1. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1898.). Em julho de 1902, uma outra ordem dava maior destaque ao problema do trânsito. Nesta ordem, não apenas se chamava a atenção para os veículos, os animais que os puxavam e os indivíduos que os conduziam, mas também para as posturas municipais que regulavam a circulação nos passeios laterais, em especial no que dizia respeito àqueles que os usavam para transportar grandes volumes ou vender produtos. Mais uma vez, eram colocados em destaque o transeunte e quem o incomodava, “chamando-se muito especialmente a atenção para os rapazes e outras pessoas de má educação que se entretêm provocando e perseguindo indivíduos idosos que pela sua idade defeitos físicos ou manias e preconceitos se prestem a este condenável e revoltante entretenimento” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 6, 1902ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 6. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT235 NP097, Ordem Serviço, N. 174, 23/07/1902, N. 12. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1902.). Os discursos internos mostram uma polícia focada na figura anônima do transeunte, o indivíduo do liberalismo, mas revelam também o mandato policial como um processo dinâmico.

NEGOCIAR, PRENDER, MULTAR

As ordens de serviço que temos vindo analisar não eram exercícios abstratos sobre o trabalho policial, pelo contrário, estavam ancoradas no quotidiano que emergia dos policiais a patrulharem as ruas da cidade. As ordens de serviço, no entanto, não ponderavam apenas sobre o que os policiais deveriam fazer, mas também sobre como eles se deveriam comportar em serviço. Nesta parte, vamos olhar em especial para dois dos gestos mais comuns da prática policial: deter e multar alguém, e a ênfase colocada pelas lideranças policiais na necessidade de os policiais negociarem soluções antes de os empreenderem.

A familiaridade entre os policiais e o público tornou-se uma questão constante na gestão do trabalho policial. Tratava-se, no entanto, de uma faca de dois gumes. Por um lado, a excessiva intimidade entre policiais e a população era objeto de crítica dentro e fora da Polícia. Por outro lado, o isolamento dos policiais também tinha de ser evitado, uma vez que dificultava o cumprir das ordens nas ruas. Avisos e conselhos dos policiais à população apenas resultariam se existisse um mínimo de confiança entre polícias e policiados. Um exemplo típico deste instável equilíbrio ocorria na Praça da Figueira, o principal mercado coberto da cidade. Aí, a polícia tinha de manter a paz e a tranquilidade públicas, mas também fiscalizar posturas municipais, como a dos pesos e medidas. No fim de setembro de 1873, o Comissário Geral notou aos seus subordinados que “tendo eu mesmo observado a muita familiaridade do guarda que ali se acha de serviço com os diferentes vendedores de géneros naquela praça”, ordenava que a partir daí o serviço fosse feito num esquema específico de escalas e avisou que os “guardas que para ali forem de serviço que devem abster-se de conversas e relações com os vendedores ali estabelecidos, não devendo receber presentes nem favores que lhe sejam oferecidos” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 7, 1873ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 7. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT213 NP085, Ordem Serviço, N. 273, 30/09/1873, N. 1. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1873.). Que um sistema de escalas não tivesse sido já instituído mostra como era importante que o policial conhecesse as pessoas e as práticas que estava a policiar. O serviço na Praça da Figueira era muito específico, envolvia regras que geravam conflitos. Colocar o mesmo policial neste serviço permitia tirar partido de uma experiência acumulada no local. Apenas quando os “presentes” e “favores” tornavam-se demasiado públicos, sendo por exemplo alvo de queixas na imprensa, a “familiaridade” demandava mudanças.

Não é necessário fazer uma complexa quantificação do dia a dia das ordens de serviço para compreender as principais razões que levavam um policial a ser castigado. A primeira era ser “encontrado a conversar”. No mesmo dia da ordem sobre a Praça da Figueira, um guarda foi castigado por se encontrar “em longa conversa com uma mulher e um soldado na rua do Ouro” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 7, 1873ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 7. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT213 NP085, Ordem Serviço, N. 273, 30/09/1873, N. 1. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1873.). A segunda principal razão de castigo era ser “encontrado embriagado” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 8, 1873ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 8. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT213 NP085, Ordem Serviço, N. 240, 28/08/1873, N. 11. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1873.). A proximidade com a população e o seu impacto no serviço policial foi algo com que todos os comissários tiveram de lidar. Quando assumiu o comando da polícia em 1876, Cristóvão Morais Sarmento tentou racionalizar as punições dadas aos homens encontrados a conversar nas ruas, impondo a escala de castigos que iam desde a suspensão por um dia até a pena de expulsão (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 9, 1877ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 9. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT215 NP077, Ordem Serviço, N. 50, 19/02/1877, N. 3. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1877.).

Esta questão mostrava um modelo disciplinar em que o topo da hierarquia tinha noção do quão dependente estava da base da estrutura policial. Uma vez que a experiência era um atributo fundamental da prática policial, a expulsão do corpo de polícia era protelada ao máximo. Em vez disso, era necessário engendrar estratégias que reduzissem as faltas dos policiais. Ao longo dos anos, um recurso discursivo utilizado frequentemente nas ordens de serviço quando se punia um guarda consistia em declarar que determinada falha era motivo para expulsão. Porém, invocando atenuantes ou sem qualquer explicação adicional, o guarda era mantido no seu lugar. Em fevereiro de 1876, um guarda:

agredira um paisano dando-lhe uma bengalada, agravando esta falta por se achar vestido à paisana sem que para isso tivesse licença, tais faltas são de tal gravidade que deveria ser imediatamente expulso, porém por esta vez limito o castigo com oito patrulhas, reservando-me propor a sua expulsão quando cometa novas faltas (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 10, 1876bORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 10. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT214 NP076, Ordem Serviço, N. 53, 22/02/1876, N. 1. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1876.).

O sistema disciplinar da polícia organizava-se em dois polos: punições de um lado, louvores e gratificações monetárias do outro. As punições mais comuns eram “guardas sucessivas”, em que um policial tinha de permanecer na esquadra para o caso de ocorrer alguma urgência que necessitasse de intervenção. O policial podia ser castigado também com patrulhas adicionais ou, em casos mais graves, transferência para outra esquadra, suspensão ou expulsão, como vimos no caso de Monteiro. Atenuantes como o tempo de serviço e o comportamento anterior eram tomados em consideração na hora de impor castigos, mas circunstâncias como o grau de publicidade do caso podiam ter o efeito oposto. A crítica pública, por exemplo nos jornais, era um motivo que agravava as penas. Um guarda foi suspenso durante quinze dias devido ao seu comportamento no interior de uma igreja. O guarda:

quando se achava de serviço na Igreja de S. Paulo na quinta-feira Santa, ali se comportou indignamente, não se prestou a observar as instruções que recebera do juiz da irmandade, conservando-se a fumar e com o bonet na cabeça dentro dos claustros da igreja, não obstante ter sido censurado e admoestado por aquele juiz, parecendo achar-se embriagado, pelo que foi necessário fazê-lo substituir por outro guarda, em vista das indecências e irreverências que ali praticou (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 10, 1876aORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 10. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT214 NP076, Ordem Serviço, N. 110, 19/04/1876, N. 4. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1876.).

O facto de o comportamento do guarda ter ocorrido no interior de uma igreja, tendo sido admoestado por autoridades religiosas e pelo público presente, constituiu um agravante de peso. Numa força que cresceu em número sobretudo a partir de meados da década de 1880, a preocupação do topo da hierarquia policial era criar uma forma mais uniforme de interação entre os policiais e a população. Em junho de 1882, a ordem de serviço indicava que os policiais deviam evitar fazer detenções por “razões insignificantes”, estas só deveriam ser feitas “depois de esgotados todos os meios suasórios e de admoestação”; o uso da força não poderia ser feito “como meio de vingança ou punição duma ofensa recebida”. O autocontrole devia começar no policial: “[q]ue não deem importância a qualquer dito ou grito que, ainda que à primeira vista possa parecer inconveniente, não é na maioria dos casos senão o resultado de exaltação por excesso de bebidas alcoólicas” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 11, 1882ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 11. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT218 NP081, Ordem Serviço, N. 163, 12/06/1882, N. 1. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1882.). O policial era colocado numa tênue linha decisória: tinha de ser cordial, cortês e prudente, mas também forte, enérgico e assertivo.

Os discursos do interior da força policial reafirmavam periodicamente que o “bom serviço não consiste tanto na ostentação de numerosas participações de ocorrências policiais, como na diligência empregada em evitar os delitos e contravenções pela advertência e pelo conselho” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 12, 1885ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 12. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT219 NP082, Ordem Serviço, N. 161, 10/06/1885, N. 1. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1885.). Embora este tipo de discurso reverberasse as prescrições legais, tinha também o objetivo de tentar conter a violência policial. Em abril de 1874, por exemplo, depois de ter suspendido um guarda por oito dias depois de este ter agredido e insultado um indivíduo detido, o Comissário Geral avisou os outros membros da força: “só quando sejam corporalmente agredidos [...] poderão usar da força para que se façam respeitar” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 12, 1874ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 12. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT213 NP075, Ordem Serviço, N. 115, 25/04/1874, N. 1. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1874.). A preocupação de regrar a forma como os policiais deveriam exercer o seu trabalho e mediar as suas relações com o público tornou-se mais visível no final do século. O tema passou a ser abordado quase todos os meses. No final de junho de 1894, o Comandante da Polícia Civil alertou os policiais que os “modos bruscos e imprudentes” davam origem a “resistência e má vontade em acatar as recomendações que lhe são feitas” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 13, 1894ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 13. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT230 NP092, Ordem Serviço, N. 178, 27/06/1894, N. 9. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1894.). Em 1905, notava-se que o uso da força como último recurso era uma forma de fazer cumprir a missão da polícia, uma vez que “a má educação tira a força moral” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 14, 1905ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 14. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT237 NP099, Ordem Serviço, N. 317, 21/10/1905, N. 16. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1905.). Neste período, havia já entre as elites a percepção de que o uso descontrolado da força em situações de manutenção da ordem pública acarretava “custos políticos” graves, uma preocupação também presente quando se pensava a legitimidade policial quotidiana (Palacios Cerezales, 2011PALACIOS CEREZALES, Diego. Portugal à Coronhada: protesto popular e ordem pública nos séculos XIX e XX. Lisboa: Tinta-da-China, 2011., pp. 230-321).

Prevenir e negociar, tendo como pano de fundo a possibilidade do uso da força, estavam no centro da governamentalidade policial. Implicitamente, no entanto, acabavam por direcionar os policiais para ocasiões de interação prolongada com o público. As principais ações policiais, como deter alguém ou usar de violência física, foram objeto de intensa reflexão interna. As ordens de serviço mostram-nos quatro direções de mudança: formalização burocrática das práticas policiais; a tentativa de fazer com que estas ações fossem feitas o mais rapidamente possível, reduzindo possíveis resistências ou críticas públicas; a transferência destas para o espaço privado da esquadra policial, longe dos olhares públicos; e a redução do uso de força física por parte dos policiais.

Prender alguém passou a ser um gesto crescentemente codificado. Para um policial em patrulha, encarcerar um indivíduo, inserindo-o no sistema judicial, significou ter de preencher cada vez mais burocracia. E se, nas décadas iniciais da Polícia Civil, existiam nas esquadras amanuenses encarregados da burocracia, quanto mais avançamos para o final do século mais essa função recai sobre o policial fardado. Depois de decidir deter um indivíduo, o policial devia trazê-lo o mais rapidamente possível para o interior da esquadra, onde identificaria o indivíduo e só aqui decidiria de forma definitiva a detenção e sua formalização. Em 1881, no mesmo dia em que chamava a atenção para que os policiais “não consenti[ssem] nos corredores dos comissariados e nas suas respectivas esquadras qualquer pessoa estranha à corporação à excepção daqueles que ali forem em objeto de serviço”, o Comissário Geral indicava que, depois de deterem alguém nas ruas, os policiais deveriam “conduz[ir] o preso ou presos às suas respectivas esquadras e ali tirem os apontamentos e apalpem os capturados” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 15, 1881ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 15. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT218 NP081, Ordem Serviço, N. 289, 16/10/1881, N. 5. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1881.). O objetivo era duplo: limitar o mais possível as pressões da rua sobre o policial, que não raramente terminavam em ataques aos guardas e fugas dos detidos; e controlar de forma mais apertada as ações e as decisões dos guardas de polícia, desde o momento de abordagem nas ruas até a transferência do detido para o sistema judicial.

Para reduzir o uso da força física, a organização policial começou a desenvolver técnicas e objetos que trouxessem mais eficiência ao trabalho policial. Pouco tempo depois da criação da Polícia Civil, no final da década de 1860, a imprensa do Porto protestou contra detenções arbitrárias e um uso desproporcional da força por parte da Polícia Civil local. As queixas deram origem a uma investigação a qual concluiu que a polícia estava fazendo uso de carbonato de amônio e camisas de força para deter indivíduos bêbados (Ministério do Reino, 1869MINISTÉRIO DO REINO. Correspondência Recebida; Fundo Ministério do Reino, Mç. 5003, Lº 19, N. 1320. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1869.). Em Lisboa, embora não haja indícios do uso de substâncias químicas, era comum o uso de camisas de força. Ainda sem usar algemas, a polícia desenvolveu técnicas e adaptou objetos para uma prática policial concebida no interior da organização.

Embora simbolicamente menos relevantes do que as detenções, a imposição de multas pecuniárias era uma prática central no trabalho policial. Já foi notado que as posturas municipais eram a lei que mais andava no bolso dos policiais. Eram elas que estabeleciam as multas, um dos principais resultados da atividade policial. O crescimento urbano e a consolidação de uma concepção do Estado como regulador de uma infinidade de questões, do abastecimento da cidade às sociabilidades públicas, passando pela gestão do trânsito, ajudam a explicar esta centralidade. O problema para a polícia era como atuar nestes casos.

A aplicação de multas levava a Polícia a ter de lidar com o guarda zeloso em excesso. Para as lideranças policiais, o policial que queria mostrar serviço aos seus superiores era tão negativo quanto o policial que não cumpria as normas internas. Em setembro de 1879, um guarda foi punido com oito patrulhas adicionais por multar um cidadão espanhol que não havia renovado a sua autorização de residência. Nada de mal haveria nesta ação, não tivesse a dita autorização expirado apenas no dia anterior, o que mostrava, segundo o Comissário Geral, “espírito de perseguição interesseiro” (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 16, 1879ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 16. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT217 NP080, Ordem Serviço, N. 260, 17/09/1879, N. 1. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1879.). Um guarda demasiado rígido e zeloso tinha um efeito negativo na imagem pública da polícia e enfraquecia a autoridade da força policial. Um discurso muitas vezes repetido era o de que a polícia tinha de cumprir a sua missão sem “vexar inutilmente” o povo (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 12, 1885ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 12. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT219 NP082, Ordem Serviço, N. 161, 10/06/1885, N. 1. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1885.). Este tipo de discurso não revelava necessariamente uma concepção moderna de cidadania, mas antes uma preocupação com a eficiência policial.

Tal como no caso das detenções, também a aplicação de multas foi alvo de um crescente escrutínio dentro da força policial. Em 1886, os limites oficiais da cidade de Lisboa foram alargados. Com isso, a Polícia Civil ganhou uma nova divisão e mais homens ao seu serviço, e as autoridades municipais promulgaram um novo código de posturas. Em agosto desse ano, o Governador Civil de Lisboa, provavelmente depois de aconselhado pelo Comissário Geral, comunicou à polícia cinco novas instruções de como aplicar uma multa. Estas revelam-nos tanto sobre como deveriam ser as práticas futuras da polícia quanto sobre como o policiamento vinha ocorrendo. Em primeiro lugar, quando um policial aplicasse uma multa, teria de imediato de entregar ao autuado o bilhete com a identificação de quem estava a ser autuado e a razão da multa. Esta orientação respondia a diversas queixas, particularmente de carroceiros, que descobriam que haviam sido multados apenas quando a polícia mandava a multa para o seu patrão. A segunda instrução estipulava que, caso o policial se enganasse ao passar uma multa, o bilhete não deveria ser destruído, mas sim guardado, passando-se a multa por meio de outro bilhete. Esta orientação permitia que os chefes de esquadra pudessem controlar melhor os guardas quando eles regressassem às suas esquadras. A terceira instrução dizia respeito à forma como os bilhetes de multa deveriam ser preenchidos pelo policial. A quarta insistia no papel de controle dos policiais exercido pelo chefe de esquadra, que deveria verificar todos os bilhetes emitidos pelos guardas em patrulha. A última instrução tinha também uma natureza burocrática (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 17, 1886ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 17. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT221 NP084, Ordem Serviço, N. 238, 26/08/1886, N. 5. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1886.). Esta ordem é apenas um exemplo de ordens diárias cada vez mais frequentes e que revelam a crescente complexificação da burocracia policial.

A partir de meados da década de 1880, é possível registrar uma autêntica explosão das ordens de serviço sobre a gestão do trânsito nas ruas da cidade. E se num primeiro momento é possível ver a polícia adaptar-se ao aumento do número de veículos a circular pela cidade e ao surgimento de novos tipos de transporte, vemos depois que existiu uma crescente preocupação com a mobilidade e a ocupação das ruas em geral. Ordenar as múltiplas mobilidades e ocupações da rua e gerir os conflitos que delas advinham levou a polícia a engendrar as suas próprias racionalidades de atuação. Aplicar uma multa a um cocheiro ou a um carroceiro deveria levar a uma prolongada interação entre guardas e estes indivíduos. Em junho de 1890, o Comissário Geral explicou à restante força policial como se deveria prender ou aplicar uma multa a condutores de veículos carregados (inclusive com passageiros). Nestes casos, o policial:

quando tenha que prender ou autuar algum cocheiro que conduza passageiros para qualquer ponto desta cidade o não faça sem que eles tenham chegado ao ponto a que se destinam. A polícia nestes casos subirá para a almofada do carro, tendo antes feito conhecer aos passageiros que assim o pratica com o fim de lhes evitar transtornos e não ficar impune o cocheiro que cometeu a falta (Ordens do Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 18, 1890ORDENS DO CORPO DE POLÍCIA CIVIL DE LISBOA, 18. Arquivo Polícia Civil de Lisboa; NT225 NP088, Ordem Serviço, N. 160, 09/06/1890, N. 5. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1890.).

Estas situações não apenas requeriam do policial uma prologada interação com quem iam punir, mas também uma grande capacidade de negociação. Um livro sobre a história dos transportes em Lisboa recolheu as memórias de um dos primeiros condutores de táxis automóveis da cidade, que tinha começado a carreira no início do século. Ao contar uma das histórias de um tio, também condutor, ele descreveu:

Uma tarde, ele foi multado com o carro cheio de clientes. De forma muito educada sugeriu ao polícia: - “Eu vou ao Governo Civil senhor, mas compreenda, deixe-me primeiro ir e levar os passageiros ao seu destino”. O polícia concordou, subindo para o lugar ao lado do dele, mas quando regressavam, já sem os clientes e tirando partido de uma curva, Zé Lagarto [o tio] puxou as rédeas, os animais começaram a correr a toda a velocidade e o polícia... trás! Foi atirado do lugar (Capitão, 1974CAPITÃO, Maria Amélia da Motta. Subsídios para a História dos Transportes Terrestres em Lisboa no Século XIX. Lisboa: CML, 1974., p. 124).

Nem todos os guardas terão seguido a ordem de 1890, mas a memória incrustada entre os condutores da cidade mostra bem que as ordens tinham um impacto concreto nas rotinas policiais. Este caso mostra como o trabalho policial, a atuação dos policiais nas ruas, complexificava-se por meio de uma reflexão interna que formulava ideais de policiamento.

RESULTADOS VINDOS DAS RUAS

Embora de uma riqueza inegável, as discussões que transcorrem nas ordens de serviço diárias são também algo particularistas e circunstanciais. Para tentar captar uma imagem mais ampla da materialização da ação policial, analisamos agora as estatísticas policiais, um tipo de informação que nos pode iluminar as características e as mudanças nas práticas do policiamento. As estatísticas eram uma forma utilizada pela instituição para representar o que fazia a polícia e, ainda que obviamente imperfeitas, elas fornecem uma imagem de como a polícia intervinha no quotidiano da cidade. É preciso, no entanto, ter presente que as estatísticas resultam de uma operação interna de conceptualização, classificação e representação do que a instituição considera trabalho policial. Argumentamos assim que as estatísticas representam tanto as formas de funcionamento da Polícia quanto os seus resultados. Mais do que simples exercícios de contabilização de crimes e criminosos, as estatísticas constituem um conjunto complexo de informações, muitas delas de natureza “não-criminal” (Monkkonen, 2004MONKKONEN, Eric H. Police in Urban America 1860-1920. Cambridge: Cambridge University Press , 1981. , pp. 103-104).

A estatísticas da Polícia Civil de Lisboa foram publicadas entre 1871 e 1874 e depois entre 1886 e 1892, sendo retomadas após a implantação da República, com os resultados relativos a 1912 e 1913 (Corpo de Polícia Civil de Lisboa, 1873-1875; 1886-1893; Corpo de Polícia Cívica de Lisboa, 1914-1915). A descontinuidade da publicação de estatísticas é intrigante, especialmente após 1893, quando a Polícia sofreu reformas modernizantes, mas sobretudo porque as ordens de serviço mostram que a Polícia continuou a elaborar estatísticas. Embora não seja um tema para se discutir aqui com profundidade, não podemos deixar de colocar a hipótese de que os anos social e politicamente turbulentos que desembocaram na Revolução de 5 de Outubro de 1910, marcados, por exemplo, por uma “extremely harsh anti-anarchist legislation” (Jensen, 2014JENSEN, Richard Bach. The Battle Against Anarchist Terrorism: An International History, 1878-1934. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. , p. 271), em 1896, tenham se traduzido numa maior opacidade da instituição policial2 2 A Revolução de 5 de Outubro de 1910, levada a cabo por um movimento republicano que tinha despontado no início da década de 1890 e crescido após o assassinato do rei D. Carlos I, em fevereiro de 1908, substituiu a monarquia constitucional por um regime assente na secularização da sociedade, num nacionalismo mais acentuado e, em teoria, numa democratização política. .

O que diziam as estatísticas da Polícia Civil? Apesar do longo período de estatísticas que estamos a analisar e das descontinuidades da sua publicação, elas mantiveram uma estrutura quase inalterada. Invariavelmente, depois de um relatório inicial, as estatísticas começavam por classificar e contabilizar ocorrências criminais e as detenções que delas resultavam, avançando depois para uma caracterização social dos indivíduos detidos, com classificações como gênero, idade, estado civil, origem de nascimento, educação e ocupação. Depois introduziam o que era normalmente designado de “outros serviços”: recém-nascidos abandonados recolhidos pela polícia, doentes e acidentados conduzidos para o hospital, e o que se designava de “ocorrências diversas”: incêndios, suicídios e “auxílios”, entre outros. O número de multas aplicadas de acordo com o código de posturas também surgia neste momento, com exceção das estatísticas publicadas na década de 1910. Nas últimas décadas do século XIX, a Polícia ganhou inúmeras competências de “registo”, e as estatísticas dedicaram cada vez mais espaço a este tipo de serviço. Se, no início da década de 1870, esta secção se resumia ao registro das prostitutas “toleradas”, no final da década de 1880 ela incluía “criadas de servir”, “moços de fretes”, “vendedores de jornais e lotarias”, “empregados de café” e “corretores de hotéis”. Este registro mostra uma força policial preocupada não apenas com o crime, mas com outros grupos considerados potencialmente perigosos para o transeunte. A Polícia incluía depois longas listas com os nomes e endereços de médicos, parteiras e casas de penhores, e se este último caso era uma extensão do registro das classes perigosas, os dois primeiros mostram a polícia como um serviço social (Emsley, 1983EMSLEY, Clive. Policing and its Context, 1750-1870. London: Macmillan Publishers Limited, 1983., pp. 157-160). Para fechar as estatísticas, surgiam os números da polícia: número de homens e esquadras e a atividade burocrática do ano, com o número de ofícios e telegramas enviados.

Sem surpresas, acompanhando o aumento de efetivos policiais, a década de 1880 representou um momento de viragem, com o número de detenções a mais do que dobrar em relação ao início da década de 1870 (Tabela 1). O tipo de ocorrências era o comum de um país pouco industrializado: violência interpessoal e, em posição secundária, crimes de propriedade (Vaz, 2014VAZ, Maria João. O Crime em Lisboa, 1850-1910. Lisboa: Tinta-da-China , 2014., pp. 349-388). A maioria dos detidos era homem (a porcentagem de mulheres ficava em torno de 25% do total), nascidos fora da cidade, com idades que variavam entre 15 e os 35 anos, solteiros. Ademais, cerca de 60% declaravam-se analfabetos, e as ocupações mais representadas eram “trabalhadores”, cocheiros e carroceiros. Não é, no entanto, o número de crimes ou a identidade dos detidos que nos interessa explorar, mas o ato de deter alguém.

Tabela 1
Detenções Registradas pela Polícia Civil de Lisboa.

A par do uso da força física, privar alguém da sua liberdade, introduzindo-o(a) no sistema de justiça criminal, era considerada a ação mais séria que um policial podia tomar. A Tabela 1 contém o número de detenções feitas pela Polícia Civil. Os números do período 1912-1913 devem ser tomados com especial cautela, uma vez que, depois da revolução de 1910, a crise de autoridade da polícia afetou a sua atuação e o número de detenções efetuadas. Os dados mostram um aumento crescente, com um pico no tumultuoso ano de 1890.

Mas se os números absolutos mostram o aumento constante de detenções, uma imagem diferente emerge quando os relacionamos com o efetivo policial e a população da cidade. Tomando em consideração o número médio de detenções nos períodos 1871-1874, 1886-1892 e 1912-1913, é possível observar que uma guarda fazia em média 9,8 detenções no início da década de 1870, 12,2 detenções no final dos anos 1880 e início da década de 1890 e 8,3 detenções nos anos depois da revolução republicana. A conclusão que se pode tirar destes números é que, apesar de ter havido algum aumento na década de 1880, o número de detenções por policial permaneceu relativamente estável. E enfatizando ainda mais esta interpretação, não devemos nos esquecer de que 1890 e 1891, anos especialmente turbulentos na cidade e no país, puxaram para cima o número de detenções. Quando relacionamos os totais de detenções com a população da cidade, a partir dos dados dos censos de 1878, 1890 e 1911, a imagem de relativa estabilidade emerge uma vez mais. O número médio de detenções no início da década de 1870 foi de 4260 por ano, o que resulta em 1,8 detenções por 100 habitantes. Entre 1890 e 1892 ocorreram em média 10453 detenções, resultando em 3,4 detenções por cada 100 habitantes. Para o período 1912-1913, o número de detenções por habitante diminuiu para 2,9. Embora este seja um exercício imperfeito, devido à falta de informação sobre detenções para todo o período, ele indica que, apesar do aumento do número total de detenções, quando tomamos em consideração a evolução da força policial e da cidade, ganham sentido as instruções nas ordens de serviço de um maior controle sobre as detenções policiais.

A contenção nas detenções efetuadas pela Polícia ganha ainda maior expressão se consideramos mudanças sociais e legais. Tivessem as práticas policiais se mantido constantes, o número de detenções teria sido muito mais elevado a partir de meados da década de 1880. Este período foi marcado, por exemplo, por uma acentuada crise econômica, que deu origem a um notado ressurgimento da mendicidade na cidade (Relvas, 2002RELVAS, Eunice. Esmola e Degredo: mendigos e vadios em Lisboa (1835-1910). Lisboa: Livros Horizonte, 2002., pp. 17-20). O desenvolvimento de sociabilidades públicas entre as classes médias e populares aumentou significativamente as situações de potencial conflito. Os crescentes problemas de trânsito, como já notamos, eram um gatilho para uma maior conflituosidade. Para além disso, a reforma da legislação criminal alargou os comportamentos criminalizados. Um exemplo disso é o caso dos maus tratos a animais, surgido no contexto dos problemas de congestionamento das ruas. Até 1889, este tipo de ocorrência dava origem a multa. Neste ano, no entanto, uma nova lei criminalizou os maus tratos a animais. Então, em 1890, 673 indivíduos foram detidos por este motivo, número que aumentou para 850 no ano seguinte. No final do século, a legislação criminal dava aos policiais mais margem para deter alguém. Apesar disso, as estatísticas mostram que os policiais estavam recorrendo a outro tipo de prática. Embora os números não sejam totalmente conclusivos, é possível sugerir que um indivíduo, mesmo das classes populares, tinha mais probabilidade de ser formalmente preso pela polícia na década de 1870 do que nas décadas posteriores. Os guardas de polícia prendiam menos, mas isso pode ter aberto espaço para outros tipos de intervenção.

Como já notamos, as estatísticas policiais refletiam o crescente envolvimento com os comportamentos no espaço público por meio da fiscalização das posturas municipais. A Tabela 3 mostra que multar alguém se tornou cada vez mais uma forma de interação entre a polícia e a população urbana. Infelizmente, os dados neste caso vão apenas até 1892, mas podemos conjecturar que o agravamento dos problemas de trânsito não fez este tipo de ocorrência diminuir, muito pelo contrário. Alguns conflitos entre autoridades mostram exatamente isso. Quando em 1890 os homens da Polícia Civil perderam alguns zeladores não oficiais da Câmara Municipal de Lisboa, o conflito pelo monopólio da fiscalização das posturas municipais chegou até ao Ministério do Reino Ministério do Reino, 1890 MINISTÉRIO DO REINO. Correspondência Recebida; Fundo Ministério do Reino, Mç. 2862, Lº 40, N. 803. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1890.). A receita das multas era demasiado importante para que a municipalidade deixasse o seu recolhimento para uma instituição externa. Não nos interessa aqui aprofundar a análise deste conflito. Para o nosso argumento importa apenas mostrar como a aplicação de multas assumiu relevância entre os diferentes poderes da cidade.

Tabela 2
Multas Aplicadas pela Polícia Civil de Lisboa.
Tabela 3
Resultado das Multas na Polícia Civil de Lisboa.

A simples aplicação da multa não encerrava a interação entre policial e indivíduo multado. A multa podia não ser paga, podia ser contestada no Comissariado Geral e descartada por este (as ordens de serviço relatam alguns destes casos) e, se o não pagamento persistisse, o caso era enviado para o tribunal. Os números da Tabela 4 mostram um elevado grau de resistência ao pagamento de multas. A percentagem de multas não pagas apenas esteve abaixo de 50% em 1871, atingindo um pico em 1886, com mais de 72% das multas a ficarem por pagar. No início da década de 1890, é possível, no entanto, registrar uma diminuição da resistência ao pagamento de multas, com os números a voltarem aos níveis da década de 1870. Embora este assunto necessite de mais pesquisa, a diminuição deve estar relacionada a mudanças no julgamento das multas, que reforçaram as consequências do não pagamento.

Tabela 4
Pessoas Doentes e Acidentadas Transportadas para Hospitais e Farmácias.

As estatísticas policiais mostram também outra gama de interações entre a polícia e a população, mais facilmente não registradas, e que podemos incluir na categoria de trabalho não-criminal. O gesto de “chamar a polícia” mostra o lado de “aid business” do trabalho policial (Monkkonen, 2004MONKKONEN, Eric H. Police in Urban America 1860-1920. Cambridge: Cambridge University Press , 1981. , p. 153), um aspecto central na governamentalidade policial. Embora normalmente sub-representada, a relevância desta área nas estatísticas da Polícia Civil é surpreendente. A Polícia Civil tinha consciência de que a maioria das ocorrências em que intervinha tinham uma natureza não-criminal, muitas delas instigadas pela própria população. Em 1898, por exemplo, a Polícia pediu e conseguiu mais fundos para a iluminação externa das esquadras. O objetivo era dar mais visibilidade a estes lugares, para que a população pudesse recorrer a eles com mais facilidade (Ministério do Reino, 1898MINISTÉRIO DO REINO. Correspondência Recebida; Fundo Ministério do Reino, Mç. 2346A, Lº 48, N. 146. Lisboa (Arquivo Nacional Torre do Tombo - ANTT). 1898.).

Mesmo assim, as estatísticas tinham dificuldade em classificar estes serviços. Em 1874, por exemplo, 1342 ocorrências são registradas com a classificação “ocorrências diversas”, divididas em seis categorias: objetos achados, informações enviadas para os tribunais, portas achadas abertas, fogos, “auxílios” e “casos diversos”. Em 1892, a Polícia registrou como serviços prestados ocorrências como “serviços de assistência”, “desastres de trabalho”, inundações em edifícios e explosões de gás. Embora a sua quantidade tenha alguma relevância nas ocorrências registradas pela Polícia, o seu significado não está tanto na quantidade - é fácil imaginar que muitos destes serviços nunca chegavam a ser registrados, e isso leva-nos a não fazer o mesmo exercício que fizemos com as detenções -, mas na importância que a Polícia lhes dava ao colocá-los nas estatísticas. De fato, eles mostram como a polícia era acionada pela população que procurava segurança no seu quotidiano urbano. Um dos melhores exemplos desta dimensão do trabalho policial é o transporte de pessoas doentes e acidentadas para os hospitais e para as farmácias. A tabela 5 mostra o número crescente deste tipo de ocorrência. Para tornar o serviço mais eficiente, em 1890 a Polícia abriu mesmo uma enfermaria para pequenos curativos no Comissariado Geral. Nos primeiros meses do ano, no entanto, o número de pessoas que a ela recorreram foi tão grande que a polícia se viu obrigada a fechá-la.

Estes números e os discursos das ordens de serviço mostram a importância que a instituição atribuía à sua função de assistência. Este aspecto do trabalho policial era especialmente importante para o modo como a Polícia esperava interagir e ser vista pela população. Os serviços de assistência prestados pela Polícia Civil tinham a função de integrar a população no Estado, oscilando a relação entre a repressão/resistência e a demanda/assistência. A autoridade dos policiais residia nesta dicotomia incerta e paradoxal.

CONCLUSÃO

Numa monarquia constitucional liberal, como a que governou Portugal entre 1834 e 1910, os instrumentos de governo deviam organizar a “liberdade”, o centro ideológico do regime. O que devia ser e o que devia fazer uma polícia num regime de liberdade é algo que os policiais aqui estudados tentaram fazer. Neste sentido, desenvolveram-se racionalidades sobre como a polícia se apresentava em público. Ordens de serviço e estatísticas policiais foram estratégias de governar os guardas de polícia, bem como a sua ação, e de afirmar a polícia como instituição. A racionalidade política da nova polícia da segunda metade do século XIX afirmava uma maior certeza da punição (reformadora) daqueles que feriam a propriedade privada e a segurança do corpo. Mas a visão de uma imposição unidirecional da ordem a seres inertes não se enquadrava no liberalismo do cidadão ativo e reflexivo. Desta forma, a polícia foi desenvolvendo a racionalização de que a sua eficiência na defesa do transeunte dependia também da expectativa, por parte da população, de que a polícia viria a ajudar, o que conduziria a uma ativação da polícia. A governamentalidade policial assentava nesse envolvimento dos sujeitos. É certo que os casos de disciplina relatados nas ordens de serviço apresentam um quotidiano mais bagunçado, mas nas dinâmicas desse quotidiano construía-se uma racionalidade policial.

REFERÊNCIAS

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    O lugar onde os serviços da polícia se encontravam “aquartelados” ganhou em Portugal a designação de “esquadra de polícia”. A Polícia Civil de Lisboa, principal objeto deste trabalho, era uma força policial fundada em 1867, composta de homens, muitas vezes recrutados nas zonas rurais do país, que deviam saber ler e escrever e que assinavam um contrato de trabalho de, no mínimo, cinco anos, para executar tarefas para as quais recebiam um salário (Gonçalves, 2014GONÇALVES, Gonçalo Rocha. Police Reform and the Transnational Circulation of Police Models: The Portuguese Case in the 1860s. Crime, Histoire & Sociétés/ Crime, History & Societies, v. 18, n. 1, pp. 5-29, 2014., pp. 135-150). A cidade ainda tinha outra força policial, militar, a Guarda Municipal, fundada em 1834, que intervinha sobretudo em situações de manutenção da ordem pública.
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    A Revolução de 5 de Outubro de 1910, levada a cabo por um movimento republicano que tinha despontado no início da década de 1890 e crescido após o assassinato do rei D. Carlos I, em fevereiro de 1908, substituiu a monarquia constitucional por um regime assente na secularização da sociedade, num nacionalismo mais acentuado e, em teoria, numa democratização política.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2022
  • Aceito
    30 Jan 2023
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