Resumos
Este artigo analisa performances identitárias de raça encenadas nos textos produzidos por negras em uma comunidade da Orkut. O estudo se embasa em concepções sobre os novos letramentos digitais e em Teorias Queer. Os dados foram gerados em uma comunidade da Orkut que discute temas sobre a população negra. Foram analisadas mensagens de um fórum para mulheres negras brasileiras. O arcabouço analítico é constituído pelos construtos alinhamento e enquadre, propostos por Goffman ([1979], 1998). Os resultados indicam que as performances identitárias das participantes são permeadas por sexualidade, gênero, raça, classe social e oscilam entre uma postura queer e performances essencializadas.
mulheres negras; performances identitárias; teorias Queer; Orkut
This article aims at analysing racial identity performances enacted in texts produced by black heterosexual women in a community of black people at Orkut. This study is based on new digital literacy and queer theories. We analyzed messages in a forum specifically geared towards Brazilian black women. The analytical framework is derived from Goffman's concepts of footing and frame. The results indicate that participants' identity performances are permeated by sexuality, gender, race and social class oscilating between a queer position and essencialized performances.
black women; identity performances; Queer theories; Orkut
ARTIGOS ARTICLES
Glenda Cristina Valim de MeloI; Luiz Paulo da Moita LopesII
IUniversidade de Franca,E-mail: glendamelo09@gmail.com
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro, E-mail: moitalopes@oi.com.br
RESUMO
Este artigo analisa performances identitárias de raça encenadas nos textos produzidos por negras em uma comunidade da Orkut. O estudo se embasa em concepções sobre os novos letramentos digitais e em Teorias Queer. Os dados foram gerados em uma comunidade da Orkut que discute temas sobre a população negra. Foram analisadas mensagens de um fórum para mulheres negras brasileiras. O arcabouço analítico é constituído pelos construtos alinhamento e enquadre, propostos por Goffman ([1979], 1998). Os resultados indicam que as performances identitárias das participantes são permeadas por sexualidade, gênero, raça, classe social e oscilam entre uma postura queer e performances essencializadas.
Palavras-chave: mulheres negras; performances identitárias; teorias Queer; Orkut.
ABSTRACT
This article aims at analysing racial identity performances enacted in texts produced by black heterosexual women in a community of black people at Orkut. This study is based on new digital literacy and queer theories. We analyzed messages in a forum specifically geared towards Brazilian black women. The analytical framework is derived from Goffman's concepts of footing and frame. The results indicate that participants' identity performances are permeated by sexuality, gender, race and social class oscilating between a queer position and essencialized performances.
Key-words: black women; identity performances; Queer theories; Orkut.
"Aqui não se trata apenas da questão de como o discurso fere os corpos, mas de como certas feridas estabelecem certos corpos nos limites de ontologias disponíveis, esquemas disponíveis de inteligibilidade. E ainda, como é que os seres abjetos acabam por se colocarem por meio dos e contra os discursos que procuraram repudiá-los?' (Butler, 2003: 153)
1. INTRODUÇÃO
Este artigo visa investigar performances identitárias encenadas por mulheres negras em uma comunidade da Orkut1 1 . Rede social composta de perfis e diversas comunidades que fez muito sucesso, no Brasil, na última década. . Optamos pelas mulheres negras devido ao fato de nos vários censos, como, por exemplo nos resultados do censo 20102 2 . Para maiores informações, acessar http://www.ibge.gov.br/censo2010/. , elas aparecerem no último segmento da pirâmide social, ou seja, são inferiores aos brancos, às brancas e aos negros, muitas vezes, vivendo na invisibilidade e à margem da sociedade. De acordo com os estudos de Venturi & Recaman (2009), as desigualdades entre brancas e negras estão em todos os campos da sociedade. Além disso, segundo Ribeiro (2009:89), a perpetuação do machismo e do racismo produz diversos "estigmas de objeto sexual, serviçal e subserviência" sobre estas mulheres.
Apesar disso, no campo de estudos linguísticos aplicados brasileiros tem havido, em geral, pouco interesse em focalizar as questões raciais ainda que se tenha tratado de questões de discurso, gênero e sexualidade (por exemplo, Moita Lopes, 2002, 2006b e 2009; Heberle, Osterman, Figueiredo, 2006). Algumas exceções são Ferreira (2009 e 2006), Moita Lopes (2006b) e Costa de Paula (2003) que enfocam raça em suas pesquisas.
Concordando com o pensamento de Venn (2000) e Santos (2004) no que se refere à necessidade de dar voz àquelas apagadas na modernidade, tornamos, aqui, visíveis as mulheres negras como sujeitos sociais. Nesta investigação, elas são entendidas, na perspectiva de Hall (2006:12 [1992]), "como sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente", com encenação de identidades contraditórias, em diferentes contextos, momentos e sem um eu coerente, reinventado e co-construído socioculturalmente pelo outro, pela linguagem e pela história.
Embasados nesta perspectiva de sujeito social, seguimos os pressupostos da Linguística Aplicada transgressiva como proposta por Moita Lopes (2006a) e Pennycook (2006), pois também compreendemos que para entender as mudanças na sociedade que vivenciamos e a vida social da qual fazemos parte, é necessário reteorizar o sujeito social, considerando o corpo que o constrói no mundo social e não apagando-o como tradicionalmente tem sido feito.
Compartilhamos ainda de uma ótica em que os binarismos sobre a vida social são deixados de lado e novas sociabilidades são compreendidas como situadas na fronteira, sem identidades fixas e estanques, como propõem Moita Lopes & Bastos (2010). Nesta perspectiva, amparamo-nos nas Teorias Queer3 3 . Segundo Hall (2003:5) "não há uma 'teoria queer' no singular, apenas muitas vozes diferentes e por vezes sobrepostas, por vezes perspectivas divergentes que podem ser chamadas de 'Teorias Queer". (Sommerville, 2000; Sullivan, 2003; Butler, 2004; Barnard, 2004; Louro, 2004) para compreender os discursos4 4 . Seguindo Moita Lopes (2012:225), que acompanha Gee (2004:15), discurso com letra minúscula se refere à linguagem em uso. Já Discurso, com letra maiúscula, refere-se às formas de estar no mundo que "integram identidades ou modos combinados de "dizer-fazer-pensar-sentir-valorar", [...] que nos tornam membros de um grupo". de raça como sendo perpassados pelo gênero, pela classe social, pela sexualidade etc.
Neste artigo, primeiro, apresentamos um breve histórico da questão racial, de modo a situar a pesquisa no Brasil; depois, introduzimos a problemática racial na perspectiva das Teorias Queer. A seguir, tratamos brevemente dos novos letramentos digitais como espaço de contestação e abordamos os construtos analíticos, enquadre e alinhamento, propostos por Goffman (1998). Finalmente, empreendemos a análise de dados oriundos de uma comunidade de afinidade na Orkut, com o objetivo de estudar as performances identitárias encenadas por mulheres negras.
2. A HISTÓRIA DOS NEGROS E DAS NEGRAS: BREVE RETROSPECTIVA
A história dos negros e das negras brasileiros é fruto da Modernidade que almejava estabelecer verdades universais e tratá-las globalmente conforme Venn (2000) e Santos (2004) apontam. Nela, deparamo-nos com a cristalização de binarismos que perpassam o cotidiano, inclusive nos dias atuais, em uma Modernidade persistente. É neste contexto que compreendemos os discursos que se referem aos negros e as suas histórias. Para entendermos os efeitos de tais discursos hoje, precisamos nos ancorar na História, cujos fatos mostram a irrelevância de corpos negros e os significados negativos a seu respeito ao longo dos séculos nas práticas sociais entre brancos e não-brancos5 5 . Termo utilizado para especificar outras raças além da negra. .
Diferentemente de outras diásporas negras, no Brasil encontramos sedimentado, desde a escravidão6 6 . Para mais leituras sobre a escravidão, consultar UNESCO (2010). , o discurso de convivência pacífica, harmoniosa e cordial entre brancos e negros. Para Henrique (2007:02), a pesquisa de Freyre (2005) colaborou na construção do mito, acrescentamos aqui o discurso, de que este país seria uma nação constituída por três raças: o índio, o negro e o branco, que conviveriam pacificamente, mesmo com o poder oligárquico do senhor de engenho. Os escravos viveriam uma situação paternal e fraternal com esse senhor, retratada em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre que, segundo Telles (2003:50), influenciou toda a construção social e discursiva de miscigenação e de democracia racial7 7 . Veja Sodré (1999), Telles (2003) e Henrique (2007) para discussões sobre a democracia racial. no Brasil, dos anos 30 até o início dos anos 90.
De acordo com Telles (2003) e Sodré (1999), com a propagação dos discursos de democracia racial durante o Regime Militar, especificamente entre 1967 e 1974, apagou-se o racismo e singularizaram-se as diferenças e as possibilidades de ser negro. Consequentemente, quem desconstruísse esse discurso e abordasse o racismo era acusado de racista. A respeito da produção de discursos, Foucault (2010:08, [2001]) diz que:
Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.
Desse modo, observamos que os efeitos dos discursos de igualdade inverteram o discurso racista: a miscigenação seria a marca da ausência de preconceitos e dos efeitos sociodiscursivos citados por Sodré (1999).
Segundo Telles (2003), há uma quebra de paradigma em relação aos discursos de democracia racial quando o racismo, com os quais negros e negras estão familiarizados, é revelado pelo trabalho de Florestan Fernandes (1964). Nele, surgem e são divulgados, academicamente, os primeiros indícios da desigualdade racial e racismo no Brasil. Com o Brasil de volta à democracia, nos anos 80, os movimentos negros puderam denunciar o preconceito racial e exigir políticas públicas voltadas para os negros e negras8 8 . Conferir Telles, (2003) para discussões sobre políticas públicas para a população negra dos anos 80 até o século XXI. . O processo de desconstrução dos discursos citados torna-se mais evidente nos governos de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva, já que reconhecem um Brasil permeado por um racismo, muitas vezes explícito.
Na perspectiva de Derrida (1988[1972]), poderia-se compreender que esses atos de fala performativos da democracia racial foram assimilados por muitos brasileiros e reforçados a cada enunciação durante séculos. Salientamos que o termo performativo é derivado das reflexões de Austin (1990[1962]) sobre os enunciados. Ele reformula a dicotomia que criou, ou seja, os enunciados seriam classificados entre constatativos (considerados verdadeiros ou falsos) e performativos (vistos como bem ou mal sucedidos), assumindo, então, que todos os atos de fala ao serem proferidos e, atendendo às circunstâncias contextuais e textuais, produziriam o que descrevem, ou seja, seriam performativos. Derrida (1988[1972]), por sua vez, retoma a proposta de Austin, mas afirma que para que tais atos de fala sejam performativos, não há necessidade das condições específicas sugeridas por Austin, já que eles são sedimentados pela iterabilidade. A linguagem, entendida como ação, é relevante nesta discussão, porque é por meio dela que os corpos são constituídos nas práticas sociais, ou seja, o discurso é central na reinvenção do outro e de nós mesmos. Por meio da linguagem, compreendida como ação no mundo (performance), agimos nas práticas sociais e podemos nos reinventar (Pennycook, 2007).
Sendo assim, ao pensarmos em raça em contexto brasileiro, os atos de fala de democracia e igualdade racial são performativos, porque foram repetidos e repetidos em contextos diversos, naturalizando e sedimentando o conceito de raça como o conhecemos no Brasil. A repetição de tais atos de fala levaria à compreensão de que há igualdade racial no Brasil, de que os negros não seriam inferiores aos não-negros e de que as oportunidades seriam idênticas para esses grupos. Os efeitos discursivos dessas tentativas de escamotear a hegemonia branca racial e de controlar os negros e as negras geraram sofrimentos e dores que se propagaram ao longo dos anos.
É por este motivo que compreendemos que os discursos essencialistas típicos dos Movimentos Negros são estratégicos e necessários em situações diversas como a de combate ao racismo ou frente aos discursos de igualdade social. Contudo, se enfocarmos cuidadosamente os discursos antirracistas que celebram exclusivamente o 'ser negro consciente', ainda que tenham uma face contestatória frente às práticas e discursos racistas, entenderemos que por vezes podem ratificar igualmente a dicotomia modernista branco versus negro, assim, como o binarismo negro consciente versus negros não-consciente, por defenderem visões essencialistas e fixas de ambas as identidades. Assim, pensando na possibilidade de 'aliviar' esse sofrimento, parece-nos necessário questionar e desconstruir os paradigmas e os discursos raciais que propagam essencialismos normalizadores de qualquer natureza.
Nesse sentido embasamo-nos nas Teorias Queer para buscar reinventar a condição do 'ser' negro, compreendendo-o como um sujeito social fragmentado e construído discursivamente pelo gênero, pela sexualidade, pela classe social, pelo nível de escolaridade e pela raça e não somente pela última, como fazem os discursos modernistas. Neste aspecto, tais teorias podem nos trazer benefícios epistemológicos por compreender raça como uma construção social perpassada por outros construtos sociais que estão presentes na fabricação do sujeito social.
3. QUESTÃO RACIAL NA PERSPECTIVA QUEER
A contemporaneidade propõe, de acordo com Santos (2004), a pluralidade, a transgressão e a consciência das relações de poder. Nesta perspectiva, segundo hooks (1994), transgredir seria quebrar barreiras, contestar e não aceitar os binarismos da Modernidade. Neste contexto social e epistemológico, surgem as Teorias Queer. O termo queer, em inglês, é normalmente compreendido como estranho, esquisito e excêntrico. Além disso, pejorativamente, é/era utilizado para denominar homossexuais masculinos. No entanto, aqui "queer significa colocar-se contra a normalização - venha ela de onde vier" (Louro, 2004:38).
Assim, queer é uma perspectiva teórica que almeja questionar as regras binarizadas e cristalizadas sobre quem somos, independentemente se elas forem relativas à sexualidade, ao gênero ou à raça (Sommerville, 2000; Sullivan, 2003; Butler, 2004; Barnard, 2004; Louro, 2004, Wilchins, 2004). Pensar em Teorias Queer é refletir sobre uma política pós-identitária, desatrelada de visões de fixidez, estabilidade e normalizações sobre o social. Para Sullivan (2003), Wilchins, (2004), Loxley (2007), tal perspectiva se ancora:
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Na concepção dos atos de fala de Austin ([1962],1990) que revê sua posição teórica e passa a aceitar que todas as enunciações são consideradas performativas.
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Nos conceitos de iterabilidade e de citacionalidade propostos por Derrida ([1972], 1988), em sua releitura dos atos de fala performativos de Austin.
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Na vertente de desconstrução de Derrida ([1972], 1988) que visa repensar a lógica dos binarismos ou decompor os discursos com os quais opera a Modernidade (tradição ocidentalista).
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Na perspectiva foucaultiana de poder de que ele é exercido nas micro-relações.
Sendo assim, de acordo com Louro (2004:40), as Teorias Queer poderiam ser vinculadas às "vertentes do pensamento ocidental contemporâneo, que ao longo do século XX, problematizaram noções clássicas de sujeito, de identidade, de agência e de identificação". Conforme Sullivan (2003) indica, tais teorias podem ser compreendidas como uma estratégia desconstrutivista que visa desnaturalizar a heteronormatividade e a homonormatividade, entendendo o gênero e a sexualidade como relacionados entre si, questionando as identidades como fixas e homogêneas.
Partindo dessa premissa para compreender a questão racial, as Teorias Queer buscam questionar e desestabilizar sentidos cristalizados na sociedade também sobre raça (Sommerville, 2000; Sullivan, 2003; Barnard, 2004; e Wilchins, 2004). Esta vertente contesta o conceito de raça difundido pela chamada ciência da raça, ou seja, a ideia de que a raça é determinada biologicamente e de que as características físicas/psicológicas são as únicas determinantes na constituição do sujeito, desconsiderando as influências sociais, históricas e discursivas nas práticas sociais. Contrariando essa visão, embasada unicamente na biologia, as Teorias Queer partem do pressuposto de que raça é uma construção social, discursiva e performativa, assim como a sexualidade e o gênero. Fazendo um paralelo com Butler (2004) que entende o gênero como performativo, ou seja, a repetição de atos de fala é institucionalizada pelo corpo; na questão racial, teríamos o mesmo processo performativo.
Em outras palavras, na Modernidade, segundo Sodré (1999) e Sullivan (2003), a ciência da raça, centrada no paradigma biológico, propõe que algumas características físicas, tais como o tamanho do cérebro, do aparelho genital masculino e traços da personalidade estão relacionados a determinados grupos raciais. Por meio desses estudos, Sullivan (2003) argumenta que o conceito de raça surgiu no século XVIII, e - como a sexualidade - , também é classificatório e taxativo. Nesta abordagem, são introduzidos alguns sistemas9 9 . Segundo Sullivan (2003), no sistema proposto por Philippe Rushton, haveria três raças: a oriental, a branca e a negra. Todas elas classificadas também pelo biológico (tamanho do cérebro e do pênis) e pelo psicológico. Já no de Charles Linnaeus, somos divididos em vermelhos, brancos, amarelos e negros. para se compreender raça e para cada um deles há alguns atributos psicológicos ou características físicas que os definem. Como pontua Sullivan (2003:60), tais atributos não seriam desprovidos de neutralidade. Na cultura ocidental, por exemplo, a ideia de que o negro tem o pênis grande acaba por qualificá-lo como permissivo, além de ser compreendido como inferior e tendo índole ruim. De acordo com Munanga (1986:16), "sexualidade, nudez, feiúra, preguiça e indolência constituem tema-chave da descrição do negro na literatura científica ...".
Desse modo, o sujeito social resultaria dos efeitos performativos dos discursos que o constituem (Sullivan, 2003). Assim, ser negra ou amarela ou branca seria o resultado dos efeitos semânticos dos diversos atos de fala performativos a que os corpos ébanos, amarelos e brancos são expostos desde seu nascimento. Tendo suporte em Butler (ibid) quando aborda o gênero, mas considerando a raça, podemos dizer que aprendemos a ser negras, amarelas ou brancas. Essa 'aprendizagem' aconteceria segundo o conceito de iterabilidade proposto por Derrida ([1972], 1988). Por meio de vários discursos sobre ser negra que são repetidos ao longo da vida, desde a infância.
Nesta perspectiva, nas práticas sociais encenamos performances de gênero, sexualidade, raça e classe social. Por exemplo, um corpo negro, heterossexual e rico produziria os mesmos efeitos semânticos no mundo social de outro corpo negro, mas gay e pobre? Um corpo branco, heterossexual e rico teria uma performance mais respeitada do que os outros dois pelo conjunto de efeitos discursivos que o produzem? Contudo, encontramos a raça tão naturalizada e cristalizada que ela parece prevalecer em relação à sexualidade, ao gênero e à classe social nos corpos negros10 10 . Moita Lopes (2006b:291), embasado em Giroux (1997) e Sodré (1999), diz que no Brasil os brancos não são conscientes dos privilégios que têm por serem brancos. Eles são vistos como não racializados. A raça é constitutiva dos não-brancos. . Na vertente queer, para desconstruirmos esses discursos raciais de inferioridade dos negros (e por que não os de exaltação a uma negritude essencializada) e unicamente biológicos, temos de partir da premissa de que eles foram construídos social e discursivamente para manter a lógica da raça branca como hegemônica e como padrão.
Considerando o contexto brasileiro, em que a construção discursiva de raça está permeada pelos atos de fala performativos de democracia racial e miscigenação, desconstruir os discursos de inferioridade da mulher negra passaria por contestar os efeitos desses atos de fala. Seria também, mesmo com a dificuldade e complexidade indicada por Henrique (2007) ao falar de questões raciais neste país, analisar as diversas denominações para a cor da pele tais como: morenas, mulatas, 'marrom bombom', 'chocolate', café com leite, dentre outras.
Será que essas classificações populares de raça indicariam que há uma maleabilidade no entendimento do que é ser da cor preta ou da raça negra pelas diversas pessoas, desconstruindo a ideia de que a raça seria um construto social homogêneo, fechado e embasado no discurso biológico ou uma tentativa de não ser chamado de negra ou negro? Ou ainda podemos inferir que, dependendo da classe social, do gênero, da sexualidade e do grau de escolaridade, essa classificação 'popular' da cor da pele poderia ser alterada? Ou tais classificações mostrariam que a raça pode ser um construto social maleável e performativo como gênero e sexualidade?
Compartilhando desta perspectiva queer em relação à raça, Sommerville (2000) e Barnard (2004) argumentam que a sexualidade não poderia ser estudada independentemente da raça e vice-versa. Estes pesquisadores compreendem que os teóricos da sexualidade tendem a focá-la em primeiro lugar; as feministas, por sua vez, olhariam primeiro para o gênero, enquanto os estudiosos da raça a adotariam como a questão principal. Ao focar em apenas um dos traços constitutivos de nossas performances discursivo-identitárias, os outros acabariam sendo excluídos e se manteria a hegemonia de um deles. Wilchins (2004:115) complementa dizendo que uma análise que contempla a raça isoladamente propiciaria uma visão incompleta do negro ou do não-negro.
Considerando os estudos queer, especificamente os de sexualidade e os de gênero, conforme Barnard (2004) e Sommerville (2000) apontam, ao não se incluir o traço performativo raça, os tópicos de investigação são voltados unicamente para a raça hegemônica: a branca. O ser branco é visto como não racializado, sem marca, padrão e privilegiado. Utilizando-se a teoria de gênero de Butler (2003: 59), seria possível dizer que a raça é "a estilização repetida no corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura regulatória altamente rígida, que se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser".
Um exemplo da importância de se estudar raça em conjunto com gênero, sexualidade etc. é trazido por Barnard (2004). Ao discutir sexualidade e raça, especificamente, em relacionamentos entre homossexuais masculinos negros e brancos, o autor apresenta a complexidade da questão, pois aparentemente tais relações poderiam significar ausência de preconceito e racismo. Contudo, nelas as diferenças são expostas e, por mais que tais homossexuais possam se amar, a discriminação pode estar presente. Uma hipótese para tal seria a naturalização de raça como algo biológico, já dado, pré-existente ao discurso, construído pela identificação negativa, sempre repetida nos discursos sobre o negro. Quebrar tal naturalização exigiria rever o próprio conceito de raça e compreendê-la para além da biologia.
Nesta perspectiva, segundo Wilchins (2004:116): "não se é apenas a raça, deve-se aprender a ser de uma raça, inclusive - em certas circunstâncias - a passar a ser de uma raça". Sendo assim, os atores sociais, devido às construções de seu ethos no mundo sócio-discursivo, saberiam como agir enquanto negros, brancos, amarelos ou vermelhos. No mundo social, cobram-se dos atores performances equivalentes às características atribuídas pela psicologia e biologia. Assim, quando esse paradigma é quebrado nas práticas performativas, há uma surpresa ou uma interpelação.
Para Wilchins (2004), enquanto um adolescente, por discursos que ouve e aqueles já inscritos em seu corpo, aprende a ser negro, outros aprendem a ser homossexuais ou mulheres e a agirem como tais. No passado, por exemplo, algumas mulheres negras mutilavam seus corpos com ácido (Munanga, 1986) ou alisavam a ferro seus cabelos para parecerem com os povos europeus. Haveria, então, nestas performances uma tentativa de aprender a agir como o branco para produzir efeitos semânticos de reconhecimento. Por outro lado, quando mulheres negras brasileiras deixam seus cabelos crespos 'ao natural', elas estariam aprendendo a agir como a mulher negra 'pura', proveniente da África, e sendo reconhecidas como tal. As Teorias Queer desconstroem essa pureza tanto da raça branca como da negra, argumentando que esses discursos essencialistas provocam efeitos semânticos nas práticas sociais de negros e brancos, os quais muitas vezes levam à exclusão e ao sofrimento.
Compreendemos que há toda uma simbologia em deixar os cabelos ao natural, mas será que ao não fazê-lo, todas as mulheres negras estariam embranquecidas e negariam suas origens ou isso poderia ser uma opção que facilitaria o cuidar de seu cabelo ou seria uma mudança de estilo ou várias outras opções que desconhecemos? O que seria o embranquecimento aqui? Será que, depois de séculos de escravidão, da própria miscigenação e de seus discursos, seria possível recuperar a pureza de uma raça e sua ideologia? Existiria uma raça pura?
Como vimos, as Teorias Queer buscam contestar a questão racial perpassada por determinantes da biologia ou da ciência da raça e chancela a compreensão do sujeito social pela integração entre raça, gênero, sexualidade, classe social, nível de escolaridade etc. Em uma performance específica como mulher negra, na vertente queer, ela passaria a ser mulher, negra, pertencente à classe social x, heterossexual, por exemplo. O foco não seria mais a questão racial e sim o sujeito constituído pela linguagem em performance. Negros e negras, na vertente em questão, aprenderiam a sê-lo pela repetição dos discursos que provocam determinados efeitos semânticos nas práticas sociais. Além disso, como performance, embasados em Sommerville (2000), Sullivan (2003), Butler (2004) e Barnard (2004), entendemos que ser mulher e negra mudaria de acordo com o momento histórico e social em que o sujeito social estaria inserido. Ser mulher e negra estaria relacionado à identificação e à política, dessencializando toda ideia de qualquer pureza racial, pré-existente ao discurso.
No momento histórico atual, um espaço rico para discussões sobre a vida social em performance é a internet. Com a web 2.0 propiciando recursos de interatividade e o acesso às redes sociais, grupos diversos se reúnem em comunidades nas redes para contestar, refletir e compartilhar informações ou experiências vivenciadas no mundo presencial ou virtual. Por meio dos novos letramentos digitais, muitos sujeitos sociais, incluindo negras e negros, deixam a invisibilidade para abordar os problemas que enfrentam.
4. NOVOS LETRAMENTOS DIGITAIS
As Tecnologias de Informação e Comunicação, doravante TICs, trouxeram às práticas sociais a possibilidade de interação e comunicação com pessoas de diversos continentes, sem as fronteiras físicas como as conhecíamos anos atrás. Vivemos conectados a dispositivos multifuncionais que nos permitem acesso ao mundo virtual ao alcance dos dedos.
Para Martin (2008), hoje nos situamos em uma sociedade permeada pelo digital. Com a influência das TICs, as concepções de letramento digital sofreram mudanças, surgindo, assim os novos letramentos digitais que englobariam formas de práticas textuais pós-tipográficas (Martin, 2008 e Lankshear & Knobel, 2008). Além disso, o computador deixaria de ser um equipamento frio e distante para ser um lugar em que o sujeito social pode ser desconstruído e reinventado pelos recursos semióticos, pela colaboração do outro em performances outras.
Tais letramentos digitais são chamados de novos, porque a web 2.0 propicia o acesso a diversos recursos semióticos interacionais antes inimagináveis, cujo centro é o usuário (Arriazú et al, 2008). Para esses autores, como qualquer objeto sociotécnico, a web 2.0 tem uma dimensão performativa, ou seja, de possibilidade de ação interacional em comunidades de afinidades.
Em tais comunidades, além de outras ações discursivas, os participantes podem transgredir, quebrar barreiras, contestar e não aceitar as normalizações ou os binarismos sociais característicos da Modernidade. A definição de transgredir proposta por hooks (1994:13), ou seja, "... mover-se além das fronteiras, o direito de escolher, de dizer a verdade [talvez: uma verdade] e de exercer consciência crítica...", pode ser pensada para o contexto digital11 11 . É claro que estamos cientes de que a Internet se presta também a usos anti-éticos, cujos significados fazem sofrer. Mas aqui nos interessa tornar visíveis práticas discursivas no mundo online que possam colaborar na reinvenção social. .
Nos espaços virtuais, os participantes podem, sem sair de suas casas, abordar temas considerados em muitos contextos como tabu: sexualidade, aborto, raça etc. Há ainda a possibilidade de mobilizarem mudanças sociais e políticas mais imediatas como aquelas chamadas de Primavera Árabe, cujos passos iniciais na luta pela democratização dos países norte da África, foram dados nas redes sociais. De acordo com Moita Lopes (2010:398), "a tela do computador deixa de ser somente um local onde se busca informação e passa a ser principalmente um lugar de construção, de disputa, de contestação de significados". Neste prisma, os novos letramentos digitais são compreendidos, segundo Lankshear & Knobel (2008:64) como "modos socialmente reconhecidos de gerar, comunicar e negociar conteúdo significativo por meio de textos codificados dentro de contextos de participação em Discursos (ou como membros de Discursos)".
No entendimento de Martin (2008), o indivíduo letrado digitalmente pode reformular sua vida em uma era de incertezas, ou seja, enquanto sujeito social letrado digitalmente, pode se reconfigurar. Nesta pesquisa, a comunidade analisada pode ser compreendida para os negros como um espaço de reinvenção, contestação, e de discussão de temas pertinentes entre os participantes.
5. CONTEXTO E METODOLOGIA DE PESQUISA
Esta pesquisa foi realizada em uma comunidade da Orkut, CN12 12 . Alguns procedimentos éticos foram adotados: foi solicitada autorização para realizar a pesquisa aos membros da comunidade e os nomes de seus participantes aqui são fictícios para preservá-los, assim, como a abreviação CN que a nomeia. , voltada para discutir temas sobre a população negra. Ela foi criada em 2004 por uma mulher negra e, além dela, há também quatro outros moderadores negros. No último acesso, 30 de outubro de 2012, havia aproximadamente 29.000 membros. A maioria dos participantes são negros e negras de diferentes classes sociais, estados brasileiros e graus de escolaridade.
A página segue o padrão da Orkut. No canto esquerdo há o nome da comunidade e uma imagem de uma máscara, remetendo às tribos africanas. No centro da página, chama-nos atenção um poema que relata o reencontro com as origens africanas em arquivos envelhecidos. Toda a comunidade em seus enunciados subscreve à proposta do objetivo explícita na página que é discutir apenas temas voltados para a comunidade negra.
Quanto aos fóruns, estão visíveis somente aqueles a partir de 07 de novembro de 2005. Há uma grande diversidade de temas discutidos, tais como: religião, África, igualdade racial, discussão de propagandas e reportagens diversas, política, cotas raciais, consciência negra, racismo etc. As discussões são muitas vezes acirradas.
Após observar a comunidade, a participação dos membros no fórum e ler comentários por três meses, mas sem efetivar a participação, iniciamos um fórum no dia 07 de julho de 2011. O título adotado foi Mulheres Negras Brasileiras para conotar a ideia das diversas possibilidades de ser mulher, negra e brasileira. O texto inicial foi apresentado com o intuito de provocar reações nos membros e contar com sua participação:
Sou novata nesta comunidade e tenho acompanhado as discussões por aqui. Tenho três aspectos que gostaria de apresentar:
1) À medida que a mulher negra estudaria e ascenderia socialmente, ela encontraria dificuldades para se colocar no mercado de trabalho, já que estaria disputando o mesmo espaço que a mulher não-negra. Ocorre, então, uma luta constante para que ela se insira e se mantenha nesse mercado.
2) Além disso, essa mulher, ao sair da invisibilidade e ocupar cargos mais altos, teria que provar sua competência o tempo todo, nas situações mais diversas possíveis e com salários muitas vezes desiguais.
3) Quando essa mesma mulher ascende socialmente, é bem-sucedida depois de muito lutar, ela enfrentaria a solidão e seria excluída de relacionamentos com homens negros e não-negros. O que vocês pensam sobre isso? Abraços!
O fórum, estudado por quinze meses, contou com a presença de quinze membros (seis negras e nove negros). Todos são ativos na comunidade. No entanto, para este artigo, o enquadre analisado é de uma conversa on-line somente entre mulheres negras sobre trabalho, competência e relacionamentos afetivos, ou seja, o foco está na interação entre Nina, Lívia, Nara e um dos pesquisadores (Glenda Melo), como veremos na análise. Optamos por tal enquadre visto que nele há uma única participação masculina, não ratificada pelas participantes, o que parece não influenciar na co-construção das performances identitárias dessas negras neste ponto da interação.
Quanto à metodologia de pesquisa, este trabalho é de cunho etnográfico virtual. Segundo Hine (2000), essa etnografia nos permitiria responder alguns questionamentos ocorridos no ambiente online, tais como: as experiências vivenciadas na rede, como são as performances de identidade neste espaço, entre outras.
Uma das críticas à etnografia virtual é a ausência da presença física do pesquisador, mas para Hine (2000), as TICs trariam uma nova perspectiva de presença, de temporalidade e de espaço. De acordo com a autora, parece pertinente considerar o papel transformador da tecnologia, ou seja, o fato de que a interação, por meio dos recursos tecnológicos entre seres humanos, pode mudar as práticas sociais, mesmo que sejam apenas no mundo online, já que não podemos prever os efeitos discursivos de tal interação (ou, na verdade, de qualquer outra).
Nesta pesquisa, o instrumento de geração de dados foram mensagens trocadas entre as participantes citadas e um dos pesquisadores. Para análise das performances identitárias construídas nas interações do fórum, embasamo-nos nos conceitos de alinhamento e enquadre de Goffman ([1979], 1998). Optamos pelas duas categorias interacionais, porque elas também parecem contribuir para a compreensão das interações que ocorrem em ambientes virtuais e das performances discursivas construídas também neste espaço, ainda que Goffman as tenha pensado para o mundo offline. Segundo o pesquisador, tais construtos consideram as relações entre indivíduos, em encontros que constroem, em sua essência interacional, as estruturas sociais, culturais e políticas da sociedade. Compreendendo a internet como um espaço de interação, de encontros, de contestação, de participação colaborativa entre os vários internautas, tal espaço pode ser também entendido como um lugar onde práticas sociais diversas colaboram na constituição das estruturas sociais, culturais e políticas mencionadas pelo estudioso.
De acordo com Rodrigues Junior (2005), Goffman traz à tona a necessidade de estudar a interação entre os participantes como forma de construção de significado pelo uso da linguagem. Ainda segundo Rodrigues Junior (2005: 127-128)
para Goffman, a experiência social é governada eminentemente por "enquadres" (frames), cuja relevância está exatamente em demonstrar que os eventos, ações, performances e os eus não representam (sic) significados per se, mas dependem dos enquadres para co-construírem e representarem (sic) significados culturais através da linguagem em uso.
Neste estudo, a noção de enquadre, ou seja, que atividade estaria sendo realizada e quais sentidos são dados pelos falantes ao que dizem, nos permitem analisar que performances identitárias são encenadas nos fóruns. Enquanto que o alinhamento é compreendido por Goffman ([1979], 1998:70) como "... a postura, a posição, a projeção do "eu" de um participante na sua relação com o outro, consigo próprio e com o discurso em construção. Footings são introduzidos, negociados, ratificados (ou não), co-sustentados e modificados na interação".
Conforme Goffman ([1979], 1998) aponta, uma mudança de posicionamento implica também uma mudança de alinhamento assumido pelos participantes da conversa, no caso deste estudo do fórum, a conversa escrita. O alinhamento expressaria como os sujeitos sociais recebem as elocuções na interação. Qualquer alteração de alinhamento ocasionaria uma mudança de enquadre dos eventos. Nesta pesquisa, pelo footing analisamos o posicionamento dos participantes na interação ocorrida no fórum da comunidade citada anteriormente. Diferentemente da conversa oral, o fórum admite muitos participantes, que podem interagir pela leitura e pela escrita independente de sua localização, no tempo e no espaço. Vale salientar que tanto alinhamento como enquadre foram observados com base nos elementos linguísticos que constituem as mensagens trocadas entre os participantes e que indexicalizam, assim, as performances identitárias.
6. A ANÁLISE
Enfocamos os resultados da análise de mensagens produzidas no período de 05 a 07 de julho de 2011, por cinco participantes, Nina, Lívia, Nara, Sérgio e Glenda (um dos pesquisadores). A interação é iniciada pelo comentário de Glenda, já indicado anteriormente, que se apresenta como uma mulher negra recém-chegada à comunidade. Ela também diz que acompanha as discussões, mas não explicita de quais delas tem participado. A seguir, há um questionamento aos membros sobre três temas, que são transformados em tópicos interacionais13 13 . Moita Lopes (2010:403), embasado em Brown & Yule (1986:75), compreende que "o tópico interacional é determinado pelo que chamam de "arcabouço do tópico", ou seja, "aqueles aspectos do contexto que são diretamente refletidos no texto, e que precisam ser trazidos à tona para interpretar o texto [tais aspectos] constituem o arcabouço contextual dentro do qual o tópico é constituído, ou seja, o arcabouço do tópico" (: 75). Essa questão "envolve uma análise constante sobre o porquê o falante disse o que disse em uma situação particular de conversa" (: 77)". pelas participantes (trabalho; competência no trabalho e relacionamentos afetivos).
Nos dois primeiros (trabalho e competência) são empregados verbos no futuro do pretérito (estudaria, ascenderia, encontraria e estaria) e o presente do subjuntivo (insira e mantenha), o que indexicalizaria o enquadre interacional como hipótese. Quanto ao terceiro tópico interacional, relacionamentos afetivos, encontramos o presente do indicativo, relatando uma ação cotidiana e o futuro do pretérito reforçando o mesmo enquadre interacional como hipótese. Ao final da instrução, há uma clara interpelação às participantes, indicada pelo uso do pronome vocês e pelo verbo achar.
No mesmo dia da postagem da instrução, as interações são iniciadas por duas participantes Nina e Lívia que cumprimentam a pesquisadora pelos temas sugeridos, concordando com as questões apresentadas e complementando com exemplos ou explicações. As duas participantes se engajam na discussão, defendendo a postura pró-negritude presente nos discursos da comunidade. Um enquadre de conversa on-line entre quatro mulheres negras com mulheres negras sobre trabalho, competência e relacionamentos afetivos permeia e guia os alinhamentos que ocorrem durante a interação.
Nas mensagens, as participantes se identificam como mulheres, negras, solteiras e bem sucedidas, o que é indicado pelo uso de pronomes pessoais como nós ou eu como sujeito oculto ou claramente marcado no texto, além do emprego do termo a gente, nos, você. O uso do tempo verbal presente do indicativo (concordo, estou, sou, tenho, estão, conheço, é, sei, etc) indexicaliza expressão do cotidiano e a opinião das mulheres negras brasileiras nessa interação. Percebemos também que dos três temas sugeridos pela pesquisadora, os dois primeiros (trabalho e competência) são abordados, mas o terceiro, relacionamentos afetivos, foi o mais explorado pelas participantes, como veremos a seguir.
Quanto aos tópicos interacionais sobre trabalho e competência, Nina, Lívia e Nara se alinham em concordância à pesquisadora e entre elas. Todas refutam o estigma de "... serviçal e subserviente", citados por Ribeiro (2009:89) como característicos de performances de negros, e mencionados anteriormente.
1. Participante Nina - 05/07/2011
2. Oi Glenda, seja bem-vinda. \o/. Acho muito interessante esse assunto, porque as mulheres negras
3. são duplamente discriminadas, a gente sabe. Nessas discussões de ascensão negra e dificuldades
4. de trabalho, a gente deixa passar uma reflexão muito importante: Se estamos nos qualificando
5. profissionalmente, buscando altas escolaridades, por que nos imaginamos sempre como
6. empregad@s? Precisamos ter desejos empreendedores também, oras. Também somos capazes de
7. estarmos na chefia, abrir empreendimentos, e pressionar o Governo a dar suporte a
8. microempresários negras e negros. Então a mulher negra na chefia tem que ser vista por nós
9. como algo totalmente possível. Já imaginou, você vai procurar um emprego numa empresa e a
10. dona é uma mulher negra ? Maravilha, né ? Quanto à questão amorosa, geralmente as mulheres
11. negras com alta escolaridade se casam com brancos e tardiamente, mas a partir da
12. conscientização do homem negro, casais negros bem-sucedidos financeiramente será algo
13. corriqueiro. Cabe a nós nos valorizarmos e buscarmos o amor afrocentrado.
Excerto 1
Ao tentar se alinhar à pesquisadora, Nina introduz uma reflexão e uma indagação mencionando a responsabilidade da profissionalização para as mulheres negras, colocando a questão apenas como um problema que deve ser resolvido pelos negros, sem considerar a influência de outras raças na constituição do sujeito social. Em relação à identificação e política (Wilchins, 2004), Nina aborda, nas linhas de 4 a 10, também a importância de mulheres negras se identificarem com outras negras bem sucedidas ao procurarem emprego. Ainda operando neste mesmo tópico interacional, Nara se alinha à Nina ao mencioná-la e ratificar o que a segunda disse sobre a formação, os cargos de chefia e o empreendedorismo para as mulheres negras. Nara introduz as questões do racismo e dos estereótipos diversos ao avaliar as performances das mulheres negras quanto ao mundo do trabalho e das relações amorosas.
Segundo Barnard (2004) e Sommerville (2000), considerar a raça em conjunto com gênero, classe social e sexualidade possibilitaria dessencializar o construto social raça, já que tais traços são interdependentes nas performances identitárias. Ao alinhar-se à pesquisadora, Nina encena performances identitárias indexicalizadas por itens linguísticos que identificam gênero (mulheres, linha 2, por exemplo), raça (negras, linha 2, por exemplo), classe social (dona, linha 10, por exemplo) e sexualidade (casam com brancos, linha 11, por exemplo).
Interrompendo o enquadre principal citado anteriormente, deparamo-nos com um microenquadre, em que um homem negro (Sérgio) tenta desarticular o enquadre geral, ou seja, conversa online entre quatro mulheres negras sobre trabalho e relacionamentos afetivos, denunciando o racismo contra uma mulher negra:
14. Participante Sérgio - 05/07/2011
15. Participe tb. Fale. Não fiquem só lendo.
16. Participante Sérgio - 05/07/2011
17. Racismo na UFSM - mande email
18. http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=89679&tid=5624287939565930281
Excerto 2
Primeiro, Sérgio sugere que outros membros participem da 'conversa'; depois introduz outro tópico interacional por meio de um link que direciona para outro fórum da mesma comunidade. O tópico interacional é mudado para uma ação de afrociberativismo. Nele, há uma mensagem solicitando que se encaminhe um e-mail/abaixo-assinado à Procuradoria Geral da República para investigar um caso de discriminação racial contra uma negra, em um processo seletivo na área de bioética de uma universidade federal do sul do país.
Contudo, as participantes não ratificam o movimento interacional de Sérgio. Retomam o enquadre central, conversas online de mulheres negras sobre o trabalho, competência e relacionamentos afetivos, e voltam a se realinharem entre si, de acordo com os tópicos interacionais propostos pela pesquisadora e por elas. Isto pode ter ocorrido, porque o participante introduz um tópico interacional não relacionado ao que Nina, Lívia e Nina abordavam. A retomada do enquadre de conversa online citado ocorre quando a participante Lívia manifesta sua concordância com a mensagem inicial da pesquisadora na linha 20:
19. Participante Lívia - 05/07/2011
20. Concordo com tudo o que Glenda falou, os 3 itens. Conheço pelo menos umas 15 negras bem
21. sucedidas que estão sozinhas e eu sou uma delas. Teria opção de me casar com brancos ou então
22. com negros conscientes, porém, muito mais jovens que eu. Os mais velhos já são casados ou
23. querem brancas mesmo.
24. Participante Nina - 05/07/2011
25. Conhecem algum site de namoro afrocentrado? no site da revista Raça tinha algo do tipo, não sei
26. se tem ainda...quero entrar num...XD
27. Participante Lívia - 05/07/2011
28. Nina, Podíamos abrir um site no estilo destes que existe por ai, era black porém... Já sabe, né?rs
29. Participante Lívia - 05/07/2011
30. Dá uma olhada nesta decepção...rs...
31. http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=23746038
32. Glenda Valim de Melo - 06/07/2011
33. Olás, Obrigada pelas boas-vindas e espero que estejam bem. Gostei muito das respostas, acho
34. que é um problema que muitas mulheres negras enfrentam. Acho ótimo nos depararmos com
35. mulheres negras bem sucedidas, já temos mulheres empreendedoras e penso que pouca voz é
36. dada a negra que falamos aqui... o que acham? Quanto à solidão, concordo! Conheço várias que
37. são financeiramente independentes e tudo mais... e estão sozinhas... por que será que isso
38. acontece? abraços
39. Participante Lívia - 07/07/2011
40. Glenda, as mulheres bem sucedidas, em geral, ficam sozinhas. No caso das negras é ainda pior.
41. Em parte é por conta do machismo mesmo, pq uma parcela (nem todos) não aceitam que suas
42. mulheres ganhem mais que eles ou que trabalhem fora, entre tantas coisas. Por algum motivo,
43. eles se sentem diminuídos, sei lá. Já fiz a pergunta a alguns homens e eles disseram que sentem
44. medo de mulheres inteligentes...ha,ha,há Mas acho que a fala masculina seria muito bem vinda
45. aqui, não?Vamos ver se eles se pronunciam... he,he,he
46. Participante Nara - 07/07/2011
47. achei o tópico mto interessante!
48. tb concordo com td o que foi colocado e isso é inclusive comprovado (ja vi a pesquisa, mas não
49. tenho a fonte pra postar): a maioria das mulheres solteiras maiores de 30 anos sao negras. e
50. mulher negra tem um caminho árduo pela frente. além de lutar por seu lugar ao sol como mulher,
51. precisa lutar contra o racismo e contra os milhares de estereótipos relacionado a sexualidade,
52. nacionalidade e confiança. e isso é fogo. na primeira etapa do processo, acho que já estamos nos
53. saindo bem. com melhores formações os cargos de chefia viram e eu acredito que mtas já
54. pensam empreendedoramente, como a n. disse. saber os relacionamentos, claro que ter um
55. parceiro é bacana, né? dormir e acordar junto td dia, ter alguém em que vc ama e confia, que
56. cuida de vc... mas nesse caso mais que ter independência financeira, devemos ter independência
57. sentimental. conheço mtas mulheres bem sucedidas que estão solteiras, mas tb conheço mtas
58. mulheres bem sucedidas que estão com parceiros que não valem o feijão que comem, como diria
59. minha avozinha! e isso é pior... nesse caso, fico com a máxima do antes só que mal
60. acompanhada.
Excerto 3
Quanto ao tópico interacional relacionamentos afetivos, deparamo-nos com alinhamentos de concordância entre Lívia, Nara e Nina em relação aos temas propostos pela pesquisadora (linhas 2, 3, 10, 11, 40, 47, 48, por exemplo). Observamos também um alinhamento de cumplicidade e de brincadeira entre Nina e Lívia, indicado nas linhas de 25 a 31.
As participantes Nina e Lívia se alinham em cumplicidade ao discutirem a questão dos relacionamentos afetivos e exemplificarem o tema com base em suas próprias vivências ou de conhecidas, como observado nas linhas 20 e 21. Elas ainda apontam alguns motivos para tais mulheres estarem sozinhas. Ambas também introduzem o tópico interacional casamento e abordam a importância de conscientizar os homens, negros e heterossexuais sobre a valorização de "amor afrocentrado", como indicam as linhas de 10 a 13 e 21 e 22.
Para ambas, que se consideram negras conscientes, a possibilidade de se relacionar com homens de outras raças é refutada. Outro aspecto relevante nesta análise é a questão da sexualidade. Há apenas a concepção de que negros e negras teriam somente relacionamentos heteronormativos, desconsiderando que a sexualidade, assim como a raça, também é uma "invenção social", nas palavras de Louro (2000:09), apagando a possibilidade de relacionamentos homoafetivos entre esses sujeitos sociais. Encontramos aqui um padrão hegemônico quanto à sexualidade e aos relacionamentos, presente também na mensagem inicial da pesquisadora.
Ainda neste alinhamento de cumplicidade entre Nina e Lívia, especificamente sobre os homens brancos citados por ambas, haveria a possibilidade de se casarem com eles, mas elas se posicionam contrárias às performances de relacionamentos interraciais (linhas 11, 12, 13, 21 e 22). Percebemos o reforço do binarismo branco versus negro e também outra dicotomia negro consciente versus negro não-consciente, A primeira dicotomia seria consciente de sua negritude e teria um discurso político a favor dela; a segunda desconhece ou não adotaria o discurso político citado.
Nas linhas de 25 a 31, observamos um alinhamento de brincadeira entre Lívia e Nina, quando a segunda pergunta sobre um site de relacionamentos específico para negros e negras. Nina cita um site da revista Raça, cujo público é direcionado a negros. Lívia, por sua vez, indica um link de uma agência de namoro, cujo nome envolve a palavra Black, dando indícios que seria voltada para negros. Lívia ainda classifica a comunidade de decepção, sem justificativas para tal.
Observamos também a influência da linguagem informal da web 2.0 nas mensagens de todas as participantes. Elas fazem uso de símbolos: \o/ (pulinhos de comemoração) na linha 1; empregad@s (não marcando o gênero da palavra ou marcando uma profissão específicas de mulheres negras ) na linha 6; XD (rindo com olhos fechados ou envergonhados) linha 21; he, he, he (risadas) na linha 45; além de abreviações: td, tb, pq, vc para as palavras: tudo, também, porque e você. Observamos aqui a influência do ambiente descontraído do fórum na linguagem das participantes que ajuda a construir as performances identitárias informais que encenam.
No alinhamento entre Lívia e a pesquisadora, sobre o tópico interacional relacionamentos afetivos, a primeira enfatiza que a situação é pior para as mulheres negras e sugere motivos para a solidão delas, tais como: o machismo (linha 41), o salário maior da mulher (linha 42) e o medo de mulheres inteligentes (linha 44). Observamos que a participante encena performances identitárias contraditórias, ora essencialista ora mais queer. A primeira pode ser percebida quando Lívia valoriza apenas a questão racial ao dizer que no caso das negras é ainda pior (linha 40). Já a segunda é observada quando a participante pontua o machismo (gênero), o salário maior da mulher (classe social) como razões para a solidão das mulheres negras,
Vale salientar que ao final da mensagem de Lívia, linhas 44 e 45, há um convite aos homens da comunidade para participarem. O convite explícito de Lívia desenvolveu um novo enquadre, conversa online entre negras e negros sobre mulheres negras no trabalho e relacionamentos afetivos, a partir da linha 61. Esse não é foco de análise neste artigo, embora tenha sido projetado sobre a interação em seu desenvolvimento.
Durante a conversa online, a participante Nara reforça seu alinhamento de concordância com as outras participantes e com a pesquisadora, quando menciona uma pesquisa abordando o tema mulheres negras e solidão, na linha 48. Entretanto, não se alinha com Nina e Lívia ao discutir o tópico interacional. Nara se posiciona de forma diferenciada sobre os relacionamentos, porque introduz a importância da independência sentimental, defendendo a postura do 'antes só que mal acompanhada' (linhas de 56 à 60). Nara não ratifica o discurso que negras devem apenas se relacionar com negros. Percebemos um alinhamento de discordância de Nara com Lívia e Nina no trecho, a seguir, retirado de outro momento de interação cujo enquadre é mulheres e homens negros conversando sobre mulheres negras. Tal trecho dialoga com o apresentado no excerto 3 e constitui uma fala de Nara:
Nara: me referi a namorar uma pessoa não-negra, pq sei que o histórico da comunidade é tender a apoiar os relacionamentos entre negros, o que eu super aprovo tb, desde que não joguem pedra em quem não escolheu o mesmo. lembra do post do MVbill que o povo reclamava de ele ser casado com uma branca? assim como já falaram de outros lideres negros na mesma situação... isso pra mim não diminui a consciência de ninguém, desde que a pessoa seja consciente de verdade e o MVBill no caso, é. daí ele vai fazer o que? divorciar pq a mulher é branca e procurar uma negra? aahh, o buraco é mais embaixo, né...
Segundo a teorização de Butler ([1990] 2003), ao se referir à questão do gênero e sexualidade, é necessário contestar a relação de poder que os binarismos expõem e os efeitos discursivos disso nas práticas sociais diversas. Isto é observado na fala da participante Nara que traz à tona o fato de a comunidade não aprovar relacionamentos interraciais e questiona os efeitos desta norma (negros se relacionando com negras) e se posicionando contrária à essencialização. Nara é a participante que questiona a postura essencialista adotada pelas outras participantes quanto ao tema já citado.
Notamos que entre as três participantes, há uma compreensão de que os problemas vivenciados pelas negras são piores por causa da questão racial. Tal perspectiva é corroborada pelos estudos de Venturi & Recaman (2009), como discutido anteriormente, em que as desigualdades entre mulheres brancas e negras estão em todos os campos da sociedade, sendo que as mulheres de corpo ébano estariam sempre em pior situação que outras, incluindo tanto a vida no trabalho como a afetiva.
6.1. Discussão
A proposta de compreender as performances identitárias de mulheres negras permeadas por sexualidade, gênero, raça, classe social e nível de escolaridade nos possibilita compreender que, ao longo da interação, as participantes oscilam entre uma postura queer, principalmente Nara, e performances essencializadas, como observadas nas participações de Nina e Lívia.
Considerando o contexto da pesquisa, a comunidade, sua política e seu objetivo, as participantes tenderiam a apresentar um discurso pró-negritude, com o olhar voltado apenas para a questão racial ao abordar os três tópicos interacionais discutidos no fórum. Contudo, podemos observar que, quanto ao tópico interacional trabalho, as participantes circulam em discursos que interseccionam raça, gênero, classe social e nível de escolaridade. Elas questionam a lógica de que à raça negra são destinadas as carreiras invisíveis, ao comentarem que as negras precisariam ocupar outros cargos e serem empreendedoras.
Por outro lado, essas mesmas mulheres, pelo fato de serem negras, teriam de lutar ainda mais por seus direitos e contra os preconceitos/estereótipos diversos, mostrando uma sobreposição da raça em relação aos outros traços de suas performances discursivo-identitárias. Ao mesmo tempo em que Nara, Lívia e Nina se aproximam de uma posição mais queer, por encenarem performances identitárias que contestam os sentidos normatizados e cristalizados sobre as mulheres negras e trabalho, elas também destacam que a questão racial é central.
Quando interagem sobre o tópico relacionamentos afetivos, as participantes encenam performances de mulheres negras, críticas, solteiras, bem sucedidas e que, em sua maioria, apoiam relacionamentos afetivos apenas com homens negros conscientes. Notamos um posicionamento essencialista e político em defesa da valorização da mulher negra e do homem negro, vistos como sujeitos sociais unos e com identidades fixas. Identificamos também performances de mulheres negras bem sucedidas, heterossexuais e que se casariam com homens negros conscientes, conforme encenado por Nina e Lívia nas linhas de 25 a 31.
Retomando Wilchins (2004:115), uma análise que contempla apenas a raça isoladamente pode propiciar uma visão incompleta das mulheres negras. Esta visão possibilita compreender Nara como a única a encenar performances discursivo-identitárias mais maleáveis, apoiando relacionamentos interraciais ou intraraciais. Já Lívia e Nina encenam performances mais pró-negritude quando discutem o mesmo tópico.
No contexto digital em que estão inseridas, ou seja, na comunidade CN da Orkut, as participantes, estão, segundo hooks (1994:130), movendo-se "... além das fronteiras" e tendo o direito de encenar performances contestadoras e questionadoras, ao abordarem o machismo ou outras questões que coloquem as mulheres negras em situação de inferioridade aos homens negros e não-negros. Pode-se dizer que essas participantes estão no mundo online, tendo suas vozes ouvidas e se tornando visíveis, sem terem seus discursos silenciados, como resultado da apropriação dos chamados discursos de democracia racial.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio dos chamados novos letramentos digitais, os usuários de redes sociais podem contestar as lógicas que permeiam o contexto sócio-histórico em que vivem tanto no mundo offline como no online. A internet, especificamente a web 2.0, é um espaço onde nossas performances identitárias podem ser reinventadas ou reconfiguradas. No anonimato da rede, seus usuários podem desconstruir sentidos normatizados e se reinventarem14 14 . Isso não quer dizer, por outro lado, que em tais espaços online não possa haver cristalização de sentidos. No entanto, o anonimato característico desses espaços, assim como a profusão de discursos ali em operação, possibilitam contestações e reinvenções sociais (Moita Lopes, 2010). . Além disso, como visto nesta pesquisa, negros e negras podem abordar tópicos sem o risco de que seus discursos sejam deslegitimados ou desconsiderados. Apesar do reconhecimento da necessidade recente da iniciativa de ações afirmativas no Brasil, os discursos de democracia racial ainda permeiam as diversas interações a que brancos e não-brancos estão expostos, considerando aquele (a) que discute raça como racista (Telles, 2003 e Sodré, 1999).
Neste estudo, ressaltamos a participação coletiva de mulheres cujas performances discursivo-identitárias são encenadas como mulheres, negras, solteiras, bem sucedidas, heterossexuais, questionadoras, articuladas, críticas, com uma postura política sobre as mulheres negras e que defendem um caminho de visibilidade para essas mulheres no trabalho e na vida.
Em tal quadro de performance discursivo-identitária, entendemos que as participantes projetam na interação sentidos ora racializados e essencializados, ora mais próximos às propostas das Teorias Queer. No primeiro caso, a construção de sentidos está mais voltada para a valorização da raça em detrimento de outros traços identitários, especificamente, no tópico interacional referente aos relacionamentos afetivos. E no segundo caso, há uma compreensão de que as mulheres negras são constituídas por gênero, raça, sexualidade, classe social e nível de escolaridade, além de questionamentos quanto à normalização de que às mulheres negras caberiam apenas profissões invisíveis. Tal compreensão se aproxima da teorização queer que busca contestar as normalizações e essencializações identitárias. Essas performances podem ser entendidas como um avanço nas discussões raciais, se nos voltarmos para o contexto da pesquisa, porque questionam as regras da comunidade estudada de que somos construídos apenas por raça.
Notamos, no entanto, simultaneamente, também a sedimentação do binarismo negra x branca e percebemos a construção discursiva de outra dicotomia negra consciente x negra não-consciente. Ao considerar apenas esses dois binarismos em se tratando dos negros, estaríamos, parafraseando Wilchins (2004:115), valorizando a raça como traço identitário performativo único e supremo, desconsiderando gênero, sexualidade, nível social, grau de escolaridade e os diversos contextos em que vários negros e negras vivem no Brasil e nos quais são sempre outros. Em tal perspectiva continua a se operar com a visão de identidade homogênea e completa para esses corpos ébanos, que em última análise é prejudicial aos próprios negros por manter intacto e incólume o binarismo branco versus negro. Tal binarismo coloca o último em posição hierarquicamente inferior, normalização que as Teorias Queer desejam destruir.
Assim, este estudo pode contribuir para desconstruir os discursos de democracia racial solidificados em nossa sociedade ao mesmo tempo em que aponta para a necessidade de desnormalizar compreensões essencialistas sobre raça assim como para a premência de chamar atenção para os perigos que acarretam. No momento em que vivemos, pensamos que temos que estrategicamente saber operar com uma lógica suplementar (Scott, 1999). Por um lado, refutar, brava e cotidianamente, o racismo em todas as suas manifestações, inclusive as capilares, e, por outro lado, recusar as essencializações raciais, que impossibilitam outros discursos sobre quem podemos ser. Do ponto de vista epistemológico, o trabalho também almeja estimular a vertente de estudos sobre linguagem e raça tão pouco explorada no Brasil.
Recebido em fevereiro de 2013
Aprovado em maio de 2013
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Nov 2013 -
Data do Fascículo
2013
Histórico
-
Recebido
Fev 2013 -
Aceito
Maio 2013