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Transplante osteocondral a fresco no joelho no Brasil: mínimo de dois anos de seguimento Trabalho desenvolvido no Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

OBJETIVO:

Relatar os resultados dos primeiros casos de transplante osteocondral a fresco na articulação do joelho no Brasil com um mínimo de seguimento de dois anos.

MÉTODOS:

Foi feito um protocolo de captação, processamento e uso de transplantes osteocondrais a fresco na articulação do joelho. Iniciou-se com modificações na legislação vigente, técnicas de captação de enxertos, processamento imediato, armazenamento a fresco dos enxertos e uso de duas técnicas cirúrgicas de transplante osteocondral. Oito pacientes foram transplantados e acompanhados com mínimo de dois anos de seguimento.

RESULTADOS:

Os pacientes foram avaliados por meio dos questionários do International Knee Documentation Committee (IKDC) subjetivo, Knee Injury and Osteoarthritis Outcome Score (KOOS) e índice de Merle D'Aubigne e Postel modificado. A média da pontuação da escala IKDC subjetiva pré-operatória foi de 31,99 ± 13,4 e de 81,26 ± 14,7 no pós-operatório e da escala KOOS pré-operatória foi de 46,8 ± 20,9 e de 85,24 ± 13,9 no pós-operatório, com melhoria significativa ao longo do tempo (p < 0,01). A média da pontuação pelo índice de Merle D'Aubigne e Postel modificado foi de 8,75 ± 2,25 no pré-operatório e de 16,1 ± 2,59 no pós-operatório. O resultado do teste de Friedman para amostras não paramétricas demonstrou melhoria significativa ao longo do tempo (p < 0,01).

CONCLUSÕES:

O transplante osteocondral a fresco no Brasil é um procedimento seguro, com bons resultados clínicos em curto e médio prazo para o tratamento de lesões osteocondrais maiores do que 4 cm2 na articulação do joelho.

Palavras-chave:
Traumatismos do joelho; Cartilagem articular; Transplante homólogo; Ortopedia

ABSTRACT

OBJECTIVE:

The present study aimed to report the results of the first series of cases of fresh ostechondral allografts in the knee joint in Brazil with a minimum follow-up of two years.

METHODS:

A protocol of procurement, harvesting, processing, and utilization of fresh osteochondral allografts in the knee joint was established, beginning with legislation modifications, graft harvesting techniques, immediate processing, storage of fresh grafts, and utilization of two surgical techniques of osteochondral transplantation. Eight patients were treated and followed-up for a minimum of two years.

RESULTS:

Patients were evaluated with subjective IKDC, KOOS, and modified Merle D'Aubigne and Postel questionnaires. Mean subjective IKDC score was 31.99 ± 13.4 preoperative and 81.26 ± 14.7 at the latest follow-up; preoperative KOOS score was 46.8 ± 20.9 and postoperative was 85.24 ± 13.9, indicating a significant improvement over time (p < 0.01). Mean modified Merle D'Aubigne-Postel score was 8.75 ± 2.25, preoperatively, and 16.1 ± 2.59 postoperatively. Friedman test for non-parametric samples demonstrated a significant improvement in postoperative scores (p < 0.01).

CONCLUSION:

The use of fresh osteochondral allografts in Brazil is a safe procedure, with good clinical results in the short- and medium-term for the treatment of osteochondral lesions greater than 4 cm2 in the knee joint.

Keywords:
Knee injuries; Cartilage, articular; Transplantation, homologous; Orthopedics

Introdução

Lesões condrais na articulação do joelho afetam aproximadamente 900.000 cidadãos americanos anualmente, resultam em mais de 200.000 procedimentos cirúrgicos para diagnóstico e tratamento,11. Cole B, Frederick RW, Levy AS, Zaslav KR. Management of a 37 -year-old man with recurrent knee pain. J Clin Outcomes Manag. 1999;6(6):46-57. não existem estatísticas brasileiras sobre essa doença. O objetivo no tratamento das lesões condrais e osteocondrais traumáticas desses pacientes é reestabelecer a anatomia e a função da articulação e eliminar a dor.

O tratamento das lesões condrais maiores do que 4 cm2 pelas técnicas de desbridamento ou microfraturas não promove resultados satisfatórios, pelo fato de não abordarem a lesão do osso subcondral e promoverem o reparo com tecido fibrocartilaginoso em vez de cartilagem hialina, não são, portanto, recomendadas para o tratamento dessas lesões.22. Asik M, Ciftci F, Sen C, Erdil M, Atalar A. The microfracture technique for the treatment of full- thickness articular cartilage lesions of the knee: midterm results. Arthroscopy. 2008;24(11):1214-20.and33. Minas T, Nehrer S. Current concepts in the treatment of articular cartilage defects. Orthopedics. 1997;20(6):525-38. O transplante osteocondral autólogo é uma boa opção de tratamento, promove o reparo com cartilagem hialina e enxerta possíveis defeitos do osso subcondral. Entretanto, tem limitações pela morbidade da área doadora, pode ser usado idealmente em lesões de até 2,5 cm de diâmetro e até 10 mm de profundidade.44. Bartha L, Vajda A, Duska Z, Rahmeh H, Hangody L. Autologous osteochondral mosaicplasty grafting. J Orthop Sports Phys Ther. 2006;36(10):739-50.,55. Hangody L, Dobos J, Balo E, Panics G, Hangody LR, Berkes I. Clinical experiences with autologous osteochondral mosaicplasty in an athletic population: a 17 -year prospective multicenter study. Am J Sports Med. 2010;38(6):1125-33.and66. Ma HL, Hung SC, Wang ST, Chang MC, Chen TH. Osteochondral autografts transfer for post- traumatic osteochondral defect of the knee- 2-5 years follow- up. Injury. 2004;35(12):1286-92.

Atualmente as opções de tratamento para as lesões condrais e osteocondrais maiores do que 4 cm2 no joelho são o transplante autólogo de condrócitos e o transplante osteocondral homólogo a fresco (TOF). O transplante autólogo de condrócitos é uma técnica complexa, em que são necessárias duas intervenções cirúrgicas com biópsia e transplante das células, apresenta custo bastante elevado.77. Niemeyer P, Pestka JM, Kreuz PC, Erggelet C, Schmal H, Suedkamp NP, et al. Characteristic complications after autologous chondrocyte implantation for cartilage defects of the knee joint. Am J Sports Med . 2008;36(11):2091-9. O uso do TOF para o tratamento de lesões osteocondrais grandes no joelho é uma opção biológica em pacientes jovens, tem como principal vantagem ser um tecido com cartilagem hialina e condrócitos vivos em uma matriz condral, com arquitetura de fibras colágenas preservada.88. Sherman SL, Garrity J, Bauer K, Cook J, Stannard J, Bugbee W. Fresh osteochondral allograft transplantation for the knee: current concepts. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(2):121-33.and99. Williams RJ 3rd, Ranawat AS, Potter HG, Carter T, Warren RF. Fresh stored allografts for the treatment of osteochondral defects of the knee. J Bone Joint Surg Am. 2007;89(4):718-26.

O TOF tem sido feito por décadas em outros países.1010. Aubin PP, Cheah HK, Davis AM, Gross AE. Long -term followup of fresh femoral osteochondral allografts for posttraumatic knee defects. Clin Orthop Relat Res. 2001; 391 Suppl.:S318-27.,1111. Bugbee WD. Fresh osteochondral allografts. J Knee Surg. 2002;15(3):191-5.,1212. Gross AE, Shasha N, Aubin P. Long -term followup of the use of fresh osteochondral allografts for posttraumatic knee defects. Clin Orthop Relat Res . 2005;435:79-87.,1313. Lattermann C, Romine SE. Osteochondral allografts: state of the art. Clin Sports Med. 2009;28(2):285-301.and1414. Shasha N, Aubin PP, Cheah HK, Davis AM, Agnidis Z, Gross AE. Long -term clinical experience with fresh osteochondral allografts for articular knee defects in high demand patients. Cell Tissue Bank. 2002;3(3):175-82. Essa técnica foi introduzida inicialmente para o tratamento de defeitos ósseos pós-traumáticos.1515. Volkov M. Allotransplantation of joints. J Bone Joint Surg Br. 1970;52(1):49-53.and1616. Czitrom AA, Langer F, McKee N, Gross AE. Bone and cartilage allotransplantation. A review of 14 years of research and clinical studies. Clin Orthop Relat Res . 1986;208:141-5. Entretanto, hoje é usada para tratamento de diversas afecções do joelho, como osteocondrite dissecante (OCD), osteonecrose secundária, doença degenerativa do joelho, além de sequelas de fraturas.1717. Görtz S, De Young AJ, Bugbee WD. Fresh osteochondral allografting for osteochondral lesions of the talus. Foot Ankle Int. 2010;31(4):283-90.,1818. Gortz S, De Young AJ, Bugbee WD. Fresh osteochondral allografting for steroid-associated osteonecrosis of the femoral condyles. Clin Orthop Relat Res . 2010;(468):1269-78.,1919. Harris JD, Brophy RH, Siston RA, Flanigan DC. Treatment of chondral defects in the athlete's knee. Arthroscopy . 2010;26(6):841-52.and2020. Gomoll AH, Filardo G, Almqvist FK, Bugbee WD, Jelic M, Monllau JC, et al. Surgical treatment for early osteoarthritis. Part II: allografts and concurrent procedures. Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc. 2012;20(3):468-86.O TOF tem como princípio reestabelecer a estrutura biológica da articulação, reconstruir a superfície articular com cartilagem hialina e fornecer um tecido osteocondral capaz de suportar a carga mecânica do indivíduo.2121. Ossendorf C, Steinwachs MR, Kreuz PC, Osterhoff G, Lahm A, Ducommun PP, et al. Autologous chondrocyte implantation (ACI) for the treatment of large and complex cartilage lesions of the knee. Sports Med Arthrosc Rehabil Ther Technol. 2011;3:11.and2222. Görtz S, Bugbee WD. Allografts in articular cartilage repair. J Bone Joint Surg Am . 2006;88(6):1374-84.

Até a presente data desconhecemos trabalhos ou relato de uso da técnica do TOF no Brasil, pois as leis que regulamentavam os bancos de tecidos até 2009 não permitiam que tecidos frescos fossem usados para transplante em tempo hábil de liberação das culturas, era necessário aguardar os resultados desses exames antes do uso.2323. Tirico LDMK. O uso do transplante osteocondral a fresco no tratamento das lesões osteocondrais do joelho. Rev Bras Ortop. 2012;47(6):694-700.

Este trabalho tem o objetivo de relatar os resultados dos primeiros casos de transplante osteocondral a fresco na articulação do joelho no Brasil com um mínimo de seguimento de dois anos.

Métodos

O presente estudo foi feito no Instituto de Ortopedia e Traumatologia da nossa instituição e recebeu aprovação do Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa (CAPPesq).

Usamos como critérios de inclusão de receptores: pacientes jovens, entre 15 e 45 anos, com lesões osteocondrais traumáticas ou adquiridas no joelho, lesões condrais ou osteocondrais maiores do que 4 cm2 e com lesões condrais ou osteocondrais com falhas de tratamentos anteriores para reparo da cartilagem articular.

Excluímos do presente estudo: pacientes com artropatias inflamatórias, com infecção ativa no joelho ou em qualquer outro local do organismo e tabagistas.

Para seleção dos doadores, usamos os critérios de inclusão e exclusão para tecidos musculoesqueléticos da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) e selecionamos indivíduos entre 15 e 45 anos.

A casuística consistiu em cinco doadores de órgãos e oito receptores (oito joelhos), os quais foram operados de março a outubro de 2012.

Captação

Em nosso estudo, todos os tecidos para TOF foram obtidos de pacientes doadores de órgãos, captados em salas com fluxo laminar em centro cirúrgico, após a captação de coração, fígado e rim. Os joelhos foram captados em bloco, dissecaram-se apenas a pele e o subcutâneo, manteve-se a cápsula articular intacta. Foi feita uma osteotomia no fêmur distal 10 cm acima da linha articular e na tíbia e fíbula proximais, dois centímetros abaixo da parte mais distal da tuberosidade anterior da tíbia (TAT) (fig. 1A-C).

Figura 1 -
A,osteotomia do fêmur 10 cm acima da linha articular, sem violação da cápsula articular; B, osteotomia da tíbia dois centímetros abaixo da TAT; C, resultado final da peça antes do transporte ao Banco de Tecidos.

As peças, em bloco, foram colocadas em solução de ringer lactato e transportadas sob temperatura de 2 a 8 °C. Após a captação, os tecidos foram levados para o Banco de Tecidos para o processamento em até 12 horas da captação.

Processamento

A etapa do processamento foi feita em sala cirúrgica própria classificada (classe 100 ou ISO 5) e equipada com módulo de fluxo laminar. A cápsula articular do joelho foi aberta por via parapatelar medial e mensuraram-se as estruturas com paquímetro, para pareamento com os receptores da lista de TOF. Nessa etapa, a cartilagem articular foi analisada e somente foram usadas as partes em que essa estrutura estava intacta.

O pareamento foi feito com a comparação do tamanho real da tíbia proximal do joelho acometido, no nível da articulação do doador e do receptor. Essa medida foi obtida pela mensuração desse segmento do receptor por meio de radiografias digitais em incidência anteroposterior do joelho acometido, foi descontada a magnificação (fig. 2). Já no doador, a mensuração foi feita com auxílio de um paquímetro. Para lesões do segmento proximal da tíbia, patela, tróclea femoral e lesões maciças dos côndilos femorais, usamos como parâmetro para o pareamento uma diferença de, no máximo, 5mm entre o doador e receptor. Para lesões focais do côndilo femoral, o pareamento positivo foi feito quando o côndilo do doador era de igual tamanho ou maior do que o do receptor.

Figura 2 -
Mensuração da tíbia proximal do receptor, para pareamento com o doador.

Ocorrido o pareamento doador e receptor, foram colhidos todos os exames para análise. Os tecidos selecionados foram embalados em invólucros triplos selados a vácuo, com o meio de preservação com nutrientes. As culturas demoraram uma média de 14 dias para ser liberadas e durante esse período preparamos o receptor e agendamos o procedimento cirúrgico para que fosse feito o mais próximo possível da data de liberação das culturas.

Armazenamento e preservação

O meio de preservação usado para preservação dos tecidos foi o meio comercial Ham F-12 - GIBCO com glutamax (Invitrogen, Life Technologies, Estados Unidos) que contém aminoácidos, vitaminas e sais minerais. Foram adicionadas anfotericina B (12,5 mg/500 ml), estreptomicina (50 mg/500 ml), gentamicina (25 mg/500 ml) e penicilina G (5.000.000UI/500 ml) para profilaxia contra microrganismos. Os tecidos foram armazenados em refrigeradores sob temperatura de 4 °C e aguardou-se o resultado das culturas.

Técnica cirúrgica

O procedimento cirúrgico foi agendado para o dia seguinte à data de liberação das culturas, com o propósito de minimizar o tempo entre captação e transplante.

Os joelhos foram abordados por artrotomia parapatelar medial ou lateral, a depender do local da lesão a ser transplantada. Para casos de múltiplas lesões, foi feita uma artrotomia ampla, semelhante a incisões de artroplastia total de joelho, o que facilitou o acesso a todas estruturas e preservou as inserções meniscais durante a via de acesso. Em lesões do côndilo posterior, nas quais há uma dificuldade de abordagem, o corno anterior do menisco foi seccionado radialmente, deslocou-se o menisco para melhor acesso à lesão, com posterior sutura.

Foram usados dois tipos de técnicas cirúrgicas para transplante osteocondral a fresco do joelho: a técnica de cilindros osteocondrais, em que foi usado um instrumental específico para preparação do leito receptor e do enxerto do doador (Biotechnology Ortopedia Importação e Exportação Ltda) (fig. 3); e a técnica de superfície, em que tanto o receptor quanto o doador foram preparados manualmente com auxílio de formões, curetas e serra óssea (fig. 4).

Figura 3 -
A, aspecto macroscópico de lesão de osteocondrite dissecante no côndilo femoral medial esquerdo; B, côndilo femoral medial esquerdo de doador com cilindro preparado no mesmo local anatômico do defeito do receptor; C, transplante osteocondral a fresco que restaura a superfície articular do côndilo femoral medial; D, visão lateral macroscópica do transplante, nota-se a perfeita congruência da superfície articular do côndilo femoral medial.

Figura 4 -
A, sequela de osteonecrose em côndilo femoral lateral (CFL), com via de acesso parapatelar lateral e luxação medial da patela; B, côndilo femoral lateral de doador no intraoperatório; C, aspecto da fixação provisória do enxerto que mostra a congruência da superfície articular; D, fixação final do CFL que restaura a anatomia da articulação.

O enxerto doador foi retirado do mesmo local anatômico da lesão no receptor. Para isso, foi solicitado ao banco de tecidos um enxerto do doador correspondente à lesão do paciente que receberia o transplante.

Avaliação funcional

Os pacientes foram avaliados no pré-operatório, intraoperatório e pós-operatório por meio dos questionários IKDC (International Knee Documentation Comitee) 2000 subjetivo, 2424. Irrgang JJ, Anderson AF, Boland AL, Harner CD, Kurosaka M, Neyret P, et al. Development and validation of the international knee documentation committee subjective knee form. Am J Sports Med . 2001;29(5):600-13. KOOS (Knee Injury and Osteoarthritis Outcome Score) 2525. Bekkers JE, de Windt TS, Raijmakers NJ, Dhert WJ, Saris DB. Validation of the Knee Injury and Osteoarthritis Outcome Score (KOOS) for the treatment of focal cartilage lesions. Osteoarthr Cartil. 2009;17(11):1434-9. e índice de Merle D'Aubigne e Postel modificado para joelho 2626. Chu CR, Convery FR, Akeson WH, Meyers M, Amiel D. Articular cartilage transplantation. Clinical results in the knee. Clin Orthop Relat Res . 1999;(360):159-68.and2727. D'Aubigne RM, Postel M. Functional results of hip arthroplasty with acrylic prosthesis. J Bone Joint Surg Am . 1954;36(3):451-75. para uma avaliação detalhada da lesão e da função do membro.

Análise estatística

Os dados do tipo contínuo e intervalares, como IKDC subjetivo, escala de KOOS e índice de Merle D'Albigne e Postel modificado, foram descritos pela média e pelo seu respectivo desvio padrão. Todos foram testados quanto à sua distribuição pelo teste de Komogorov-Smirnov. Para estatística inferencial, as escalas do IKDC subjetivo e a escala de KOOS se mostraram com distribuição normal e para comparação ao longo do tempo foi usado o teste de Anova de uma via para medidas repetidas e o teste de post hoc de Bonferroni. Para testar a melhoria do índice de Merle D'Albigne e Postel modificado que não teve distribuição normal, foi usado o teste de Friedman para medidas relacionadas e o teste post hoc foi feito com o teste de Wilcoxon para comparação de pares de medidas relacionadas com suas devidas correções.

Para diferença estatisticamente significante foi aceito erro do tipo I igual ou menor que 5%. Foi usado o software SPSS 20.0 para MAC na análise dos dados.

Resultados

Foram feitos oito TOF de março de 2012 a outubro de 2012, proveniente de cinco doadores e oito joelhos operados. Os pacientes acompanhados por um mínimo de dois anos após o ato cirúrgico (30 a 37 meses).

Cinco pacientes tinham como diagnóstico inicial osteocondrite dissecante (OCD), um paciente com necrose de côndilo femoral pós-quimioterapia e dois com sequela pós-traumática. A média de idade dos pacientes transplantados foi de 30,1 anos (17-44) e a média da área transplantada foi de 10,6 cm2 (4,6-22,4 cm2). O intervalo médio de dias entre captação e transplante foi de 15,3 dias (14-16) e o número médio de cirurgias prévias ao TOF foi de duas cirurgias (0-4) (tabela 1). Foram feitos seis transplantes em côndilo femoral, um em planalto tibial com menisco e um em patela.

Tabela 1-
Características dos transplantes: local transplantado, tamanho da lesão em cm2, tempo entre a captação e o transplante em dias, tipo de técnica cirúrgica, idade, diagnóstico e número de cirurgias prévias

Houve perda de dados de um paciente no seguimento a partir de seis meses (paciente 5) e todos os dados das escalas foram substituídos pelo pior valor entre todos os pacientes, o que caracterizou o uso do pior cenário e análise por intenção de tratamento por não excluir esse paciente do estudo.

A média da pontuação da escala IKDC subjetiva pré-operatória foi de 31,99 ± 13,4 e de 81,26 ± 14,7 no pós-operatório. Já a média da pontuação da escala KOOS pré-operatória foi de 46,8 ± 20,9 e de 85,24 ± 13,9 no pós-operatório. A análise da variância demonstrou que os pacientes apresentaram melhoria significativa ao longo do tempo, entre o pré-operatório e o pós-operatório (p < 0,01).

A média da pontuação do índice de Merle D'Aubigne e Postel modificado para o joelho foi de 8,75 ± 2,25 no pré-operatório e de 16,1 ± 2,59 no pós-operatório. O resultado do teste de Friedman para amostras não paramétricas demonstrou que os pacientes apresentaram melhoria significativa ao longo do tempo, entre o pré-operatório e o pós-operatório (p < 0,01).

Discussão

Transplantes osteocondrais a fresco na articulação do joelho não eram feitos até 2009 no Brasil, pois a legislação vigente no país não permitia o armazenamento de tecidos a fresco por tempo suficiente para que o procedimento fosse feito com segurança.2828. Brasil. Ministério da Saúde Agência Nacional de Vigilância Sanitária. RDC N◦ 220, 27 de dezembro de 2006. Resolução da Diretoria Colegiada. RDC/ANVISA. 2006. Available from: http://www.saude.mg.gov.br/atos normativos/legislacao-sanitaria/estabelecimentos-de-saude/banco-de-leite-de-sangue-de-celulas-de-cordao-umbilical-e-outros-orgaos.
http://www.saude.mg.gov.br/atos normativ...
Este estudo representa o primeiro relato de uso de transplantes osteocondrais a fresco na América do Sul.

Como primeiro estudo com transplantes osteocondrais a fresco no Brasil, foram incluídos somente pacientes entre 15 e 45 anos com histórico de lesões traumáticas ou adquiridas do joelho maiores do que 4 cm2 e foram excluídos pacientes com lesões degenerativas.

Todos os enxertos foram obtidos de doadores de órgãos com captação em centro cirúrgico, após a doação de coração, fígado e rins, diferentemente do estudo feito por Vangsness et al. 2929. Vangsness CT Jr, Triffon MJ, Joyce MJ, Moore TM. Soft tissue for allograft reconstruction of the human knee: a survey of the American Association of Tissue Banks. Am J Sports Med . 1996;24(2):230-4. nos Estados Unidos da América, no qual somente 33% das captações ocorreram em centro cirúrgico, o restante foi feito em serviços de verificações de óbitos ou instituto médico-legais. Até o presente momento, captações nessas dependências no Brasil não são possíveis por aspectos legais, o que limita o número de enxertos disponíveis para transplante.

Após a captação, os enxertos foram enviados imediatamente para o banco de tecidos para o processamento, o qual ocorreu em até 12 horas da captação. Essa agilidade entre captação e processamento permitiu um curto período de tempo entre a captação e o transplante (15,3 dias), fato que contribui para uma maior viabilidade celular dos condrócitos na cartilagem transplantada, em comparação com enxertos armazenados por períodos mais prolongados.3030. Williams SK, Amiel D, Ball ST, Allen RT, Wong VW, Chen AC, et al. Prolonged storage effects on the articular cartilage of fresh human osteochondral allografts. J Bone Joint Surg Am . 2003;85(11):2111-20. Outro fator que contribuiu para o tempo curto entre captação e transplante foi o fato de que todas as captações foram feitas dentro de um raio de 100 km da cidade de São Paulo, não foi necessário o transporte aéreo dos tecidos, o que diminuiu o intervalo de tempo entre captação e transplante.

Os transplantes foram feitos por meio de duas técnicas cirúrgicas: cilindro osteocondral e superfície. Instrumentais específicos para a técnica de cilindro osteocondral não estavam disponíveis no Brasil no início deste estudo, foi confeccionado um jogo de instrumentais em uma empresa nacional para o procedimento cirúrgico com a técnica de cilindro osteocondral. Nessa técnica, o diâmetro do cilindro osteocondral do doador deve ser igual ou 1 mm menor do que o leito receptor. Entretanto, essa diferença em nosso instrumental era levemente maior do que a ideal, foi necessária a fixação de alguns enxertos com parafusos canulados de compressão de 3 mm de diâmetro, os quais foram retirados por artroscopia com 12 semanas após o transplante.

As avaliações clínicas feitas por meio dos questionários objetivos e subjetivos (IKDC, KOOS e Merle D'Aubigne e Postel modificado) melhoraram significativamente entre o pré-operatório e o último seguimento clínico (p < 0,01). Apenas um paciente apresentou complicação pós-operatória no seguimento. Esse paciente tinha histórico de fratura de planalto tibial medial que evoluiu com infecção aguda após a fixação da fratura, foi tratada com limpezas cirúrgicas seriadas e retirada do material de síntese. Esse paciente apresentou recidiva da infecção prévia após três meses do transplante osteocondral (três anos após a fratura), com falha do enxerto. Imagens radiográficas de todos os outros pacientes demonstraram incorporação dos transplantes sem formação de cistos subcondrais ou colapso dos enxertos. Os pacientes retornaram às suas atividades diárias de lazer e trabalho, assim como a atividades esportivas de baixo impacto. O nível de satisfação dos pacientes com o procedimento foi considerado alto por todos os indivíduos transplantados.

Nosso estudo tem diversas limitações. Trata-se de uma amostra pequena de pacientes, com pouco tempo de seguimento, e não temos grupo controle para comparação de resultados. Outra limitação está no fato de duas técnicas cirúrgicas terem sido avaliadas em conjunto, as quais podem apresentar resultados distintos em decorrência da diferença do tamanho dos enxertos e das dificuldades técnicas cirúrgicas.

Conclusão

O transplante osteocondral a fresco no Brasil é um procedimento seguro com bons resultados clínicos em curto e médio prazo para o tratamento de lesões osteocondrais maiores do que 4 cm2 na articulação do joelho. Trata-se de um procedimento complexo que depende de um banco de tecidos especializado e equipe cirúrgica treinada na captação e no processamento dos tecidos.

Agradecimentos

À equipe do Banco de Tecidos e do Grupo de Joelho da instituição pela colaboração dada a este trabalho

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  • Trabalho desenvolvido no Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2017

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2016
  • Aceito
    11 Nov 2016
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